sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Estilhaços

Foi então, a meio duma tarde, que chegou um alferes do batalhão da Cuimba, com o pelotão de morteiros. Tinha um vago tique aristocrata, amamentava exóticas ideias monárquicas, e frequentava o quarto ano de medicina quando o despacharam para os sertões do Congo.
Estacionou os dois burros do mato em frente do que restava da sé catedral resumida a umas paredes, mal saudou os aviadores que despejavam bidões de gasolina nuns aviões cobertos de poeira e dirigiu-se a casa.
A mulher era legista, praticava de notária, servia de magistrada. Morava numa casa da avenida e estava ausente em Luanda, na companhia dum alferes médico.
O artilheiro reuniu o pelotão, montou nos burros do mato e regressou à Cuimba. Mandou formar no meio do terreiro, meteu uma bala na câmara da Walther que lhe pendia à ilharga, e descarregou nos miolos os nove milímetros dela.
Uma semana depois a história já estava morta. Ninguém gosta de viver com estilhaços que matam.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Espelhos

(...) O exército é o espelho da nação, e isto era o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom como os melhores. Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, e para o provar vamos nós ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem, entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra. Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que passaria ali um vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para a as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até trpeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver. E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, Lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda agente afinal concluiu que a vida cista a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores."
(in As Aves Levantam Contra o Vento, ed. Quasi, Famalicão, 2007)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

A pista da ilha Caravela

Aqui há cinquenta anos, no dia em que os ecos da mudança começaram a alastrar pela Guiné adentro, numa espécie de maré enchente que as notícias da BBC traziam lá de longe, logo um vento de esperança agitou os corações cansados daquela gente toda. Pois se é da liberdade que estamos a falar, quem é que vai agora chegar fogo às peças e aos canhões? Parecia pertinente a questão.
Já há muito tempo que nada se mexia no teatro, a não ser os aviões e os caranguejos cegos, que trotavam nas bolanhas durante a maré vaza. Mesmo assim, era sempre com pezinhos de lã que o faziam, não fosse algum diabo tecê-las. E demónios tecedores era o que não faltava, a animar aquela paisagem. Que o diga o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, que tinha na secretária da Avenida da Liberdade nove requerimentos de pilotos aviadores, a pedirem dispensa de o ser. Aguardavam punição exemplar.
E foi assim, lembro-me como se fosse ontem, que o último bombardeamento aéreo aconteceu ao final da manhã do dia 9 de Maio. Lá fomos em voo rasante até ao objectivo, a encaixar na coluna a pancadaria inclemente da turbulência, seguia eu a asa do coronel comandante, um velho homem excelente, com o rabo mais calejado que um chimpanzé do mato. Do objectivo ergueram-se três cogumelos de fumarada negra. E depois disso não se voltou a ouvir por ali o estrondear dos canhões do império, suponho que se calaram de cansaço. Ou de velhice.
O tempo trouxe, aos poucos, a confirmação do que se vinha cogitando. Pois se é da liberdade que estamos a falar, quem vai agora chegar fogo às peças e aos canhões? E viu-se claramente que a guerra era acabada, quando começaram a passar ao largo, de gurupés apontado a casa, rebanhos de caravelas roídas pelos búzios, a adornar de fantasmas de almirantes de barbas e conquistadores zarolhos, de destroços de piratas e negreiros, de missionários comidos pelos cafres, de donatários cúpidos, de exploradores de sertões, e dos vagamundos de que falavam os livros antigos. Perante tais evidências não havia que duvidar, a guerra era passado.
De forma que alguém começou a pensar no melhor modo de trazer para casa alguns aviões, nem todos eram sucata centenária. Maneira expedita era fazê-lo saltitando, África acima, com a primeira escala na ilha do Sal. Quem dobrara, descendo, tantos bojadores, melhor os dobraria, já subindo. O problema eram as oitocentas milhas sobre o mar, e a garantia de passar por cima delas sem molhar os pés. De modo que se resolveu tirar a coisa a limpo, e fazer o teste definitivo da autonomia dos aviões, com carga máxima de combustível, à máxima altitude utilizável, que eram treze mil e quinhentos metros.
E lá fui eu atrás do coronel comandante, o tal velho homem excelente de quem já se falou. Parecíamos dois sísifos condenados, até chegar aos quarenta mil pés. E por lá andámos a desenhar no ar triângulos minúsculos, a tropeçar em fronteiras, ainda agora esbarrámos no Senegal e já estamos à vertical da linha de Conakri, só o vasto mar dos Bijagós é que nos dava um pouco mais de folga.
Gorou-se, porém, a prova real do exercício. Pois que, a dada altura, sobressaltaram o chefe as estranhas cabriolas que o meu avião se pôs a desenhar. Desabituado de tamanhas alturas, o regulador automático começara a cortar-me o oxigénio da máscara. Como se nada fosse comigo, eu fui perdendo o controle do avião, mais tarde era a visão que já me ia falecendo. E foi o grande saber do velho comandante que o levou a colar-se atrás de mim, a ditar-me procedimentos que eu reproduzia em gestos desconexos, a conduzir-me à entrada da pista que eu já não descortinava, e a mandar-me despejar no asfalto a passarola, que acabou rebocada à mão para o estacionamento.
Tínhamos passado entretanto sobre a ilha Caravela, a norte dos Bijagós, naquele estranho exercício de bilhar às três tabelas. E eu tinha visto, no meio da floresta de coqueiros, uma enorme faixa de macadame, que me pareceu uma pista de aviões. Algum tempo mais tarde, pois que o tempo disponível tinha passado a ser muito, conseguiu-se o acordo dum piloto de helicópteros para um passeio à ilha. Levámos connosco um jovem alferes médico, aterrámos numa praia semeada de bolas de nafta escura, e logo um grupo de negras primitivas apareceu a saudar-nos, entre risadas tímidas. Vestiam tangas de ráfia pré-históricas, que eu só conhecia das gravuras da etnografia ultramarina, e ali mesmo nos deram a admirar os peitos do império, assim abertamente expostos à carícia do sol. Um deles apresentava um nódulo visível, que o jovem médico logo aproveitou para diagnosticar. E a pista enorme lá estava, enigma rectilíneo e vastíssimo, o piso ainda irregular, de macadame não compactado.
Ficou-me sempre vivo este mistério, que ficou por decifrar. Nunca ouvi uma palavra sobre ele. E a minha primeira explicação foi que um governador previdente mandou abrir a pista como garantia de retaguarda. Viessem as tropas a ser empurradas para o mar, às mãos do inimigo ou às dos políticos dementes de Lisboa, e ali achariam refúgio seguro.
Até que tropecei há tempos na chave do enigma, quando vi num jornal um par de onagros bem-falantes, a escoicinhar contra a descolonização criminosa. Se colónias ainda houvesse, compravam eles por bom preço umas divisas de furriel amanuense, para não irem comandar em Madina do Boé uma companhia de atiradores. E pois que colónias já não há, por força as retomarão, para virem depois a descolonizá-las sem crime.
São os pais da Pátria em versão pós-moderna, e já têm na ilha Caravela uma testa-de-ponte. A Pátria, essa, está ansiosa por lhes inscrever o nome na parede do forte do Bom Sucesso, ali ao lado da Torre de Belém. Por ser para quem é, há-de por força arranjar-se um espacinho. Talvez assim, calados os canhões, se venham a calar, também, as bestas.

