quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Sonatina de rua

Dei com ela no passeio, ao fim da tarde, saíra há pouco da caixita de rodas. À frente, num tapete sobre o empedrado, tinha a dormir um gato de peluche, abrigado a uma sombrinha de bonecas. Ao lado um bouquet de plástico e a caixa do violoncelo, para recolher as moedas.
A violoncelista lembrava os trinta anos e tinha uma flor no cabelo, a derramar-se em cachos pelos ombros. Vestia a indumentária da função, ampla saia até aos pés, uma blusa de cetim, o coletito preto a aconchegar o peito. E era diferente das outras porque tocava de pé. Fixou o espigão numa prega da calçada, acomodou no ombro o braço do instrumento, correu a mão esquerda nos bordões. E ficou ali suspensa, de arco enristado na direita, a afagar num trejeito um caracol rebelde.
O maestro é alemão, vem do Oberhammergau, vai dizer-mo no fim do recital. Ampara-se a uma muleta e reclina sobre a artista os alongados braços, a bafejar-lhe o sopro demiúrgico de quem vai repetir a criação. Das pontas dos dedos enluvados sete fios o ligam ao corpo da mulher, que volta a sujeitar o caracol. E quando liga a máquina do som, desliza ela os dedos sobre o ponto, tange nas cordas o rufar do arco, cresce na rua a melodia da Scarborough Fair.
Começou por hesitar, a multidão, apanhada de surpresa. Depois, à melopeia dum adagio sossegado, rendeu-se de encantamento. Até um grupo de catraias que passava ali ficou, a ondear os quadris. Lá para o final, mesmo com falta de naipes, o maestro aventurou uma sonata célebre. E a plateia, que lhe não sabia o nome, perdeu a compostura e desatou a aplaudir.
Nos intervalos choviam as moedas na caixa do violoncelo. Quando as ouvia cair, almofadado na caixita de rodas, um caniche abria o olho e ladrava uma alegria.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Mar alto e bocas do mundo

Alfredo andou aqui há tempos, pela primeira vez, nas bocas do mundo. Deixara para trás o mar alto de Quipert, ao pé de Nantes, e a traineira onde era cozinheiro. Apanhara o Sud-Expresso e vinha ver a mulher, que tinha deixado em Mira.
Embrulhado em considerandos sobre o salário que tinha, aguentou a travessia de Castela nocturna a poder de cervejas. Chegou à Pampilhosa já toldado, a muito custo encontrou a mulher. E quando lhe passou a bebedeira já estava de regresso a Quipert, outra vez a atravessar Castela.
Hoje volta Alfredo às bocas do mundo, pela última vez. Há dias a tempestade apanhou-o no mar de Nantes, afundou-lhe a traineira, e em menos de meia hora já o tinha congelado.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

da capo - 15

SOLSTÍCIO
A estrada serpenteia pela encosta e a aldeia é surpreendente, assim arejada e branca, no cimo da subida. Tem casitas das antigas, onde só dobrado entrava um homem. E vivendas do minério, feitas no tempo da guerra, de cantaria rude. E as casas da emigração, airosas como caixotes de marçano, e tão omnipresentes como os deuses.
A gente é pouca, mas ainda assim compõe a procissão que já vai a sair para o arrabalde, a caminho do monte. Vê-se um pombal em ruínas, hortas com almendras desgarradas, campos que já deram pão. O resto é fraguedo e matos.
Há milhares de anos que é assim. Coloca-se a vestal num côncavo da pedra, a olhar por cima do rochedo. Ao longe o sol mergulha sobre um monte. E a multidão assiste, com ramos de oliveira na cabeça e capelas de flores na mão.
O celebrante veio da cidade, a cumprir o ritual. É ele o mais pagão de todos, e tem cabelos compridos, como os cristos. Entoa poemas da Bretanha, escuta as gaitas de foles que vieram de Miranda, os bombos de pele de cabra, e pede compostura à multidão. Mas há uns noviços que vêm de moto-quatro, e tratam o sol por tu, e não ligam patavina.
Alinhado com a vestal e o rochedo, no monte para lá do vale, o sol morre lentamente, no solstício do verão.
– Agora, mais, só para o ano! – alvitra um homem careca.
– E daí, quem sabe lá! – arrisco, numa descrença.
E olhando as vinhas do vale, não sei o que me é mais comovente. Se o sol que foi dormir atrás do monte e amanhã já vai embora, se os homens debaixo dele.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Paranóias

