Chegou a altura de fechar a loja, sinceramente grato aos fregueses.
sábado, 18 de março de 2023
domingo, 29 de janeiro de 2023
Manás
O bartolomeu não sabe explicar por que tomou a decisão de subir ao chiado, naquele dia à tarde. Certo está apenas de já não guardar esperanças no peito, à medida que ia subindo a rua nova do almada. Dormia há três meses nas arcadas do ministério das finanças, encostado a um pilar que os pombos ainda respeitavam. Esmolava no sul e sueste, quotidianamente posto em risco pelas avalanches de pernas que desaguavam de cacilhas, e aventurava-se a um almoço na económica dos anjos, quando as forças lhe deixavam subir a avenida, o que era raro. Nesse dia trepou ao chiado,como quem vai de férias.
Olhai as aves do céu, que não semeiam nem colhem! Soletrou o cartaz pendurado ao cimo das escadas da igreja dos mártires, que no íntimo sentiu como sua, porém sem cogitar o milagre que ali estava à espera. Atravessou o guarda-vento, tacteou ao longo da parede e lançou os dedos à pia de água benta, num gesto que desenterrou duma memória antiga. E foi quando a mão direita lhe transitava, canhestra, entre o pai e o espírito santo, que os olhos se afizeram à obscuridade e decifraram o peixe picotado no lioz da coluna, mesmo por cima do tanque.
Pouco dado a leituras cabalísticas, o bartolomeu ficou surpreendido. Mas logo saltou da surpresa para o espanto quando viu o peixe desprender-se da pedra e mergulhar na água benta, num encarpado perfeito.
Arqueou as sobrancelhas, roçou um punho nos olhos, não queria acreditar. Procurou assento num dos bancos corridos, e ali ficou, de queixo nas mãos, enquanto a fresca atmosfera da nave central lhe assentava lentamente na cumeada dos ombros. À saída foi espreitar a concha da água benta. O pequeno dorso do peixe evolucionava lá dentro, a lavrar, cuidadoso, as lodagens do fundo.
Oito dias depois regressou à igreja, e lá encontrou o vulto escuro a remexer as águas. Mas o que via agora eram dois palmos de lombada sólida e carnuda, de barbatana inchada, abrindo as guelras ávidas ao maná da água benta. Logo ali capturou o robalo a mãos ambas, fê-lo desaparecer no bolso e foi tratar do jantar.
No dia seguinte foi à igtreja de são roque e saiu-lhe uma carpa enorme. Na sé teve direito a salmão. Nos jerónimos ia-se empanturrando de besugos, de linguados, de azevias. O bartolomeu tem o futuro assegurado. Levará muitos anos a percorrer as pias de água benta de lisboa. Depois há-de vir o porto, santarém, a idolátrica braga... E o bartolomeu olhará, sem cobiça, os pássaros do céu, enquanto for correndo as capelas do minho, à espera duma lampreia.
sexta-feira, 6 de janeiro de 2023
A ninfa
Eram os olhos a maior perdição dela. Tão grandes que neles cabia o mundo, tão escuros e fundos que lembravam o mar. Depois vinha a estampa límpida do rosto, debaixo da gaforina asa de corvo: o lábio húmido, a carnação macia, a flor da face cheia de mistério, a prometer abrir-se num sorriso que não chegava a abrir. O restoera o colo generoso, o ventre inquieto, as colunas das ancas a prometer abismos.
Ninguém sabe explicar como apareceu ali, criada na aldeia, aquela ninfa antiga. Olhava-se para ela e vinham à lembrança as deusas primitivas da fertilidade. O mesmo nome, Pristila, era um sinal pagão.
Dava escola para os lados de Aveiro, e vinha a casa sempre que podia. Chegava na carreira, ao fim da tarde, porque o pai, atento à vida,a reclamava.A bem dizer, era a aldeia inteira que a exigia.
Na vila sabia toda a gente que o Tunante não era boa rês. Era um vilão bastardo, que faziadeste mundo uma coutada de caça. E todos lhe guardavam respeitinho, mais por instinto primário de defesa, do que por atributos que não tinha. A ninfa confundia nele a brutidade grosseira com predicados de macho dominante. E quando vinha à vila, a passear, nem lhe escusava as momices atrevidas, nem os avanços de bruto galaroz. E acabou, já mansa e confundida, a enlear-se no assédio do bargante.
