O compadre aparício trouxe há tempos o macaco da expo 98, haverá quem se lembre do acontecimento social que teve lugar ali na margem da doca dos olivais. Apareceu aí radiante com o exótico presente. O bicho era inteligentíssimo, e tinha formação como guarda-costas dum homem grande da tribo dos maconhas, nas traiçoeiras florestas do congo.
Sempre que o compadre estendia a rede entre os dois ulmeiros do quintal, para a grande sesta das duas, lá entrava de serviço o bodigarde. Perseguia as borboletas distraídas que vinham tropeçando na brisa, e as vespas que vinham no encalço das borboletas, e as lagartixas que corriam atrás das vespas de cabeça no ar, e as pequenas cobras que se divertiam a cortar o rabo às lagartixas, e ficavam a vê-los dançar a polca. Nos intervalos treinava a pontaria, atirando pedras aos pardais. Claro que tudo isto eram brincadeiras de criança para um rambo daqueles, habituado às emergências da floresta virgem. E o compadre aparício ressonava, sorridente como um anjo nos mirantes do céu.
Foi ontem que a desgraça aconteceu, e diz quem viu que tudo foi assim. Um moscardo poisou na testa do compadre, andava o macaco a afugentar um qualquer insecto secundário. Há quem lhe tenha vislumbrado na face um exótico brilho, mas ninguém o pode assegurar. Vendo de longe a iminência do perigo, e por certo sem medir as consequências, o cérbero investiu à pedrada. Com tanta eficácia que deixou a cabeça do compadre aparício aberta ao meio, pareciam duas metades dum melão espanhol.
Ainda estou a ver a satisfação do pobre compadre, quando chegou da expo. A contar-me a euforia do homem grande da tribo dos maconhas, todo contente por retribuir, enfim, o colar de missangas, que o vasco da gama lhe ofereceu quando passou no congo, há um ror de anos.
[ibidem]
quarta-feira, 31 de março de 2010
Mitologias - Pandora
Mas não ficou por aí. Pois Prometeu, além de confiar aos humanos o fogo, ensinou-os a sacrificar aos deuses a gordura e os ossos, guardando para si a carne limpa das oferendas.
E uma vez que por então só existiam homens, sem mistura de mulheres, abriu Zeus as portas ao rancor e castigou a injúria. Fez uma criatura que deleitava os olhos, pela suavidade e a beleza. Deu-lhe o nome de Pandora, por ser "a dádiva de todos". Cobriu-a de véus e grinaldas de flores e mandou-a para a terra.
Logo o descuidado Epimeteu lhe deu as boas-vindas. Mas Pandora trazia uma caixa fechada, que não devia abrir. Por nela se conter um segredo divino, misterioso e terrível. Porém, na criatura, eram equivalentes a beleza e a curiosidade. E um certo dia Pandora abriu a caixa.
Dela jorraram pragas, tristezas, malefícios, sofrimentos que depressa alastraram aos humanos. E no fundo da caixa, que a assustada Pandora quis fechar, só a Esperança restou aprisionada.
E uma vez que por então só existiam homens, sem mistura de mulheres, abriu Zeus as portas ao rancor e castigou a injúria. Fez uma criatura que deleitava os olhos, pela suavidade e a beleza. Deu-lhe o nome de Pandora, por ser "a dádiva de todos". Cobriu-a de véus e grinaldas de flores e mandou-a para a terra.
Logo o descuidado Epimeteu lhe deu as boas-vindas. Mas Pandora trazia uma caixa fechada, que não devia abrir. Por nela se conter um segredo divino, misterioso e terrível. Porém, na criatura, eram equivalentes a beleza e a curiosidade. E um certo dia Pandora abriu a caixa.
Dela jorraram pragas, tristezas, malefícios, sofrimentos que depressa alastraram aos humanos. E no fundo da caixa, que a assustada Pandora quis fechar, só a Esperança restou aprisionada.
terça-feira, 30 de março de 2010
Novo aeroporto sim, mas devagar!
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
Ao afectar seriamente o sector do transporte aéreo, a actual situação de crise veio baralhar os planos de construção do novo aeroporto de Lisboa. Já tinha acontecido algo de semelhante em 1973, na sequência do primeiro choque petrolífero, quando Marcelo Caetano lançou os primeiros estudos sobre potenciais locais alternativos à Portela. Nessa altura não se passou das intenções.
Nas últimas décadas, e até ao advento da crise, o sector do transporte aéreo cresceu muito acima da economia global. De acordo com dados apresentados pelo comandante Cristopher Smith, da British Airways, nos dez anos anteriores a 2008 o sector cresceu 2,4 vezes mais depressa do que o PIB mundial.
Isso verificou-se também em Portugal. Entre 2003 e 2008, o crescimento do número de passageiros na Portela foi espectacular. Nesse período o tráfego anual passou de 9,8 para 13,6 milhões de passageiros, a que corresponde uma taxa anual de crescimento de 6,9%. E foram precisamente estes números que apressaram a decisão de construir um novo aeroporto em Lisboa.
Mas a crise que agora atravessamos (cujo fim se não descortina) alterou radicalmente a situação. Em 2008 o crescimento anual de passageiros na Portela foi apenas de 1,6%. E em 2009, contrariando previsões anteriores que apontavam para um crescimento de 6%, houve mesmo um decréscimo de 2,6%. A crise no sector é mundial e generalizada. E nos próximos anos, a existir alguma recuperação, tudo indica que será muito lenta.
De acordo com notícias recentes, há quem se esforce por fazer crer o contrário. O presidente da ANA entende que a crise actual apenas reduzirá o crescimento anual médio do tráfego de 4,0% para 3,9% nos anos futuros; e que, em 2017, a Portela registará 18,0 milhões de passageiros, e não 18,7 como indicavam os anteriores estudos. Afirma mesmo que esta é uma previsão conservadora. E diz isto para concluir que o actual aeroporto estará a "rebentar pelas costuras em 2017", e que "não há dúvidas quanto à necessidade e urgência de construir um novo aeroporto".
Porém, não é só a crise económica que vai condicionar depressivamente a procura do transporte aéreo. A previsível escassez de petróleo e o elevado preço da matéria-prima (afinal uma das razões principais da crise que o mundo atravessa) terá fortes implicações no futuro do transporte aéreo e nos sectores da economia que lhes estão associados. Com efeito, a dependência dos combustíveis líquidos derivados do petróleo é particularmente elevada – deve mesmo dizer-se total – no sector aeronáutico, pois não existem alternativas energéticas ao fuel usado nos aviões. Está fora de questão, num futuro próximo, a utilização de hidrogénio, de energia eléctrica ou nuclear, para propulsionar aeronaves comerciais.
Face à alteração de pressupostos, estamos perante a urgente necessidade de reavaliar a decisão sobre a construção de um novo aeroporto. E dois são os dados-chave para fundamentar essa decisão: saber qual o tráfego crítico de saturação da Portela, e estimar a taxa de crescimento desse tráfego nos próximos anos.
Admitamos, sem contestar, que a saturação da Portela se atinge nos 18 milhões de passageiros/ano. A uma taxa de crescimento médio anual de 4%, esse valor de saturação será atingido em 2017. Mas para taxas de crescimento de 3%, 2% ou 1%, os anos de saturação serão, respectivamente, 2020, 2025 e 2040.
Pessoalmente, acredito que taxas de crescimento entre 1% e 2% são realistas, e consentâneas com a previsível evolução do PIB português. Fixe-se pois o ano de 2030 como ano-meta para ter Alcochete pronto a receber aviões. E vá-se planeando e construindo, devagar e bem como convém, sem megalomanias nem derrapagens de custos. À medida das nossas possibilidades.
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
Ao afectar seriamente o sector do transporte aéreo, a actual situação de crise veio baralhar os planos de construção do novo aeroporto de Lisboa. Já tinha acontecido algo de semelhante em 1973, na sequência do primeiro choque petrolífero, quando Marcelo Caetano lançou os primeiros estudos sobre potenciais locais alternativos à Portela. Nessa altura não se passou das intenções.
Nas últimas décadas, e até ao advento da crise, o sector do transporte aéreo cresceu muito acima da economia global. De acordo com dados apresentados pelo comandante Cristopher Smith, da British Airways, nos dez anos anteriores a 2008 o sector cresceu 2,4 vezes mais depressa do que o PIB mundial.