Despejava eu, tranquilo, o carrito das compras na bagageira do panzer, no parque do hipermercado. Praticamente de costas, mostrava um perfil enviesado, difícil de analisar. Mas ele foi decidido e peremptório. Parou-me ali ao lado, abriu o vidro do Corsa, esticou o pescocil e pôs-se a chamar pelo Jorge, que é o meu nome.
Eu lá fui ao seu encontro. Debrucei-me na janela, vi-lhe o ventre dilatado a roçar-se no volante, observei-lhe as feições. Do arquivo não me saiu nada parecido.
− Desculpe, mas...
− Sou o genro do Teixeira! Tenho uns quilitos a mais, umas entradas aqui, que o tempo passa... Mas lembro-me bem de si!
E lá insistia, a apresentar-me a nuca, as misérias do cabelo. Eu voltei a mirar-lhe os trinta anos, o descair do olhar, a silhueta estranha. Voltei a remexer cá dentro nos ficheiros, e nada.
− Genro do Teixeira?! Mas qual deles?
− O funcionário do banco! Primeiro no Canidelo, mais tarde nos Francelos!
Lembrei-me do Abadesso, das traduções de alemão, mas do Teixeira do banco nem sinal.
− Não há nenhum Teixeira que eu conheça... nunca fui ao Canidelo...
− Então você onde mora?
− Lá para as Antas!
− É daí, fui lá carteiro! Você não se chama Jorge?
− É verdade!
E fui cedendo. Têm-se visto verdades mais atacadas de enigma do que as fábulas da esfinge.
− Pois é daí, eu despachava o correio!
Ele às vezes reparo nos carteiros. Trazem-me cartas do banco, os avisos dos impostos, trazem notícias longínquas de guerras administrativas que vou sustentando há décadas. Mas, de quantos conheci, nenhum carteiro era assim.
− Trabalho agora em Alverca. Conhece Alverca?
− Muito bem!
Aterrei lá muita vez. E um dia fui ver o Museu do Ar, que entre espólios mais concretos me guarda a mim bocados do canastro.
− Ele é um bocado longe, andar abaixo e acima!
− Pois compreendo...
Sinto-me à entrada do delírio. Carteiro ou não, eu nunca o vi mais gordo. Mas ele é novo demais para sofrer de paranóias. E eu, que já estou por tudo, passo em revista as últimas semanas. Tenho as côngruas em dia, não me lembro de nenhum crime maior, e pecados só os do pensamento. Ele continua prazenteiro, fala-me outra vez de Alverca, jura que lhe sou familiar.
A instâncias minhas lá nos despedimos. E eu fico-me a pensar em espiões misteriosos, em conspirações maradas, a acreditar em bruxas, eu sei lá. Não tivesse a alma sossegada, e quem entrava em paranóias era eu.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Poliglotas

Entramos todos no 15, ele atrás dela, ali no Cais do Sodré. E muito antes de se chegar a Santos, há-de ela conceder que vem de Itália. Ele é estranhamente quarentão, a grenha hirsuta, as muletas a amparar-lhe o pé de gesso.
Falas português?
Um pocô!
− Hoje no Centro Cultural de Belém arte moderna Berardo, último dia, entrada livre!
Eu registo-lhe a fausta novidade. Ela é que não dá sinais de comoção.
Speak english?
Um pocô!
− Today Centro Cuturral Belaim, modern art Berardo, no money!
Passa a travessa das Galeotas, e ela impassível às formas.
Sprich dóitsch?
Um pocô!
− Centro Cuturral Balaim, art modern Berardo, geld nix!
Passa a travessa dos Escaleres, e ela alheada das cores.
Hablas espagniol?
Um pocô!
− Hoy Centro Cuturral Belén, arte moderna Barardo, no dinero!
Passa o beco do Chão Salgado e ela insensível a tragédias, indiferente a criatividades. E sou eu quem aproveita a borla, que eles lá seguem no torpedo cego.
O Centro Cultural tem fotos de Jorge Molder, e corredores muito frescos, e multidões no seu footing, a digerir o almoço e as emoções estéticas. Há mães aflitas a perguntas das crianças, e perplexos pagadores de impostos com ar de quem jurou calar a boca.
Eu acabo a mergulhar na luz divina do Tejo, ao fim da tarde. Arte pura há-de ser a dos dois poliglotas, numa rua qualquer da Cruz Quebrada, nalgum descampado do Jamor. Mesmo de borla, a do comendador congela excitações.