No dia em que as férias começaram chegou a ninfa à vila, desceu da carreira ao fim da tarde. Uma outra que vinha do comboio havia de pô-la em casa. Mas o Tunante estava à espera dela. Cercou-a de rapapés e cortesias, havia de lhe mostrar a loja nova, logo à entrada das muralhas.
A ninfa deixou-se conduzir. E quando veio a hora da carreira, à beirinha da noite, prometeu-lhe o Tunante que um amigo a levaria a casa, de carrinho, à moda das princesas. E ela logo se rendeu, enleada em semelhante gentileza. Tinha mesa posta e banquete preparado, bom presunto, melhor queijo, de vinho bastava-lhe um dedal, não estava acostumada.
A princípio o Tunante foi cordato, coroou-a de rapapés, quis levá-lacom bons modos. Penteou-lhe a gaforina, passeou-lhe as mãos no flanco, encheu-lhe o copo de vinho. E abriu-lhe um botão do peito, só para ter uma noção.
A ninfa aos poucos cedeu, o coração num galope. Dum lado o corpo inteiro a amotinar-se, o sangue a romper as veias,, o ventre incendiado a extravasar. Doutro lado um grande medo, a cara dele a perder as feições, e um gesto tão poderoso que a assustava.
Quando quis despir-lhe a blusa, a ninfa ainda resistiu. Mordeu o lábio para evitar um grito, cruzou os braços no peito sublevado, refugiou-se no medo. E o Tunante deteve-se um momento, pareceu abandonar o campo de batalha. Foi ajeitar, ao canto, as mantas que lá tinha. Depois apagou a luz, ergueu numa braçada a ninfa amedrontada e foi estendê-la no chão.
Lá fora passaram socas a tropear na calçada. Porém a ninfa hesitou, reteve outra vez um grito. E já dois braços poderosos lhe sujeitavam o corpo, e as pernas brutas lhe apartavam as colunas.e rudes mãos lhe devassavam o peito. As socas na calçada voltaram a tropear, mas a ninfa retraiu-se. Conteve a respiração, não fosse ouvir-se lá fora o ranger do bragal que estilhaçava. Por três vezes entrou nela um vendaval, três vezes a desfolhou. Depois caiu uma escuridão desamparada, e um lago que arrefecia.
Por fim bateram à porta, era o outro que chegava. Aconchegou a ninfa no banco de trás do seu Volvo marreco e arrancou. Antes de a deixar em casa foi parar na carreteira dos moinhos do Alcaide, ninguém ali passava àquela hora.
O Tunante recolheu as mantas, fechou as portas da loja. Uma ninfa desfolhada dava casamento certo, era raspar-se um homem para o Brasil ou sujeitar-se aos códigos. Porém, em sendo o festim a meias, era ela assumida marafona e os códigos sossegavam. Cumprisse o amigo a sua parte e ficava o problema resilvido.
Quando o Outono chegou, depois das primeiras chuvas, o Tunante subiu para a camioneta e foi recolher à aldeia uns contratos de centeio. Bem o avisaram as sibilas, que desfizesse o negócio, que por lá tinha a morte prometida. Mas ele guardou a sovaqueira no casaco e lá subiu a encosta, a governar a vida. Um homem não saiu para outra coisa das mãos do criador.
O pai da ninfa já estava à espera dele, sentado no balcão. E quando o viu saltar da camioneta, de machado nas unhas foi-se a ele. O outro ficou surpreendido, não podia acreditar. Estendeu a mão à sovaqueira e pôs-se a ladear, queria ver se era verdade. Mas o homem trazia no carão a fúria dum deus irado, como quem chega duma tragédia antiga, o melhor era levar a coisa a sério. E desatou a correr.
As mulheres espreitavam à janela, havia gente que parava pelas hortas, a olhar, silenciosa. A própria tarde parou, a ver um homem cavalgar estrada abaixo,atrás doutro que fugia. Quando o sentia mais perto, virava o braço para trás e disparava. Disparou à passagem do ribeiro, e à horta da Teresa Côta, e à subida do negrilho, e à curva da fraga grande.
Agora chegámos nós à fundeira da encosta, e já cruzámos a estrada, e temos à nossa frente o açude da ribeira. Não nos sobra mais que um tiro, e já nos queima o pescoço o bafo dum deus irado. O Tunante apontou-lhe ao coração e disparou. E o machado, que lá vinha como um raio, enterrou-se-lhe no ombro.
