quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Alta

Então apanhei um dia uma carga de paludismo, que voltara à cidade. Não sei se doido, não sei se cerebral, conforme lhe chamaram. Eu não sei. Era um febrão que eu nunca tinha sentido. E lá fui parar ao hospital, às mãos dum médico que me arrecadou nos cuidados intensivos durante uma semana. O corpo desfazia-se-me em água e acabou por arribar. Mas ainda tinha à espera uns dias de quarentena numa enfermaria. Não levei muito tempo a reconhecê-la. Era a mesma antiga enfermaria onde eu passara dois meses a refazer os destroços dum desastre aparatoso, uns trinta anos atrás, nas aventuras da guerra. Na cama junto à janela batia o sol, cicatrizavam as feridas que a viseira partida me deixara nos olhos, vinham às vezes visitas de donzelas condoídas. Um enfermeiro solícito empurrava-me a comida para a fornalha dos queixais que recusavam abrir, nunca mais esqueci um tal cuidado.
Mas desta vez o rancho era intragável. Uns caldos indecifráveis, umas aguadas mistelas sem sabor, não havia maneira de as tragar. Ao meu lado estadiava o mais-velho Faustino, que era uma figura sossegada, o que o forçava ali não cheguei a sabê-lo. E todos os dias chegava a família ao meio-dia, a trazer o almoço ao patriarca. Juntavam-se em volta dele a acompanhar o repasto, às vezes funge, um frango à cafreal… E eu ficava-me a olhá-los, silencioso.
Um dia o negro Faustino olhou para mim muito sério, e decretou perante o adjunto: - A partir de hoje passas a comer comigo o almoço que eu tiver! Não podes dizer que não!
Nem chegou a uma semana, tive alta do hospital.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Gosto

Dos regatinhos que descem a encosta, acordando as pedras do seu húmido sono;
das árvores que vão perdendo as folhas, depois dum Verão inteiro a darem fruto e sombra;
dos animais sem caprichos nem excessos, que seguem o instinto e a função;
das encostas dos montes adormecendo em paz, à espera da neve que há-de vir.

sábado, 26 de outubro de 2019

Dona Elvira

Todos os dias, quer chovesse quer nevasse, lá ia ela. Atravessava a ponte de pau do ribeiro, subia a ladeira da Sobreposta e ia dar escola a Casteição. Ao fim do dia fazia tudo ao contrário.
O homem dela era o Guinemer, um fura-bolos herege que ninguém sabia onde encontrara o nome. Mantinha ali no adro uma taberna, que então o povo era muito. E um dia sonhou que a era dos moleiros ia chegar ao fim, muito antes de alguém pensar numa barragem.
Construiu uma moagem além ao fundo do povo, debaixo duns castanheiros. E o motor lá ribombava todo o santo dia, fazendo rodar as mós.
Anos mais tarde a vida deu outra volta. O Guinemer resolveu partir para a África e levou a dona Elvira. Verdade ou mentira, diz o povo que ele um dia acabou debaixo dum tractor, que um preto fez empinar e cambulhou. Dela nunca mais ninguém falou.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Algo vai muito mal...

... e não é no reino da Dinamarca! É antes na escola portuguesa.
Um professor não permite o uso de telelés na aula. Mas os meninos têm sete cada um, que um só não chega para ficarem online
Um menino rapa do telelé, o profe pede-lho, ele recusa. Um gesto brusco do mestre leva o menino a bater com a cabeça na mesa. 
A PSP é chamada à escola, o profe é suspenso e vai parar à esquadra, onde ficou uma tarde. Acabou por ficar detido e o tribunal é o passo seguinte. 
Onde é que nós todos queremos chegar por este caminho?!!!

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Cumeeiras da vida

O infante crescia-lhe enfezadito, a barriguita inchada. Só ele. Os outros cresciam à lei da natureza mas eram escorreitos.
O doutor fez-lhe o diagnóstico e apontou a solução. Aplicando correntes galvânicas salvava-lhe o garoto. Mas na vila só à noite havia corrente eléctrica. 
Lá vai esta mater dolorosa, ao lusco-fusco, a cavalo na marquesa, o cachopito nos braços, embrulhado no xaile. Quando volta é alta noite, está frio, mas ela vem contente.
O pai ficou em casa, de perna estendida e pés à lareira. De consciência tranquila, como os parvos.