Isso verificou-se também em Portugal. Entre 2003 e 2008, o crescimento do número de passageiros na Portela foi espectacular. Nesse período o tráfego anual passou de 9,8 para 13,6 milhões de passageiros, a que corresponde uma taxa anual de crescimento de 6,9%. E foram precisamente estes números que apressaram a decisão de construir um novo aeroporto em Lisboa.
Mas a crise que agora atravessamos (cujo fim se não descortina) alterou radicalmente a situação. Em 2008 o crescimento anual de passageiros na Portela foi apenas de 1,6%. E em 2009, contrariando previsões anteriores que apontavam para um crescimento de 6%, houve mesmo um decréscimo de 2,6%. A crise no sector é mundial e generalizada. E nos próximos anos, a existir alguma recuperação, tudo indica que será muito lenta.
De acordo com notícias recentes, há quem se esforce por fazer crer o contrário. O presidente da ANA entende que a crise actual apenas reduzirá o crescimento anual médio do tráfego de 4,0% para 3,9% nos anos futuros; e que, em 2017, a Portela registará 18,0 milhões de passageiros, e não 18,7 como indicavam os anteriores estudos. Afirma mesmo que esta é uma previsão conservadora. E diz isto para concluir que o actual aeroporto estará a "rebentar pelas costuras em 2017", e que "não há dúvidas quanto à necessidade e urgência de construir um novo aeroporto".
Porém, não é só a crise económica que vai condicionar depressivamente a procura do transporte aéreo. A previsível escassez de petróleo e o elevado preço da matéria-prima (afinal uma das razões principais da crise que o mundo atravessa) terá fortes implicações no futuro do transporte aéreo e nos sectores da economia que lhes estão associados. Com efeito, a dependência dos combustíveis líquidos derivados do petróleo é particularmente elevada – deve mesmo dizer-se total – no sector aeronáutico, pois não existem alternativas energéticas ao fuel usado nos aviões. Está fora de questão, num futuro próximo, a utilização de hidrogénio, de energia eléctrica ou nuclear, para propulsionar aeronaves comerciais.
Face à alteração de pressupostos, estamos perante a urgente necessidade de reavaliar a decisão sobre a construção de um novo aeroporto. E dois são os dados-chave para fundamentar essa decisão: saber qual o tráfego crítico de saturação da Portela, e estimar a taxa de crescimento desse tráfego nos próximos anos.
Admitamos, sem contestar, que a saturação da Portela se atinge nos 18 milhões de passageiros/ano. A uma taxa de crescimento médio anual de 4%, esse valor de saturação será atingido em 2017. Mas para taxas de crescimento de 3%, 2% ou 1%, os anos de saturação serão, respectivamente, 2020, 2025 e 2040.
Pessoalmente, acredito que taxas de crescimento entre 1% e 2% são realistas, e consentâneas com a previsível evolução do PIB português. Fixe-se pois o ano de 2030 como ano-meta para ter Alcochete pronto a receber aviões. E vá-se planeando e construindo, devagar e bem como convém, sem megalomanias nem derrapagens de custos. À medida das nossas possibilidades.
segunda-feira, 29 de março de 2010
Mitologias - Prometeu
Porque a zelosa Hera colou no flanco da bezerrinha branca um moscardo aferroado, para a escarmentar e enlouquecer.
A pobre Io vagueou pelo mundo conhecido, ladeou o mar jónico e atravessou o Bósforo, o qual significa vau da vaca, num linguajar estranho. E acabou por se encontrar com Prometeu, agrilhoado no cimo do Cáucaso, pasto dos grifos por castigo de Zeus. Dele recebeu frágil consolo, antes de alcançar um dia a margem do Nilo, onde o Tonante a devolveu à forma humana. Do seu conúbio nasceria Hércules, o magnífico, que libertou Prometeu do seu rude fadário.
Da guerra que foi entre os Deuses e os Titãs, em tempos pré-humanos, restam hoje ecos no museu de Pérgamo, em Berlim. E por nela ter tomado o partido dos deuses, foi Prometeu depois chamado a criar os homens, juntamente com o irmão Epimeteu. Logo este malbaratou nos animais os melhores atributos: eram fortes, e rápidos, e astutos, e tinham penas, e pêlos, e conchas, com que se protegiam. Pouco sobrou para os humanos, além da nobreza da verticalidade.
Só restou a Prometeu trazer do sol uma tocha de fogo, e oferecê-la aos humanos. Zeus pô-lo a grilhões, no alto da montanha.
A pobre Io vagueou pelo mundo conhecido, ladeou o mar jónico e atravessou o Bósforo, o qual significa vau da vaca, num linguajar estranho. E acabou por se encontrar com Prometeu, agrilhoado no cimo do Cáucaso, pasto dos grifos por castigo de Zeus. Dele recebeu frágil consolo, antes de alcançar um dia a margem do Nilo, onde o Tonante a devolveu à forma humana. Do seu conúbio nasceria Hércules, o magnífico, que libertou Prometeu do seu rude fadário.
Da guerra que foi entre os Deuses e os Titãs, em tempos pré-humanos, restam hoje ecos no museu de Pérgamo, em Berlim. E por nela ter tomado o partido dos deuses, foi Prometeu depois chamado a criar os homens, juntamente com o irmão Epimeteu. Logo este malbaratou nos animais os melhores atributos: eram fortes, e rápidos, e astutos, e tinham penas, e pêlos, e conchas, com que se protegiam. Pouco sobrou para os humanos, além da nobreza da verticalidade.
Só restou a Prometeu trazer do sol uma tocha de fogo, e oferecê-la aos humanos. Zeus pô-lo a grilhões, no alto da montanha.
domingo, 28 de março de 2010
Tempos
E passei a pedir um robalinho grelhado, todo solidário com os viveiros gregos.
Mas os robalos chegam tão magritos... vou ter que desistir deles.
Mas os robalos chegam tão magritos... vou ter que desistir deles.
Sim, mas...
sexta-feira, 26 de março de 2010
Mitologias - Io
E foi tocando uma flauta de Pã, disfarçado de pastor, que Hermes se aproximou de Argo, uma béstia de cem olhos, encarregada por Hera, mulher de Zeus, de vigiar uma bezerra branca, atada à oliveira, na encosta.
A bezerrinha não era senão a jovem Io, uma princesa que Zeus surpreendeu a refrescar-se no lago. E ali nasceu no velho uma paixão que não teria fim, não fossem os ciúmes da zelosa Hera.
Para não ser apanhado em flagrante, Zeus fez da amada uma bezerrinha branca, que a esposa reclamou como presente.
O pai dos deuses não teve escapatória. Hera entregou a rival à vigilância de Argo e tocou o esposo para o Olimpo. E um dia, lá do alto, Zeus encarregou Hermes de liquidar o guarda e libertar a bezerra.
Hermes bem queria adormecer a sentinela e dar-lhe o golpe fatal. Tocou flauta, retocou-a, contou histórias das Arábias... mas sempre que a bestiaga fechava cinquenta olhos, sobravam outros cinquenta. E só à peripécia do deus Pã, atrás da ninfa Siringe que se fez canavial, o guardião sucumbiu.
Hermes fez sem demora o que tinha a fazer, enquanto Zeus ia vendo em que paravam as modas. Hera veio recolher os olhos de Argo, e pô-los todos na cauda do pavão, um bicho que lhe era grato. E a bezerrinha livrou-se do diabo, para se meter na mãe dele.
A bezerrinha não era senão a jovem Io, uma princesa que Zeus surpreendeu a refrescar-se no lago. E ali nasceu no velho uma paixão que não teria fim, não fossem os ciúmes da zelosa Hera.
Para não ser apanhado em flagrante, Zeus fez da amada uma bezerrinha branca, que a esposa reclamou como presente.
O pai dos deuses não teve escapatória. Hera entregou a rival à vigilância de Argo e tocou o esposo para o Olimpo. E um dia, lá do alto, Zeus encarregou Hermes de liquidar o guarda e libertar a bezerra.
Hermes bem queria adormecer a sentinela e dar-lhe o golpe fatal. Tocou flauta, retocou-a, contou histórias das Arábias... mas sempre que a bestiaga fechava cinquenta olhos, sobravam outros cinquenta. E só à peripécia do deus Pã, atrás da ninfa Siringe que se fez canavial, o guardião sucumbiu.
