quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Se Maomé não vai à montanha...

Nunca escrevi uma linha para o mercado, por múltiplas razões. À primeira, porque não dependo dele, nem aspiro à carreira de literato. Creio mesmo, firmemente, que só se justifica editar um trabalho, se ele apresentar qualquer coisa inovadora. Tudo o resto não passa de ruído, de repetição inútil do já visto.
À segunda, porque digo o que tenho a dizer, do modo que eu entendo. E não aquilo que ao mercado apraz. Os requisitos da literatura e as leis do mercado e do lucro raramente são compatíveis. Só quando a qualidade do objecto é de tal modo elevada, que submete o mercado e se impõe por si própria. E é rara, uma coisa dessas. Aconteceu, por exemplo, na década de 80, com os primeiros romances de Saramago.
À terceira, porque confundir objectos literários com produtos de consumo é uma insanável contradição. O editor já foi em tempos uma marca de água, uma garantia de qualidade. Hoje deixou de o ser, para mal da literatura. O moderno editor de sucesso é o que responde aos gostos do mercado, imolando a qualidade em benefício das vendas. Esta lei geral do mundo em que vivemos tem efeitos fatais, assim aplicada à arte.

Aqui há uns dois anos dei As Aves à estampa, numa editora entretanto falida. Ao editá-las, fiz o que tinha a fazer. E não tenho a mais leve ideia da recepção que tiveram. Dos publicistas, dos críticos, dos divulgadores que nos ensinam a pensar, não me consta que tenham merecido uma linha sequer. Ora para dizer que sim, ora afirmando o contrário. Porém alguns ecos me chegaram. Guardei três, que me são suficientes.
O primeiro é de um leitor comum, sem obrigações de campo: Este teu livro é muito melhor do que tu! Sendo ele verdade ou não, nada se pode alegar.
O segundo vem de alguém com obra vasta, e não se ouve sem orgulho: V. escreveu o melhor texto de prosa portuguesa que me foi dado ler em anos. Nele encontrei tudo: ritmo, música, vernaculidade, suspense, mistério, escuridões, desesperos, enfim... aquilo por que o leitor espera quando abre um livro.
O terceiro é surpreendente. Porque diz coisas em que eu não tinha pensado, vindas dum leitor com pouco mais de vinte anos: Confesso que, perante o romance, estou siderado, rendido. Os traços essenciais que encontrei na tua obra confirmam-se plenamente aqui, mas agora de uma forma mais sublimada, mais madura, mais certa de si. A influência e a apropriação criativa do Saramago são extremamente fortes, marcantes, estruturantes. O que para mim resulta melhor nesse processo é que tu não pegas numa forma pronta e acabada que aplicas mecanicamente ao objecto que tratas. Não. Deixas que a lógica específica do tema sobre que te debruças determine as influências que vivem intensamente em ti (as do Saramago), situação que humaniza as personagens, os seus caracteres e as suas acções.
A influência do Saramago levada a este nível é coisa nunca vista. É relativamente vulgar encontrar uma linguagem faulkneriana: Rulfo e Vargas Llosa, nas Américas, Lobo Antunes e Marsé, na Europa. Uma sub-linguagem pode também ser encontrada, por exemplo, a partir do Lobo Antunes: Peixotos, Guedes de Carvalhos, etc, (qualquer português aspirante a escriba, em geral). Percebe-se: é uma escrita muito emotiva, cujas poética e musicalidade são particularmente belas e viciantes. Mas enquanto o Lobo Antunes, por exemplo, não imita o Faulkner - já que não autonomiza a forma para adaptá-la à realidade portuguesa, mas antes trabalha a realidade espacio-temporal portuguesa através da influência de Faulkner - os Peixotos e os Carvalhos caem no exerciciozinho de estilo vazio, ou seja, imitam a forma, marimbam-se para o tempo e espaço, para essa chatice da determinação histórica de uma situação.
Em relação ao Saramago, não se encontra tal linhagem de seguidores. Porque a escrita não é de adesão tão imediata, é mais mediatizada, mais original, porque o narrador apresenta um estatuto complexíssimo: conta-nos a história, conduz-nos, literalmente, aos espaços físicos e psicológicos, anuncia os procedimentos formais e estilísticos a que vai recorrer, varia as escalas e os pontos de vista, por vezes desaparece e não anuncia, por vezes desaparece e anuncia, etc, etc, etc. É uma escrita que exerce as sua influência, portanto, ainda mais do que na linguagem faulkneriana, através desta originalidade e genialidade formal.
O perigo, por conseguinte, para o seu seguidor é precisamente o de cair nesta apropriação meramente estilística, oca, formal. E talvez devido a essa dificuldade não haja verdadeiros seguidores de Saramago. Até hoje. Até a "As Aves Levantam contra o Vento". A apropriação é verdadeira, é profunda, é filtrada e trabalhada pela densidade e espessura da tua personalidade - a apropriação é revolucionária. (...)
Gosto também bastante dos flash-backs que utilizas não tanto como procedimento metodológico de construção narrativa e dramática, mas mais como, digamos, idiossincrasia, visão e sentimento do mundo. Trata-se de uma eclosão triunfante do passado no campo do presente, de uma afecção da história geral e individual pelo passado. Em ti, é uma ligação orgânica, a de passado e presente, muito estreita e forte. Orgânica, no plano mais abstracto da inter-relação das duas categorias. E orgânica no plano da inter-relação entre história geral e história individual. (...)
O tema do romance penso que é inédito na ficção portuguesa. Um militar que se exila na sequência do 25 de Novembro é coisa que, no mundo publicístico português, existe apenas como relato documental. Mas, também aqui, para ti, é um 25 de Novembro que tem história, que não se esgota em si, que tem passado (de séculos) e que tem consequências futuras. Acaba, por isso, por ser uma reflexão sobre a modernidade portuguesa, em geral, tendo como pressuposto inicial o 25 de Novembro. (...)
[Declaração de interesses: considero, de facto, que a primeira meia dúzia de romances de Saramago, de Levantado do Chão ao Ensaio sobre a Cegueira, são de génio. Depois vieram concessões ao mercado, quem sabe se inevitáveis. Mas tudo na vida tem um fim, e a criatividade também.]

