quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Sátiro

Chamo-lhe assim e não é que o fosse. Mas era filho da dona Sátira, talhado para futuros, como então se cria.
Um dia foi mobilizado para Angola como alferes e foi parar a Carmona. Não tardou que lhe caísse nas mãos uma donzela, herdeira duma fazenda de café. Chegava ela das mãos dum outro alferes do arre-macho, que acabara o serviço e regressara à metrópole. O sátiro foi apanhado e casou.
Depois do regresso foi viver para uma quinta da família, à vista do rio Mondego. A água vinha do rio, lá ao fundo, a um quilómetro de distância. E tinha no portão, à beira da estrada, um painel de azulejos da Viúva Lamego.
Um dia vendeu a quinta e arranjou trabalho temporário na Siderurgia. Andou por lá uns tempos, enquanto a mulher e a sogra se instalavam numa transversal da avenida de Roma.
A fazenda de café tinha ido à vida. E a mulher dava aulas, a sogra passava o tempo e o sátiro punha na cabeça um chapéu à Sherlock Holmes e apanhava porrada das duas. Só para aprender aquilo que a vida custa. Mas foi tarde.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Sinfonia


E o vento que vibrava nas agulhas dos pinheiros era uma sinfonia de sussurros doces. Hoje ouve-se a estalada das pás dos aeródinos a rodar no céu, a criar energia e calor. São os escravos modernos dum império velho. 

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Vida

A cadela claudicou no parto, porque a história das fêmeas que morreram a parir não se esgota nos humanos.
Tinha lá dentro seis filhos nados-mortos.
A dona da cadela deixou correr duas lágrimas tristes.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Diálogos

O Platão cresceu, ganhou bochechas de gato dominante, uns grandes bigodes e muita sabedoria.
Ontem foi à horta e encontrou a cobra, que saía da toca onde passara o inverno.
Logo ela se pôs com as fosquinhas do costume, a fazer olhinhos e tal. Só p'ra ver se o levava à certa.
E vai ele: - Ó menina, o que tu sabes a mim já me esqueceu!
E lá foi, à procura de aventuras melhores.

domingo, 14 de janeiro de 2018

Eu bem te digo, António!

Atão e o onde, o quando, o como, o porquê e com que fim?!

"Deus sabe que eu não queria. Deus conhece o íntimo da minha carne, a razão dos meus pecados e o labirinto das minhas intenções. Deus acompanha-me desde a Índia, onde o meu pai, de bivaque, trabalhava de estafeta na alfândega do porto e a minha mãe cozinhava no telheiro, sob a chuva, a tartaruga do  almoço, e continuou a acompanhar-me pelos anos fora dobrando as palmeiras da praia, nas monções, com um só dedo do seu vento e baixando em pleno dia numa noite absoluta que transtornava as iguanas e as mulheres.
Deus trouxe-me consigo para Moçambique como criado dum marquês que regressava ao reyno numa escuna de velas enfunadas pelos leques das aias, pesada de quinquilharias orientais vendidas depois nos túneis do metropolitano por gurus esqueléticos, acocorados no chão ao lado dum pífaro e de uma caixinha de mortalhas. Na véspera da partida de Lourenço Marques adormeci no quarto de musseque duma chinesa que conhecera duas horas antes, levitando em passinhos curtos numa avenida da Baixa, e ao acordar vi através do seu sorriso mudo, pela janela, os  leques das aias que acenavam no horizonte e um mandarim centenário ajoelhado numa almofada a almoçar carochas duma tigela de Barcelos. (...) O único branco do bairro vendia bíblias, postais eróticos e gira-discos no porta-a-porta da cidade, chamava-se Fernão Mendes Pinto, possuía uma cabana na areia atulhada de refugos de equinócios e recordações da Malásia, sentava-se à beira de água a comover-se com os crepúsculos, fez-me sócio no comércio de evangelhos e uma tarde, ao chegar mais cedo ao musseque, encontrei-o, nu e repulsivo, em cima da rãzita transparente da chinesa que sorria para o tecto a sua doçura inalterável. (...)
Com as automotoras chegavam sem cessar políticos, calceteiros, presidentes de câmara e cobradores de impostos. (...) Uma súbita aldeia de moradias, supermercados e cinemas alisava as dunas e avançava terraços pala mata. Arrumaram o padrão, limpo de folhas, na cave dum museu, à sombra de bustos de cera de exploradores memoráveis. Instalaram um clube naval para comodoros paranóicos num lugre abandonado, depois de o libertarem dos esqueletos de calafates que se desfaziam em pó mal o piaçaba lhes tocava. (...)
Os circos deram em desembarcar de vagões de mercadorias, e os equilibristas armavam as redes em praças roubadas aos eucaliptos e ao capim. De tempos a tempos o governador, acolitado de oficiais bigodudos, visitava os quarteirões pobres prometendo esgotos, e partia com um cabrito nos braços agaloados, ao som do hino, num automóvel gigantesco com um par de bandeirinhas no capot."
[AS NAUS]

sábado, 13 de janeiro de 2018

A seita

A primeira e única coisa que a seita do PPD/PSD trouxe de novo aos portugueses foi um novo D. Sebastião. Um Sá Carneiro que teria feito milagres no seu tempo, se não tivesse morrido tão cedo num desastre de avião, ou lá o que foi.                    
A partir daí foi sempre a descer. E é onde está ainda, apesar da idiotia indígena que não passa sem um pai, falso que seja.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

 

Em Portugal há pacientes que sofrem de fibromialgia desde crianças. E medicam-se com óleo de canabis vindo de Espanha. Porque os ilustrados médicos indígenas só há pouco tempo começaram a reconhecer a fibromialgia. O resto da questão era dos psiquiatras.
Sejam indulgentes os deuses, perante o sofrimento que eles deixaram à solta.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Grumos