domingo, 13 de janeiro de 2019

Frescuras

Quando se viu rapazote, pensou o Zé que devia arranjar vida. E logo se fez barbeiro, ali na loja, onde cortava cabelos e raspava os queixos à clientela.
Meteu o irmão na sociedade e alargou o serviço às redondezas, dada a falta que fazia. Isto até  Nave de Haver, uma lonjura.
 A pasteleira que havia é que não levava dois, mais a mala dos petrechos. E eles arranjaram modo de resolver a questão, dividindo o mal pelas aldeias.
O primeiro partia na pasteleira, o outro seguia a pé. Ao fim de cinco quilómetros, o condutor abandonava o veículo à beira da estrada, e punha-se a palmilhar. Chegava o outro, montava no velocípede, pedalava estrada fora, ultrapassava o irmão e só parava cinco quilómetros à frente.
Chegavam ambos à loja fresquinhos que nem alfaces. Mas a tarefa era grande e estava à espera.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Igualdade de géneros

O cachopo tinha um ar enfermiço e uma barriguita inchada. E o doutor diagnosticou-lhe ascite.
Confessou que poderia ensaiar um tratamento com correntes galvânicas. Mas na vila só havia electricidade ao cair da noite.
Foi assim que todos os dias, ao crepúsculo, ela subia para a marquesa, aconchegava o cachopo no xaile de lã e lá ia.
O regresso era mais duro, já noite cerrada, chegava a casa gelada mas contente. Que o cachopo ia salvar-se.
O pai não era nada com ele. Ficava-se à lareira, de pés quentes, como um lorde. Sem quaisquer hesitações.

