domingo, 25 de dezembro de 2022

Nocturno em si menor

Alguns dormitam, maçados, nos beliches, ele viaja a noite inteira a pé. Entre o bar e o corredor, entre uma nova cerveja e os considerandos do salário que recebe. Quase setecentos contos, mesmo quando não embarca. Como agora, que vem a casa ver a mulher. Mas isso vai acontecer só amanhã, lá pelo meio dia, em chegando à Pampilhosa, depois de atravessar a infindável noite basca, a leonesa, a castelhana, num Sud-Expresso lôbrego.

Alfredo tem trinta anos e deixou a escola antes do tempo, em Mira. Foi trabalhar com o pai, no tempo em que havia quarenta companhas só nas artes da xávega. A princípio puxavam a rede à unha, com juntas de bois que enterravam os cascos no areal macio. Hoje não chegam à dúzia. O peixe foi-se embora, será culpa das chuponas espanholas. E ficou tão barato na lota quanto é caro nas bancas do mercado, não se compreende Portugal. Paga-se o gazol do barco e o resto mal dá para viver. De forma que o pessoal começou a emigrar e ele foi parar a Quipert, ao pé de Nantes. Foi há dois meses, mais um cunhado, é esta a primeira vez que vem a casa.

Em Quipert saem para o mar à quinzena e Alfredo é o cozinheiro. O dono do barco é tão velho que já não navega, toda a companha de sete é contratada. Mas o peixe vai à lota ao mesmo preço para todos e toda a gente ganha. Só não se entende o que se passa em Portugal.

Alfredo vem excitado com os considerandos do salário que recebe. Jantou no vagão restaurante, bebeu uma garrafa de bom vinho, no fim pediu um conhaque e pagou quarenta euros mas valeu a pena. Depois foi aturando a noite a poder de cervejas, e é por isso que já lhe arrasta a voz, e tem este bafo choco e amargoso, e repisa outra vez os considerandos do salário que recebe. Quando chega a Vilar Formoso desce ao cais durante meia hora, o tempo de mudar a máquina ao comboio. Bebe outra cerveja na cantina, com uns camaradas negros que exercitam um hip-hop lusófono, e também chegam da Europa.

Lá pelo meio-dia, toldado como vai, Alfredo levará tempo a encontrar-se com a mulher. E logo que o conseguir vão ser horas de apanhar outra vez o comboio Para voltar a Quipert, ao pé de Nantes. Onde agora é cozinheiro, sempre que sai ao mar, a pensar nos considerandos do salário que recebe.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Responsório

Vais-me dizer que eu inventei a história. Que eu sou um cínico e a história é impossível. Andas muito longe da verdade.

O padre Abreu não é padre, nunca chegou a sê-lo. Não tem cabeça para teologias e as latinadas cansam-no. Mas veste-se à futrica, como os padres modernos, e sempre que pode exercita a função. Mora aqui na cidade. E o povo, que nãosepara o facto do direito, chama-lhe padre Abreu.

Razão terá, que o padre Abreu não sonha com outra coisa, passa a vida na sé. Ajuda à missa, cuida da liturgia, aconselha as devotas e decora os responsos. Já perdoou pecados capitais, e gente há que entrou no céu por sua mão.

Há tempos foi preciso enterrar um cristão, numa aldeia dessas despovoadas, onde nem padres vão. E o padre Abreu lá foi, a encomendar o defunto, a devolvê-lo ao pó. Mas os parentes vieram a saber que o padre Abreu nunca tomara ordens e temeram o pior. Puseram-lhe uma demanda em tribunal.

O padre Abreu sentou no banco dos réus a gravidade e a mansidão dum sócio do Vaticano. Alegou em defesa o serviço de Deus e afiançou as encomendações.

- Pois faça aí o responsório dum defunto! - ordenou o juíz, a esfolhear os códigos. - Já veremos se merece remissão!

Não pedia outra coisa o padre Abreu. O meretíssimo chegou ao fim apaziguado, como quem deixa um amigo em boas mãos. E absolveu o réu.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Ódios velhos

Chegavam sempre no início do Outono, quando os corvos passavam ao fim da tarde a grasnar às frialdades que vinham de Além-Doiro. Interrompiam-nos a bola no terreiro, saltavam das carripanas escuras, abriam as gaiolas das matilhas. E caíam nos braços dum lavrador lá do povo, inchado por ter amigos na cidade. Soltavam palavrões que eu julgava proibidos, numa língua esquisita de pagãos, e escarravam muito pelo chão.

Manhã cedo faziam-se aos caminhos, de espingarda na ombreira, a açular a canzoada. E não havia brejo em todo o vale inteiro que escapasse à invasão. O cainçar dos podengos ouvia-se nas quebradas, e os ecos da fuzilada faziam eco nas encostas do vale, monte cá monte lá, até ao cair da noite.

Retiravam-se ao terceiro dia, com as grelhas de metal enfeitadas de perdizes a largar nuvens de penas, e rosários de coelhos a pendular nos telhados das carripanas escuras.

Hoje vivemos paredes meias. Os palavrões já me são familiares, e ao sotaque de pagãos acostumei-me aos poucos. Mas não sei como indultá-los do olhar morto das lebres, enforcadas nas janelas, a mandarem-me corrê-los à pedrada.