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Nada feito!

Aos nefelibatas do V Império
Às luminárias da pós-modernidade
E aos que vêem o futuro tremido!

Nenhum homem, nenhum povo saberá para onde vai, a menos que saiba exactamente donde vem, e como é que chegou a este lugar.
Sem varrermos as teias de aranha com que nos enfeitaram a história... nada feito!

Excessos

O que mais me vem acontecendo é encontrar à porta da farmácia um Porsche Cayenne, um BMW X5, um Audi de seis cilindros...
E eu, que sou alérgico a leituras subjectivas, a teorias classistas e a processos de intenções, concluo racionalmente: o governo anda a exceder-se nas prestações sociais, nas pensões dos reformados e no complemento solidário para idosos.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Relíquia antiga - VI

O maurício picapau foi tipógrafo durante um ror de anos. Fartou-se de esquadriar linguados no linótipo, já via tudo mais pardo que o chumbo dos caracteres. Costumava passar todos os dias no jardim de são lázaro, abria os olhos para o céu alto e deleitava-se com a majestade das copas das tílias. Pareciam mesmo árvores da pomerânia.
De há uns tempos para cá, começou a andar de cabeça baixa e ar consumido. Os computadores entraram na gráfica ideal e desataram a fazer o trabalho com uma prontidão nunca vista. Primeiro o maurício ficou regalado, depois ficou perplexo, e finalmente aflito. Mas o pior sucedeu no dia em que o patrão falou da flexibilização do trabalho pela primeira vez. O rapaz levou o lenço tabaqueiro aos olhos, talvez para estancar uma emoção inoportuna, e deu conta de que estava a crescer-lhe um bico na ponta do nariz.
A situação agravou-se com o tempo, à medida que o patrão entrou a falar de globalização, de deslocalização e de coisas assim. O bico do nariz cresceu-lhe descontroladamente, e o velho tipógrafo acabou mesmo despedido, por clara inadequação para o serviço.
Depois disso, o picapau continuou a fazer todos os dias o trajecto de sempre, mas nunca foi além do jardim de são lázaro. Mirava de longe os velhos reformados que lhe estranhavam a fisionomia, às vezes subia o olhar pela majestade das tílias e pensava na família, pensava na ordem de despejo por falha da renda, pensava numa solução para a vida. Até que um dia deixou avançar a tarde, marinhou pela tília mais alta, e passou a noite a escavar uma toca numa forquilha aconchegada.
Na manhã seguinte mudou-se para lá com a mulher. A entrada é acanhada, de tão redonda, e o nariz é complicado de arrumar lá dentro. Mas há males que vêm por bem, com este inverno de chuva que anda por aí.
[in Mensário do Corvo, 2002]

sábado, 23 de janeiro de 2010

Capítulo 38

[Foto da autora, em Lourenço Marques]
A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro e pele de galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos que trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta dum corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta brava. (...) Os lerdos das ideias, lentos, com conta no Montepio, doentes dos olhos por olhar de viés para esses gajos que vêm cá roubar o pouco que é da gente, que a gente cá tem, esses retornados, tão altivos como príncipes que perderam o trono (...). Tão feios, tão pobres de espírito esses portugueses que ficaram, esses portugueses de Portugal, curtidos de vinho do garrafão. Feios, sombrios, pobres, sem luz no rosto nem nas mãos. Pequenos.
[Caderno de Memórias Coloniais, Isabela Figueiredo]


Na ambiguidade instalada entre ficção e não-ficção, ficamos sem saber de quem é este discurso. Se da menina que chegou a Lisboa em 1975, com treze anos, se da mulher em que ela se tornou e hoje escreve. E sabê-lo não era despiciendo, pois todo o texto é apenas injúria, desbragada e acintosa. Talvez inevitável, mas nem por isso mais justa. Ora se da menina ninguém esperará consciência maior, da mulher é de exigir um pouco mais.
Os mitos da política colonial, levados ao paroxismo, serviram sempre uma elite venal e anti-patriótica. E lograram os portugueses restantes, vitimando-os a todos por igual. Mas o império teve ainda este efeito perverso: dividiu os portugueses entre os que um dia partiram, e os que ficaram por cá. Aos primeiros tocaram as benesses de alguma liberdade, de uma vida mais fácil e desafogada, duma sociedade mais aberta, dum espírito mais cosmopolita, duma cultura diferente, duma natureza mais pródiga e generosa. Aos segundos coube exactamente o inverso.
Durante os treze anos africanos, da menina ou da autora, dez mil portugueses feios, tristes, preguiçosos de merda, morreram lá para que ela lá vivesse, e agora só existem na parede do Forte do Bom Sucesso, ali à Praia das Lágrimas. Mais trinta mil, que para lá foram inteiros, retornaram também, reduzidos a metade. E algumas dezenas de milhar ainda hoje esbracejam contra os fantasmas que de lá trouxeram. Dos restantes que por cá ficaram, dos que nunca fizeram a ponta dum corno pela vida e não sabiam o que eram os pretos, um milhão e meio tinham fugido a salto, a ver se matavam a fome na Europa. Os outros estavam aqui, quando ela cá chegou. E deram quanto tinham, que era nada, a todos os que voltaram. Houve mesmo um tal Paulo Chipilica integrado por vários anos em ministérios de Lisboa. Mais tarde havia de ser o ministro da educação da Unita, outro mito dos portugueses de Angola.
No tempo em que um infante megalómano mandou o Gama a descobrir a Índia, e a fundar um império aos portugueses, os suíços eram bonecos de neve, na encosta duma montanha. Os finlandeses vestiam peles de urso. Os danões viviam em cavernas. Não por acaso, só os castelhanos já eram os duques de alba que hoje são.
Onde vai hoje essa gente, e onde nos ficámos nós? A fazer filhos às pretas debaixo dum embondeiro, para engrandecer Portugal! Porque as pretas tinham a cona larga, como nos explica a autora. E não tinham poder para reclamar paternidade. Ninguém lhes daria crédito.
No seu Caderno, Isabela Figueiredo deitou fora a máscara dos tartufos, e dos alienados que sem surpresa a injuriam e lhe mordem nas canelas. Já não é feito pequeno. Mas aflorou apenas a espuma do naufrágio. O do império e o nosso, que foi o mesmo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

As time goes by...