domingo, 6 de janeiro de 2019

A capital do Natal

Em 2006 o Barroco Esperança publicou as Pedras Soltas, uma colectânea de crónicas que estão aí para se ler. E é logo no preâmbulo que ele inicia a fuzilaria contra o despautério. Sabendo nós que o Ruas foi parar à Europa pela mão do PPD, (pois quem!) cabe-nos a nós manter a memória viva e lembrar Viseu e o pai natal. Demos a palavra ao Esperança.
Li no Diário das Beiras uma interessante reportagem de Isabel Bordalo com o título: Viseu quer ser capital do Natal.
Diz mesmo que Fernando Ruas reclama para Viseu o estatuto de Capital do Natal.
Aqui está uma ideia que, podendo não ser boa, é, pelo menos, original.
Já tínhamos as capitais do Norte, do Centro e do Sul.
Já havia as capitais do rock, do jazz e da música pimba.
Já havia a capital da amendoeira e a da alfarrobeira, falta ainda a capital do pinheiro bravo.
Já tínhamos a capital do queijo, a do leitão e a do vinho verde.
Portugal tem imensas capitais. Mas faltava-lhe a do Natal. (…)
Permita-se-me que, com a devida vénia ao autor, proponha Lamego para capital da Páscoa, a Guarda para capital da quinta-feira da ascensão, e finalmente a minha aldeia para capital do 4º domingo depois do Pentecostes.
Ficou enxofrado o pio edil (…) e reiterou à mesma jornalista a obsessão de fazer de Viseu a capital do Natal.(…) Mas logo me dei conta de que o sr. presidente era muito novo para sonhar com São José, demasiado crescido para aspirar a Menino Jesus e excessivamente hirsuto para pretender ser a Virgem Maria.(…)
Tento ainda pôr termo à espiral reivindicativa temendo, a seguir a Alcobaça ou a Nazaré, os extremos a que pode chegar o presidente das Caldas da Rainha.

sábado, 5 de janeiro de 2019

Se um criativo...

Fragmento do Torcicologologista, Excelência:
- Gosto muito de bater na cabeça das pessoas com uma certa força.
- Gosta?
- Sim, agrada-me. Dá-me prazer. Uma pessoa vai a passar e eu chamo-a: ó, desculpe, Vossa Excelência?!
- E ela, a Excelência, vai?
- Sim. Quem não gosta de ser chamado à distância por Vossa Excelência? Apanho sempre, primeiro, as pessoas pela vaidade… é a melhor forma.
- E quando a pessoa-Excelência chega ao pé de Vossa Excelência, o que acontece?
- Ela aproxima-se e pergunta-me: o que pretende? E eu, com toda a educação e não querendo esconder nada, digo: gostava de bater com certa força na cabeça de Vossa Excelência. É isto que eu digo, apenas. Nem mais uma palavra.

Este criativo autor já tem o Nobel prometido, está só à espera da oportunidade. Por isso dedica-se a criar com a energia que está à vista.
O encenador segue-lhe as pisadas, com uma notável economia de meios.
O resultado é uma coisa que se não traga mais que meia hora, lamentando muito o soninho que se perdeu.
Ressalva-se a excelência dos actores do Calafrio, que levam a tarefa a sério.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Brilo

Num arroio corria um grutcho de água, havia funcho e ervas nas paredes. E em redor uma vinha que já não existe, e que nós guardávamos dos ciganos quando as uvas começavam a pintar.
Os coelhos dormiam a sesta nos buracos da parede, e nós dávamos-lhes caça com a ajuda dum cachorro que não queria outra vida, sempre atrás de nós.
Lá ao longe, à raiz dumas fragas medonhas, havia campos de milhos com melancias escondidas na terra, e um afloramento de quartzo e de cristais de rocha. Alguns eram azuis e outros verdes, e havia uns transparentes a que chamávamos brilo.
Não sei quem trouxe para ali um nome assim. Mas foi dito que servia para fazer as asas dos aviões. Quando passavam, brilhantes, lá em cima.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Ó marreco, olh'ó sonoro!

Vem a lembrança a propósito dum filme do John Waine, O Rio Vermelho, que um canal qualquer desenterrou há dias. Eram os tempos da corrida ao Oeste, das coboiadas selvagens, da construção de linhas férreas, duma América a instalar-se.
O herói era nessa altura um rapazola elegante, e nós uns cachopos que nem tínhamos idade para ver filmes de adultos. Porém depressa encontrámos a fórmula que nos permitia dar-lhe a volta. E lá íamos ao cineteatro, armados da cédula dum amigo mais velho. Entrava o primeiro para o segundo balcão, atirava lá de cima o passaporte, e a malta acabava por se juntar no piolho.
Atrás de nós ficava a cabine de projecção. E os filmes eram enrolados em bobinas monumentais, que o operador controlava e se partiam frequentemente. Quando ele estava distraído, toda aquela geringonça ficava a rodar em seco. Era então que uma voz o acordava aos gritos: Ó marreco, olh'ó sonoro!
E a coisa lá se compunha.