[Imagem caseira da homenagem a E.L. erigida pela associação Rio Vivo em 2011, num jardim de S. Pedro do Rio Seco; criação de Leonel Moura]
«Eduardo Lourenço, que aceitou há poucos dias o convite de Marcelo Rebelo de Sousa para integrar o Conselho de Estado, começou o seu percurso intelectual reclamando-se como heterodoxo. Heterodoxia: assim se chamou o seu primeiro livro, publicado em 1949. Seguir “o espírito da ortodoxia” significou um duplo desvio, ou uma dupla “traição”: em relação aos princípios filosófico-ideológicos e estéticos do marxismo, hegemónicos no ambiente intelectual em que se integrou mal chegou à Universidade, em relação à sua matriz católica de origem, a cultura religiosa em que tinha crescido.
É bem visível o conflito interno que, por causa dessa traição, perpassa em muitos dos seus ensaios. Quando, em 1967, publicou Heterodoxia II, sentiu necessidade de questionar a posição heterodoxa e a boa consciência com que a tinha afirmado.
O sentido do convite que agora lhe foi feito pode ser formulado com palavras que são ao mesmo tempo de homenagem e de reserva: o Eduardo Lourenço que chega a conselheiro de Estado é uma figura consensual, livre de todo o teor polémico e de conflito. É fácil perceber que o convite lhe foi dirigido por ele encarnar publicamente e por mérito próprio, no espaço cultural português, a última figura do “intelectual universal” e do “pensador” que se dispõe a ser consultado como um oráculo sobre as questões portuguesas (inclusivamente a famigerada “identidade” nacional), assim como sobre uma Europa desencantada – essa Europa que Eduardo Lourenço, seguindo uma grandiosa tradição literária e filosófica, sempre representou como um “continente espiritual”. (...)
A designação de Eduardo Lourenço para Conselheiro de Estado tem um grande significado simbólico, mas em termos efectivos não o vincula com maiores consequências do que o modo como tem sido cooptado por alguns sectores políticos e posto ao serviço de uma cultura acrítica e conservadora (onde o que menos importa é a distinção entre Esquerda e Direita).
Quanto mais exaltam a figura do “pensador”, mais esses sectores celebram a ausência de pensamento. Com a sua nomeação para Conselheiro de Estado, Eduardo Lourenço já quase nada perde, mas também não tem nada a ganhar. As razões são óbvias: trata-se de um lugar que limita, pelo menos simbolicamente, o uso do instrumento fundamental de que ele não pode prescindir, sob pena de alterar o seu estatuto e a sua função: a palavra. Como é que um homem de palavras aceita colocar, ainda que simbolicamente, a palavra sob condição? Como é que renuncia, ainda que parcialmente, ao seu bem mais precioso?»