sábado, 30 de abril de 2011

Justiça

Uma das mais férreas e letais corporações indígenas, que apenas este governo ensaiou enfrentar. Com pezinhos de lã.
Esse pouco bastou para lhe soltarem os cães.

A nata da nação

Hoje a nata da nação vive em fortins, em condomínios blindados, em palacetes com vista para o estuário. São-lhe parte na família, e adornam-lhe o pedigree, alões de raça apurada, e gatos que se depilam a laser.
Naquele tempo a nata da nação resumia-se a um grupo de aviadores aspirantes. Não mais que trinta chavalos duma escola militar, que repartiam uma camarata na Granja do Marquês.
Um padre dava lições de deontologia militar. Era um fascista retinto, com aguçadas dentuças de lupino, e a mais-que-perfeita persona dum cordeiro. Falava-nos do dever, entre sorrisos cúmplices, do culto da autoridade, dos mais ínclitos desígnios da nação, da pesadíssima história, e do nosso desconforme privilégio. Eleitos, não mais que trinta, entre milhões, era nossa a condição que a mais ninguém cabia: dominar os mil relógios dum cockpit, à velocidade do som.
Para quê recordar agora o que depois sobreveio? Não fomos, dizia o padre, a nata da nação?!

No bom e no pior

O céu amotinou-se em Riba-Côa, há castelos de nuvens em revolta. Éolo despenteia a ramagem das faias, alvoroça as carrasqueiras a dormitar na charneca. Ao longe desabam aguaceiros na paisagem. O cuco anda calado, e a primavera hesita, ansiosa por saber em que vão parar as modas.
É assim a natureza em Riba-Côa. É cúmplice e solidária, no bom e no pior.

Fazer a cama

É este género de marmelos que desde há 30 anos nos vêm fazendo a cama, onde tencionam deitar-se.
E muitos o têm feito, passo a passo.
Porém a decadência de que sofrem já lhes garantiu melhor futuro. A eles... e a nós também.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Alcatrão e água

Tenho filhos, tenho netos, é normal. Que por desgraça minha moram para lá de Cascais.
Quando me arrisco a ir vê-los, chego a Lisboa e ainda me falta outro tanto. Já me tem acontecido desistir, montar tenda no Rossio, embebedar-me de ginjinha e mandar o mundo à merda.
Há quinze dias tomei-me de brios e fui até ao fim. O pior foi o regresso.
Entre Lisboa, a Boca do Inferno, o arrabalde de Sintra e os outeirinhos de Mafra, entrei num labirinto de autopistas, numa profusão de nós viários, numa babilónia de sinais, numa barafunda tal de placas, que às tantas dei por mim muito perto do local donde havia partido.
Se eu fosse o agiota do FMI que por aí anda, punha os administradores de Portugal o resto da vida a alcatrão e água. Com juro de 20%.

Encefalopatia

O sr. Ruas, autarca de Viseu, é o presidente da associação de municípios. E tem-se feito notar, enquanto espécimen emblemático e incontornável da ilustração indígena.
Notabilizou-se, pela primeira vez, quando exigiu que Lisboa lhe desse também um estádio, para o Euro 2004. Na bebedeira geral, não queria o autarca ver o seu povo interior discriminado.
Depois tornou-se notável, pela segunda vez, quando aconselhou o povo a correr à pedrada os fiscais do ambiente. Porque esses filhos da puta só emperram a vida a quem quer fazer obra e trabalhar.
Mais notável se tornou, pela terceira vez, alguns anos depois. À vista da ruína do orçamento de Aveiro, do orçamento de Leiria, do orçamento de Faro, e dos outros orçamentos que aqui não vão mencionados, confessou-se disposto a ir a pé a Fátima, agradecer à Virgem o excelente milagre de não ter em Viseu nenhum estádio do Euro. E disse isto com o mesmo ar contente de quem bota abaixo mais um quartilho de tinto.
Agora outra vez se notabiliza, por uma carta que mandou à troika dos agiotas.
Também ele quer ser ouvido, e tem as suas razões: repudia responsabilidades dos municípios na caloteirice geral; os municípios não andam a dormir; nada tiveram que ver com a situação de crise; e em vez de cortes orçamentais, merecem elogios.
Ora é sabido que a maior parte dos municípios esgotou há muito a capacidade de endividamento. É sabido que muitos deles trazem às costas dívidas que não pagarão, alguns mesmo à beira da bancarrota. É sabido que já falta pouco para começar a encerrar equipamentos que não têm uso nem é possível manter, porque são o fruto espúrio duma megalomania irresponsável, da febre de fazer obra para ganhar as eleições: piscinas quentes e frias, que nenhuma energia irá alimentar; pavilhões que albergam moscas; centros culturais onde não há quem entre; instalações desportivas em que os pardais se recreiam.
Foi por isso que inventaram a encefalopatia espongiforme. Para explicar casos assim.

"Crédito para gastar"

Pairando acima da realidade, Passos Coelho ajuíza que tem crédito. E é logo para gastar, num tempo destes!

São penosas de ver, a falta de consistência, a inépcia e a decadência que grassam no partido e na cabeça do chefe.
E até dariam para rir, se tão trágicas não fossem, e não custassem tão caro.
Mas apenas surpreendem quem anda distraído.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

O TRIUNFO DOS AGIOTAS - UMA HISTÓRIA DE GANGSTERS

Com todas as vénias e mais uma, e os maiores agradecimentos ao autor, tomo a liberdade de transcrever aqui este texto de leitura obrigatória. Chegou-me pelo correio electrónico, e arrisco não pôr em dúvida a sua autenticidade, que não tenho modo de verificar. Não me surpreende vê-lo recusado, tanto quanto sei até hoje, por um jornal da praça, sabendo que a nossa imprensa é um bicho domesticado, que ensaia piruetas ao chicote do domador.
É um pouco longo, o texto, mas claríssimo, lúcido e sintético. Exactamente o contrário do vendaval que nos enche a cabeça. Por isso é que é forçoso divulgá-lo.


Aqui vai o artigo que escrevi sobre a crise - «O TRIUNFO DOS AGIOTAS - UMA HISTÓRIA DE GANGSTERS» - que o jornal «i» me tinha prometido publicar, em princípio, ontem (2ª feira), mas afinal não publicou nem ontem nem hoje - nem me deu, até agora, qualquer explicação.
Se tiverem a paciência de o ler, perceberão que era agora, com a chegada do FMI a Portugal, que fazia sentido publicar o artigo.
Lamento ter andado a chatear alguns amigos, via telemóvel, incitando-os a comprarem o «i» - afinal em vão. Estou envergonhado.

ALFREDO BARROSO



1. «DUAS NAÇÕES». Benjamin Disraeli (1804-1881), aliás Lord Beaconsfield (desde 1876), foi um dos políticos ingleses mais notáveis do século XIX. Conservador e reformador com preocupações sociais, chegou a advogar uma aliança entre a aristocracia e a classe trabalhadora, sugerindo que os aristocratas deviam usar o seu poder para ajudar a proteger os mais pobres. Além de ter sido Primeiro Ministro da Rainha Vitória (e do Império Britânico) durante a década de 1870, foi um escritor popular que expressou em alguns dos seus romances as suas preocupações em relação à pobreza e à injustiça do sistema parlamentar, que ele ajudou a reformar com o apoio do Partido Liberal (já chefiado por William Gladstone, que viria a suceder-lhe como Primeiro Ministro). Num dos seus romances mais conhecidos, Sybil (1844), Disraeli descreve uma Inglaterra dividida em «duas nações», a dos ricos e a dos pobres, entre as quais «não há nem relacionamento nem simpatia». Cenário que se repetiria no século XX, com algumas adaptações, mas a mesma crueldade, durante os Governos de Margaret Thatcher, e que ameaça repetir-se no século XXI com o Governo de David Cameron.
Tal como essas «duas nações» inglesas de costas voltadas uma para a outra, também hoje se poderá falar de «duas Américas», de «duas Europas» ou, mesmo, de «duas nações» de costas voltadas em vários países da União Europeia. Estamos, de facto, a viver uma crise profunda e a assistir a uma degradação inquietante da democracia representativa. Há uma distância cada vez maior entre a classe política e os cidadãos, entre o povo e os seus representantes, entre a minoria dos muito ricos e o resto da sociedade, com uma classe média em erosão acentuada que vai engrossando as fileiras dos pobres e desempregados. O partido dos abstencionistas é cada vez maior e a representação política é cada vez mais a imagem inversa do país real.
Em sondagem recentemente publicada por vários jornais europeus, constata-se que aumentou significativamente a desconfiança dos cidadãos europeus na capacidade dos Governos e respectivas oposições para resolver os problemas económicos. Cresce a sensação de que os políticos nacionais já não têm autonomia para tomar as decisões indispensáveis para combater eficazmente a crise nos seus países, tal como a noção de que esses políticos foram substituídos pelos novos poderes fácticos: mercados e especuladores financeiros, bancos e agências de rating, tecnocratas e políticos escolhidos em instâncias superiores, que tomam decisões além-fronteiras encerrados em «torres de marfim» (BCE, FED, Wall Street, City, Bruxelas, etc.).
Alguém lembrava recentemente uma famosa frase de um dos actores da Revolução Francesa, o abade Emmanuel-Joseph Sieyès: «O poder vem de cima, a confiança vem de baixo». Quando o topo e a base se afastam entre si excessivamente, o poder vai perdendo a autoridade à medida que a confiança se degrada. E vai tomando forma, entre o povo, o sentimento de que existem «duas nações» ou «dois países»: um país de cima, constituído pelos muito ricos, por uma minoria de pessoas moldadas na mesma matriz, que obedecem aos mesmos códigos e vivem encerradas na mesma «torre de marfim»; e um país de baixo, constituído pela grande maioria abandonada à sua sorte, esquecida pelos que tudo têm, pelas elites, vítima de uma espécie de desprezo de classe. Como salienta o filósofo esloveno Slavoj Zizek, «o capitalismo actual move-se segundo uma lógica de apartheid, em que uns poucos se sentem com direito a tudo e a grande maioria é constituída por excluídos». Sendo certo que, como ele também diz, «os capitalistas actuais são fanáticos religiosos que defendem a todo o custo os seus lucros, mesmo que causem a ruína de milhões de pessoas». É a lógica neoliberal.