Hermes fez sem demora o que tinha a fazer, enquanto Zeus ia vendo em que paravam as modas. Hera veio recolher os olhos de Argo, e pô-los todos na cauda do pavão, um bicho que lhe era grato. E a bezerrinha livrou-se do diabo, para se meter na mãe dele.
quinta-feira, 25 de março de 2010
PEC
Sócrates é uma besta cabeçuda, com tradições muito antigas. E a persistir no TGV a Madrid, e no novo aeroporto, é mesmo cavalgadura obstinada. Ou mandarete de alguém.
Já os milhares de figurantes, que partilharam o poder nos últimos trinta anos e hoje vociferam contra o PEC, são virgens de página de anúncios. Há quem goste!
Já os milhares de figurantes, que partilharam o poder nos últimos trinta anos e hoje vociferam contra o PEC, são virgens de página de anúncios. Há quem goste!
EUA
Obama aprova a reforma da saúde e a América amotina-se.
Parece uma contradição nos termos mas não é.
E apenas surpreende quem lê muitas novelas da cavalaria andante.
Parece uma contradição nos termos mas não é.
E apenas surpreende quem lê muitas novelas da cavalaria andante.
Relíquia antiga - XIV
Nos últimos tempos já só descia à rua de galochas e máscara no nariz, o desconchavo de alguns condóminos atingira proporções inauditas. Que ele, a bem dizer, o ambiente local nunca fora o que pudesse chamar-se impoluto. Desde há muito que vivia no andar de baixo uma cabra do gerês, um lince da malcata no terceiro-esquerdo, e no rés-do-chão um buldogue assustador, feio como os trovões.
À noite saíam todos ao beco, a soltar a musculagem de eunucos, e sempre que os encontrava no elevador era sabido que metia pulgas em casa. O pior, no entanto, era o estado em que ficavam os passeios. Havia sempre um distraído a patinar nos monturos, quando não era um noctívago azarado que aparecia espalmado em cima deles.
Começou a sair apenas em altura de grandes enxurradas, ou nas noites em que o pessoal da câmara varria as imundícies à força de agulheta. Um dia, a menina do quinto-esquerdo recebeu nos anos um pónei da cornualha, e os tipos do quarto-frente encontraram abandonado num caminho da província um velho asno andaluz, coberto de mataduras. Logo o empilharam no reboque da mota de água, e amesendaram-no na marquise.
As coisas agravaram-se muito desde então, em aromas e em espécies, e ele passou a descer à rua de escafandro. Até que um garoto do terceiro-rectaguarda pediu ao pai natal um hipopótamo do rio loge. Nessa noite juntou à pressa um par de pertences e fugiu de casa. Apanhou um táxi e mudou-se para uma álea do jardim zoológico, onde foi ocupar a jaula devoluta dos tigres de bengala, que morreram de pasmo no outono.
Por vezes ainda rosna às visitas. Mas não quer outra vida.
[ibidem]
À noite saíam todos ao beco, a soltar a musculagem de eunucos, e sempre que os encontrava no elevador era sabido que metia pulgas em casa. O pior, no entanto, era o estado em que ficavam os passeios. Havia sempre um distraído a patinar nos monturos, quando não era um noctívago azarado que aparecia espalmado em cima deles.
Começou a sair apenas em altura de grandes enxurradas, ou nas noites em que o pessoal da câmara varria as imundícies à força de agulheta. Um dia, a menina do quinto-esquerdo recebeu nos anos um pónei da cornualha, e os tipos do quarto-frente encontraram abandonado num caminho da província um velho asno andaluz, coberto de mataduras. Logo o empilharam no reboque da mota de água, e amesendaram-no na marquise.
As coisas agravaram-se muito desde então, em aromas e em espécies, e ele passou a descer à rua de escafandro. Até que um garoto do terceiro-rectaguarda pediu ao pai natal um hipopótamo do rio loge. Nessa noite juntou à pressa um par de pertences e fugiu de casa. Apanhou um táxi e mudou-se para uma álea do jardim zoológico, onde foi ocupar a jaula devoluta dos tigres de bengala, que morreram de pasmo no outono.
Por vezes ainda rosna às visitas. Mas não quer outra vida.
[ibidem]
quarta-feira, 24 de março de 2010
Ecos da Sonora - XXIII
Três horas de gravação farão do mais pintado um Cavaleiro da Triste Figura. E eu saio a arrastar os pés, passeio fora, enquanto os foles retomam a cadência.
À porta da hospedaria da Morgado de Mateus volteiam Dulcineias. Já me eram costumeiras. Porém ultimamente envelheceram e vi-as triplicar. Estarei eu a assumir a personagem?!
À porta da hospedaria da Morgado de Mateus volteiam Dulcineias. Já me eram costumeiras. Porém ultimamente envelheceram e vi-as triplicar. Estarei eu a assumir a personagem?!
Mitologias - Pã
O deus Pã não morreu.
Cada campo que mostra
Aos sorrisos de Apolo
Os peitos nus de Ceres -
Cedo ou tarde vereis
Por lá aparecer
O deus Pã, o imortal.
(...)
[Ricardo Reis, Odes]
No complicado edifício da mitologia clássica, Pã era uma das divindades menores, da Terra. Folgazão e turbulento, com costela de sátiro, usava chifres e cascos de bode. Patrocinava pastores e cabreiros, e habitava nas florestas, nas montanhas. Eram-lhe atribuídos os ruídos e vozes do arvoredo, que assustavam os viajantes e lhes causavam pânico. Músico exímio da flauta de cana, acompanhava as ninfas dos bosques nos seus bailes e folguedos. Estava, claro, sempre apaixonado, mas tamanha fealdade era fatal.
Um dia enamorou-se duma ninfa, que assustada lhe fugiu. E quando estava prestes a agarrá-la, viu-a transformar-se num tufo de canas.
- Serás minha, mesmo assim!
E fez das canas uma flauta de Pã, unindo-as com cera de abelhas.
terça-feira, 23 de março de 2010
Evónimo!
Andei trinta anos à procura de o saber. E um dia fui descobri-lo nos Picos de Europa, durante uma caminhada com o Serra, figura fascinante de botânico amador. Vive ali para os lados do Basto, e atura umas ovelhas num terrado.
À falta de melhor, chamei-lhe toda a vida a árvore do Natal. Por causa dumas bagas vermelhas, que os melros disputavam no Inverno.
Em ciências naturais ganhei alguma coisa. Já quanto ao resto, muito suspeito de que fiquei a perder.
À falta de melhor, chamei-lhe toda a vida a árvore do Natal. Por causa dumas bagas vermelhas, que os melros disputavam no Inverno.
Em ciências naturais ganhei alguma coisa. Já quanto ao resto, muito suspeito de que fiquei a perder.
segunda-feira, 22 de março de 2010
quarta-feira, 17 de março de 2010
Relíquia antiga - XIII
Quem teve sorte foi a avó basília, que chegou antes de todos, na cadeira de rodas. Dois netos patinharam rampa acima, fincando os pés nas gretas da calçada, até depositarem ao cimo da ladeira esta rainha. Tamanha canseira nem a dos palafreneiros de el-rei dom joão quinto, quando o magnânimo vinha aqui subir a encosta e abrir o peito ao espavento dos torreões da sua mafra, que haveriam de torná-lo imortal. Fosse como fosse, a verdade é que a velhota, os pêlos do mento escanhoados a preceito e o restante do carão aplainado por cremes e pós-de-arroz muito oportunos, logo tomou lugar à frente, na coxia central da grande nave da basílica, não queria perder pitada da função.
O pior foi que muitos convivas rebanhavam ainda na larga escadaria quando a noiva chegou, e já não puderam entrar. Porque ela apoiou o cansaço das olheiras no cotovelo solene do padrinho, deixou que a frescura do templo lhe cerrasse as pálpebras azuis, ajustou o passinho miúdo aos acordes imponentes das tubagens do órgão e deixou-se levar. Dir-se-ia que levitava, hirta, nave acima, de bouquet na mãozinha fria, enquanto flutuava por cima das leis da física, o corpo de libélula a dissolver-se na abundância de folhos, entre sedas e organdis. E atrás dela, na mesma lentidão sisuda de majestade reinante, lambendo o chão num rumor de setins, logo começou a entrar na igreja a cauda do vestido.