Enquanto folheava uma revista, deram-me os olhos no objecto, aqui renovado e pintadinho de fresco. Em tempos conheci-o por dentro e por fora, quando já era um fóssil de si mesmo. Creio que cheguei a traduzir-lhe um manual técnico, que andava por lá no patois do Texas.
Mas o que me espevitou não são essas andanças, antes a cena final da partida para Lisboa, na noite de Casablanca. O aeroplano era igual. E foi uma porta assim que se fechou sobre a Bergman, aliás Ilsa Lund, a sumir-se já no nevoeiro. E o Rick ficou em terra, a ouvir o negro cantar.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Mais vale tarde que nunca!

[Desenho de 1998]

E logo assim, o nosso homem na Holanda! Deito-me a adivinhar que não era preciso tanto. Que bastaria a Rentes de Carvalho, e a nós todos, não o ter omitido da paisagem literária desde há trinta anos.
Ao longo desse tempo, o homem divulgou lá por fora as coisas da nossa cultura e da nossa índole, e foi tecendo a sua vasta teia (agora ficção, logo mais ensaio antropológico), a qual recebeu por lá vastíssima recepção. Editado e reeditado, ainda hoje é lido e apreciado por aquelas paragens.
Não foi assim por cá, onde apenas teve acolhimento dum editor falido. Publicistas, divulgadores, críticos, editores e outros deuses tutelares do meio limitaram-se a omiti-lo, mesmo se o conheciam. "Em Portugal o bolo é pequeno!"- explica ele, a observar-nos de longe. E primeiro servem-se os oficiantes! - entendemos nós. Os santos padroeiros que distribuem bênçãos aos turiferários, e consomem o tempo a promover capelas, a amamentar irrelevâncias. A realidade e a lucidez crítica não os preocupam, não é com isso que se faz a vidinha. A mentalidade de sacristia que reina dentro da cabeça dos portugueses e fora dela não é preocupação sua. Pouco lhes importa que Portugal seja um anacronismo, que se reproduz indefinidamente como as cabeças da hidra. E a alienação bovina dominante faz-lhes jeito.
Há pouco tempo, uma conjugação astral certamente feliz trouxe enfim Rentes de Carvalho a Portugal. E a Quetzal deu início à edição sistemática da sua obra. Depois de Com os Holandeses e Ernestina (a saga dum certo Portugal, para o qual ainda não criámos substituto), virá em breve A Flor e a Foice, sobre o momento fulcral da vida dos portugueses, que foi o 25 de Abril.
Infelizmente chega muito tarde, e é da obra que falamos. A ele, os jornais entrevistam-no, os blogues fazem-lhe referência, a rádio dá-lhe voz, as revistas concedem-lhe páginas. Uma delas intitula-o o nosso homem na Holanda.
Grande é a fortuna de Rentes de Carvalho. Na nossa atarefada história, casos houve que levaram duzentos anos até chegar aí. Quando não mais.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O Prémio

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

Em 1999, Dick Cheney, que viria a ser vice-presidente dos EUA com George W. Bush, afirmava numa palestra proferida no London Institute of Petroleum : “Em 2010, vamos necessitar de extrair mais 50 milhões de barris de petróleo por dia. E o prémio está no Médio Oriente, pois é lá que existe petróleo em abundância e ao mais baixo custo”. Dick Cheney, que nessa altura dirigia a Halliburton, importante empresa petrolífera norte-americana, sabia do que falava. E quando proferiu essas palavras pensava certamente no Iraque, um território que nos últimos 100 anos teve toda a sua atribulada história ligada ao petróleo, desde a formação, em 1912, da Turkish Petroleum Company (mais tarde chamada Iraque Petroleum Company), até aos recentes desenvolvimentos que levaram à invasão americana e à queda de Saddam Hussein.
O Iraque é um país riquíssimo em petróleo. As suas reservas são das maiores do planeta, e muitas jazidas com elevado potencial de produção estão por explorar. Alguns analistas acreditam que poderá haver ainda jazidas por descobrir, sobretudo no deserto a ocidente de Bagdad. Por várias razões, nunca foi possível pôr em execução um plano sistemático de exploração do petróleo neste país. Mas se os ambiciosos projectos actualmente em progresso no Iraque se concretizarem, muita coisa pode mudar, e o espectro da escassez de petróleo no mundo será afastado, pelo menos nos próximos anos.
A situação de guerra no Iraque, que tem sentido algumas melhorias nos últimos dois anos, aliada à pressão da procura e aos preços elevados, permitiram ao Governo iraquiano negociar complexos acordos com as IOC’s (International Oil Companies), as quais têm andado afastadas dos países onde o crude abunda. Afastadas por governos hostis, que procedem à exploração do petróleo através das suas companhias nacionais. É o caso do México, da Arábia Saudita, do Irão e da Venezuela, para citar apenas os casos mais importantes.
Anunciam-se agora acordos do governo iraquiano com as grandes companhias petrolíferas (Shell, Exxon, BP, Total, Eni, Sonangol) para exploração partilhada do petróleo do Iraque. Os projectos implicados nestes acordos poderão gradualmente elevar a produção de crude no Iraque dos actuais 3 milhões de barris por dia para 10-12 milhões, dentro de 6 a 8 anos. Isto será suficiente para criar uma reserva de produção capaz de introduzir um efeito regulador nos preços, e capaz de absorver a descontrolada procura dos países emergentes (China e Índia). Desta forma, o Iraque poderá equiparar-se à Arábia Saudita, no seu papel de produtor/regulador do mercado.
É certo que se antevêem dificuldades: umas de natureza técnica (com destaque para o mau estado da rede de pipelines de transporte, e a escassez de água necessária para injecção nos reservatórios); outras de natureza política e de segurança no território. De tal modo que são muitos os que duvidam da possibilidade de atingir aqueles ambiciosos objectivos.
Um analista da área petrolífera do Morgan Stanley, o norueguês Ole Veil, afirmava há dias: “As estimativas para o Iraque são muito optimistas. Muitas empresas internacionais compram jazidas no Iraque e vêem nisso um novo Eldorado. Mas eu penso que deveríamos questionar-nos sobre se tais projectos são realistas”.
Em qualquer caso, ninguém espere que possamos voltar aos anos do petróleo barato e abundante, da década de 90. E isto porque o petróleo do Iraque tem associada uma elevadíssima sobrecarga, que é o custo da guerra. Desde 2003 até ao final de 2009, a guerra no Iraque terá custado aos Estados Unidos 750 mil milhões de dólares. E os custos continuam a subir, ao ritmo impressionante de 250 milhões de dólares por dia, não se sabe até quando. Significa isto que, se nos próximos 10 anos forem extraídos 25 mil milhões de barris, serão necessários 30 dólares por barril só para recuperar os custos já suportados com a guerra.
A concretização destes projectos (ao fim e ao cabo o prémio de que falava Cheney!) permitiria ao mundo respirar de alívio. Eles seriam o “balão de oxigénio” necessário para relançar a economia e desencadear a retoma. Porém, à semelhança do que aconteceu em 1980, existe o risco de a “ilusão de abundância” adiar investimentos em energias renováveis, ou retardar a urgente procura da eficiência energética, ou mesmo atrasar o desenvolvimento do automóvel eléctrico. Se isso acontecesse, o despertar subsequente poderia ser trágico. E a solução iraquiana vir afinal a revelar-se como o maior dos problemas.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Vamos a la playa!