Fábula

Entraram à noitinha na taberna, mandaram encher dois copos. Vinham de longe, quiseram impressionar.
- E aquela ribeira que passámos, onde havia um moinho no bico dum choupo?! - atirou ao moço o almocreve.
- Não vá, senhor, sem resposta! Nesse lugar vi um dia dois machos eguariços, carregados de fanegas, a trepar choupo acima! – isto retorquiu um aldeão.
- Pois hoje mesmo topámos nós um ganapo de sete braços! Está aqui o moço que não me deixa em mentira!
- Minta mais a modo, meu amo! Que o rapaz de sete braços não chegámos a topá-lo. Vimos-lhe foi a camisa de sete mangas, pendurada no estendal!
Riram todos, houve rodada geral.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Tugas

Na Guiné, em 73, nós, a eles, chamávamos-lhes turras. Era um modo abreviado de lhes chamarmos terroristas. Sorrateiro, em casos tímido. Porque não acreditávamos que o fossem. Sentíamos que o não eram. Sentíamos que eles eram, como nós, marionetas duma feira. Juntos todos num beco sem saída. A esbracejar.
A certo ponto começaram eles a chamar-nos tugas. Abreviando portugas. Havia para eles portugueses e portugas. Os portugas eram a tropa atarantada, que andava ali a maçá-los. E que eles com frequência massacravam. Com armamento melhor que o nosso. Com artilharia que nós não tínhamos. Quando chegavam os aviões de alerta, a única coisa que ainda ali mexia, recebiam-nos com mísseis de infra-vermelhos que levavam ao ombro. Calavam-se durante um quarto de hora e chamavam-nos tugas com escárnio, porque tinham perdido o respeito por nós.
Não sei quem foi o português que um dia pôs esse nome à selecção nacional, esse elixir de delírios. Não sei se é o mesmo que mandou pôr as bandeiras na guilhotina das janelas. Sei que é um terrorista que também perdeu o respeito por nós. Um onagro mentecapto que se diverte a brincar com coisas sérias. E a quem alguns portugas acham graça.
Cá por mim, como dizia o Campos, de um modo completo, de um modo total, de um modo integral: MERDA!

da capo - 14

VIRADEIRA
O facto é que depressa nos cansámos. De fazer andar as fábricas de panos, de plantar vinhas novas, de aprender alguma coisa nas escolas, de blasfemar contra a fatalidade. E de ver a espirrar o sangue azul dos Távoras, que nos enterneceu o manso coração. De modo que, morto el-rei, voltámos aos marialvas, às procissões, à fadistagem e aos pátios das cantigas.
Ele havia umas estradas, no reino, por fazer. E logo se mandou que uns alvenéis lavrassem, numa serra, uns marcos monumentais, para assinalar cada légua aos viandantes. Dispunha cada marco dum relógio de sol. Porém algumas léguas terminavam à sombra, como é frequente acontecer, quando o sol se lembra de acordar. E, ou bem que se ofendia o rigor das medições, ou se esbanjavam custas em relógios inúteis.
Não chegou o desempate a ir a cortes, nem se lhe alcançou resolução. E as estradas lá ficaram por fazer.
Veio-me à lembrança um tal aperto, a propósito dum aeroporto que também anda aí nas mãos da viradeira.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O mundo feito à mão