Quando a noiva chegou ao altar e se apoiou, exausta, no genuflexório, ainda o vasto caudal se alongava pelo largo fronteiro, vindo lá do fundo da avenida que chega da ericeira. Andavam os pobres caudatários numa fona, afugentando cães, espantando choferes irritados, os veludos do fato em desalinho. O manto continuava a desaguar na basílica, enchendo o pórtico de umbral a umbral, em volutas de tafetás e tules.
Radioso a princípio, o semblante do padre foi-se fechando à medida que o tempo se escoava, sem aparecer o fim da cauda nupcial. Ele conhecia como ninguém os caprichos do mundo e das suas criaturas. Mas não pôde evitar a sombra duma inquietação, à medida que foi vendo a metade fundeira da igreja afogar-se em castelos de cambraias, os convivas, em temor, a rodearem o altar.
E foi quando o pânico ameacava já tomar conta da assembleia que a fímbria derradeira do manto entrou na basílica. Perante o arrebato de quantos protestavam lá fora, tão insolitamente impedidos de assistir à função, o padre ministrou rapidamente o sacramento, era o que podia fazer. E logo desapareceu na sacristia, desparamentou-se e saiu pelas traseiras.
Abandonado a si mesmo naquela clausura, de que ninguém lobrigava forma de sair, esteve o concílio a pontos de perder a cabeça. Houve quem tivesse a ideia de lançar fogo a tudo, alguém sugeriu que era melhor saltarem todos pela janela, abandonando os tules inúteis.
Acabou, afinal, por vir a desvendar-se que tudo não passava duma tramóia, engendrada por uma estação de televisão em desespero de audiências. E foi então que a avó basília, incomodada por tamanho desperdício, chamou de parte a neta e lhe disse ao ouvido, que sempre encontrará na vida o que precisa quem guarda o que não presta.
Tal foi o que lhe disse, como foi o que se fez. Recordado das antigas campanhas da guiné, o padrinho chamou em apoio um pelotão de infantaria, que saía em manobras do quartel vizinho. Ajudaram todos a enfardar cambraias e setins, veio mais tarde a noiva recolhê-los, depois da lua-de-mel.
Tinha razão a avó basília, tamanho jeito lhe vieram a dar para tapar as misérias, durante um ror de anos.
[ibidem]
O pior foi que muitos convivas rebanhavam ainda na larga escadaria quando a noiva chegou, e já não puderam entrar. Porque ela apoiou o cansaço das olheiras no cotovelo solene do padrinho, deixou que a frescura do templo lhe cerrasse as pálpebras azuis, ajustou o passinho miúdo aos acordes imponentes das tubagens do órgão e deixou-se levar. Dir-se-ia que levitava, hirta, nave acima, de bouquet na mãozinha fria, enquanto flutuava por cima das leis da física, o corpo de libélula a dissolver-se na abundância de folhos, entre sedas e organdis. E atrás dela, na mesma lentidão sisuda de majestade reinante, lambendo o chão num rumor de setins, logo começou a entrar na igreja a cauda do vestido.
Quando a noiva chegou ao altar e se apoiou, exausta, no genuflexório, ainda o vasto caudal se alongava pelo largo fronteiro, vindo lá do fundo da avenida que chega da ericeira. Andavam os pobres caudatários numa fona, afugentando cães, espantando choferes irritados, os veludos do fato em desalinho. O manto continuava a desaguar na basílica, enchendo o pórtico de umbral a umbral, em volutas de tafetás e tules.
Radioso a princípio, o semblante do padre foi-se fechando à medida que o tempo se escoava, sem aparecer o fim da cauda nupcial. Ele conhecia como ninguém os caprichos do mundo e das suas criaturas. Mas não pôde evitar a sombra duma inquietação, à medida que foi vendo a metade fundeira da igreja afogar-se em castelos de cambraias, os convivas, em temor, a rodearem o altar.
E foi quando o pânico ameacava já tomar conta da assembleia que a fímbria derradeira do manto entrou na basílica. Perante o arrebato de quantos protestavam lá fora, tão insolitamente impedidos de assistir à função, o padre ministrou rapidamente o sacramento, era o que podia fazer. E logo desapareceu na sacristia, desparamentou-se e saiu pelas traseiras.
Abandonado a si mesmo naquela clausura, de que ninguém lobrigava forma de sair, esteve o concílio a pontos de perder a cabeça. Houve quem tivesse a ideia de lançar fogo a tudo, alguém sugeriu que era melhor saltarem todos pela janela, abandonando os tules inúteis.
Acabou, afinal, por vir a desvendar-se que tudo não passava duma tramóia, engendrada por uma estação de televisão em desespero de audiências. E foi então que a avó basília, incomodada por tamanho desperdício, chamou de parte a neta e lhe disse ao ouvido, que sempre encontrará na vida o que precisa quem guarda o que não presta.
Tal foi o que lhe disse, como foi o que se fez. Recordado das antigas campanhas da guiné, o padrinho chamou em apoio um pelotão de infantaria, que saía em manobras do quartel vizinho. Ajudaram todos a enfardar cambraias e setins, veio mais tarde a noiva recolhê-los, depois da lua-de-mel.
Tinha razão a avó basília, tamanho jeito lhe vieram a dar para tapar as misérias, durante um ror de anos.
[ibidem]
terça-feira, 16 de março de 2010
Enfim!
segunda-feira, 15 de março de 2010
Olhos abertos
Seguindo as boas práticas do melhor poder local, um autarca de Torres Vedras rendeu-se aos sortilégios da criação artística. Contemporânea, que sempre dá mais pica!
E lá espatifou 300 mil euros do precário orçamento no Senhor Vinho, uma subtileza estética de Joana Vasconcelos, que moldou em ferro forjado um garrafão de cinco litros. Com cinco metros de altura, para sobressair na praça e justificar o preço.
É despautério atrás de despautério!
Mutatis mutandis e por mais que doa, o melhor é ouvir o que dizem os mestres.
A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou praguejando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
— e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.
A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.
Mário Dionísio, Novo Cancioneiro, Poemas, 1941
Mário Dionísio, Novo Cancioneiro, Poemas, 1941
Nota explicativa
«(…)Isto levou-nos, aliás, a rejeitar a integração em bloco do aparelho local da ANP no nosso partido, que nos foi oferecida por alguns dos seus ex-dirigentes nacionais (através de listas com nomes, moradas, telefones e tudo) – o que representou da nossa parte um belo acto de coerência e idealismo, mas que não foi recompensado pelos deuses: esse aparelho acabou por se passar quase todo para o PPD, que não teve dúvida em o aceitar, depois de riscados alguns nomes mais conhecidos, com o que ganhou definitivamente a primazia sobre nós em implantação local.»
(Freitas do Amaral, O Antigo regime e a revolução – Memórias políticas (1941-1975), Bertrand, p.185).
[surripiado de olhequenao.wordpress.com]
(Freitas do Amaral, O Antigo regime e a revolução – Memórias políticas (1941-1975), Bertrand, p.185).
[surripiado de olhequenao.wordpress.com]
sábado, 13 de março de 2010
China: quo vadis?
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
Um dos factores que, na última década, mais tem influenciado a situação económica internacional é o forte crescimento da China. Com efeito, nos últimos 10 anos, a China teve um crescimento espectacular do PIB, com taxas médias de 10% ao ano. Muitas empresas e marcas dos mercados europeu e americano entraram em força, e com sucesso, no mercado chinês.
O consumo dos chineses aumentou, e os indicadores de conforto aproximam-se pouco a pouco dos que se verificam nos países mais desenvolvidos. A China tornou-se a segunda maior economia mundial, destronando o Japão. De exportador de petróleo até 1994, a China é hoje um dos maiores importadores mundiais. Essas importações cifram-se em cerca de 4 milhões de barris por dia, e têm sido um dos principais responsáveis pelos elevados preços do crude nos anos recentes.
Os efeitos da crise, que em 2007 eclodiu nos EUA e alastrou a todo o mundo, fizeram-se sentir também na China, tendo motivado um decréscimo das exportações e uma redução do crescimento. Mas, possivelmente por ser uma economia centralizada, a reacção foi mais rápida, e o crescimento estimado para o corrente ano será já da ordem dos 8%.