Exaltando o TGV previsto, o ministro das Obras Públicas empolga-se com a ideia de que Lisboa será, provavelmente, a praia madrilena. Há o surf do Guincho, e tal...
E no entanto, o TGV de que Portugal precisava era um que nos levasse à Europa. Através de Fuentes, Valladolid, Irun. Para substituir o Sud-Expresso com cem anos, que já trouxe o Zé Fernandes e o Jacinto de Paris a Tormes, e é hoje uma coisa indescritível. Mas esse não consta do programa.
Eu não tenho interesses na indústria da palha, nem nos cavalos da malaposta. Por isso não me oponho aos planos de nenhum comboio. Salvo àqueles aprovados pelas cavalgaduras que nos governam.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Ecos da Sonora - XXI

Prognóstico

Sou do tempo em que não se corrigiam
dentes defeituosos.

Além disso, perdi praticamente
todos os molares.

Para piorar as coisas,
a TAC acusa um desvio para a esquerda
do septo nasal.
Ainda por cima, um desvio acentuado.

Bonita caveira hei-de dar,
não haja dúvida.

[Dentro da cabina da Sonora, momentos há de quietação e júbilo. Quando se ajustam o sentido e o som, como a língua de queijo na fatia do pão.]

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Tripas, e suor, e merda!

Há quem chame a isto livros, com romances lá dentro. Mas são apenas embondeiros imolados à pasta de papel, a fazer muita falta na paisagem. As 3 Vidas, de João Tordo, é um caso exemplar.
Ao longo de 300 páginas, um narrador de 1ª pessoa desfia à nossa frente uma história que nasce em Lisboa, mas tem o seu cerne na Quinta do Tempo, algures na charneca de Santiago do Cacém. É onde o rapaz achou um ganha-pão, a organizar ficheiros fabulosos, sobre os estranhos clientes dum misterioso patrão, cujos negócios nunca saem da penumbra. Alguns deles, dos clientes, acabam a despenhar-se em promontórios, sem que saibamos porquê. Vamos atrás de mistérios, conspirações, forças ocultas, cabalas, maquinações, mas os códigos não chegamos a sabê-los.
As personagens, adultos ou crianças, tecendo enigmas ou ensaiando jogos de funambulismo no arame, são espalmadas e chatas, sem substância real. Fazem lembrar os bonecos do futebol virtual. Mas um mergulho no passado do estranho patrão deste rapaz conduz-nos ao Porto, a Vigo, à Madrid da guerra civil, onde ele acaba nas unhas de dois agentes da polícia soviética dos anos 30, que lhe aplicam um soro da verdade com uma injecção atrás da orelha, para lhe lavarem o cérebro. É então que parte para Berlim, onde tomará lições de hipnose com sábios alemães, e fará o tirocínio da sua misteriosa actividade. Isto tudo em vésperas do acordo de não-beligerância, que o Molotov ensaiou com o barão von Ribbentrop.
Os fios da intriga conduzem-nos depois a Nova Iorque, a Seattle, e a Berlim mais uma vez. Mas o leitor, que já não levara a sério as personagens, também não acredita nos lugares. Nem nos tempos, nos muitos que aparecem. Uns e outros são aqueles, mas podiam ser diferentes. Apenas estão ali para definir calendário a uma narrativa sem substrato vital, porque toda é de plástico.
No dia 29 de Novembro de 1982, uma segunda-feira, a véspera da nossa partida, encomendei um jantar especial para mim e para o meu patrão, descendo até à Broadway para ir buscar galinha tailandesa a um restaurante oriental. (P.213) É claro que a partida não se vai verificar.
Este romance é aquela literatura de todas as latitudes. É um arado que, em lugar de lavrar, vai fazendo riscos pelo chão. Ou a mó andadeira de um moinho a fingir, que mói, mói, mói, mas não deita farinha. É igual em Portugal e no Japão, no Alasca e na Nova Zelândia, e modernamente também em Pequim. É um produto descartável para usar no longo curso, nas viagens às Caraíbas, nas gares de aeroportos, ou nas tardes de tédio à beira-mar. Lê-se, larga-se no balde misturado na areia, e nada fica.
É que isto da literatura, ao contrário do que dizem os publicistas de avença e alguns críticos da pós-modernidade, não vai lá com lições de escrita criativa. Exige tripas, e suor, e merda.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Cria fama e deita-te a dormir!

