(...)Mas tem as suas obrigações, o viajante, e já se despede de Felisberto, para ir à procura da aldeia. É então que este lhe lança o desafio, enquanto o mestre tira as tosses à lambreta.
- Venha comigo, vou-lhe mostrar um crime!
O viajante fica em alvoroço, não imagina o que o espera, nem Felisberto abre mão do mistério. Seguem os dois ao longo do ramal, antigamente afogado em castanheiros, e hoje cercado de construções de cimento sem graça nenhuma. Mal se notam, à curva, umas alminhas de pedra, com um gólgota ingénuo pintado na madeira, já delido pelo tempo. Dantes havia sempre aqui uns ex-votos de artista, nesta copa de pedra que encima a construção. Um braço tosco de pau, um pé torcido, uma perna que se partiu. Agora, ao passar, ninguém olha para isto. E até o santo Amaro, que sempre branquejou além no cimo da colina, dorme agora escondido atrás do casario.
O viajante vem picado pelo bicho da intriga, mas não é um bom pesquisador. Se não fosse Felisberto a abrir-lhe os olhos, passava pelo crime sem ver crime nenhum. Aqui na Varela havia há mil anos as eiras da aldeia. Eram um maciço arrogante de lajes de granito, a desdobrar-se em camadas pela encosta abaixo, até lá ao fundo, à estrada real. Tinham ilhargas ásperas de musgo e alvas lombadas macias, afagadas por antigas malhadas e pelas colheitas que ali tomavam o último sol. Lá pelo meio tinham recôncavos de berço, onde as mães atarefadas punham os filhos ao aconchego. As eiras eram património demarcado, uma beleza, uma bênção da natureza, conforme diz Felisberto. Mas tudo isso foi desbaratado, quando lhe construíram em cima os disformes pombais que agora estão à vista.
- Maior que a brutidade a destruir, só a ignorância e a cegueira das pessoas! – confessa Felisberto, furibundo.
O viajante vai deambulando por ruelas recentes, entre hortas improvisadas e paredões e aterros, onde se juntam lixos. Das fragas de pedra não vê nem um sinal, mas leva muito à letra a indignação de Felisberto. Felizmente não há ninguém na rua, a quem declarar guerra.
O viajante concorda que o mundo não tem sentido, sem a gente que o habita. Mas quem assim alegremente se desfaz do passado, apaga a cultura e as raízes e as tradições que tem. Com elas vai o presente e vai tudo. Mais lhe valera, ao mundo, estar deserto.
Felisberto já desvendou o seu crime, vai saber da lambreta e já se despediu do viajante. Este fica sozinho, pensativo, e não encontra a ponta deste novelo, por mais que se interrogue. Por sua própria experiência, sabe ser a ignorância a mais escura das noites. Mas fica sempre pasmado, diante da escuridão. Sobretudo se já não há milagre que lhe possa valer.
Deixa os pombais para trás e já lá vai, ao longo do paredão do cemitério, e decide fazer-lhe uma visita. A um lado porque também um cemitério é um espelho do mundo, pelas boas e as más razões. E a outro porque vai à procura de sinais dum homem corajoso, de quem já ouviu falar. O cemitério é obra asseada, tem aspecto cuidado e dimensão apropriada. Logo nele avultam uns jazigos a chamar a atenção, mas antes quer o viajante descobrir a campa do padre Júlio de Moreira, que aqui foi sepultado. Vai andando devagar, entre lápides de gosto duvidoso, e neste particular conclui que já tem visto pior. Porém, como noutros lugares, quanto mais recentes são as sepulturas, mais estapafúrdios são os arrebiques e mais surpreendente o bricabraque. Por razões que só eles saberão, decidiram os vivos obrigar os defuntos a tomar parte nestes festins de mau gosto modernista.
Mas já o viajante encontra o que procura. Encostados a uma campa recente, que lhe tomou o lugar, lá estão os restos da lápide funerária do padre Júlio, uma cruz celta e um livro de pedra que ali deixaram aberto e nunca mais se fechou. Antigamente havia símbolos na morte, havia um pensamento ritual, uma coluna quebrada, um anjo de asa caída. Agora há só alindamentos, enfeites de arraial, um dia em breve serão formas vazias, entulho cultural.
O homem era de Almendra. E logo que se fez padre veio parar a esta freguesia, estava a chegar aí o século XX. O padre Júlio jurara, de boa fé, o celibato dos cânones. Mas quando aqui encontrou a Carmina, teve mais força a vida que as papeladas dela. A voz comum acabou por estranhar tão chegada mancebia. E bem fez o padre orelha mouca, mas o bispo exilou-o para Moreira de Rei, por trás daqueles montes. Foi então a vez de Carmina pôr os pés ao caminho. Era inverno, a chegar a primavera, e lá vai ela encosta abaixo, passa a ponte velha sobre a Teja, faz uma vénia contrita ao santo que além está na capela, um São Sebastião debaixo duns negrilhos, sobe os cerros do Montrangão, atravessa a charneca das Terras Grandes, e senta-se a descansar no alto de Moreira, abrigada à capela do mesmo S. Sebastião que outra vez ali a está esperando, à entrada do povo. Carmina dá tempo que chegue o fim da tarde, para dar menos nas vistas.
Outra vez investe o bispo contra a mundanidade, e outra vez resistem Carmina e padre Júlio, ninguém saberá dizer qual deles com mais vigor. O bispo suspende o pastor, tira-lhe o priorado, agita uma interdição. Carmina responde mudando-se para Moreira, e se este bispo conhecesse o jardim do paraíso, saberia muito bem que nada tem mais força que uma boa paixão. No fim acabou por recuar. E Moreira, que já tinha tido um rei vencido, ganhou agora dois vitoriosos, e uma família nova.
A bem dizer o viajante não se agrada de fariseus fraldisqueiros, mas o padre Júlio era um homem justo. Percebeu a grandíssima distância que vai de Cristo à igreja que dele dizem. E, tendo que escolher, não hesitou. Entregava as pistolas ao sacristão antes de entrar para a missa. Mas cá fora era republicano, apoiava Afonso Costa, e defendia, ó deuses, as leis de separação entre a igreja e o estado, contra o cego furor da clerezia. Num dia de invernia entrou, para se aquecer, numa cozinha do povo. A dona da casa bem que lhe dava uma chouriça assada, era o melhor que tinha. Mas era dia de abstinência e ela não pagara as bulas. O padre tirou uma bula do bolso, embrulhou nela a chouriça, assou-a no borralho e todos a comeram, com grande satisfação e muito maior proveito.
- Adeus, ó pai dos pobres! - chorava o povo de Moreira, quando o padre morreu. O viajante pensa que não se pode levar prenda melhor, depois de morto.
(...)