No contexto actual, o crescimento da economia chinesa tem de continuar elevado. Só assim poderá sustentar a alteração estrutural do sistema produtivo, que é caracterizado por uma elevada taxa de desemprego e por uma contínua e crescente migração das populações das zonas rurais para as zonas urbanas. A direcção centralizada da economia vai ter de estimular e manter esse crescimento a todo o custo.
Até agora isso tem sido conseguido através de um forte estímulo financeiro, traduzido num forte aumento do crédito que cresceu, nos últimos dois anos, 2,5 vezes. Os chineses têm uma elevada poupança, a qual é uma forma de protecção num sistema sem segurança social, sem serviço público de saúde e sem protecção no desemprego. A compra de um apartamento é hoje, para os chineses, uma forma de assegurar alguma protecção na reforma.
Não admira por isso que o crescimento da China esteja baseado sobretudo na construção civil, a qual atinge valores astronómicos. Neste momento estão em construção na China 3 mil milhões de m2, o que corresponde a 2,5 m2 por habitante. Mas os excedentes já são bem patentes: 20% do espaço comercial em Pequim e 16% em Xangai está disponível para aluguer. Um dos maiores e mais modernos centros comerciais do mundo, o South China Mall, recém-construído, está praticamente desocupado. E até uma cidade inteira, Ordos, construída na Mongólia chinesa para albergar 1,4 milhões de habitantes, está totalmente vazia.
Tudo isto é visto por alguns analistas como um perigoso sobreaquecimento da economia, e receia-se que o preço do m2 não possa continuar a aumentar por muito tempo. Alguns dizem que a situação pode ser semelhante à que ocorreu nos Estados Unidos em 2007, e já se fala da “bolha chinesa”.
A ocorrência deste espectro pode vir a ter consequências muito dolorosas. Poderá afectar gravemente a situação mundial, e pôr em causa a frágil retoma que parece esboçar-se na Europa e nos Estados Unidos. As economias são todas fortemente dependentes, e muita da capacidade industrial dos países ocidentais foi irremediavelmente destruída pela concorrência dos produtos ”made in China”.
Por outro lado, as exportações de bens industriais para a China têm estimulado muitas economias. Cite-se como exemplo o caso do Brasil, para quem a China representa 15% das exportações.
Uma crise chinesa teria ainda como consequência uma forte queda do preço do petróleo, facto que, no contexto actual, poderia ser mais maléfico do que benéfico para a almejada retoma. Alguém disse já que a China será a mãe de todos os “cisnes negros”.
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
Um dos factores que, na última década, mais tem influenciado a situação económica internacional é o forte crescimento da China. Com efeito, nos últimos 10 anos, a China teve um crescimento espectacular do PIB, com taxas médias de 10% ao ano. Muitas empresas e marcas dos mercados europeu e americano entraram em força, e com sucesso, no mercado chinês.
O consumo dos chineses aumentou, e os indicadores de conforto aproximam-se pouco a pouco dos que se verificam nos países mais desenvolvidos. A China tornou-se a segunda maior economia mundial, destronando o Japão. De exportador de petróleo até 1994, a China é hoje um dos maiores importadores mundiais. Essas importações cifram-se em cerca de 4 milhões de barris por dia, e têm sido um dos principais responsáveis pelos elevados preços do crude nos anos recentes.
Os efeitos da crise, que em 2007 eclodiu nos EUA e alastrou a todo o mundo, fizeram-se sentir também na China, tendo motivado um decréscimo das exportações e uma redução do crescimento. Mas, possivelmente por ser uma economia centralizada, a reacção foi mais rápida, e o crescimento estimado para o corrente ano será já da ordem dos 8%.
No contexto actual, o crescimento da economia chinesa tem de continuar elevado. Só assim poderá sustentar a alteração estrutural do sistema produtivo, que é caracterizado por uma elevada taxa de desemprego e por uma contínua e crescente migração das populações das zonas rurais para as zonas urbanas. A direcção centralizada da economia vai ter de estimular e manter esse crescimento a todo o custo.
Até agora isso tem sido conseguido através de um forte estímulo financeiro, traduzido num forte aumento do crédito que cresceu, nos últimos dois anos, 2,5 vezes. Os chineses têm uma elevada poupança, a qual é uma forma de protecção num sistema sem segurança social, sem serviço público de saúde e sem protecção no desemprego. A compra de um apartamento é hoje, para os chineses, uma forma de assegurar alguma protecção na reforma.
Não admira por isso que o crescimento da China esteja baseado sobretudo na construção civil, a qual atinge valores astronómicos. Neste momento estão em construção na China 3 mil milhões de m2, o que corresponde a 2,5 m2 por habitante. Mas os excedentes já são bem patentes: 20% do espaço comercial em Pequim e 16% em Xangai está disponível para aluguer. Um dos maiores e mais modernos centros comerciais do mundo, o South China Mall, recém-construído, está praticamente desocupado. E até uma cidade inteira, Ordos, construída na Mongólia chinesa para albergar 1,4 milhões de habitantes, está totalmente vazia.
Tudo isto é visto por alguns analistas como um perigoso sobreaquecimento da economia, e receia-se que o preço do m2 não possa continuar a aumentar por muito tempo. Alguns dizem que a situação pode ser semelhante à que ocorreu nos Estados Unidos em 2007, e já se fala da “bolha chinesa”.
A ocorrência deste espectro pode vir a ter consequências muito dolorosas. Poderá afectar gravemente a situação mundial, e pôr em causa a frágil retoma que parece esboçar-se na Europa e nos Estados Unidos. As economias são todas fortemente dependentes, e muita da capacidade industrial dos países ocidentais foi irremediavelmente destruída pela concorrência dos produtos ”made in China”.
Por outro lado, as exportações de bens industriais para a China têm estimulado muitas economias. Cite-se como exemplo o caso do Brasil, para quem a China representa 15% das exportações.
Uma crise chinesa teria ainda como consequência uma forte queda do preço do petróleo, facto que, no contexto actual, poderia ser mais maléfico do que benéfico para a almejada retoma. Alguém disse já que a China será a mãe de todos os “cisnes negros”.
sexta-feira, 12 de março de 2010
Pítia
A Goldman Sachs, colorida flor do ramalhete da cleptocracia reinante, ensinou aos gregos o caminho de Tróia. Por 300 milhões de dólares, ajudou-os a contrair empréstimos de milhares de milhões, para não falharem o Euro.
Depois meteu-lhes em casa um cavalo de madeira. Soprou-lhes ao ouvido astúcias contabilísticas e engenharias financeiras, para ludibriar as contas.
No final, o patrão da Goldman Sachs meteu este ano ao bolso um bónus extra de nove milhões de dólares. E os trabalhadores gregos perderam um mês de salário, a ver se o país escapa da bancarrota.
O presidente da América, um tal negro que fazia milagres, acha bem os bónus dos banqueiros, por mais escandalosos que pareçam. Porque o êxito e a fortuna fazem parte da economia de mercado. E alguns europeus recomendam aos gregos que ponham Delfos à venda, talvez interesse ao patrão da Goldman Sachs.
E os gregos com a Pítia no desemprego!
Depois meteu-lhes em casa um cavalo de madeira. Soprou-lhes ao ouvido astúcias contabilísticas e engenharias financeiras, para ludibriar as contas.
No final, o patrão da Goldman Sachs meteu este ano ao bolso um bónus extra de nove milhões de dólares. E os trabalhadores gregos perderam um mês de salário, a ver se o país escapa da bancarrota.
O presidente da América, um tal negro que fazia milagres, acha bem os bónus dos banqueiros, por mais escandalosos que pareçam. Porque o êxito e a fortuna fazem parte da economia de mercado. E alguns europeus recomendam aos gregos que ponham Delfos à venda, talvez interesse ao patrão da Goldman Sachs.
E os gregos com a Pítia no desemprego!
Catarses
A blogosfera é hoje o anfiteatro da cidade. Nela encontraram lugar as múltiplas catarses da tragédia moderna.
A cada blogueiro a sua. Porque as personas em palco deixaram de usar coturnos. Banalizadas, confundem-se com os actores.
Há quem escreva muito bem, na blogosfera, onde o mercado não manda, e onde a escrita ainda se salva.
Um dia o poder global vai ter que a silenciar. Podendo.
A cada blogueiro a sua. Porque as personas em palco deixaram de usar coturnos. Banalizadas, confundem-se com os actores.