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO-Portugal

World made by hand é o título do último livro de James Howard Kunstler, um escritor norte-americano que se tem notabilizado pelas posições críticas relativamente ao modelo de desenvolvimento existente no seu país, baseado no desperdício energético. Trata-se de uma novela cuja acção decorre numa pequena cidade americana, na era pós-petróleo. Através dela somos transportados a um mundo novo, sem electricidade, onde o homem e os animais voltam a ocupar o lugar que as máquinas lhes roubaram, e no qual as distâncias e o tempo são de novo percepcionados à medida do homem.
Já numa obra anterior
, The Long Emergency, editada em português com o título O Fim do Petróleo, o autor mostrara a dependência que a nossa civilização criou em relação ao crude, e as dramáticas consequências do seu previsível esgotamento num futuro mais ou menos próximo. O sucesso deste livro foi espectacular. Foi muito comentado, projectou o autor para as primeiras páginas dos jornais, e terá perturbado o sono de alguns leitores. Para muitos, terá sido o despertar da consciência para a nossa quase total dependência do crude, no dia a dia. E contribuiu também para ajudar a desfazer alguns mitos sobre o futuro energético, como as apregoadas soluções milagrosas dos bio-combustíveis, ou a chamada economia do hidrogénio.
Mas este autor tem outra faceta, expressa na obra
The geography of nowhere. Nela Kunstler debruça-se sobre os problemas do urbanismo, criticando asperamente as formas de vida e as soluções arquitectónicas que contrariam a eficiência energética. Considera o crescimento dos subúrbios das cidades americanas a maior tragédia do pós-guerra no seu país. As personagens centrais desta tragédia urbana são o automóvel e o centro comercial, personificado para ele na cadeia Wal-mart. Tudo gira à volta do transporte individual, o happy motoring, como ele chama ao circuito entre a garagem da casa, a garagem do emprego e o parque de estacionamento do centro comercial. Recorda com nostalgia a cidadezinha típica americana, feita à medida das pessoas e não dos automóveis, com a sua rua central e o seu pequeno comércio tradicional. Fala da destruição do caminho de ferro, e das suas nefastas consequências para um futuro sustentável.
São muitos os escritores, pensadores e economistas que hoje se questionam sobre o futuro da nossa civilização, e sobre a sustentabilidade dos actuais padrões de consumo.Exemplos disso são Joseph Tainter, que já há anos escreveu sobre o colapso das sociedades complexas; ou o famoso "Colapso" de Jared Diamond, prémio Pulitzer que ilustra com exemplos históricos o fim de certas civilizações (Ilha da Páscoa, os Maias, etc); e mais recentemente o escritor canadiano Thomas Homer-Dixon, que escreveu
The Upside of Down, à volta da mesma temática.
Aproximadamente, é esta a linha de raciocínio: as sociedades complexas podem colapsar, quando se esgota o seu principal recurso. No caso de Roma, o colapso aconteceu quando os cereais que alimentavam o império começaram a escassear. Ou quando, em razão da distância, das guerras, ou da baixa produtividade, a sua produção se tornou tão onerosa que o seu custo de produção deixou de compensar. Já na ilha da Páscoa terá sido o esgotamento da floresta que levou ao desaparecimento dos escultores das grandes estátuas.
Os combustíveis fósseis são o principal recurso da nossa civilização, e trouxeram-nos um progresso e uma complexidade nunca antes vista. O seu esgotamento próximo é o maior desafio que a Humanidade enfrenta. A actual crise financeira mais não é do que uma forma de expressão dessa crise energética. Ou por outras palavras, o crescimento económico está directamente relacionado com o crescimento dos recursos energéticos, e estes têm vindo a diminuir. Ora sem crescimento económico não é possível manter a funcionar uma economia baseada no crescimento contínuo, nem sustentar a estrutura financeira que lhe está associada. Curiosa tem sido a posição do professor Albert Bartlett, da Universidade do Colorado, para quem o maior defeito da humanidade consiste em não entender os limites e as consequências do crescimento exponencial.
Tão preocupante como a escassez de energia é a crescente dificuldade em produzi-la. A facilidade em obter um barril de petróleo mede-se pela quantidade de barris que se produzem com um único barril. É o chamado índice de retorno da produção de energia. Este era de 60:1 nas explorações de jazidas clássicas
onshore; pode ser de 10:1 nas jazidas deep water das bacias atlânticas de Angola e do Brasil; será de 6:1 nas areias betuminosas do Canadá; de 1,5:1 nos bio-combustíveis obtidos a partir do milho nos EUA; e possivelmente inferior a 1 nas serpentes marinhas que recolhem a energia das ondas, ao largo da Póvoa do Varzim.
James Kunstler estará em Lisboa no final desta semana, para proferir algumas conferências. Na manhã do dia 16 falará na Gulbenkian sobre energia e urbanismo, num encontro promovido pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo.No final da tarde, a convite da ASPO-Portugal, estará no Instituto Superior Técnico para falar do pico do petróleo. Será uma oportunidade única de ouvir o maior profeta de um novo mundo,
feito à mão, o qual sucederá ao mundo tal como hoje o conhecemos, e cujo fim foi há dias anunciado pelo nosso ministro da Economia.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Vida de cão