2. NEOLIBERALISMO. Não se trata de uma fantasia imaginada por esquerdistas. Como nos explica David Harvey, no seu livro O enigma do capital e as crises do capitalismo (Editorial Bizâncio, 2011), o termo neoliberalismo «refere-se a um projecto de classe que foi tomando forma durante a crise da década de 1970». «Mascarado por muita retórica sobre liberdade individual, autonomia, responsabilidade pessoal e as virtudes da privatização, do mercado livre e do comércio livre, o termo neoliberalismo legitimou políticas draconianas concebidas para restaurar e consolidar o poder da classe capitalista. Projecto que tem sido bem sucedido, a julgar pela incrível concentração de riqueza e poder que se verifica em todos os países que enveredaram pela via neoliberal. E não há provas de que esteja morto» – ao contrário do que pensam os que não se cansam de falar de um «novo paradigma», mas não conseguem sequer defini-lo ou explicá-lo.
Num texto publicado em 2000, A mão invisível dos poderosos, Pierre Bourdieu dizia que «a visão neoliberal é difícil de combater com eficácia porque, sendo conservadora, apresenta-se como progressista e pode remeter para o lado do conservadorismo, e até do arcaísmo, todas as críticas que lhe são dirigidas, nomeadamente aquelas que tomam por alvo a destruição das conquistas sociais do passado». Todavia, é um facto que «o neoliberalismo visa destruir o Estado social, a mão esquerda do Estado (que é fácil mostrar ser o melhor garante dos interesses dos dominados, desprovidos de recursos culturais e económicos, mulheres, etnias estigmatizadas, etc.)». Para os que praticam esta doutrina, é a Economia que está «no centro da vida» – e não o Homem. E acham que o mercado não se dá bem com a res publica.
De facto, o neoliberalismo está na base daquilo que alguns designam por «hipercapitalismo» e, evidentemente, na base da «financeirização da economia». A finança - que nunca devia ter deixado de ser um meio, um instrumento, uma alavanca - tornou-se um fim em si mesma. O dinheiro é rei e o homem é súbdito, a especulação financeira não conhece limites nem regras, o lucro imediato é o Santo Graal. Pior: a dívida é consubstancial, é indispensável ao bom funcionamento do sistema. A ganância e o egoísmo estão na essência do hipercapitalismo. São os agiotas, e não os políticos, que governam o mundo e estão a dar cabo da democracia representativa.
O hipercapitalismo, é bom lembrar, nasceu nos EUA e em Inglaterra durante a década de 1980, nos anos Reagan-Thatcher (e também teve como fiéis executores, através de férreas ditaduras militares, o general chileno Augusto Pinochet, assim como os generais brasileiros e argentinos, todos adeptos da doutrina neoliberal elaborada por Milton Friedman, acolitado pelos seus «Chicago boys»). Foi nessa altura que a progressão dos salários começou a ser bloqueada, o desemprego em massa gerou a precariedade e esta foi instituída em regra, ao mesmo tempo que os accionistas passaram a ser privilegiados em detrimento do factor trabalho. A acentuada diminuição da parte dos salários dos trabalhadores na redistribuição das riquezas, que partiu do mundo anglo-saxónico, alastrou em seguida a todos os países desenvolvidos e foi reforçada pela irrupção da China e da sua mão-de-obra barata. Só que, para a máquina continuar a funcionar, era preciso que os assalariados consumissem. Para tanto, urgia estimulá-los a endividar-se, e a sobreendividar-se, enquanto as desigualdades se iam acentuando. «Você não ganha o suficiente? Peça emprestado, consuma, sobretudo produtos importados baratos, e o mundo continuará a girar». O hipercapitalismo tem, estruturalmente, necessidade de um endividamento sempre crescente para prosperar. E as vítimas tanto são os indivíduos como os Estados.
Desregulamentação financeira, baixos salários, aumento do trabalho precário, feminização crescente da mão-de-obra (e da pobreza) a nível mundial, acesso do capital às reservas de mão-de-obra barata em todo o mundo – são algumas das características essenciais da doutrina neoliberal, que estão na base da famosa globalização e da subordinação dos governos às exigências do mercado. Ao Estado passou a estar reservada uma função essencial: a de usar o seu poder para proteger as instituições financeiras a qualquer preço (em contradição, aliás, com o não intervencionismo que é preconizado pela doutrina neoliberal). No fundo, trata-se - como salienta David Harvey «com toda a crueza» - de «privatizar os lucros e socializar os riscos», de «salvar os bancos e extorquir ao povo». A pretexto de não poder haver um risco sistémico, «os bancos comportam-se mal porque não têm de responsabilizar-se pelas consequências negativas dos seus comportamentos de alto risco». Como se viu nos EUA e no Reino Unido, a partir da brutal crise das hipotecas subprime, em 2008. E como se viu em Portugal, no caso absolutamente escandaloso do BPN. Mas há muitos mais exemplos.
É verdade o que diz Jean-Claude Trichet, presidente do BCE: «Os bancos teriam todos desaparecido se nós não os tivéssemos salvo». Mas o paradoxo é evidente: os Estados endividaram-se para evitar o colapso dos bancos, mas agora são os bancos que impõem aos Governos a adopção de políticas de austeridade brutais, que podem conduzir ao colapso dos Povos e dos Estados. Para tanto, socorrem-se das já famosas agências de rating, que «espancam» os Governos até estes atirarem «a toalha ao chão».

3. «GANGSTERISMO». Parece-me ser a expressão mais adequada para descrever a actividade das agências privadas de qualificação de riscos, mais conhecidas como agências de rating. Trabalham para quem lhes paga, sobretudo os bancos, proporcionando aos especuladores financeiros, e aos investidores oportunistas de alto calibre, juros sempre mais elevados para os seus empréstimos. Para tanto, «sovam» os Governos de vários países em sérias dificuldades económicas e financeiras, até eles não aguentarem mais «espancamentos». E se continuarem a resistir, apontam-lhes uma «pistola» à cabeça e ameaçam: «Ou cedes ou morres de bancarrota»! As agências de rating são, assim, uma espécie de gangsters ao serviço da agiotagem.
Apesar da veneração que suscitam entre os economistas e jornalistas especializados ao serviço do capital financeiro, as agências de rating não são entidades de direito divino. De facto, são empresas privadas ao serviço de interesses privados, que acumulam já, ao longo da sua história, muitos casos de manifesta incompetência, escandaloso favoritismo e oportunismo irresponsável. Além disso, não são avaliadas nem fiscalizadas por qualquer entidade reguladora e, ainda por cima, funcionam praticamente em regime de oligopólio: apenas três agências - Moody’s, Standard & Poor’s e Fitch - repartem entre si mais de 90 % do mercado e as duas primeiras quase 80 %. Para já nem falar dos óbvios conflitos de interesses em que incorrem.
O actual Presidente da República, Cavaco Silva, gostaria de impor um silêncio patriótico aos políticos e comentadores (infelizmente, poucos!) que criticam as agências de rating. Todavia, abundam os casos em que elas contribuíram para agravar as crises. Vejamos dois exemplos recentes.
Desde logo, o caso do magnata Bernard Maddoff, sem dúvida um dos maiores vigaristas do século, que exibia, no cartão de apresentação da sua entidade financeira, um rutilante triplo A (AAA), que é a classificação positiva máxima atribuída pelas agências de rating. Foi parar à cadeia.
Depois, o caso das famosas hipotecas subprime e dos tão sofisticados como «tóxicos» produtos financeiros que ajudaram a fabricar, que incluíam nomeadamente títulos de dívida (obrigações) do Lehman Brothers. Todos eles beneficiaram também de um rutilante triplo A. Mas foi precisamente a falência do Lehman Brothers que desencadeou a gigantesca crise financeira de 2008, nos EUA, que depois alastrou à Europa, e cujas consequências ainda hoje estamos a sofrer. Vale a pena lembrar aqui uma passagem do relatório final da Comissão de Investigação do Congresso dos EUA que foi constituída para apurar as causas da grave crise financeira. Reza assim:
«Concluímos que os erros cometidos pelas agências de qualificação de riscos (agências de rating) foram engrenagens essenciais na maquinaria de destruição financeira. As três agências foram ferramentas chave do caos financeiro. Os valores relacionados com hipotecas, no coração da crise, não se teriam vendido sem o selo de aprovação das agências. Os investidores confiaram nelas, na maioria dos casos cegamente. (…) Esta crise não teria podido ocorrer sem as agências de rating. As suas qualificações (máximas) ajudaram o mercado a disparar, e quando tiveram de baixá-las (até ao nível de «lixo»), em 2007 e 2008, causaram enormes estragos».
O relatório salienta que a Moody’s - que em 2006 foi uma autêntica fábrica de atribuição de classificações máximas a títulos hipotecários - deve ser considerada como um case study sobre as más práticas que provocaram a crise. De facto, entre os anos 2000 e 2007, a Moody’s considerou como de máxima solvência (AAA) nada menos do que 45.000 valores relativos a hipotecas. O relatório refere a existência de modelos de cálculo desfasados, as pressões exercidas por empresas financeiras e a ânsia de ganhar quota de mercado que se sobrepôs à qualidade das qualificações atribuídas.
Mas, apesar destas conclusões devastadoras para a credibilidade das agências de rating, estas não hesitaram em aumentar os salários e prémios dos seus executivos, já depois de conhecido o relatório. O caso da Moody’s foi o mais escandaloso. O seu presidente executivo, Raymond Mc Daniel, recebeu em 2010 um aumento de 69 % do seu salário anual, que trepou até aos 9,15 milhões de dólares (cerca de 6,4 milhões de euros). Um motivo invocado, entre outros, foi o facto de ter ajudado a «restaurar a confiança (!) nas qualificações atribuídas pela Moody’s Investors Service, ao elevar o conhecimento sobre o papel e a função dessas qualificações».
Raymond Mc Daniel foi chamado a testemunhar perante a Comissão de Inquérito acompanhado pelo principal accionista da Moody’s, Warren Buffet. Mas este lavou as mãos, como Pilatos, declarando que não fazia a menor ideia sobre a gestão da agência, e que nunca lá tinha posto os pés. Explicou, no entanto, que tinha investido na empresa porque o negócio das agências de rating era «um duopólio natural, o que lhe dava um incrível poder sobre os preços»! Na transcrição do depoimento de Raymond Mc Daniel perante a Comissão de Inquérito do Congresso também surge uma declaração surpreendente. Disse ele: «Os investidores não deveriam confiar nas qualificações (das agências) para comprar, vender ou manter valores»! Não foi ingenuidade. Foi insolência e hipocrisia. Infelizmente, em relação a Portugal, ninguém seguiu o conselho deste senhor Raimundo…