Há quem escreva muito bem, na blogosfera, onde o mercado não manda, e onde a escrita ainda se salva.
Um dia o poder global vai ter que a silenciar. Podendo.
quinta-feira, 11 de março de 2010
TGV não, obrigado!
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
A construção de uma linha férrea de alta velocidade entre Madrid e Lisboa pode fazer algum sentido para Espanha, pois ela reforça a centralidade ibérica de Madrid. Mas para Portugal não faz sentido nenhum. Não vai gerar tráfego que economicamente a justifique, nem colmata a falta de uma via de escoamento das mercadorias portuguesa para a Europa. Além disso, vai fazer com que mais empresas desloquem os seus escritórios centrais para Madrid.
Este é um projecto espanhol, que vai ser gerido por espanhóis, que terá material circulante espanhol, e até o pessoal afecto à exploração será também espanhol. E suspeito que as ementas do restaurante aparecerão escritas apenas no idioma de Cervantes.
Alguns números pescados na Internet, mais precisamente de um estudo publicado no insuspeito “site” da Rave, mostram que o tráfego total previsível entre as duas capitais andará por 1,6 milhões de passageiros/ano em 2033. E que 36% desse tráfego será, naquela data, afecto ao transporte ferroviário. O referido estudo fala, é certo, de um tráfego global de 9 milhões de passageiros. Mas estes são os números do tráfego intermédio, como, por exemplo, entre Lisboa e Vendas Novas, ou Talavera e Madrid. Ora este não é o tráfego que interessa ao TGV, e tais números só servem para criar confusão, ou tentar justificar o injustificável.
Feitas as contas, o estudo conclui que, em 2033, haverá 576.000 passageiros por ano (ou seja, 1.600 por dia) a fazer o percurso entre as duas capitais ibéricas. Não diz o estudo como foi estimada a evolução temporal deste tráfego, e estou em crer que tenha sido de forma optimista e exponencial, como de costume, para justificar o investimento. Admitamos, com benevolência, que nos primeiros anos da vida do projecto haverá 1.000 passageiros por dia, 500 em cada sentido. Isto corresponde a um comboio de 8 carruagens, com 60 passageiros cada, a fazer diariamente um percurso de ida e outro de volta.
A agravar as coisas, convém lembrar que estes passageiros serão roubados ao novo aeroporto e, uma boa parte deles, à transportadora aérea nacional, numa ligação que acredito seja de boa rentabilidade. E vamos nós, em tempo de vacas magras, construir uma linha (que ainda por cima não é dimensionada para o tráfego de mercadorias) e uma nova ponte sobre o Tejo, para transportar mil passageiros por dia?! São demasiados custos para tão fracos benefícios.
A propósito de mercadorias, vem a propósito referir que, viajando pela Beira num domingo de Fevereiro passado, apenas entre as 11:00 e as 11:30 da manhã, contei eu 80 camiões TIR na A25, entre a Guarda e Vilar Formoso. E apenas no sentido da saída de Portugal.É este o caminho natural de Portugal para Europa. Muito do tráfego de mercadorias que utiliza esta ligação rodoviária poderia ser feito por caminho-de-ferro, com economia de meios, de pessoal, de energia e mesmo do ambiente. Mas isso não pode acontecer, porque a linha férrea acaba em Irun, na fronteira entre a Espanha e a França. A partir daí a linha francesa é mais estreita (tem a bitola europeia), e os comboios não podem ir mais além sem um inconveniente transbordo. É por essa razão que não se transportam mercadorias de Portugal para a Europa por caminho-de-ferro. E depois de construída a linha do TGV para Madrid a situação não mudará, pois a linha é só para passageiros, e o caminho por Madrid não é o que interessa ao escoamento das mercadorias portuguesas.
Negoceie-se, pois, com os espanhóis, a urgente e prioritária construção de uma linha de bitola europeia, pelo percurso da linha da Beira Alta e com seguimento por Valladolid e Burgos até à fronteira francesa. A pensar nas mercadorias, claro. Nas mercadorias que necessitamos de importar e de exportar para lá dos Pirenéus.
Com o TGV previsto para Madrid, Sócrates não ficará na história pelos bons motivos. E o direito a estátua, ou a nome de rua, talvez o ganhe em Madrid, ou Badajoz.
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
A construção de uma linha férrea de alta velocidade entre Madrid e Lisboa pode fazer algum sentido para Espanha, pois ela reforça a centralidade ibérica de Madrid. Mas para Portugal não faz sentido nenhum. Não vai gerar tráfego que economicamente a justifique, nem colmata a falta de uma via de escoamento das mercadorias portuguesa para a Europa. Além disso, vai fazer com que mais empresas desloquem os seus escritórios centrais para Madrid.
Este é um projecto espanhol, que vai ser gerido por espanhóis, que terá material circulante espanhol, e até o pessoal afecto à exploração será também espanhol. E suspeito que as ementas do restaurante aparecerão escritas apenas no idioma de Cervantes.
Alguns números pescados na Internet, mais precisamente de um estudo publicado no insuspeito “site” da Rave, mostram que o tráfego total previsível entre as duas capitais andará por 1,6 milhões de passageiros/ano em 2033. E que 36% desse tráfego será, naquela data, afecto ao transporte ferroviário. O referido estudo fala, é certo, de um tráfego global de 9 milhões de passageiros. Mas estes são os números do tráfego intermédio, como, por exemplo, entre Lisboa e Vendas Novas, ou Talavera e Madrid. Ora este não é o tráfego que interessa ao TGV, e tais números só servem para criar confusão, ou tentar justificar o injustificável.
Feitas as contas, o estudo conclui que, em 2033, haverá 576.000 passageiros por ano (ou seja, 1.600 por dia) a fazer o percurso entre as duas capitais ibéricas. Não diz o estudo como foi estimada a evolução temporal deste tráfego, e estou em crer que tenha sido de forma optimista e exponencial, como de costume, para justificar o investimento. Admitamos, com benevolência, que nos primeiros anos da vida do projecto haverá 1.000 passageiros por dia, 500 em cada sentido. Isto corresponde a um comboio de 8 carruagens, com 60 passageiros cada, a fazer diariamente um percurso de ida e outro de volta.
A agravar as coisas, convém lembrar que estes passageiros serão roubados ao novo aeroporto e, uma boa parte deles, à transportadora aérea nacional, numa ligação que acredito seja de boa rentabilidade. E vamos nós, em tempo de vacas magras, construir uma linha (que ainda por cima não é dimensionada para o tráfego de mercadorias) e uma nova ponte sobre o Tejo, para transportar mil passageiros por dia?! São demasiados custos para tão fracos benefícios.
A propósito de mercadorias, vem a propósito referir que, viajando pela Beira num domingo de Fevereiro passado, apenas entre as 11:00 e as 11:30 da manhã, contei eu 80 camiões TIR na A25, entre a Guarda e Vilar Formoso. E apenas no sentido da saída de Portugal.É este o caminho natural de Portugal para Europa. Muito do tráfego de mercadorias que utiliza esta ligação rodoviária poderia ser feito por caminho-de-ferro, com economia de meios, de pessoal, de energia e mesmo do ambiente. Mas isso não pode acontecer, porque a linha férrea acaba em Irun, na fronteira entre a Espanha e a França. A partir daí a linha francesa é mais estreita (tem a bitola europeia), e os comboios não podem ir mais além sem um inconveniente transbordo. É por essa razão que não se transportam mercadorias de Portugal para a Europa por caminho-de-ferro. E depois de construída a linha do TGV para Madrid a situação não mudará, pois a linha é só para passageiros, e o caminho por Madrid não é o que interessa ao escoamento das mercadorias portuguesas.
Negoceie-se, pois, com os espanhóis, a urgente e prioritária construção de uma linha de bitola europeia, pelo percurso da linha da Beira Alta e com seguimento por Valladolid e Burgos até à fronteira francesa. A pensar nas mercadorias, claro. Nas mercadorias que necessitamos de importar e de exportar para lá dos Pirenéus.
Com o TGV previsto para Madrid, Sócrates não ficará na história pelos bons motivos. E o direito a estátua, ou a nome de rua, talvez o ganhe em Madrid, ou Badajoz.
terça-feira, 9 de março de 2010
Ora toma!