De tanto me interditarem a bola no terreiro, enquanto fui criança, fiquei-lhe adicto quando me fiz adulto. E nunca mais a pude dispensar. Por onde quer que a minha vida andasse (e andou por muitos lugares!), logo eu buscava um grupo de entusiastas, para fazer o gosto ao dedo.
Aqui há uns anos vivi perto de Nancy, lá para o norte de França, por pouco já fora da fronteira. E o melhor que descobri foi uma trupe de africanos, todos de Madagáscar. Juntavam-se ao domingo num logradouro pelado, e ali passavam toda a santa manhã, metade para cada lado, até à hora da bouffe. Mas que não aceitavam estrangeiros!
Eu insisti, pedinchei, para não dizer que me pus a mendigar. Até que um deles, que tinha mais ar de mister, quis saber qual era o meu país.
- Sou português, catano, sou da terra do Figo! E do Pantera Negra, já ouviste falar?!
O malgache escancarou-se de espanto, abriu uma excepção e alistou-me no team. Por uma única razão, que logo esclareceu:
- No meu país, às criancinhas que não querem comer, ainda hoje argumentam as mães: queres que mande vir os portugueses?! E é logo remédio santo!

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O Presidente

Um poeta visionário deixou dito que Portugal é o futuro do passado. E o país ficou na mesma, porque a vice-versa também era verdadeira. O poeta era um fingidor.
Agora o Presidente pegou-lhe na palavra, no jeito pio que tem para incutir ânimo aos portugueses, diante das tribulações que os fustigam. Possuímos uma longa história de que nos orgulhamos, porque no passado não tivemos medo. O Presidente podia ter lançado mão do dichote popular, que manda comprar um cão a quem medo tiver. Mas enquanto estadista de recorte, a vulgaridade não lhe assenta bem. Quadram-lhe melhor as brumas da memória, e a longa história dos heróis do mar.
E o Presidente tem um pouco de razão. Ter ido à Índia pelo mar tenebroso foi nessa altura um gesto transcendente, de enormes repercussões. É de orgulhar qualquer um.
Mas o Presidente deveria saber que um país com um milhão de habitantes, que se abalança a fundar um império, ou pode e sabe fazê-lo com sucesso, ou acaba soterrado nos destroços. É trocar a boa capa por um mau capelo.
O Presidente deveria saber que o nosso império da Índia começou por ser uma temeridade, de uma elite cúpida e aventureira. Ao fim de 50 anos estava na bancarrota,donde nunca mais saiu. A regente Catarina, viúva do rei Piedoso, resumiria nas Cortes que a sustentação do império do mar só poderia obrar-se por milagre. E cem anos depois o rei Restaurador havia de confessar que lhe poria fim, se houvesse um modo honroso de o conseguir.
O Presidente deveria saber que a partir daí o império se tornou um crime de lesa-Portugal. Serviu um escol de cortesãos e heróis, que fizeram carreira e amontoaram fortuna. Mas ao país de Portugal nem migalhas chegaram. Ao país de Portugal, o império da pimenta condenou-o à penúria, ao abandono, ao atraso, à precaridade, a viver de quimeras e trapaças, de equívocos e milagres e promessas, e de sebastianismos ocos. Ao país de Portugal o império roubou-lhe a alma, corroeu-lhe as entranhas, impediu-o de ser.
Os portugueses atormentam-se, matam-se entre si, por ainda não terem compreendido que o reino, após ter realizado grandes conquistas, viveu mais de três séculos do trabalho de escravos, e que, uma vez perdidos esses escravos, é preciso pôr de pé uma nova forma de vida, apoiada no seu próprio trabalho. [Mouzinho da Silveira (1780-1849), ministro de D. Pedro e notável lutador pelas reformas liberais]
Em 1992, no Senegal, o papa João Paulo II penitenciou-se pelos erros da Igreja Católica, face aos negros africanos; em 2005, no mesmo Senegal, Lula da Silva pediu perdão pelo que fizemos aos negros; em 2006, Jacques Chirac lamentou a história em relação aos negros; em 2006, na Mina, o Canadá fez o mesmo; em 2007, no Gana, Tony Blair pediu desculpa aos negros, pelo papel da Inglaterra no tráfico negreiro; em 2009, o Senado americano secundou-o.
Por cá, certas elites orgulham-se há muitos séculos do passado glorioso. O país é que não sai do mesmo lugar. O império da pimenta acabou por desabar em 1975, em fogo e ranger de dentes. E os portugueses só descobrirão um rumo novo quando olharem de frente o passado e os seus erros. Doutro modo apenas os repetem, conforme vai fazendo o Presidente.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Encontros e desencontros

[Henrique O Navegador, jacente no Mosteiro da Batalha]