4. PORTUGAL. Cumpriu-se o fado. O destino marca a hora. Como na famosa canção de Tony de Matos: «Se o destino nos condena / Não vale a pena / Lutarmos mais». Portugal foi «sovado» pelas agências de rating até à exaustão. Estava marcado para «morrer de bancarrota» se não cedesse às exigências do capital financeiro. No dia 5 de Abril de 2011, o «Jornal de Negócios» noticiava: «Bancos cortam crédito ao Estado». E explicava: «Os banqueiros reuniram-se ontem no Banco de Portugal. Não vão financiar mais o Estado. Querem um pedido de ajuda intercalar de 15 mil milhões – e já! O Governo tem de pedir e o PSD e o PP têm de subscrever».
«E já!». Perceberam? Foi assim, sem qualquer pudor, que o ultimato foi anunciado, que a «pistola» foi apontada à cabeça da vítima que já estava na fila de espera para ser «garrotada» pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Fundo Europeu de Estabilização Financeira. Cerca de 24 horas depois, já tínhamos direito a ouvir o sr. Olli Rehn (criatura finlandesa em quem não votámos e que fala inglês aos soluços) a explicar à Europa e ao Mundo o que é bom para Portugal - e não necessariamente para a grande maioria os portugueses. Olli Rehn é comissário europeu para os Assuntos Económicos e Monetários. Trabalha, portanto, sob a direcção (!?) do sr. Durão Barroso, ex-presidente do PSD e ex-primeiro-ministro, que foi «sovado» pelo PS (de Ferro Rodrigues) nas eleições europeias de 2004 e que, a seguir, abandonou o Governo que chefiava «com o rabo entre as pernas», pouco depois de ter prometido ao país que não o faria, para ir ocupar em Bruxelas o cargo de presidente da Comissão Europeia, que lhe foi oferecido pela direita.
Como escreveu Pierre Bourdieu há onze anos: «Temos uma Europa dos bancos e dos banqueiros, uma Europa das empresas e dos patrões, uma Europa das polícias e dos polícias, teremos em breve uma Europa das forças armadas e dos militares» (esta está quase!). Infelizmente, ainda não existe um movimento social europeu unificado, capaz de reunir diferentes movimentos, sindicatos e associações de diferentes naturezas, e capaz de resistir eficazmente às forças dominantes, a essa «Europa que se constrói em torno dos poderes e dos poderosos e que é tão pouco europeia».
Ao contrário do que algumas vozes bem intencionadas andaram a proclamar, a gravíssima crise económica e financeira desencadeada pelas más práticas do hipercapitalismo não deu origem a um «novo paradigma». Paralisada (e neutralizada) pelas sucessivas concessões que fez à doutrina neoliberal, a social-democracia europeia assiste, política e ideologicamente desarmada, ao que alguns já designam como «nova contra-revolução social thatchero-reaganiana». Até onde poderá ela ir? Nesta verdadeira guerra dos «mercados» contra os Estados, foi manifesta a incapacidade dos europeus para definir uma estratégia progressista comum para enfrentar a crise. Isso foi perfeitamente percebido pelos «mercados», que decidiram aproveitar essa sua vantagem para atacar frontalmente os Estados mais frágeis, com o objectivo de desregular ainda mais os mercados internos e de exigir mais privatizações. E é exactamente isso que está a acontecer aqui e agora.
A estratégia europeia de saída da crise mundial é clara: desregulação dos mercados de trabalho, deflação salarial, desemprego estrutural, menor protecção no emprego, restrições orçamentais, privatizações em massa, etc. É uma estratégia aparentemente paradoxal, que torna ainda mais vorazes os «mercados», que exigem sempre tudo e nunca se sentem saciados. Mas é também uma estratégia fundamentalmente recessiva, que pode provocar um aumento significativo das reivindicações sociais e políticas. «Neste braço-de-ferro, o estatuto do euro é um teste definitivo», dizem os entendidos. E a questão está em saber se «será, finalmente, posto ao serviço da promoção de um modelo social sustentável» ou «irá tornar-se o vector da destruição do que resta do Estado de bem-estar europeu». Os exemplos da Grécia, da Irlanda e de Portugal não auguram nada de bom para o Estado social.
Como já se noticia, a «ajuda» financeira do FEEF e do FMI servirá, essencialmente, para Portugal «pagar o que deve aos credores, sobretudo bancos estrangeiros que, ao longo de décadas, foram fornecendo fundos aos bancos nacionais e que estes depois canalizavam para a compra de casas, carros e créditos às empresas» («DN», 08/04/2011). Para além de cortes em salários, pensões, subsídios de desemprego e outras prestações sociais, fala-se em «reformas mais profundas do mercado de trabalho, menor protecção no emprego, maior abertura da Educação e da Saúde aos privados, subida dos impostos». (O dr. Passos Coelho deve estar radiante!). Também se diz que «mal as condições melhorem, o Estado deve começar a sair (privatizar) das empresas de transportes. Casos da ANA, TAP, CP, Refer, Carris, Metro de Lisboa e do Porto». Não haverá mais nada para privatizar? Claro que há! Um Estado bem desmantelado dá para enriquecer vários oligarcas.
Enfim, temos este país pronto a morrer da cura. Graças ao «trabalho sujo» das agências de rating (os «gangsters» desta história) ao serviço dos «mercados» (os agiotas). Mas também graças aos «bons ofícios» do actual Presidente da República, à «ansiedade do pote» de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, e ao extraordinário «sentido de oportunidade» de Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã. Sem esquecer as evidentes responsabilidades de José Sócrates, que não resistiu às sucessivas concessões que foi fazendo ao «blairismo» e ao «neo-centrismo», ou seja, à doutrina neoliberal.
Observação final. Várias são as vozes que afirmam que o FMI não é nenhum papão e não mete medo a ninguém, porque já cá esteve no século passado e tudo correu às mil maravilhas. É quase verdade, mas esquecem-se de um pequeno pormenor que faz toda a diferença: é que, quando o país sair exausto e exangue dos próximos anos de brutal austeridade, não haverá mais uma CEE à nossa espera para «inundar» Portugal com as «catadupas» de fundos comunitários que fizeram a felicidade do cavaquismo!


Lisboa, 9 de Abril de 2011
ALFREDO BARROSO

Cada um dá o que tem

Umas quantas luminárias opinam que é indispensável uma geral congregação de esforços partidários, um certo tipo de união de contrários, para vencer a grande crise. Oxalá que assim seja, ninguém o sabe ao certo. E outras alternativas não abundam.
Mesmo engolindo uma procissão de sapos, Sócrates declara a sua disponibilidade para trabalhar em conjunto e procurar consensos de solução, seja qual for a direcção do PSD.
Pois logo dos fundos da cavalariça chega um palafreneiro de serviço, a avisar em alta voz:
- Cuidado que isto não passa de marketing! Isto é tudo propaganda, em que o homem é mestre! Tudo é jogo de cintura, para derreter corações e obter um par de votos! Não tem credibilidade, nem é de levar a sério!
É esta a fundura de pensamento, a noção de responsabilidade, a indigência mental, a baba corrosiva, o primitivismo boçal, e o sentido de estado que o PSD há muito nos vem servindo: processos de intenção, calúnia repetida até à paranóia, difamação infrene, mantras que nos levam à exaustão, e um salivar faminto em direcção ao pote.
Cada um dá o que tem, como é sabido! Porém em bom rigor teremos que conceder, nem tudo são palafreneiros no PSD. Também tem gente que às vezes põe luvas de cerimónia, adopta maneirismos de salão, enriquece com escroquerias manhosas, e faz assaltos a bancos. Depois reforma-se e endossa-nos a factura.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Querença natural

O venerando e nocivo Presidente que temos, há tempos reeleito por uns tantos, escassos, portugueses, trazia ao peito um conjunto de indecorosas medalhas a ensombrar-lhe o retrato:
- as acções da SLN, que a seu tempo lhe trouxeram generosa mais-valia a sair do bolso dos contribuintes, e lhe chegaram a preços de favor, das mãos dum bando de gangsters e correligionários de partido;
- a conspirata de Belém contra o governo, em que uma tropa dos seus homens de mão montou a inventona triste das escutas de S. Bento;
- o patrocínio da pulhice do PEC4, da qual a direcção do PSD saiu a gaguejar, aos tropeções, desmascarada como canalha irresponsável (ou tens eleições no país ou no partido, é escolher!), sob o aplauso duma esquerda patética;
Tudo isso junto e resumido, em qualquer sociedade com respeito por si própria, era o bastante para custar ao venerando o lugar e a guarda de honra.
Mas nós estamos em Portugal, que é um país sui generis, como prova há muitos anos o Alberto João Jardim. E vinha no calendário a comemoração do ano 37 da nossa democracia. De modo que o acossado Presidente refugiou-se na querença natural, abandonou por momentos as faenas do Facebook e do site da Presidência, que é onde está o melhor que ele tem para dizer, e fez um movimento adequado: convidou a discursar os seus antecessores, para dissolver a voz nas vozes da multidão.
Porém a verrina anti-governo, o despeito anti-Sócrates, a trafulhice que vem de há muito tempo, a calúnia difamatória, o assassinato de carácter, a sonsice dos impotentes, tudo isso está presente na oratória do venerando, a qual faz eco dos vários mantras conhecidos:

"Os portugueses não se revêem num estilo agressivo de actuação política, feito de trocas constantes de acusações e tensões permanentes."
Leia-se o primeiro mantra: o carácter determinado, resistente, obstinado, casmurro, teimoso e intratável de Sócrates é o único responsável pelos nossos problemas. Fizesse ele como Cristo, e oferecesse à canzoada a outra face, e o mundo seria há muito tempo um mar de rosas!

"Não podem ser feitas promessas que não poderão ser cumpridas".
Leia-se o segundo mantra: Os males nacionais são fruto da propaganda de Sócrates, que não tem feito outra coisa senão impingir-nos o elixir da longa vida!

"Dos agentes políticos exige-se que actuem com transparência e com verdade".
Leia-se o terceiro mantra: Sócrates é um mentiroso compulsivo, que não merece confiança nem tem credibilidade!

"Vender ilusões ou esconder o inadiável é travar a resolução dos problemas que nos afligem".
Leia-se o quarto mantra: Sócrates não passa dum aldrabão, que resistiu quanto pôde à entrada do FMI, sacrificando ao seu próprio orgulho a nossa querida Pátria!

E assim o venerando Presidente toma parte na intoxicação geral da populaça: a intoxicação dos publicistas sem ética nem escrúpulos, a dos comentadores que perverteram a função, a da comunicação social ao serviço do dono, a duma esquerda vesga que ensaia o haraquiri.
É evidente que Sócrates não está isento de pecado. Mas, por este caminho, somos nós que acabamos no inferno. Como, de resto, sempre aconteceu! Nós é que não guardamos a memória!

segunda-feira, 25 de abril de 2011

25

O que fiz deste dia 25 foi uma caminhada por montes e vales, e serranias que a balbúrdia não atinge.
À partida deram-me um cravo vermelho.
E ao fim do dia encontrei o velho orgulho, de estar entre a geração que o inventou. Mesmo se tarde, e mal, e feiamente.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Ecos da Sonora - XXXV

Há o Lobo Antunes 1, que nos anos oitenta pôs a Europa a ler-nos. E há o Lobo Antunes 2, que durante muitos anos há-de ser o entretém maior dos académicos. Entre os dois, fica o Lobo Antunes das Crónicas. Um mestre fascinante!