O autocarro baloiçava as molas no empedrado velho da avenida, parecia uma traineira a forcejar a barra, quando a mulher entrou. E foi descendo a coxia com ademanes de enfado, à procura dum espaço onde arrumar os volumes dum abafo de pelagens sintéticas.
A mulher trazia uns lábios vermelhos, desenhados a bâton, e pulseiras que luziam corações de lata, sempre que estendia a mão às pegas do corredor, a equilibrar um balanço. Protegia-lhe a peruca uma boina lilás.
Então a rapariga levantou-se, voltou na direcção dela os peititos de rola, desvendou uma coxa arredondada, e ofereceu-lhe o lugar.
- A menina faxavor de ir chamar velha à sua avó!
E rodou para a janela o nariz arrebitado.
A mulher trazia uns lábios vermelhos, desenhados a bâton, e pulseiras que luziam corações de lata, sempre que estendia a mão às pegas do corredor, a equilibrar um balanço. Protegia-lhe a peruca uma boina lilás.
Então a rapariga levantou-se, voltou na direcção dela os peititos de rola, desvendou uma coxa arredondada, e ofereceu-lhe o lugar.
- A menina faxavor de ir chamar velha à sua avó!
E rodou para a janela o nariz arrebitado.
segunda-feira, 8 de março de 2010
Foi dos poucos!
Por aqui não se endeusa ninguém. Nem sequer os deuses patenteados. E gestos de aplauso apenas têm uso, quando servem de atalho ao zurzimento. O resto é tempo perdido.
Costa Martins, que morre num avião, foi dos poucos aviadores que recusou o remanso do redil. Pagou por isso, claro, um preço alto. Mas sabia que na vida há barricadas claras, ao contrário do que às vezes nos parece, e das falinhas mansas com que nos adormecem.
O lado que ocupou, na barricada, foi o da dignidade e da justiça. Mesmo se esta parecia coisa improvável, e aquela, para beaux-esprits, era assunto peregrino. Honra lhe seja feita!
domingo, 7 de março de 2010
Relíquia antiga - XII
Copiando descaradamente as velhas tácticas da operação nó cego, que a seu tempo reduziram a pó o planalto dos macondes, desencadeei uma série de campanhas que me permitiram ultrapassar a crise dos pulgões amotinados. Porém, após a euforia da vitória, dei conta do estado lastimoso em que me ficara o terraço, quem tenha andado nas trincheiras da flandres saberá do que estou a falar.
Oraa este era o pequeno património que me restava da família, e guardava para mim um vasto significado emotivo, a despeito de algum desvalor intrínseco. Pedi o parecer dum paisagista, o qual em boa hora me aconselhou a reconversão agrícola do espaço. Sem ajuizar, por certo, das metamorfoses a que me iria sujeitar.
Havia que fazer opções. E não sei se foi a antiga preocupação de dar de comer a um milhão de portugueses, ou se foi a minha costela clássica a lembrar-me que nem só os deuses merecem um bom vinho. O facto é que não demorei a plantar uns bacelos que arranjei no mercado, após o que tratei de me associar a uma dessas agremiações da lavoura de qualidade, que há muito me habituara a reverenciar.
Logo na primavera, estavam os bacelos a abrolhar os primeiros gomos, começaram a sair-me coelhos da cartola. Havia um qualquer instituto no ministério da agricultura, que pagava generosamente o arranque das cepas. E eu, moderno empreendedor, tinha que ser pragmático. Meti os catrapilos a arrotear o terraço, e ainda me sobrou capital para investir num parque de máquinas. Comecei logo por um jipe samurai de tracção integral, e passei a deslocar-me ao centro da cidade em viatura própria, liberto das indigestões da carris.
Eu era agora um empreendedor, como já ficou dito, e tinha o terraço devoluto. Frequentava os seminários da grape, à procura de entender, entre o tinto e o patanegra alentejanos, os meandros daquilo que toda a gente chamava a política agrária global. Durante três anos, e enquanto, salvo seja, ia apalpando o terreno, apostei na cultura das oleaginosas, que funcionava de modo tão simples quanto surpreendente. Eu lançava as sementes à terra, e garantia logo a correspondente subvenção. Porém, sendo os gastos da colheita superiores ao valor do produto, o destino da plantação era mirrar-se lentamente, até se desfazer ao vento. Ficava eu livre de trabalhos vãos, enquanto o fundo de garantia se encarregava de manter-me em equilíbrio os orçamentos.
Esta espécie de pousio havia de ter como efeito uma notável melhoria dos solos, a tal ponto que me abalancei à cultura de frutas mais especiosas. Apresentei um projecto de plantação, cuja subvenção a fundo perdido incluía um sistema de rega científico, inventado por judeus do deserto. Embora mais adequadas às neblinas da nova zelândia, as plantas resistiram à escassez de águas e mostravam considerável vigor.
Passados três anos, a primeira produção foi tão fecunda que o mercado recusou absorvê-la por inteiro. A situação era de vera catástrofe, não havia estações de armazenamento para acolher tanta fruta, esgotou-se a capacidade nacional de produção de embalagens. Apoiado pela grape, exigi a intervenção do governo. E a resistência obstinada do ministro, a quem alguns jornais chegaram a imputar infames antipatriotismos, acabou por ser-lhe fatal às coronárias e à carreira política.
Mas não há fartura que em fome não venha a dar. No ano seguinte, chegou em maio uma tardia onda de geadas negras, e as belas promessas dos pomares foram-se murchando e acabaram mirradas. Reclamei do governo a declaração de calamidade, e consegui apoios de emergência que me pouparam à falência.
Mas ficara-me da fruta um sabor desconsolado, depois de ver como a geada perturbara o estado vegetativo dos pomares. Ainda fiz umas podas extraordinárias, umas empas de recurso, ainda apliquei umas caldas de aquecimento, mas nada valeu a pena. E eu era agora um empreendedor, volto a dizê-lo propositadamente, tinha que fazer opções sustentadas de investimento.
Foi assim que me entreguei à produção de leite. Apresentei os planos num instituto do ministério, e logo vieram uns catrapilos a instalar a pastagem, quando nos estábulos se faziam já as últimas afinações dos equipamentos de automatização. Chegaram por fim umas dúzias de vacas frísias que eram um consolo para a vista.
Foram dois anos que me deixaram saudades. Isto antes de os tipos de bruxelas reduzirem drasticamente o subsídio à produção, e antes de os galegos terem entrado no mercado, parecia a dada altura que o rio minho se fizera leite.
Foi por então que tive que vender a casa de férias no algarve, antes de entregar um projecto de reconversão à produção de carne, que me evitou males maiores. Em boa hora se foram as frísias e vieram as charolesas. Havia no ministério um fundo de apoio por cabeça, e os técnicos agrícolas vinham controlar os efectivos, volta não volta. Eu recebia-os pela manhã, na adega, com tinto e patanegra da amareleja, e a tarde passavam-na no terraço, embrenhados em observações de campo. Dava uma trabalheira transferir nessas noites o efectivo para a marquise, onde eu tinha montado um cenário de pastagens alpinas, a vistoriar no dia seguinte. Mas as contagens finais resultavam generosas, e foi graças a elas que a exploração floresceu.
Um dia fui ajeitar o penso às charolesas, e dei com elas a dançar a polca, cheias de cortesias. O veterinário fez-me o diagnóstico à mesa do café, as vacas tinham enlouquecido. Estalara a moda na inglaterra, quando os cientistas quiseram obrigá-las a comer os antepassados.
Caiu-me o queixo de estupefação, e fiquei dois minutos a benzer-me. Mas o homem logo adiantou que estava criado um fundo para abate. E eu aproveitei-me dele para trocar o todo-o-terreno e abandonar o ciclo produtivo.
Por uns tempos, ainda estive tentado a reconverter-me à floresta, usando um fundo de modernização. Mas tenho-me limitado a ver arder as matas dos vizinhos.
[ibidem]
Oraa este era o pequeno património que me restava da família, e guardava para mim um vasto significado emotivo, a despeito de algum desvalor intrínseco. Pedi o parecer dum paisagista, o qual em boa hora me aconselhou a reconversão agrícola do espaço. Sem ajuizar, por certo, das metamorfoses a que me iria sujeitar.