Em 1314, o rei Filipe O Belo massacrou em França os Templários, cuja Ordem foi extinta pelo papa Clemente V. Demasiada gente lhes criticava as práticas, e lhes cobiçava riquezas e poder.
Em 1317, o rei D. Dinis deu fundação em Portugal à Ordem de Cristo, um edifício erguido sobre caboucos templários, que buscaram refúgio em Castro Marim e depois se fixaram em Tomar.
O Infante Navegador (a figura mais enfarpelada no pano cru das lendas, e nos véus do mito, em toda a história portuguesa), foi a seu tempo seu governador. E assim os tesouros de uma Ordem deram nutrimento à empresa, e a cruz da outra Ordem ia pintada nas velas, quando as caravelas se fizeram ao mar.
Em 1444, aportou a Lagos uma caravela do Infante, que regressava da Gâmbia com 235 escravos a bordo. E em Lagos se inaugurou o primeiro mercado de escravos negros que a Europa conheceu.
Em 1452, as bulas do papa Nicolau V Dum Diversus e Divino Amore Comuniti, deram acolhimento aos argumentos lusos que alegavam as grandes despesas das navegações. E por isso lhes outorgaram o direito de filhar pagãos nas plagas africanas e reduzi-los à escravidão.
Em 1456, pela bula Inter Coetera, o papa Calisto III reservou para a Ordem de Cristo o direito de Padroado e jurisdição espiritual, "tanto nos lugares já adquiridos, como nos que vierem a adquirir".
E assim se juntou a fome com a vontade de comer. Com a bênção de Roma, a escravidão dos negros e o comércio respectivo tornou-se lugar comum e prática corrente. Portugal revelou-se não apenas o primeiro país a explorar a força do trabalho escravo num projecto de economia mista, em que coincidiam os interesses da corte, da nobreza fundiária e administrativa, e da burguesia comercial, mas também a utilizar cativos no seu próprio território, praticamente em todas as funções: nos engenhos do açúcar da Madeira, no desbastamento de matas, na secagem de pântanos, nos lagares de azeite, nos trabalhos agrícolas do reino, na construção, na estiva, a bordo de navios, nos serviços de aguadeiros, varinas, vendedores de carvão, e em todos os trabalhos domésticos. Inclusive como negros de ganho, pelas ruas.
No séc. XVII, os jesuítas combateram tenazmente as tentativas dos colonos brasileiros de aplicar a escravidão aos índios. Por um lado os índios não eram domesticáveis, sendo impossível escravizá-los ao trabalho. Morriam, suicidavam-se, preferiam a aniquilação. E por outro os jesuítas precisavam deles, para o seu proselitismo, para a conversão à fé, para as estatísticas a esgrimir em Roma. Agrupados em aldeias, integrados em missões, os índios deixavam-se fascinar pelas luzes dos rituais, pelo brilho dos altares, pela música dos cultos, pela teatralidade barroca em que os Vieiras eram mestres.
Porém os jesuítas nunca fizeram isso em relação aos negros, de quem se duvidava que tivessem alma. Portugal, arrastado a construir um império que nunca chegou a ter, mas que bastou para o arruinar, desencontrou-se, até hoje, com a história. E acabou sendo o maior traficante de escravos negros da idade moderna.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Mais Maravilhas de Origem Portuguesa

Relação da Viagem do Cardeal Bonello, Legado ao rei de França, Espanha e Portugal, com anotações das cidades, terras e lugares; descrito por Giovanni Battista Venturino da Fabiano, 1571 - Biblioteca Nacional da Ajuda, Lisboa.

"Há (na região de Vila Viçosa) raça de escravos negros, alguns dos quais são reservados somente para emprenhadores de muitas mulheres, como garanhões, fazendo-se exactamente com eles como com as raças dos cavalos em Itália. Deixam-se cavalgar estas mulheres para que possam parir, porque o produto é sempre do produto destas escravas, e digo que são servas prenhas. Não é permitido aos garanhões negros cavalgar as prenhas sob pena de 50 chicotadas, mas cavalgar somente as não prenhas, porque se vendem as crias a 30 ou 40 escudos cada uma; e destes rebanhos de fêmeas há muitos em Portugal e nas Índias, só para venderem as crias como disse. Estes garanhões negros são inveja de muitos homens esbranquiçados".

No Brasil, por volta de 1850, era a "Ilha das Crias" (na Marabaia, Rio de Janeiro) um activo centro de reprodução de escravos, mantido por um proprietário fluminense.

Escravos

Não faltam manuais patrioteiros a falsificar a história, para nos dourarem a pílula. Nem discursos épicos de elites, a apregoar que Portugal foi pioneiro na abolição da escravatura. Porém a verdade é outra, mais desgraçada bastante. A lei de Pombal, de 19 de Setembro de 1761, proibia a importação de escravos apenas para Portugal. E não abolia a escravatura em Portugal nem no Império.
A proibição da importação para a Metrópole resultou da necessidade de toda a mão de obra escrava ser conduzida ao Brasil, onde havia muita falta, e do facto de em Portugal o ócio ser a principal ocupação dos portugueses.
O rei D. José é claro:
"Eu El Rey faço saber (...) que resultão do excesso e devassidão com que contra as leis, e costumes de outras cortes polidas se transporta anualmente da África, America, e Asia para estes Reinos um tão extraordinário numero de escravos pretos, que fazendo nos meus domínios Ultramarinos huma sensível falta para a cultura das terras e das Minas, só vem a este continente ocupar os lugares dos moços de servir, que ficando sem comodo, se entregam a ociosidade, e se precipitam nos vícios, que dela são naturais consequências (...)".
Portugal só em 1842 aboliu o tráfico escravo. E só em 1878 aboliu a escravatura.
Do séc. XV ao séc. XIX (em conjunto com o Brasil independente), foi responsável por 50% do tráfico transatlântico.
Só durante o séc. XVIII é que o tráfico negreiro inglês ultrapassou o português.
No séc. XIX fomos líderes mundiais, à frente de todos os outros países juntos.
O comércio da pimenta e o proselitismo católico trouxeram-nos a febre imperial. Quando a ambos juntámos a escravatura, quem ficou escravizado fomos nós.
A um destino incerto. A um fadário funesto. Ao naufrágio conhecido.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Tardes de sol

Primeiro surpreendem, os garrafões a pendular da ombreira, enfeitados de louro. Já os tínhamos dado por extintos. Depois arrisca-se um pé, e fica-se aprisionado pelo nariz. Aos aromas dos salpicões, dos presuntos, dos fumeiros à maneira antiga.
Entramos e são os olhos que se perdem, nas bengalas à malhadinhas, nos varapaus de fafe, nas mocas de rio maior, que um padre abençoou e um dia nos salvaram das tentações do demónio. Nos galhardetes da bola, nas cabaças, na sisudez do santo, lá ao fundo...
Vencidos e convencidos, passamos a acreditar em milagres. E mandamos vir para a mesa as canecas do verde tinto.
No fim damos ao demo os burgueses citadinos, que se distraem a debicar no sushi, no sashimi, e dão cabo do pâncreas em cozinhas de fusão.