Mas vem dalém um pastor, a correr em altos berros, vem salvar esta desgraça. O primeiro já está morto, nada podemos fazer. Para que nos serve o segundo, um vagabundo. E num golpe de machado abriu-lhe a cabeça ao meio.
domingo, 25 de dezembro de 2022
Nocturno em si menor
Alguns dormitam, maçados, nos beliches, ele viaja a noite inteira a pé. Entre o bar e o corredor, entre uma nova cerveja e os considerandos do salário que recebe. Quase setecentos contos, mesmo quando não embarca. Como agora, que vem a casa ver a mulher. Mas isso vai acontecer só amanhã, lá pelo meio dia, em chegando à Pampilhosa, depois de atravessar a infindável noite basca, a leonesa, a castelhana, num Sud-Expresso lôbrego.
Alfredo tem trinta anos e deixou a escola antes do tempo, em Mira. Foi trabalhar com o pai, no tempo em que havia quarenta companhas só nas artes da xávega. A princípio puxavam a rede à unha, com juntas de bois que enterravam os cascos no areal macio. Hoje não chegam à dúzia. O peixe foi-se embora, será culpa das chuponas espanholas. E ficou tão barato na lota quanto é caro nas bancas do mercado, não se compreende Portugal. Paga-se o gazol do barco e o resto mal dá para viver. De forma que o pessoal começou a emigrar e ele foi parar a Quipert, ao pé de Nantes. Foi há dois meses, mais um cunhado, é esta a primeira vez que vem a casa.
Em Quipert saem para o mar à quinzena e Alfredo é o cozinheiro. O dono do barco é tão velho que já não navega, toda a companha de sete é contratada. Mas o peixe vai à lota ao mesmo preço para todos e toda a gente ganha. Só não se entende o que se passa em Portugal.
Alfredo vem excitado com os considerandos do salário que recebe. Jantou no vagão restaurante, bebeu uma garrafa de bom vinho, no fim pediu um conhaque e pagou quarenta euros mas valeu a pena. Depois foi aturando a noite a poder de cervejas, e é por isso que já lhe arrasta a voz, e tem este bafo choco e amargoso, e repisa outra vez os considerandos do salário que recebe. Quando chega a Vilar Formoso desce ao cais durante meia hora, o tempo de mudar a máquina ao comboio. Bebe outra cerveja na cantina, com uns camaradas negros que exercitam um hip-hop lusófono, e também chegam da Europa.
Lá pelo meio-dia, toldado como vai, Alfredo levará tempo a encontrar-se com a mulher. E logo que o conseguir vão ser horas de apanhar outra vez o comboio Para voltar a Quipert, ao pé de Nantes. Onde agora é cozinheiro, sempre que sai ao mar, a pensar nos considerandos do salário que recebe.
terça-feira, 13 de dezembro de 2022
Responsório
Vais-me dizer que eu inventei a história. Que eu sou um cínico e a história é impossível. Andas muito longe da verdade.
O padre Abreu não é padre, nunca chegou a sê-lo. Não tem cabeça para teologias e as latinadas cansam-no. Mas veste-se à futrica, como os padres modernos, e sempre que pode exercita a função. Mora aqui na cidade. E o povo, que nãosepara o facto do direito, chama-lhe padre Abreu.
Razão terá, que o padre Abreu não sonha com outra coisa, passa a vida na sé. Ajuda à missa, cuida da liturgia, aconselha as devotas e decora os responsos. Já perdoou pecados capitais, e gente há que entrou no céu por sua mão.
Há tempos foi preciso enterrar um cristão, numa aldeia dessas despovoadas, onde nem padres vão. E o padre Abreu lá foi, a encomendar o defunto, a devolvê-lo ao pó. Mas os parentes vieram a saber que o padre Abreu nunca tomara ordens e temeram o pior. Puseram-lhe uma demanda em tribunal.
O padre Abreu sentou no banco dos réus a gravidade e a mansidão dum sócio do Vaticano. Alegou em defesa o serviço de Deus e afiançou as encomendações.
- Pois faça aí o responsório dum defunto! - ordenou o juíz, a esfolhear os códigos. - Já veremos se merece remissão!