Edgar, meu amor

Por favor Edgar não me deixes assim, o que se passa entre nós, porque não telefonaste? Eu aqui à espera feita parva, nem ao cabeleireiro fui com medo que ligasses, fumei oito Mores seguidos, tenho a cabeça tonta de cigarros, já perguntei às avarias se havia algum problema com o meu número e não há, já tentei entreter-me a pintar as unhas dos pés e borrei tudo, até nos calcanhares pus verniz, até na alcatifa, até no braço da cadeira, não foste ao emprego, não foste ao café, não foste ao clube, o que aconteceu Edgar? não é justo, não parece teu, não me deixes assim, dou voltas à cabeça a ver se percebo e não entendo, ainda ontem aqui vieste jantar, ainda ontem me gabaste o ensopado de enguias, ainda ontem, no sofá, lembras-te?
- Gosto de ti fofinha
ainda ontem, no sofá, coisa e tal, eu no princípio do licor e tu a puxares-me os collants
- Sua má sua mazona
e eu a mostrar-te o cálice
- Olha que isto deixa nódoas na almofada Edgar a almofada é nova
tu de joelhos, tu despenteado, de gravata torta, tu tal e coisa
- Quais nódoas quais caraças ajuda-me que o fecho do soutien encravou e nem para trás nem para a frente ajuda-me senão chamo o serralheiro
e claro que não tinha encravado, Edgar, é uma questão de jeito, é uma questão de calma, e tu a olhares para mim e a desapertares o cinto, tu atrapalhado nos atacadores
- Aguenta Deolinda que daqui a um segundo estou aí
eu aguentei, tu estavas aqui a magoar-me a perna com o cotovelo, eu
- Levanta o braço amor que me aleijaste
da janela via-se o Laranjeiro quase todo que o meu apartamento é em cima, o Laranjeiro, a Cova da Piedade, Almada, mais seis meses e tenho as duas assoalhadas pagas, eu a pensar que podíamos, se tu quisesses, morar os dois, arranjar um cão e ser felizes, e nisto tu quieto, tu embaraçadíssimo a olhares para baixo
- Devo andar cansado Deolinda deve ter sido do serão no escritório
tu sem ímpeto nenhum, tu sem vontade, eu a ajudar-te e tu, envergonhado, tu de calças pelos tornozelos num fiozinho de voz
- Deve ter sido do serão no escritório não me mexas paramos meia hora e fico fino
parámos meia hora, assistimos àquele programa onde as pessoas vão pedir desculpa à família e depois abraçam-se e choram e a assistência aplaude a chorar também, e mesmo a senhora que faz o programa, tão simpática, tão boazinha, se comove como se comove o Laranjeiro em peso, eu a beijar-te
- Já descansaste Edgar?
tu zangado comigo, tu que não ficaste fino nem meia
- Cala-te
numa voz tão diferente da tua, amor, nem fofinha, nem mazona, nem bichaneca
- Cala-te
e eu a fazer-te uma festa, cheia de paixão, preocupada com o teu cansaço
- Edgar
e tu sempre de calças pelos tornozelos a desviares-te para o outro canto do sofá
- Deslarga-me
eu que te adoro, a pôr-te a mão na coxa, e tu como se a minha mão queimasse
- Deslarga-me poça deslarga-me
vestiste-te num instantinho, puseste o casaco, avisaste da porta
- Se contas a alguém o que me sucedeu rebento-te
eu a compor-me estarrecida, eu a tropeçar atrás de ti
- Não me deixes sozinha não te vás embora Edgar
tu a desceres a rua para a camioneta, tu curvado como se carregasses o mundo inteiro nos ombros, eu da marquise
- Edgar
e nem sequer te voltaste, nem sequer adeus, nem sequer um sorriso, nem sequer um telefonema, queria dizer-te Não te apoquentes, queria dizer-te Não tem importância, gosto de ti à mesma, hoje tentamos outra vez, eu não conto a ninguém Edgar, juro que não conto a ninguém, não vão troçar-te no emprego, não vão troçar-te no café, podíamos morar os dois no Laranjeiro ainda que ficasses cansado para sempre, eu não me importo, comprávamos um cãozinho, íamos aos domingos ao Ginjal, isto no Laranjeiro é calmo, vê-se a Cova da Piedade, vê-se Almada, tenho a cabeça tonta de cigarros, já perguntei às avarias se há problemas com o meu número e não há, fiz ensopado de enguias, comprei sorvete no supermercado e o soutien que trago hoje tem rendas pretas e abre-se à frente Edgar, vai ser canja para ti tirar-mo.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

terça-feira, 19 de abril de 2011

Mais vale tarde... 18 - Fim

(…)
De preferência a confiar os destinos da França e da Europa às forças democráticas, a reacção francesa optou deliberadamente pela aceitação da derrota às mãos do fascismo germânico. Disse alguém, há muito tempo: “Onde tens o teu tesouro, aí terás também o coração”. Segundo se pensava, somente o triunfo alemão asseguraria, pelo menos durante algum tempo, a sobrevivência na Europa de uma ordem social que Hitler representava na Alemanha, Mussolini na Itália, Franco em Espanha, e Pierre Laval e Philippe Pétain na França.
Nenhuma tentativa se fez para estimular a resistência do exército francês. Generais abandonavam importantes postos e linhas de defesa sem sequer envidar um esforço para cortar o avanço aos invasores. Desviava-se propositadamente o rumo dos comboios carregados de munições. Dezenas de chefes militares abandonaram as tropas aos seus próprios recursos, sem planos de defesa ou de ataque. Não houve batalhas. A Batalha da França é um mito, prova-o a lista de baixas dos nazis. Dos três ou quatro mil aviões existentes, apenas mil entraram em acção. Os alemães atravessaram as linhas francesas em motocicletas; em muitos pontos formavam uma única fila simples. No espaço de dez dias, o mais brilhante exército da Europa ficara transformado numa multidão caótica, tomada de pânico, a recuar em desordem antes mesmo de ter estabelecido contacto com o grosso das tropas alemãs, que não chegou a entrar em combate, salvo para esmagar a Força Expedicionária Britânica, que os seus aliados tinham abandonado.
Quando se tornou patente que nenhum poder terrestre poderia conter a debandada, quando a confusão e o pânico reinavam por toda a parte, o atemorizado Daladier passou as rédeas do governo a Reynaud, que por seu turno chamou Pétain e Weygand para executarem a tarefa que a reacção nunca poderia levar a cabo em circusntâncias normais, isto é: vestir a camisa de forças do fascismo ao povo francês, pasmado e atónito.
Thierry Meulnier, escritor clerical-fascista, apontou, franca e brutalmente, os motivos fundamentais que levaram a burguesia, os clérigos e o alto comando a reduzir o povo francês à servidão, quando escreveu, para justificar a capitulação de Munique: “Uma vitória das armas francesas seria menos uma vitória para a França do que uma vitória dos princípios que com justiça se reputa conduzirem directamente à ruína da França e da própria civilização”.
Referia-se aos princípios democráticos!

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Mais vale tarde... 17 - Patrie Humaine

(...)
Foi contra o rochedo da consciência de classe dos radicais-socialistas que a Frente Popular acabou por despedaçar-se. Os liberais desertaram dos partidos proletários. Temiam que, continuando eles associados a Léon Blum, o país avançasse demasiadamente para o socialismo. Era esta uma estrada que não queriam trilhar.
Blum procurou salvar a coligação anunciando uma pausa no programa de reformas sociais. Mas a concessão era insuficiente. Daladier rompeu o pacto, mas logrou conservar-se à frente do gabinete, angariando o apoio do centro e da esquerda para um programa que "distribuía de maneira mais equitativa" as despesas da colossal campanha de armamentos: quer isto dizer que o fardo tornava a passar para os ombros dos operários e da pequena burguesia.
A nova administração de Daladier começou a demolir a obra da Frente Popular, de tal modo que dentro em pouco as vantagens conquistadas pela classe trabalhadora estavam completamente abolidas. Para este fim foi-lhe preciso governar por decretos, com poderes excepcionais, que lhe concederam a direita e o centro. Já não lhe corria a obrigação de consultar o parlamento.
Daladier poupou assim, a si mesmo e aos seus correligionários liberais, o constrangimento de ter que debater e votar medidas para desfazer o trabalho realizado alguns meses atrás por eles mesmos, em união com os socialistas. Tinham-se voltado contra a democracia porque descobriram que ela não pode permanecer estática (...): ou a democracia concede facilidades iguais aos elementos que estão por baixo, ou está condenada a morrer.
Sobreveio então o período que as gerações vindouras conhecerão como a Era da Grande Confusão. Em vão se há-de buscar nos fastos da história da França um outro momento em que fosse tão geral a ansiedade pelo futuro do país e tão profunda a inquietação. Em lugar daquela excepcional intensidade de sentimento nacional e patriótico que se manifestara no primeiro ano da Frente Popular, quando a esperança, o idealismo e a coragem alcançaram proporções verdadeiramente heróicas, uma imensa lassidão assaltara a França, um desalento como jamais fora visto outro igual, mesmo nos períodos mais angustiosos da primeira guerra mundial. (...)
Todos aqueles com quem eu falava, pessoas totalmente desconhecidas por vezes, opinavam que o país, abandonado, ia-se arrastando sem rumo, e que o fim bem podia estar à espera na primeira curva da estrada. O espírito que faria invencível a França, e que a nova ordem despertara três anos antes, tinha desaparecido. (...) Em 1939 o sentimento de desilusão popular engendrara uma atitude de indiferença total e o cínico "je m'en foutisme". (...) Não havia ânimo para lutar, porque o povo não tinha confiança num governo e num alto comando cujos princípios em nada se diferençavam da ideologia do inimigo fascista.
"A fim de que a França pudesse defender-se convenientemente", dizia-se ao povo que "os direitos civis e democráticos deste precisavam de ser drasticamente amputados. Era mister reduzir os salários. O exército necessitava de tanques, aviões e material motorizado. Portanto as massas deviam forçosamente imitar o exemplo dos alemães, e passar sem manteiga". (...)
E se porventura os pobres não aquiescessem a este programa, se mostrassem inclinação para se opor aos métodos fascistas do governo, para que estavam ali os pretorianos de Daladier, os gardes civiles de capacete negro, que com o tempo vieram a aquartelar-se em todas as comunas onde houvesse uma alta percentagem de operários? (...) Colocados sob a administração do Ministério do Interior, formavam uma força policial de elite, tal como a Ovra na Itália, ou a Gestapo no Reich. (...)
Em caso de guerra, postar-se-ia um batalhão de gardes civiles, mais bem armados, atrás de cada regimento, na linha de batalha. E com efeito essas guardas de elite do fascismo seguiram para o front, quando estalou a guerra, elas e as legiões negras do Senegal, a fim de manter em posição as tropas francesas. Dois importantes periódicos ingleses, The New Statesman e The Manchester Guardian, afirmaram que um número maior de soldados franceses foi executado pelos gardes civiles durante os oito primeiros meses de guerra, do que os mortos pelo inimigo.
Ignoro até que ponto isto é verdadeiro. Mas se o é, os gardes civiles de 1940 fizeram o mesmo que os seus predecessores tinham feito na última guerra. Segundo narra, em Les Cahiers de Moleskine, Jean Giono, que tomou parte na conflagração de 1914, colunas intermináveis de soldados eram obrigadas a passar entre duas filas de casse-têtes com que se lhes faziam saltar os miolos "um por um, durante horas e dias a fio". Foi por ter feito esta revelação, seja dito de passagem, que Giono foi preso imediatamente quando estalou a guerra em 1939 - e com ele os adeptos do movimento denominado Patrie Humaine. (...)