Regra geral

Dentro do autocarro apinhado de gente no frenesi das prendas de Natal, calhou-me o carteirista. E em menos dum fósforo já tinha ido à vida meia dúzia de patacos, e a documentária toda: a do cidadão, a do contribuinte, a do condutor, a do paciente, a do cliente bancário, a do segurado, a do eleitor, a do associado, a do automóvel... Só um velho passaporte, perdido numa gaveta, ficou a ligar-me ao mundo, e a proteger-me das listas da emigração clandestina.
O agente de serviço aconselhou-me a comer as rabanadas e a deixar passar um tempo. Queria ele dizer na sua que ainda acontecem milagres, sobretudo em momentos de concórdia geral, de paz no mundo e de festas da família. Mas nada veio parar aos perdidos e achados. De forma que iniciei o novo ano a deitar o coração ao largo, a enfrentar a romaria dos guichés, a reconstruir as papeladas e a tirar algumas ilações. De proveito e bom exemplo, para que nem tudo fosse pura perda.
À primeira (quem diria?!), quem nunca foi engolido por tolo não sabe os ensinamentos que perdeu!
À segunda (é uma evidência!), mais vale trazer no bolso uma carteira própria, do que ter que picar outra qualquer!
E à terceira (dolorosa conclusão!), na nossa terra tão incompetentes são os donos das carteiras, como os picadores delas. Uns, por imprevidentemente tanto as desaconchegarem. E os outros pelo mau uso que fazem da sofisticada artilharia. Mais parecem ocupados nos danos colaterais, do que na resolução das próprias precisões. Mas por que haviam de ser, uns ou outros, a excepção à nossa regra geral?!

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Já não era sem tempo!


Numerosas edições têm alimentado nos últimos tempos o fiel mercado do saudosismo africano. E não é que a questão colonial, e os dramas do fim do império, não mereçam atenção, bem ao contrário. O país e os portugueses (os retornados e os outros) têm com essa história largas contas em aberto. Mas não dão muitos sinais de querer saldá-las. O resultado é fatal, por ser esta uma verdade do mais elementar senso: quem não aprende com os erros, passa a vida a repeti-los; os erros velhos e os novos. Ora se isto é verdadeiro ao nível individual, mais o será à dimensão colectiva.
A maior parte são relatos irrelevantes, de dimensão pessoalista, fechados em si próprios. São saudosistas e nostálgicos, de paraísos perdidos, de haveres levados na voragem, de vidas que naufragaram, de sonhos que deram em pesadelo. Recusam evidências da história, negam a realidade, aferram-se a mitos quiméricos, e a patriotismos de pacotilha. Nada acrescentam à nossa pobre consciência.
O Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo, da editora Angelus Novus, é uma pedrada nesse charco. Corre o risco de parecer uma traição, muito embora seja o seu contrário. E aqui se saúda vivamente.
A autora fez-se gente em Lourenço Marques, que deixou em 1975, quando tinha 13 anos. E é trinta e tal anos depois que nos traz uma visão da realidade colonial, através do seu olhar de criança e adolescente. A maior parte do discurso reproduz conversas de adultos. E o seu olhar é límpido, sem arcas encoiradas, a deixar sem conserto a multirracialidade lusa, a pluricontinentalidade pátria, a nossa piedosa missão colonizadora, e outras balelas funestas que há muito nos condenaram à indigência, real e figurada. É um olhar herético, traidor, que lhe saiu das tripas. Não diz nada que não saibamos todos. Mas afirma o que todos insistimos em desconhecer. Honra lhe seja feita!
- Para uma branca, assumir uma união com um negro implicava proscrição social. Um homem negro, por muito civilizado que fosse, nunca seria suficientemente civilizado. (p.14)
- O meu pai nunca quis empregados brancos. (...) Um branco saía caro, porque a um branco não se podia dar porrada (...) O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos. Teria os da caridade, e se a merecesse. Se fosse humilde. Esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, e branco mandava no preto. Para mandar, já lá estava o meu pai; chegava de brancos. (p.24)
- Em Moçambique era fácil um branco sentir prazer de viver. Quase todos éramos patrões, e os que não eram, ambicionavam sê-lo. Havia sempre muitos pretos, todos à partida preguiçosos, burros e incapazes a pedir trabalho, a fazer o que lhes ordenássemos sem levantar os olhos. (p.25)
- Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia redenção alguma. Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade, sem a propriedade do seu corpo, logo, sem existência. (p.27
- Um branco e um preto não eram apenas de raças diferentes. A distância entre brancos e pretos era equivalente à que existe entre diferentes espécies. Eles eram pretos, animais. Nós éramos brancos, éramos pessoas, seres racionais. (p.35)
- A única hipótese de não haver milando, era meterem o dinheiro recebido no bolso das calças rasgadas e saírem, cabisbaixos. Se reclamavam, havia milando, e não eram poucas as vezes em que saíam da sala com um murro nos queixos, um encontrão dos bons. Havia milando bravo. (p.41)
- De forma geral, no cinema ou fora dele, o olhar dos negros nunca foi, para os colonos, isento de culpa: olhar um branco, de frente, era provocação directa; baixar os olhos, admissão de culpa. Se um negro corria, tinha acabado de roubar; se caminhava devagar, procurava o que roubar. (p.46)
- Havia uma guerra, mas não era visível a Sul; não sabíamos como tinha começado, ou para que servia exactamente. (...) Havia guerra porque havia turras. Havia turras porque a natureza humana era maldosa e insatisfeita. (...) A guerra era no Norte, mas não tomávamos consciência da sua gravidade, não se falava em soldados dos nossos que tivessem sido mortos (...) Achávamos que estavam lá pelos quartéis a cumprir a tropa, a fazer umas acções de propaganda. A dar uns encostos nos negros que não se portassem bem, o que era normal. Ou a limpar-lhes o sebo, se fossem teimosos e não obedecessem. (p.64)
- O meu primo tinha sido educado no mais profundo desprezo pelo negro. Quando fez 19 anos, e o mandaram para o Niassa, partiu contente. Ia lutar pela califórnia portuguesa. Descia a Lourenço Marques de nove em nove meses, mas já não era o mesmo. Deixou crescer a barba. Era a guerra, e o meu primo nunca falou da guerra. (...) Fechava-se no quarto a fumar e calou-se para sempre. (...) Olhava-me com uns olhos vivos e tinha vergonha de mim. (p.69)
- Tinha acontecido uma revolução na Metrópole. (...) O governo tinha mudado de mãos, e bem, que os que lá estavam roubavam-nos todos os dias. (...) Ah, finalmente África ia ser nossa! Finalmente íamos deixar de pagar impostos aos cabrões da Metrópole! Agora poderíamos prosperar e fazer da nossa terra uma Califórnia. Era isso que a nossa terra ia ser: a Califórnia. (p.77)
- Ainda hoje os vejo envolvidos na mesma nostalgia. "A independência foi mal feita, e os culpados foram o Mário Soares e o Almeida Santos, que nos venderam e entregaram tudo aos pretos". Eu traduzo, "aquilo que entregaram aos pretos deviam tê-lo entregue a nós, que logo tratávamos da negralhada". Quando revelam, com lágrimas sinceras, "deixei o meu coração em África", eu traduzo, "deixei lá tudo, e tinha uma vida tão boa". (p.83)
- Com ou sem independência, um preto era um preto, e o meu pai foi colono até morrer. (p.98)