Não pedia outra coisa o padre Abreu. O meretíssimo chegou ao fim apaziguado, como quem deixa um amigo em boas mãos. E absolveu o réu.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2022
Ódios velhos
Chegavam sempre no início do Outono, quando os corvos passavam ao fim da tarde a grasnar às frialdades que vinham de Além-Doiro. Interrompiam-nos a bola no terreiro, saltavam das carripanas escuras, abriam as gaiolas das matilhas. E caíam nos braços dum lavrador lá do povo, inchado por ter amigos na cidade. Soltavam palavrões que eu julgava proibidos, numa língua esquisita de pagãos, e escarravam muito pelo chão.
Manhã cedo faziam-se aos caminhos, de espingarda na ombreira, a açular a canzoada. E não havia brejo em todo o vale inteiro que escapasse à invasão. O cainçar dos podengos ouvia-se nas quebradas, e os ecos da fuzilada faziam eco nas encostas do vale, monte cá monte lá, até ao cair da noite.
Retiravam-se ao terceiro dia, com as grelhas de metal enfeitadas de perdizes a largar nuvens de penas, e rosários de coelhos a pendular nos telhados das carripanas escuras.
Hoje vivemos paredes meias. Os palavrões já me são familiares, e ao sotaque de pagãos acostumei-me aos poucos. Mas não sei como indultá-los do olhar morto das lebres, enforcadas nas janelas, a mandarem-me corrê-los à pedrada.
terça-feira, 29 de novembro de 2022
Sobrevivência
Em 1970, na esquadra da Ota, tudo chegava da América, ressalvando os géneros do rancho que vinham das hortas de Alenquer. Os aviões eram da guerra da Coreia, e a literatura que neles vinha inclusa tinha eficácia há muito comprovada, ou nas escolas do Texas ou em bases do Arizona. Ninguém sabia porquê,mas tudo funcionava. Obtinha-se a máxima produtividade com investimento mínimo, um conceito alienígena que só muito mais tarde assentaria arraiais no linguajar comum.
Faltava-nos treinar a sobrevivência no mar. E se a questão parece de somenos num país de marinheiros, logo adquire as dimensões duma Ilíada caseira, quando calha apagar-se o fogareiro a trinta milhas da costa. E lá veio uma equipa americana.
Fingiu-se o mar na piscina que ali estava, ao fundo da ladeira, rodeada de eucaliptos. Um cabo de aço amarrado numa copa, um rappel vertiginoso, no fim dele um abraço de madastra, à nossa espera nas águas de Fevereiro. Livra-te do arnês do pára-quedas, nada até ao salva-vidas que além está, a dançar ao rés das ondas, iça-te lá para dentro sem demora, verifica a pistola de sinais, os fumos e tudo o resto, não te esqueças dos anzóis que te farão muita falta, se ainda não congelaste estás muito bem assim, já que estás na mão de Deus.
Depois era só vencer os cem metros da ladeira, as botas a chocalhar e o fato a gotejar limos, e o vento enregelado que vinha do Montejunto, a morder-nos nas orelhas, a alancear-nos o peito.
A princípio ainda corri, mas aos poucos foi-me afrouxando o passo. E à porta do alojamento caí na primeira escada. Foi aí que me encontrou aquele anjinho da guarda da senhora das limpezas, que vinha a pegar no turno. Deu o alerta, pôs-se a gritar por ajuda, e soltou-me das vestes encharcadas os ossos que estalavam sem controle. Levaram-me escada acima, meteram-me num chuveiro, barafustaram que viesse o médico. E ele veio, um velho que era dentista, e estava na escala de serviço. Só o meu corpo é que não obedecia, tomado dum frenesi.
Desistiram do chuveiro que fervia, enfiaram-me na cama, e abraçaram a mim, numa esperança de milagre o corpo generoso da femme-de-ménage, que me ofereceu o peito avantajado. Era uma pietá pagã. Mas nem ela conteve o motim dos meus ossos, nem acalmou aquela rebelião. E ainda hoje estou para decifrar o raciocínio do médico, que fez sair a mulher e lhe tomou o lugar, implorando ao meu corpo que parasse de vibrar.
Lentamente amainou o desvario, e os meus ossos deixaram de estalar. Eu voltei a tomar posse de mim mesmo e dispensei os cuidados do médico. Tudo isto contaram-mo depois, o resto dos pormenores não os sei. Mas foram por muito tempo motivo de chacota.E talvez tema dum congresso médico, ou de algum brain-storming na América. A gente sabe lá!