Anfitrião

Por se achar no defeso o Parlamento, acabou Cavaco Silva como Anfitrião das comemorações de Abril.
- É desta que vai pôr o cravo ao peito! - dirão alguns, já esfregando as mãos.
Bem enganados vão. Porque imitando astúcias do pai dos deuses, se Cavaco se mostrar de cravo, não há-de ser na pele do Anfitrião. Por si mandará Júpiter, vestindo do avesso a comédia de Plauto.

sábado, 16 de abril de 2011

Ora aí está!

Nem mais!
Só num país medieval e tristonho é que as coisas ainda são assim.
Claro que os meretíssimos iriam espernear, conforme já demonstraram. Mas foi para isso que se inventaram as peias.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O Venerando


Como chefe da quadrilha.

A farsa dos quadrilheiros

Pacheco Pereira revela mensagem sobre o PEC4 - Portugal - DN

Dois gostos e uma tormenta

Apareceu finalmente um extenso relatório, sobre as famigeradas agências americanas de notação do rating, a Fitch, a Moodys e a S&P. O calhamaço é demolidor. Antes da crise do subprime na América, em 2008, tais agências davam notações de triplo AAA a produtos financeiros de pura especulação, dos quais 90% se transformaram em lixo radioactivo. Contaminaram globalmente as finanças do mundo, com obscenos lucros próprios. E através da pura extorsão, um colossal volume de riqueza mudou simplesmente de mãos. Continuam à solta por aí.
São estes bandos de falsários internacionais que nos cravam os dentes no cachaço, e se alimentam da angústia dos povos do mundo, ao serviço do insustentável jogo imperial americano que desaba. Têm a seu favor o sono dos burocratas que governam a Europa e vivem como nababos, enquanto deixam morrer o sonho europeu. E cá em casa contam com a cumplicidade e o frenesi duns paus-mandados indígenas, que funcionam a pilhas e andam muito contentes com a chegada do FMI. É que assim podem dobrar-nos a espinha e pôr-nos a pão e laranjas. Coisa que não tinham culhões para fazer sozinhos.

Mas a vida não lhes corre a gosto. A execução orçamental do último trimestre tem um saldo positivo de 430 M€, quando no ano anterior foi negativo em 1300 M€; a despesa pública baixou 3,7%, e a receita subiu 15%; a despesa com pessoal baixou 8%; há uma quebra no défice público da ordem dos 60%. Aos parasitas, estas coisas não dão jeito.

A princípio parece que estás a ouvir um sapo que coaxa à tona da ribeira, aflito com a azáfama da reprodução. A voz agreste de cana rachada deixa as frases a meio, frenéticas, urgentes, a pisarem o vestido umas às outras.
O homem dispara sobre um governo de guerrilheiros, e aponta-lhe os cabecilhas, antes de te acenar com um governo dos melhores a surgir do nevoeiro, carregado de independentes da sociedade civil. Como se tu já os tivesses esquecido, aos melhores, que agora estão reformados. E se calhar esqueceste. Mereces o martírio de o ouvir.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Ideias fixas

No princípio era a asfixia democrática, teorizada por um par de formadores de opinião.
Depois tiraram da cartola uma comissão de inquérito, para nos desvendar que o primeiro-ministro era mentiroso compulsivo.
Mais tarde alguns anciãos, entre os quais o Venerando, desataram a clamar que era preciso dizer a verdade ao povo.
Agora a palavra de ordem é a falta de credibilidade.

Tudo isto são tropismos, são bordões, a camuflar a malsã decadência do partido. De política, com alguma utilidade, nem uma ideia aproveitável. Apenas ideias fixas e assassinato de carácter.

Um tal partido já nos brindara a todos com um vasto rol de escroques perniciosos, hoje em dia a assobiarem por aí. E agora se conhecem mais de perto os frustrados psicopatas que atrás vinham.

Adivinha

O resgate desnecessário de Portugal
Título de Robert Fishman, sociólogo norte-americano, no New York Times:

«Portugal foi vítima da «pressão injusta e arbitrária» dos mercados financeiros internacionais, que ameaça Espanha, Itália e Bélgica e outras democracias em todo o mundo».

«O contágio no mercado e os downgrades de ratings tornaram-se numa "profecia que se realiza a ela mesma", uma vez que as agências forçaram o país a pedir ajuda elevando os seus custos de financiamento para níveis insustentáveis.»

«Distorcendo as percepções do mercado sobre a estabilidade de Portugal, as agências de rating – cujo papel de favorecimento da crise do subprime nos Estados Unidos [2008] foi amplamente documentado – minaram quer a sua recuperação económica, quer a liberdade política».

«Se forem deixadas desreguladas, estas forças de mercado ameaçam eclipsar a capacidade dos governos democráticos – talvez mesmo dos Estados Unidos – para fazer as suas próprias escolhas sobre impostos e gastos».


[Quem é, quem é, o Miguel de Vasconcelos?!
"O povo não imagina do que são capazes certas cliques, quando se trata de manter ou restaurar privilégios e mando"]


Mais vale tarde... 16 - Les jeux sont faits! Deo gratias!

(…)
Na França o clero contribuiu para a derrocada geral. Pregava a sedição. Fomentava a desconfiança no espírito do povo e incitava-o a desprezar os princípios sobre os quais se edificara a República.
Tratou, durante anos, de incutir no povo francês a ideia de que ele iria expiar um dia, num horrível mar de sangue, os pecados da “república leiga e ateia”. O jornal diocesano Croix du Nord recomendava aos crentes que rezassem, na ocasião em que os alemães martelavam as fortificações belgas: “Ó Senhor, mais uma vez nos castigais pelos pecados da nossa estremecida Pátria, pelos pecados dos nossos legisladores, cuja loucura criminosa os levou a negar o Vosso nome, perseguir a Vossa Igreja, espoliar os Vossos servos, educar as crianças no ateísmo; pelos pecados dos eleitores, que elegeram representantes sem religião, tornando-os assim seus cúmplices. Faz que compreendamos, ó Senhor, as consequências terríveis de termos usado do voto…”
Esta prece foi deixada propalar livremente, tanto pela censura militar alemã como pela francesa!
Foi por um castigo divino infligido à França que os alemães pegaram em armas novamente em Setembro de 1939: um castigo colectivo e bem merecido, predito aliás pelo clero, havia anos, especialmente naqueles anos que se seguiram à separação da Igreja e do Estado, “um insulto a Deus, merecedor da mais severa punição”, conforme disse o Cardeal Arcebispo de Bordéus. Para a Igreja Romana, que se diz herdeira do pacifista galileu e dos mártires que recusavam pôr-se ao serviço de César para matar, a guerra tem o triplo carácter de castigo justo, expiação e reparação providencial. “Logo que um povo perde a virilidade e o amor ao sacrifício, ou quando se faz tirânico, oprime a consciência e ameaça tolher o caminho à verdade divina na terra, chama Deus uma outra nação para ferir o povo leviano, corrupto e perigoso, numa terrível execução da justiça divina”.
Foi nestes termos que um dos mais populares escritores católicos da França, Léon Gautier, vaticinou a blitzkrieg, dando a Adolfo Hitler o papel dum grande vingador ao serviço da justiça divina. O povo francês nada podia fazer senão aguardar pacientemente a provação. A guerra viria e os franceses teriam que perdê-la, segundo as previsões do clero, pois cumpria que se prostrasse por fim e, se possível, que eliminasse a Terceira República, esse execrado instrumento da Democracia. Daí as felicitações de Pio XII a Philippe Pétain, a quem o Papa chamou “o mais lídimo representante das nobres tradições da sua raça”, poucos dias depois de jazer a república por terra e de o marechal ter decretado, entre as injecções de hormónio paratireoídeo que fazia de meia em meia hora, a morte da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, por ordem de Hitler, Mussolini e Franco.
A reacção militar-clerical francesa, sustentada pela alta finança, os bancos e a grande presse, valeu-se da revolta espanhola contra a República como o meio mais eficaz para embargar, obstruir e finalmente derrubar o governo da Frente Popular no seu país. (…)
Ao mesmo tempo recrudescia a insolência do comando do exército, que proibia aos soldados, em ordem do dia, ler os jornais partidários da Frente Popular. Em duas ou três ocasiões, generais eminentes recusaram tomar parte em conferências sobre assuntos de aviação com Pierre Cot, o ministro do Ar, a quem a reacção votava uma aversão especial, provavelmente porque ele instava pela criação, na França, de uma força aérea capaz de contrabalançar a de Goering. Em St. Cyr, o comandante da academia militar francesa desatendeu o pedido do governo para que fizesse hastear a bandeira a meia-haste, na manhã em que se teve a notícia da morte do ministro do Interior. Os cadetes, que estavam reunindo no campo de paradas para irem assistir à missa, aplaudiram o comandante quando este mandou içar a bandeira “mais alto que nunca”, pois “a França tinha agora um miserável a menos”. O ministro falecido, Roland Salengro, fora um dos partidários mais salientes da intervenção na Espanha”. (…)
Alguns soldados de tendências socialistas contavam casos espantosos de ameaças de morte por parte dos seus oficiais, se eles fossem leais ao governo em certo momento crítico que se previa abertamente. E não só os soldados: falei com um oficial, tenente-coronel da guarnição de Montpellier, que não hesitou em dizer-me que a sua propaganda fascista lhe custara o posto. “Mas fui transferido para Metz. Comando ali o arsenal. Acho que, quando soar a hora, o arsenal e o seu conteúdo valerão para La Rocque e Weygand mil vezes mais do que a reles guarnição socialista de Montpellier. Também em Metz inventariámos todos os soldados de acordo com as suas convicções. Creio que teremos de eliminar um milhar deles, quando recebermos o sinal”. (…)
Blum não ousava enfrentar a conjuntura duma luta armada, porque sabia que, com o comando do exército nas fileiras contrárias, seria para os operários um esforço vão, bem como um convite virtual a que Hitler invadisse a França. (…) “Além disso – ajuntava – quem pode afirmar que os nossos opositores reaccionários não chamariam Hitler, o homem que eles tanto admiram, para restabelecer a ordem? Porventura Thiers não chamou Bismarck em 1871, para esmagar a Comuna?”