As nossas relações nem eram más. Seguiam a lógica duma rotina antiga que se foi instalando, depois que tomámos juízo e derrubámos os muros da nossa guerra fria. Que também a tivemos, a princípio.
Ele acampava no terraço, eu tinha aposentos na marquise. Sentindo a dona fora, montávamos arraial na sala de visitas e trocávamos gentilezas. Ele inventava-me petiscos. Eu deixava-o lamber-me a tigela do leite e dançava-lhe às vezes no lombo um crazy-horse.
Não era fácil a partilha da dona, mas lá nos arranjávamos. E, quando ela o levava ao jardim, cheguei a ter saudades dele.
Há dias a patroa saiu, a uma noite de canasta. Eu fiquei a dormir, e ela deixou ao menino a televisão ligada. Para ver as notícias, a estúpida!
Eu bem que o estranhei quando ela regressou. Pareceu-me altivo, todo ensoberbado, a olhar-me lá do alto, nas suas tamanquinhas. Roçou-se sem pudor nas pernas da patroa, e acho que lhe impôs dormir no quarto dela. No tapete, estou eu a supor!
Gastei o dia seguinte a observá-lo. E sempre que o olhava, era um tipo com direitos o que via. Eu seja cão se não era. E quanto mais o olhava, mais direitos me exibia. Recusou passar a tarde no salão, desdenhou-me a tigela... E à noite, quando me viu ir às meninas, foi logo delatar-me à dona, o acusa-cristos. Não dormi a noite toda!
Na manhã seguinte exigi um conselho. E ela, muito dengosa, a fingir-me hipocrisias nos bigodes, enquanto me sugeria imposturices, regras de precedência, protocolos... Acabou a confessar-me que ele tinha uma comenda, um dia nacional só para ele. Que finalmente alguém lhe fizera justiça.
Eu fui à minha vida, não me dei por achado, tirei informações no bairro. E quando ela saiu, ofereci ao menino uma trela. Na coleira da trela ia o pescoço do justiceiro, um deputado qualquer, pelos vistos conhecido. Ficou insuportável, de vaidoso, e quem o queria ver era na rua, a levar o político ao jardim.
Soube-se ontem que afinal a comenda era falsa, e ele teve que soltar o benfeitor. Voltou a casa sozinho e devolveu-me a trela, acabrunhado. Metia dó, coitado! Quando um tipo se fia em certa malta, é raro acabar bem.
Vai ser um rebuliço cá em casa, mas deixei de falar ao parvalhão.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

da capo - 13

QUESTÃO COM LÁGRIMAS
Uma veio do Brasil e por força há-de chorar todos os dias. Duas vezes. Faz-lhe bem, ajuda a alma, não sabe explicar porquê.
– As saudades da família, do calor, eu sei lá bem...
A outra veio de Angola mas não gosta de chorar, que lhe dá cabo dos olhos. E os olhos são o principal.
– O coração mais os olhos, são dois amigos leais...
Saem ambas na praça dos Combatentes. E eu fico-me sem saber se é melhor cuidar dos olhos, da alma, ou do coração.
Vem-me à ideia que sou homem, proibido de chorar. E lá me livro destas inquietações.