domingo, 20 de outubro de 2019

Da Raça

Imagem
(Quartel de Malapísia, Norte de Moçambique)
Este é o tempo dos reencontros de sobreviventes da loucura colonial. São cada vez menos os que vêm, e mais acabados chegam. Mas vêm.
O 10 de Junho transformara-se no dia da raça. Em frente da tribuna, de costas para o Tejo, entidades medalhadas penduravam cruzes de guerra no peito de viúvas e de mães cansadas, enquanto as trombetas atroavam as pombas do Terreiro do Paço.
Fui ver o episódio 9 do Joaquim Furtado, sobre a guerra das colónias. No fim, uma jovem viúva que não se esquece facilmente deixa cair duas lágrimas cara abaixo, enquanto alguém lhe espeta no peito uma medalha.

Anjos da guarda

Olho para trás e custa-me a acreditar. Foi aqui nesta ruela, numa casinha que já não é igual, que a minha vida civil começou. Há tantos anos que já nem parecem meus.
A minha avó Adelaide viveu aqui comigo, enquanto precisei dela, e o seu papel era apoiar-me em casa
Na cozinha ardia uma fogueira, com lenha que vinha da aldeia ao lombo da marquesa. Hoje adivinho que o meu anjo da guarda apenas acendia o lume quando eu chegava. Nessa altura nem pensava nisso, mas hoje comovo-me infinitamente.
É o que fazem os paraísos perdidos, quando acabam. E a vida acaba com eles,a bem dizer.

sábado, 19 de outubro de 2019

No Verão

O do rabo longo
O abelharuco, que tem o rabo longo, passa o tempo a estudar o relvado, saltitando entre a faia e a figueira. Não são, a bem dizer, os figos que o motivam, mas os grilos. Quando algum se arrisca no carreiro mergulha em cima dele. Crucifica-o no bico, vai sentar-se num galho e come-o. Passou a manhã nisto.
Afora isso abriga-se na sombra e alarga as penas à brisa, a refrescar-se. Só volta ao chão se um grilo se aventura.
Mas mal a gralha, que tem a fala dura, espanejou as asas e desce do carvalho, logo o abelharuco desampara o relvado. Esquece grilo e tudo.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Abraços de urso

As eleições provocaram estrupido e rasgar de vestes, tristezas muitas, pois natural. E depois vêm as réplicas.
Já o Relvas, de memória má, tinha aproveitado para latir. Mas o que se não imaginava era que, lá dos fundos ensombrados da quinta da Coelha, viesse ainda uma voz cavernícola, de múmia manhosa, a chamar à peluda a cainçada.
Ainda por cima dando como exemplo o exemplo triste duma extinta ministra das finanças, esse espantalho que o vento já varreu.
Cães a ladrar, enfim...
https://www.youtube.com/watch?v=8rTq_AEdCo8

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Menina e Rubinho

Esta menina, com doze anos e três irmãos mais novos, desce pela mão da mãe o portaló dum vapor colonial, na Rocha do Conde de Óbidos. Nasceu e fez-se o que é numa província ultramarina, onde o Verão e a liberdade eram eternos. Hoje acaba de chegar a um país vago e tristonho, num dia de inverno frio, e há-de apanhar um comboio ronceiro, com bancos de madeira, que vai partir para o Norte.
Quando ela chegar ao Porto, estão a dar-se em casa de Rubinho os últimos retoques na árvore de Natal, cuja montagem dura há uma semana.
Daqui a um tempo, quando Rubinho for a férias na Granja, esta menina vai chegar no comboio todas as manhãs, e venderá saquinhas de pipocas pela praia fora, para ajudar a mãe a manter a família. Anos mais tarde, quando Rubinho andar entretido a descobrir a vida no peito acolchoado duma senhora inglesa, há-de afagar a menina as frieiras dos dedos, por causa da água gelada do tanque onde lava a roupa das camas dos hóspedes, para ajudar a mãe a manter a família.
Quando Rubinho for para a universidade, onde estão à espera dele os mestres que lhe hão-de explicar o pensamento dos filósofos, irá esta menina à escola técnica nocturna, porque as horas do dia são para ajudar a mãe a manter a família.
Um dia havemos nós de ler as memórias de Rubinho, e adentrar-nos com ele nos meandros do surrealismo. O que nos valia a pena era aprender a sustentar uma família. Mas o mundo é o que é, se não for antes o que fazem dele.