[Lá como cá,“o povo não imagina do que são capazes as classes poderosas, quando se trata de manter ou restaurar privilégios e mando”.
Pétain seria em breve o chefe do governo colaboracionista de Vichy. E a França, um farol de luz há 150 anos, mergulhou num crepúsculo e numa decadência de que não mais emergiu.]

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Ó-Telo!

- Otelo garante que hoje a não faria, tás a ver!
- Hoje não faria o quê?
- Otelo não faria a revolução!
- Mas Otelo fez uma revolução?
- No ponto em que isto está, realmente não parece!
- E por que razão é que Otelo não fez a revolução?
- Talvez por precisar duma na sua própria cabeça!
- Então Otelo fez o quê?
- Fez o que tinha a fazer, e não foi pouco!
- Então se fez o que tinha a fazer, por que motivos o não faria hoje?
- Porque Otelo ainda é o que foi sempre, pá! Um pateta vaidosito, pá! Um vaidosito pateta, pá! Um actorzeco manhoso, pá! Uma espécie de calhau com olhos, que sempre fez perigosas confusões entre o cu e as calças, pá!
- Ah! Sempre pensei que ele era outra coisa…
- A pensar morreu um burro, pá!

Crescimento? Consumo? Política? Economia?

E a Física?!

terça-feira, 12 de abril de 2011

Mais vale tarde... 15 - Antes Hitler que Blum!

(...)
Como podia alguém esperar que diplomatas franceses que pertenciam aos trusts franco-germânicos de munições; ministros que mandavam as esposas e as amantes a Berlim, Munique e Viena para se entreterem em companhia dos bonzos nazis; financeiros que eram vistos quase todas as noites nos salões de M.me des Portes, da Marquesa du Crussol e de M.me Georges Bonnet, de braço dado com von Abetz, Sieburg, Arnheim, Funk e outros emissários de Goebbels e Ribbentrop; cardeais e bispos que regressavam das suas visitas periódicas ad limine deslumbrados pelo estado corporativo de Mussolini, de que se tornavam animosos campeões; generais que, a exemplo de Castelnau e de Weygand, eram os cérebros inspiradores da ordem dos cagoulards, uma sociedade secreta, terrorista e anti-semita que adoptava o manto e o capuz do Ku Klux Klan; jornalistas como os directores de Le Temps e Le Figaro, que, segundo ficou provado, recebiam subsídios de Berlim e de Roma; magnatas como Pierre Laval, Flandin e o coronel de la Rocque, que exultavam com a rendição verificada em Munique; e finalmente estadistas que tratavam os representantes no Parlamento como colegiais e governavam por decretos, pela mordaça da censura e a ameaça das metralhadoras dos gardes mobiles - como podia alguém esperar que essa multidão, reaccionária e corrupta fosse capaz de conduzir o povo francês a uma vitória da democracia sobre o fascismo, eis o que o nosso espírito não consegue compreender. (...)
Mas uma coisa não foi dita, salvo nos panfletos e opúsculos das minorias esquerdistas: que a democracia francesa fora amordaçada e manietada, antes de começar a luta. Sim, a sinistra verdade é que os próprios políticos que conduziam a dança em 1940 sacrificaram o povo francês numa guerra que não só estava perdida antes que se desse o primeiro tiro, como fora por eles deliberadamente votada à derrocada.
Não ponho em dúvida que houvesse agentes inimigos em actividade, antes da ofensiva alemã e durante esta (...). A obra desses insignificantes agentes nada foi, porém, em confronto com a da Quinta Coluna, os verdadeiros aliados de Hitler na França, que se achavam comodamente instalados no Ministério da Guerra, nos gabinetes parlamentares, e até no Palácio dos Inválidos, sede do comando supremo. O elemento traidor, na França, não constituía uma organização clandestina de corruptores e saboteurs. Era composta de franceses natos, sem ficha na polícia e jamais molestados por ela, todos eles senhores altamente respeitáveis, e além disso ultra-patriotas: generais, grandes industriais, políticos veteranos e proprietários de jornais, que nunca puseram o pé numa assembleia de pacifistas e cujo interesse pelas ideologias estranhas se limitava a condená-las e a amaldiçoá-las.
A coisa que esses homens menos desejavam era uma vitória democrática para a França, o que acarretaria naturalmente e vitória dos princípios democráticos também na Alemanha, e presumivelmente a criação de uma nova ordem social na Europa depois da guerra: talvez uma federação de estados europeus pelo livre consentimento dos povos e uma economia unificada que, em vez de operar em proveito exclusivo de um grupo particular, satisfizesse as necessidades e assegurasse o bem-estar de todas as classes e de todos os grupos, nas diferentes nações europeias.
Tal era, para esses homens, o espectro pavoroso que entreviam atrás da vitória da democracia. Odiavam a democracia como a própria peste, porque o desenvolvimento das instituições democráticas ameaça a condição privilegiada da classe que eles integram na sociedade. O que queriam era o fascismo, porque este protege os interesses da classe a que pertencem, e faz da sua inviolabilidade a primeira preocupação do Estado.(...)
Já alguém disse que o povo francês estava tomado de estupor, naquelas horas trágicas em que a fatalidade pesou sobre o seu país. Tal coisa sucedeu, na verdade, ao povo francês, mas não a Weygand, Laval e Pétain. Esses homens não procuravam rumo. Moviam-se com a precisão sonâmbula de um Adolfo Hitler. Sabiam o que estavam fazendo. Eles e a sua classe fizeram, em Julho de 1940, o que havia muito tempo tinham projectado: valer-se da vitória militar dos alemães como de uma mercê divina, uma oportunidade suprema para impor a canga da servidão à cerviz do seu povo.
Em Junho de 1940 patenteou-se o sentido destas palavras, impressas num título a seis colunas, em Junho de 1936, pelo principal órgão fascista da capital francesa, Le Jour, no dia em que a Frente Popular assumiu o poder: "Plutôt Hitler que Blum!" Antes Hitler que Blum!

Pera aí!

Afinal Passos Coelho deixou dito que o primeiro-ministro lhe telefonou atempadamente... e que ambos se encontraram em S. Bento para falarem sobre o PEC4, antes de toda a oposição o ter chumbado no Parlamento!
Esse mesmo PEC4 que já trazia o aval da Europa para a "intervenção externa", e que o bom do Passos Coelho veio a considerar inaceitável: porque não foi apresentado aos portugueses, e por tanto fazer sofrer os pobrezinhos!
Esses mesmos portugueses que, em resultado do chumbo, ficaram logo entregues à bicharada, e aos juros demenciais dos "mercados" especuladores, que aproveitaram a deixa para tomar o freio nos dentes!
Esses mesmos pobrezinhos que, assim salvos do PEC4, vão apanhar pela frente um PEC5, que os deixa a pão e laranjas!

O estendal de escroqueria, decadência e manobrismo do PSD já faz parte da história. Tudo lhe serve, desde que leve ao "pote".
A inanidade manhosa do venerando Presidente não consente maravilhas nem milagres.
O PC martela na "política de direita", como se outra fosse possível, sem encontrar outra vez os portões do palácio de inverno.
Os trotskistas reclamam a "reestruturação da dívida", que nunca chegará.
E a diletância cínica dos media baralha as ideias, e cumpre o papel que sempre teve: ampliar a voz do dono.
- "Que fazer?!" - já perguntava o outro.
- Ser "lúcido, merda!" - rosnou um passante, farto deles.

domingo, 10 de abril de 2011

Mais vale tarde... 14 - De Gaulle e os maquisards

(...)
No intervalo que decorreu entre a vitória eleitoral dos partidos populares, em Fevereiro de 1936, e a formação do novo governo, em Julho do mesmo ano, a oposição reaccionária tornou bem clara a sua intenção de não se conformar com a vontade expressa nas urnas pela esmagadora maioria do povo francês. Por intermédio dos jornais que financiavam, a grande indústria e os bancos declararam abertamente que nunca haviam reconhecido, e nunca reconheceriam, o direito dos operários a negociar colectivamente, e também que o programa de seguros sociais, pensões de velhice, férias pagas e redução das horas de trabalho, que o novo governo se comprometera a realizar, causaria a ruína da França, e, por conseguinte, o dever patriótico de todos era resistir e levantar todos os obstáculos possíveis à futura administração.
Esta espécie de intimidação, para não dizer provocação, teve o efeito de criar perplexidade no seio das organizações trabalhistas. As eleições tinham dado uma vitória iniludível aos partidos da esquerda. Ao cabo de mais de um século de esperanças sempre frustradas, mas que apesar disso continuavam bem vivas, os elementos avançados da nação tinham finalmente a alegria de ver formar-se um governo de tendências socialistas. Permitiriam agora, no limiar do sucesso, que lhes arrebatassem o fruto da vitória? Os chefes da Frente Popular saberiam conservar-se firmes, sem se intimidarem nem transigirem diante daquelas ameaças de recusa e obstrucionismo? (...)
Mas a reacção não se deu por vencida. Voltou à carga, recorrendo à congelação e à fuga em massa do capital. Como as classes ricas de Espanha, por ocasião da subida da Frente Popular ao poder neste país, os cidadãos franceses abastados escoavam-se para a Suíça e para a Holanda (só na comunidade onde eu residia nada menos de sessenta e duas famílias mudaram-se para a Suíça e a Inglaterra em espaço inferior a um mês) e muitos outros remetiam os seus fundos para fora do país (...).
Ao mesmo tempo (não havia ainda um mês que a Frente Popular se achava no poder) a Internacional Fascista, utilizando-se da desacreditada camarilha clérigo-militar encabeçada em Espanha por Sanjurjo, Franco e Mola, desfechava um ataque sangrento à nascente democracia naquele país. Por simples razão de interesse nacional e defesa própria, era manifesto dever de qualquer governo francês fornecer às autoridades constituídas do país vizinho e amigo os meios com que se defendessem de uma pérfida insurreição desse género. E não somente os meios de defesa: a ameaça duma vitória de Franco, sustentado como era pelos dois ditadores fascistas de Roma e de Berlim, exigia nada menos que o envio imediato de tropas francesas em auxílio do governo democrático de Madrid. (...)
O alto comando francês, chefiado em 1936 por Maxime Weygand, que tinha por subordinado Philippe Pétain, vice-presidente do Conselho Nacional de Defesa, conhecia o perigo da insurreição franquista tão bem - e ainda melhor, visto dispor das informações do serviço secreto - como os amigos da França qu insistiam na intervenção. (...) Porque foi que Weygand, que se arvorou em grande patriota após a derrota do seu país, não aconselhou Daladier e Blum, não insistiu com eles numa pronta intervenção na Espanha, nessa ocasião em que ainda se podia salvar a França e a marcha do fascismo pela conquista do mundo podia ser atalhada na origem?
Weygand e Pétain qualificaram de "irreparável" a situação militar ao assumirem o lugar de Gamelin e Reynaud, em Junho de 1940. A situação porém não tinha nada de irreparável, em Julho de 1936, quando o general Franco, como instrumento do Duce e do Führer, começou a aplainar o caminho para a fascização da Europa. Onde estavam então Weygand e Pétain, Laval e Flandin, Lémery, Marquet e Reynaud?
Resposta: os chefes nacionais de 1940 achavam-se, em 1936, na frente franquista. Estavam nessas fileiras, que eram a vanguarda do movimento fascista, dirigido principalmente contra a República Francesa e contra o Império Britânico. para esses homens, as considerações de interesse de classe sobrepunham-se aos interesses nacionais do seu país. (...)
Assisti, por casualidade, em Agosto de 1936, a um garden-party abrilhantado por uma quermesse em benefício das forças rebeldes de Espanha, na propriedade da duquesa de Uzés, em Saint-Germain-en-Laye. Vi ali monsieur le géneral Weygand, cercado por uma multidão arrulhadora de princesas e baronesas, vender em leilão cordas para enforcar - conforme se anunciava solenemente - não a Hitler, Mussolini ou Franco, os inimigos confessos da França, mas Léon Blum, Vincent Auriol, Léon Jouhaux, Largo Caballero, a Passionária, Negrin, Prieto, José Bergamin, Vitor Margueritte, Romain Rolland e outros chefes trabalhistas e intectuais liberais, franceses e espanhóis. (...)
As questões implicadas na revolta espanhola sobrelevaram em muito todos os demais acontecimentos no teatro político da frança, durante a administração da Frente Popular. Na questão espanhola, os chefes populares deixaram-se intimidar pelos clamores incessantes da frente franquista, negando à república amiga o auxílio que poderia salvá-la. Blum e os seus companheiros curvaram-se às exigências da reacção, primeiramente abstendo-se duma franca intervenção militar e depois fazendo cessar os socorros clandestinos que a iniciativa particular enviava à Espanha democrática. Blum fechou a fronteira e até negou aos voluntários "o direito de morrer pela democracia diante das muralhas de Madrid".
(...)