Un poème inédit de Patrick Chamoiseau:

Depuis l'effroi, depuis la peur
Depuis la rumeur abyssale des griots et conteurs
Depuis l´encre de celui qui écrit

Depuis la magie du verbe qui ordonne au réel
aux odyssés aveugles qui s´appliquent à tout voir et a tout raconter
Des folies qui galopent dans l´audience des moulins
aux passions qui font scènes dans de plusieurs royaumes
La haute saisie du temps
dans les arcanes du souvenirs et le cosmos de la mémoire

Voici les furies coloniales
L´hécatombe des grandes guerres
Ces gouffres-monde ouverts qui défont la parole
Jusqu'à l'orgueil des langues que n'étaye plus la ciselure du style

Juste à ce point de déroute où
Faulkner

Dans la langue hors toute langue (...)

[Poesia? Ufff! Estes vagidos contemporâneos lidos no Magazine Littéraire  são grumos no leite creme. Vão-se lixar!]

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Bardamerda, diz a juventude!

Já não há bilhetes para o Rock in Rio, que só há-de chegar lá p'ro equinócio!
O pior vai ser se o resto dá para o torto!

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Sentido

Perguntarei aos patos do lago
e aos corvos que às tardes passam a grasnar no céu alto
e aos pardais
que acordam na madrugada
e se põem a viver
onde vão buscar a alma de vencer este gelo
e guardar este sentido

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Este país não é para velhos

Muitos automobilistas tugas são surpreendentes:
- chove a potes, prego a fundo!
- piso seco, fundo a prego!
- há nevoeiro, farolada em cima!
- há um bicho na estrada, passa-se a ferro!
- aquaplanning, o que será ele isso!
Depois encontram-se na morgue e fazem uma festa. Falta é que não fazem cá nenhuma!

domingo, 7 de janeiro de 2018

O cabrão

Está lá tudo contado, e bem, pelo Joaquim Furtado. Agora só falta vê-las. São nove fitas duma hora. Ele ouviu brancos, pretos, mestiços, UPA's, FNLA´s, MPLA´s, colonos, generais, governadores, tutti quanti.
O sacripanta de Santa Comba, esse sepulcro fariseu pintado de branco, deformado pela padraria, fez de toda a gente um nagalho e atirou milhões de pessoas para uma fogueira.
Na Índia mandou a tropa, que não tinha armas, nem munições, nem botas resistir a um exército de 45 mil indianos que reclamavam Goa em 61. Até que Abril chegou, como não podia deixar de ser.
A estátua do sacrista ficou um dia sem cabeça. Talvez assim passe incógnito no inferno.

sábado, 6 de janeiro de 2018

O avô que foi à guerra e contou

Há netos com sorte. Este tem um avô que foi à guerra e escreveu um livro só para ele saber.
"Estávamos para aí há um ano naquela monótona vida de isolamento a lidar sempre com os mesmos camaradas, as conversas não tinham grandes cambiantes, as caras eram sempre as mesmas. Até a paisagem que a princípio era deslumbrante, por ser diferente, não se alterava. O tédio acabaria por nos cacimbar se não mudássemos rapidamente de ares. (...)
Delineou-se a estratégia, e o plano foi amadurecendo e ganhando forma. Estabelecemos o percurso, as paragens, os tempos de estadia, tudo muito bem organizado. E lá fomos à aventura.
Chegámos a Luanda. E na manhã seguinte procurámos a Havaneza do Cruzeiro, uma tabacaria que também alugava automóveis. De lá saímos montados no Anglia Fascinante que foi nosso durante um mês.
A visita às quedas do Duque de Bragança foi um inesquecível deslumbramento. Únicos visitantes, enchemos os olhos e a alma com tanta beleza selvagem que já tínhamos esquecido que existia. Depois rumámos para sul, tendo como objectivo chegar a Moçâmedes, depois de visitar Nova Lisboa e Sá da Bandeira. Como em Moçâmedes a estrada ainda continuava para sul, decidimos ir até ao fim e através do deserto chegámos até Porto Alexandre. (...)
No deserto tirámos fotografias em cima da planta considerada carnívora, única no mundo, a Welvitcia Mirabilis. (...)
Esta viagem durou o exacto tempo das nossas férias. Fizemos o caminho inverso e recomeçámos a contagem dos dias que faltavam para tirar a farda de vez.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Um homem é um homem, um gato é um bicho.

São muito úteis, as máquinas, mas eu não confio nelas. Recuso e anulo todos os tiques e automatismos dos automóveis modernos.
Muito a propósito fui ver um filme do Stanley Kubrick, 2001 Odisseia no Espaço. O filme é uma delícia e uma fonte de ensinamentos. Até que o supercomputador Hall 9000 toma o freio nos dentes e vai para lá do que deve. 
À equipa de astronautas não resta senão desligá-lo. Apesar dos seus protestos.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Noites álgidas

Havia patos à beira do lago, que amanhecia gelado.
E neblinas no bosque e um jornal na padaria.
As noites eram álgidas e solitárias, até que um dia ela deixou entreaberta a porta. Foi uma revelação.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Ano Novo

E o Tsipras grego também teve um réveillon? E o Varoufakis bebeu champagne? E os tiranos da troika bateram com a mão no peito, de vergonha? E o Sócrates da nossa terra, que é feito dele?

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Poesia

Ai de mim que nunca fui poeta! Salvo uma voz que me saiu um dia da boca duma personagem de romance.
Era uma voz de padre, há muitos anos. Um capelão militar, que me encontrou estendido na maca à entrada do hospital, muito mais morto que vivo.
"Somos só verdes vimes que um vento verga!". Foi só isto.