NOTA: O pequeno capítulo 38, e mais a autora dele, pedem um comentário específico. Que ele exige, e ela talvez mereça. A ver vamos!

domingo, 3 de janeiro de 2010

Venha o diabo e escolha!

Acreditar que o negro Obama foi eleito presidente pela democracia da América, por ser um homem ilustrado, cosmopolita, lúcido, dono de assinalável poder de comunicação, uma espécie de santo milagreiro capaz de entender o mundo e respeitar a humanidade, é um equívoco duplicado.
Por um lado corresponde à mesma ideia de que nunca houve, na América antes de Obama, nenhum outro negro ilustrado, cosmopolita e lúcido. O que é uma ideia peregrina.
Por outro lado corresponde à crença ingénua na democracia americana como realidade insofismável, a mesma que impôs como presidente a figura mais patética que o mundo já conheceu, enquanto criminoso internacional. O mesmo G.W.Bush que perdera as eleições para Al Gore, uma década antes.
A realidade é outra. As torvas eminências da cleptocracia capitalista, acoitadas na Comissão Trilateral, no Grupo de Bilderberg e no Council on Foreign Relations, que puxam os cordelinhos da tal democracia, da política e da finança internacionais, são as responsáveis pelo duplo milagre.
Em 2001, num mundo unipolar saído da implosão soviética, era indispensável e oportuna uma marioneta a governar a América, para lhes cumprir as ordens. E impuseram-na, apesar dos votos. Mas levaram tão longe a trapaça, o desvario criminoso e a desordem do mundo, que lhes foi imperioso brindar-nos com um milagre negro, de sinal contrário, para nos calar a boca.
Obama não fará milagre nenhum, porque os milagres não existem. Será descartado quando for conveniente, e o mundo inteiro fica a pagar a factura, que é do tamanho do crime.
Dirigida por figurantes contratados, a velha Europa assistirá do camarote, enquanto vende os anéis na esperança de salvar os dedos.
Os papagaios avençados encarregar-se-ão de nos ensinar a pensar.
E as contas finais hão-de acertar-se um dia com a ditadura chinesa. Entre uma e outra, venha o diabo e escolha.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Ano Novo

Ouvir Cavaco Silva falar à Nação, a pretexto do Ano Novo, é um exercício que requer algum estômago e muita tolerância. Espertiço e sonso, português de lei, atira ao ar la palissadas demagógicas, entre dois tremoços. A contar com a nossa desmemória.
Enquanto se declara acima do combate político-partidário, carrega no tom catastrofista do quadro do país, como quem descobre a pólvora. E com responsável implícito, que é o governo. Ele é a dívida externa que sobe, ele é o desemprego que galopa, ele é a produtividade que continua baixa, ele é a Justiça e a Educação que se atascaram, ele são as inúteis querelas contra a família, ele é o desequilíbrio das contas públicas, ele são os bens e serviços que não produzimos, ele é o reforço da competitividade que tarda, ele são as encruzilhadas decisivas que nos esperam, ele é a situação que se torna explosiva. Nada, porém, é dito sobre os comos, e muito menos ainda sobre os quandos e os porquês. Sempre a contar com a nossa desmemória.
Porque Cavaco governou o país na década dourada, entre 86 e 95, quando os fundos chegaram da Europa e Portugal estava todo à espera que o fizessem. Que fez Cavaco Silva da Agricultura? Abreviou-lhe os prazos de modernização, em troca de mais fundos. Que fez Cavaco Silva das Pescas? Trocou-lhes a ferrugem por dinheiro. Que fez Cavaco Silva da fraca Indústria? Abreviou-lhe a agonia. Que fez Cavaco Silva da Economia? Reduziu-a ao asfalto e ao betão. Que fez Cavaco Silva da Educação? Abriu a selva das faculdades de papel e lápis, as Modernas, as Independentes, as Internacionais, com que encheu a barriga dos aficionados e defraudou a inteligência indígena. Que fez Cavaco Silva da Justiça? Dobrou-se ao pesadelo corporativo que ainda está à vista. Que fez Cavaco Silva do país, e do poder que teve para o transformar? Amamentou uma clique de barões, de videirinhos e de falsários, a quem o poder caiu nas mãos e com ele trataram da vidinha. Que fez Cavaco Silva dos atavismos indígenas, do nosso atraso lendário, do arcaísmo mental de Portugal? Convenceu-nos de que já éramos ricos e modernos, de que vivíamos num oásis, com direito a crédito e a consumo. Que fez Cavaco Silva ao seu próprio partido? Submeteu-o a um tabu que durou um ano inteiro, para no fim o abandonar à orfandade de que ainda não saiu.
Cavaco Silva é um duque de paus, num país que precisa dum ás de trunfo. A sua melhor performance esteve na conspiração das escutas, e na insanidade da comunicação que então fez ao país. Debaixo da casaca dá hoje acolhimento aos sem-abrigo da política, e a todos os mitómanos da oposição.
Conforme se esperava, Cavaco Silva entrou no Ano Novo em campanha eleitoral. Ao governo competirá cuidar-se. E aos portugueses também.