Evidências

Regresso a casa com duas evidências, para além dos 30 graus desta canícula.
A primeira é o ódio a Sócrates, que nem a sombra dum pudor disfarça. Anda por aí estúpido e estampado, na boca de jornalistas serviçais, de comentadores a soldo, de cínicos formadores de opinião, de políticos de terceira linha.
Repugna... mas não admira. Nenhum governante eleito foi tão caninamente massacrado, tão persistentemente caluniado, tão insidiosamente injuriado como ele o vem sendo, no desempenho do cargo. Por todos os peralvilhos da direita que se expõe, os próprios e os paus-mandados, herdeiros dos que tiveram o triste país por conta, e há trinta anos atrás ainda fediam ao mênstruo dos direitos de pernada. Até uma comissão dos deputados gastou semanas de tempo inutilíssimo, para descobrir se era verdade ou não, que Sócrates mentira ao insigne Parlamento. Porque ele é um mentiroso compulsivo.
Há-de haver uma razão para o despautério. E há!
É que apesar das muitas trapalhadas, das confusões e enganos, dos equívocos e das teimosias, dos erros e das desilusões, de todos os governos que há trinta anos tivemos, nenhum como os governos do partido de Sócrates meteu a mão na massa do que era urgente fazer, e ainda é: na educação, na saúde, na cultura, na justiça, na diplomacia económica, nos privilégios das corporações, nos atavismos mentais e até mesmo na miséria.
Poucas vezes conseguiu, outras errou, falhou mais que era devido. Mas quis mudar, e esse pouco é já bastante, na motivação do ódio e do cinismo. Porque no nosso país sempre ficou sem cabeça quem ousou pôr em questão o privilégio duns quantos, e a submissão dos demais.
A segunda evidência que trago para casa é que nos últimos dias reduziram-se num quarto os automóveis que circulam na cidade. Ganha o meu autocarro em rapidez. E se, mais que o preço do gasóleo, isso for um sinal de lucidez geral, oxalá possa manter-se, que vai haver eleições.

Ora deixa cá ver...

Fernando Nobre quê? Candidato em Lisboa pelo PSD?! Mas afinal...
Ah pois... realmente... o Cavaco eleito à primeira volta...
Olha, mermão! Não abras os olhos, não!!!

sábado, 9 de abril de 2011

Folhetos do ceguinho

Contavam casos, dramas e desgraças, havidos em terras que raros sabiam. Edificavam almas, sem amolgar espíritos. Não é o que hoje faz a televisão.
Vi-os um dia, em Trancoso, há muitos anos, debaixo dum freixo velho. Os folhetos eram amarelos, pendurados num cordel.

[Roubado aqui][Clicar;aumentar o nível de zoom]

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Epílogo à la Voltaire

(...)
Na vizinhança habitava um célebre derviche, que gozava da fama de ser o melhor filósofo da Turquia. Foram logo consultá-lo. Pangloss tomou a palavra e disse-lhe:
- Mestre, vimos pedir-lhe que nos diga porque foi criado um animal tão exótico como o homem!
- De que te preocupas? Que tens tu com isso?
- Mas, reverendo padre- declarou Cândido - o mal que cobre a terra é medonho!
- E que nos importa que haja mal ou bem? Quando Sua Grandeza envia um navio ao Egipto, importa-se acaso em saber se os ratos que andam lá dentro estão ou não à sua vontade?!
- Que devemos então fazer?
- Em primeiro lugar calarem-se!
- Agradar-me-ia ainda - disse Pangloss - discutir com a vossa sapiência acerca dos efeitos e das causas, do melhor dos mundos possíveis, da origem do mal, da natureza da alma e da harmonia imanente!
O derviche, ouvindo isto, pô-los na rua. (...)
Voltando para a granja, Pangloss, Cândido e Martin encontraram um velhote que tomava o fresco à porta de casa, sob um toldo de laranjeiras. (...)
- O senhor é decerto o proprietário duma vasta e magnífica fazenda - disse Cândido ao turco.
- Tenho apenas vinte jeiras, cultivo-as com os meus filhos. O trabalho afasta de nós três calamidades: o aborrecimento, o vício e a pobreza.
Cândido ruminou profundamenta a frase do turco, e disse a Pangloss e a Martin:
- Este bom velhote parece-me estar na posse duma sorte preferível à dos seis reis com quem nós tivemos a honra de cear.
- As grandezas - disse Pangloss - são muito perigosas, segundo dizem todos os filósofos.(...)
- Também sei - interrompeu Cândido - que é preciso cultivar a horta.
- Tens razão - respondeu Pangloss - porque quando o homem foi posto no Paraíso mandaram-no trabalhar. O que prova não ser o homem um ente criado para o repouso.
- Trabalhemos sem discorrer - disse Martin - porque é o único meio de tornar a vida sofrível.
Todo o grupo concordou com a proposta e cada qual tratou de mostrar os seus talentos. A granja rendeu muito dinheiro. Cunegundes estava feia, para falar verdade, como um mostrengo, mas soube ostentar habilidades de doceira; Paquette bordava; a velha cuidava das roupas; até o abade Giroflée se tornou útil, fazendo perfeitamente trabalhos de carpintaria; chegou mesmo a ser um homem honesto. Pangloss dizia algumas vezes a Cândido:
- Todos os sucessos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis. Porque enfim, se tu não fosses expulso dum formoso castelo, com grandes pontapés no traseiro por amor da menina Cunegundes, se tu não tivesses passado pela Inquisição, se tu não corresses a América a pé, se tu não espadeirasses o barão, se tu não perdesses todos os carneiros do maravilhoso Eldorado, tu não comerias aqui os frutos da terra.
- Tudo isso é muito bonito - respondia Cândido - mas é preciso cultivar a nossa horta!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Ainda tens o teu voto!

19 de Março - Chumbo do PEC4, porque "há um limite para exigir sacrifícios aos portugueses".
28 de Março - "Votámos contra o PEC4, porque não foi tão longe quanto devia".
(Pedro Passos Coelho)
A resposta que tais declarações suscitam exigiria uma linguagem que não se pode usar aqui. E tu, se ainda tens dúvidas sobre com quem estás metido, bem farias em esclarecê-las.

Ecos da Sonora - XXXIV


Parecem de ontem esta vivacidade, a crítica, a ironia, o sarcasmo de Voltaire, vindos do séc. XVIII.
Um prazer, um pitéu, um luxo, neste tempo em que o subprime chegou à literatura.

Após o tremor de terra que destruíra três quartos de Lisboa, os sábios do país cogitaram em que o meio mais eficaz para prevenir a ruína total da cidade consistia em dar ao povo um rico auto-de-fé. Fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espectáculo de várias pessoas queimadas a fogo lento, com grande cerimonial, era um feitiço infalível para impedir a terra de tremer.
Por consequência agarraram num biscaínho, criminoso por casamento com a comadre, e em dois portugueses que, ao comerem um frango, tinham posto de parte o toucinho. Depois do jantar amarraram o doutor Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado demais, o outro por ter escutado com ares de aplauso. Ambos foram conduzidos em separado para compartimentos de extrema friagem, nos quais o sol nunca incomodava ninguém.
Oito dias passados, ambos foram revestidos de sambenitos e adornaram-lhes as cabeças com mitras de papel. A mitra e o sambenito de Cândido traziam uma pintura de chamas erguidas, direitas, e no meio vários diabos sem cauda nem garras.
Saíram em procissão assim vestidos, ouvindo ao mesmo tempo um sermão intensamente patético, acompanhado duma bela música em falsete baixo. Cândido foi açoitado ao ritmo da música e do cântico; o biscaínho e os dois homens que não comiam toucinho foram queimados; e Pangloss foi enforcado, contrariamente ao que se esperava. Mas no mesmo dia a terra voltou a tremer, com fragor espantoso.
Cândido, aterrado, interdito, tresloucado, sangrando, palpitando, dizia de si para si:
- Se este é o melhor dos mundos possíveis, que serão os outros? Ainda se se limitassem a açoitar-me, vá lá, que já o fui no país dos búlgaros. Mas, ó meu querido Pangloss, ó filósofo incomparável, por que te vi enforcar sem haver razão?! Ó meu querido anabaptista, homem bom entre os bons, por que te vi afogar dentro do porto?! Ó menina Cunegundes, a pérola das raparigas, para que foste esventrada?!
Ia-se embora mal se podendo suster, açoitado, sermoneado, absolvido e abençoado, quando uma velha se aproximou e lhe disse:
- Meu filho, encha-se de coragem e siga-me.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Amanhãs que já não cantam

Como soíam cantar.