Havia que fazer opções. E não sei se foi a antiga preocupação de dar de comer a um milhão de portugueses, ou se foi a minha costela clássica a lembrar-me que nem só os deuses merecem um bom vinho. O facto é que não demorei a plantar uns bacelos que arranjei no mercado, após o que tratei de me associar a uma dessas agremiações da lavoura de qualidade, que há muito me habituara a reverenciar.
Logo na primavera, estavam os bacelos a abrolhar os primeiros gomos, começaram a sair-me coelhos da cartola. Havia um qualquer instituto no ministério da agricultura, que pagava generosamente o arranque das cepas. E eu, moderno empreendedor, tinha que ser pragmático. Meti os catrapilos a arrotear o terraço, e ainda me sobrou capital para investir num parque de máquinas. Comecei logo por um jipe samurai de tracção integral, e passei a deslocar-me ao centro da cidade em viatura própria, liberto das indigestões da carris.
Eu era agora um empreendedor, como já ficou dito, e tinha o terraço devoluto. Frequentava os seminários da grape, à procura de entender, entre o tinto e o patanegra alentejanos, os meandros daquilo que toda a gente chamava a política agrária global. Durante três anos, e enquanto, salvo seja, ia apalpando o terreno, apostei na cultura das oleaginosas, que funcionava de modo tão simples quanto surpreendente. Eu lançava as sementes à terra, e garantia logo a correspondente subvenção. Porém, sendo os gastos da colheita superiores ao valor do produto, o destino da plantação era mirrar-se lentamente, até se desfazer ao vento. Ficava eu livre de trabalhos vãos, enquanto o fundo de garantia se encarregava de manter-me em equilíbrio os orçamentos.
Esta espécie de pousio havia de ter como efeito uma notável melhoria dos solos, a tal ponto que me abalancei à cultura de frutas mais especiosas. Apresentei um projecto de plantação, cuja subvenção a fundo perdido incluía um sistema de rega científico, inventado por judeus do deserto. Embora mais adequadas às neblinas da nova zelândia, as plantas resistiram à escassez de águas e mostravam considerável vigor.
Passados três anos, a primeira produção foi tão fecunda que o mercado recusou absorvê-la por inteiro. A situação era de vera catástrofe, não havia estações de armazenamento para acolher tanta fruta, esgotou-se a capacidade nacional de produção de embalagens. Apoiado pela grape, exigi a intervenção do governo. E a resistência obstinada do ministro, a quem alguns jornais chegaram a imputar infames antipatriotismos, acabou por ser-lhe fatal às coronárias e à carreira política.
Mas não há fartura que em fome não venha a dar. No ano seguinte, chegou em maio uma tardia onda de geadas negras, e as belas promessas dos pomares foram-se murchando e acabaram mirradas. Reclamei do governo a declaração de calamidade, e consegui apoios de emergência que me pouparam à falência.
Mas ficara-me da fruta um sabor desconsolado, depois de ver como a geada perturbara o estado vegetativo dos pomares. Ainda fiz umas podas extraordinárias, umas empas de recurso, ainda apliquei umas caldas de aquecimento, mas nada valeu a pena. E eu era agora um empreendedor, volto a dizê-lo propositadamente, tinha que fazer opções sustentadas de investimento.
Foi assim que me entreguei à produção de leite. Apresentei os planos num instituto do ministério, e logo vieram uns catrapilos a instalar a pastagem, quando nos estábulos se faziam já as últimas afinações dos equipamentos de automatização. Chegaram por fim umas dúzias de vacas frísias que eram um consolo para a vista.
Foram dois anos que me deixaram saudades. Isto antes de os tipos de bruxelas reduzirem drasticamente o subsídio à produção, e antes de os galegos terem entrado no mercado, parecia a dada altura que o rio minho se fizera leite.
Foi por então que tive que vender a casa de férias no algarve, antes de entregar um projecto de reconversão à produção de carne, que me evitou males maiores. Em boa hora se foram as frísias e vieram as charolesas. Havia no ministério um fundo de apoio por cabeça, e os técnicos agrícolas vinham controlar os efectivos, volta não volta. Eu recebia-os pela manhã, na adega, com tinto e patanegra da amareleja, e a tarde passavam-na no terraço, embrenhados em observações de campo. Dava uma trabalheira transferir nessas noites o efectivo para a marquise, onde eu tinha montado um cenário de pastagens alpinas, a vistoriar no dia seguinte. Mas as contagens finais resultavam generosas, e foi graças a elas que a exploração floresceu.
Um dia fui ajeitar o penso às charolesas, e dei com elas a dançar a polca, cheias de cortesias. O veterinário fez-me o diagnóstico à mesa do café, as vacas tinham enlouquecido. Estalara a moda na inglaterra, quando os cientistas quiseram obrigá-las a comer os antepassados.
Caiu-me o queixo de estupefação, e fiquei dois minutos a benzer-me. Mas o homem logo adiantou que estava criado um fundo para abate. E eu aproveitei-me dele para trocar o todo-o-terreno e abandonar o ciclo produtivo.
Por uns tempos, ainda estive tentado a reconverter-me à floresta, usando um fundo de modernização. Mas tenho-me limitado a ver arder as matas dos vizinhos.
[ibidem]
segunda-feira, 1 de março de 2010
Raça de suicidas
Dizer que o PSD é uma matilha perigosa corre o risco de parecer afirmação incendiária, descabelada, medida por considerandos ideológicos mais do que por equilibrado senso.
Quem nos dera que assim fosse! Quem nos dera ter a oposição que a democracia não dispensa, feita por quem perdeu as eleições!
Por desgraça, ao que assistimos, (com cansaço, e nojo, e exaustão, e finalmente com indiferença fatal), é a manobras sucessivas de chicana política, que servirão clãs famintos de poder, mas nada têm que ver com o interesse colectivo.
O PSD é um partido que só o poder sustenta, e anda a ração contada há demasiado tempo. Finalmente produziu três candidatos que disputam a chefia. A cada um a mais convincente artilharia.
Paulo Rangel anunciou à Europa que já não há estado de direito em Portugal. É-lhe indiferente o que isso significa para o BCE, para o FMI, para o BM, para os mercados da dívida e os abutres da especulação.
Passos Coelho exige a cabeça do Procurador-Geral da República, por suspeita de conluio com o primeiro-ministro. Pouco lhe importa que saia dinamitado o que resta da Justiça.
Aguiar-Branco faz sua a voz do esquerdismo irresponsável. Reclama ao Parlamento a Comissão de Inquérito que há-de levar à intervenção do PR, se não forçar o impeachment de Sócrates.
Entretanto o Executivo atola-se, o OGE hesita, o PEC não anda nem desanda, o país cambaleia. Nem há-de faltar Alberto João Jardim para ajudar à festa, com a tragédia da Madeira.
Miguel de Unamuno andou por aqui há cem anos. Não sei o que terá visto, para chamar aos portugueses uma raça de suicidas. Mas alguma coisa viu.
Quem nos dera que assim fosse! Quem nos dera ter a oposição que a democracia não dispensa, feita por quem perdeu as eleições!
Por desgraça, ao que assistimos, (com cansaço, e nojo, e exaustão, e finalmente com indiferença fatal), é a manobras sucessivas de chicana política, que servirão clãs famintos de poder, mas nada têm que ver com o interesse colectivo.
O PSD é um partido que só o poder sustenta, e anda a ração contada há demasiado tempo. Finalmente produziu três candidatos que disputam a chefia. A cada um a mais convincente artilharia.
Paulo Rangel anunciou à Europa que já não há estado de direito em Portugal. É-lhe indiferente o que isso significa para o BCE, para o FMI, para o BM, para os mercados da dívida e os abutres da especulação.
Passos Coelho exige a cabeça do Procurador-Geral da República, por suspeita de conluio com o primeiro-ministro. Pouco lhe importa que saia dinamitado o que resta da Justiça.
Aguiar-Branco faz sua a voz do esquerdismo irresponsável. Reclama ao Parlamento a Comissão de Inquérito que há-de levar à intervenção do PR, se não forçar o impeachment de Sócrates.
Entretanto o Executivo atola-se, o OGE hesita, o PEC não anda nem desanda, o país cambaleia. Nem há-de faltar Alberto João Jardim para ajudar à festa, com a tragédia da Madeira.
Miguel de Unamuno andou por aqui há cem anos. Não sei o que terá visto, para chamar aos portugueses uma raça de suicidas. Mas alguma coisa viu.
Subscrever:
Mensagens (Atom)