Junk, dizem. Quase lixo.


O nosso venerando Presidente já trazia a cabeça atulhada no dito, o bastante para não destrinçar os Cantos d'Os Lusíadas.
Depois meteu o lixo no país, quando o cobriu de alcatrão e lhe chamou pugresso.
Mais tarde levou o lixo à Presidência, com assessores que engendram conspirações manhosas.
Até que finalmente requintou: introduziu-o no Conselho de Estado, através dum bufão da sua confiança.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Mais vale tarde... 13 - A guerra "civil"

(...)
Durante o mês de Abril de 1935 houve uma série de conferências no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Berlim e no Hotel Adlon, da mesma cidade, às quais compareceram o Dr. Alfred Merton, presidente da Metalgesellschaft, o monopólio do aço de Francforte-sobre-o-Meno; o Dr. Edward Kloene, do consórcio metalúrgico alemão que tem o seu nome; o Dr. Ludwig von der Porten, chefe do trust Rheinmetall, de Düsseldorf; o Dr. Hjalmar Schacht, ministro dos negócios económicos do gabinete de Hitler; o Dr. Krupp von Bohlen, do monopólio de canhões de Essen; o Dr. Friederich Opel, presidente das Fábricas de Motores Opel; representantes da Siemens & Halske, fabricantes de tanques, representantes das fábricas de carabinas Vulkan, e três directores da Farben Aktien Gesellschaft, o colossal trust químico alemão; além destes, o sr. Gil Robles, chefe do partido agrário clerical-fascista da Espanha; o sr. Juam March, banqueiro espanhol e agente duma companhia de navegação; o general Sanjurjo, cabeça de um putsch militar abortado contra o regime republicano espanhol, que vivia exilado em Portugal; e finalmente o general Ingeniani, director da mobilização industrial da Itália; o sr. Guido Mazzolini, chefe do departamento comercial do Ministério do Exterior italiano; o coronel Benni Stefano, do estado-maior italiano, e o sr. M. Giurati, director do departamento de negócios estrangeiros do partido fascista italiano.

Foram estes cavalheiros notificados pelo Dr. Merton de que, com a aprovação do governo espanhol, então chefiado pelo sr. Alejandro Lerroux, se estava agenciando a formação de um consórcio internacional para explorar os recursos minerais da península ibérica, inclusive de Portugal e dos domínios coloniais do Marrocos Setentrional. (...)

Tenho diante de mim as minutas de outra conferência havida no Ministério dos Negócios Económicos a 21 de Abril, e ainda outras dos acordos assinados durante aquele mês do ano de 1935 entre as diversas corporações atrás mencionadas e o governo espanhol. Esses papéis, de autenticidade incontroversa, foram fornecidos por um banqueiro internacional de Paris, que se fez representar indirectamente nas conferências de Berlim. (...)
Os pactos para a exploração intensiva de todos esses territórios, tanto na península espanhola como na África, fixando a repartição do custo e os quinhões que a Alemanha e a Itália teriam nos rendimentos, foram finalmente assinados com os proprietários no mês de Janeiro de 1936.
Entretanto, em Fevereiro desse mesmo ano, os partidos políticos coligados na Frente Popular triunfaram nas urnas (...). Uma das primeiras reformas empreendidas pelo novo governo espanhol foi a nacionalização das minas. Quando chegou a Berlim a notícia da vitória da Frente Popular, os planos da execução do contrato foram arquivados provisoriamente. (...)
Em vez de renunciar aos recursos ilimitados que ofereciam as minas da Ibéria e do Riff, Hitler chamou o general Sanjurjo, de Lisboa onde vivia exilado, a Berlim, em Março de 1936, e foi então que se engendrou o plano da insurreição militar contra a República, com o auxílio do Führer e de Mussolini. (...)
Em Dezembro de 1936 a Alemanha teve a satisfação de receber os primeiros carregamentos de minério de ferro do Marrocos espanhol, e um ano depois, além de se achar empossada das minas asturianas, mandava Franco, em troca de tanques, de artilharia, de aviões Junker e munições, colocar nos portos alemães um milhão de toneladas de minério: antimónio, estanho, cobre e lignite, até ao fim de 1939. (...)

[O resto foram os interesses das elites dirigentes inglesa e francesa que o fizeram. Foram os povos europeus que o sofreram e pagaram. E foi a América que mais lucrou com ele]

Mais vale tarde... 12 - Las Hurdes

(...)
O que a República recebeu de Afonso XIII foi um país ocupado por centenas de milhares de monges, mosteiros e igrejas repletos de tesouros, distritos inteiros povoados por idiotas e prisões superlotadas - um país cheio de tifo e malária. O povo que escrevera brilhantes páginas da História tinha baixado à condição de um país balcânico retrógrado.

Em 1934, a conselho de Don Miguel de Unamuno que encontrara em Salamanca, onde a República o nomeara Rector Magnificus da Universidade, visitei o distrito de Las Hordas, na província da Estremadura, a leste de Toledo.
Ali, a uma pedrada, por assim dizer, da mais aristocrática capital da Europa, deparou-se-me uma população camponesa que não atingira o nível social e cultural dos fellahs árabes da Transjordânia. Todas as pessoas que encontrava na estrada andavam descalças. Homens e mulheres vestiam andrajos. As crianças sofriam de pelagra e raquitismo. O pão era um luxo desconhecido naquela região da Espanha. (...)

Dormia-se em montes de palha, sem cobertas, e isso não era numa ou noutra choça, mas em todas aquelas casas de chão batido, destituídas das mais elementares comodidades, e até de móveis.
Em redor, contudo, existiam florestas de carvalho e faia, e vastas árvores no solo ubérrimo. Não se permitia aos camponeses pousar pé nessas propriedades ricas. Postavam-se guardas armados ao longo das estradas e nos bosques, prontos para entrar em acção se as massas famintas e indigentes fizessem uma tentativa para ocupar as granjas senhoriais. Até juntar castanhas e bolotas nas terras dos nobres e dos abades era proibido desde tempos imemoriais. Surpreendidos em flagrante de armar laço a um coelho, um esquilo, ou depenar uma gralha, os "furtivos" eram abatidos sem piedade.
Esta fora, durante séculos, a lei do país. A República não podia mudá-la da noite para o dia, pois os fidalgos ainda contavam demasiados amigos nas Cortes de 1934, dominadas elas como foram por Lerroux e Gil Robles. (...)

Até as grandes partidas de caça, em que os camponeses eram empregados como batedores, tinham sido suspensas em 1934. Os senhores estavam em Paris, em Fontainebleau, onde Vitoria Ena tinha estabelecido a sua corte, ou em Biarritz e Deauville, fazendo companhia a Afonso XIII em todos os bares de cocktail.

Não se proporcionou trabalho de especie alguma enquanto o governo "vermelho" (o governo fascista de Gil Robles) permaneceu no poder em Madrid. Os camponeses tinham mandado delegações à capital, delegações de homens descalços, que fizeram todo o caminho a pé, porque todos os aldeãos juntos não possuíam dinheiro suficiente para dar aos seus representantes uma condução mais rápida. (...)

- Vão pedir trabalho a esses seus belos amigos socialistas, que vocês puseram no poder! - respondiam-lhes os mordomos.
(...)

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Mais vale tarde... 11 - Cá e lá

(...)
Não era a primeira vez que eu ia à Península Ibérica. Estivera em Madrid, ao serviço da North American Newspaper Alliance em 1931, pouco depois da proclamação da República, para entrevistar o sr. Manuel Azaña, chefe dos liberais da ala esquerda. Mais uma vez, por ocasião da cruel repressão da revolta dos mineiros asturianos pelo governo reaccionário de Alejandro Leroux, errara por aquele país esbraseado de sol, onde poucos passos além da capital, na direcção de Toledo, tinha a impressão de haver voltado ao deserto africano. (...)

Ao atravessar aquele país de automóvel, ou mais frequentemente num vagão de terceira classe, de madeira, vagaroso, quente como uma incubadora, (...) não tinha fim o meu espanto de que esse fosse o país que em seu tempo formava o coração e o centro nervoso de um dos impérios mais poderosos que a humanidade tem conhecido. Que desgraça atingira o povo espanhol para fazer-lhe perder o senhorio do universo? O sol não se punha, nos domínios de Cralos V. Os meus antepassados da Holanda e da Flandres tinham sido vassalos dos fidalgos espanhóis. Por que foram Alba e Sidónia, Cortés e D. Juan alijados da história por uma república adventícia do escuro setentrião, um punhado de burgueses calvinistas, por que fora a Espanha expelida dos mercados mundiais, um após outro, até que, despojada das suas colónias, descambara para a condição de uma potência de terceira ordem na Europa?

Seriam aqueles lavradores andrajosos do planalto castelhano, de expressão sombria e corpo ossudo, o mesmo povo que enviara conquistadores e armadas para empolgar o fabuloso mercado da América, as especiarias, as gemas e as madeiras preciosas da Índia e de Catai? A Espanha tinha amontoado tesouros, circum-navegara o globo, hasteara a bandeira de Jesus e Maria nos mais afastados recantos da terra; espanhóis haviam desvirginizado as pampas da Argentina, as florestas do Peru, trazido para a sua pátria o ouro de aztecas e toltecas, até que a península ficara a estourar de riquezas e esplendores. (...) Onde se escondera a glória? Onde o império?

A Espanha que eu via agora, a antiga senhora dos sete mares, era um país de campónios miseráveis, analfabetos, dominados pelos padres, esfarrapados, simples peões explorados até aos ossos. Ao pé de catedrais e palácios de beleza perfeita e maravilhosa opulência, em Sevilha, Múrcia, Granada e Valência, (...) fiquei atónito por encontrar sujidade, fome e vício em cortiços onde fervilhavam miríades de crianças semi-nuas.
Quem possuía aquelas terras ricas, nas redondezas de esplêndidas cidades, que poderiam ter saciado a fome e proporcionado o bem-estar, se não a abastança, aos inumeráveis famintos que erravam pelas ruas? Reduzido número de proprietários ausentes, os grandes de Espanha, os señores, que passavam o inverno em Biarritz ou em Paris.
Quem explorava essas vastas propriedades, as florestas e as granjas? Era a Igreja, que dirigia virtualmente a cultura de frutos cítricos na Andaluzia, desde a plantação até à exportação, desde os bancos até aos caminhos de ferro e as linhas de navegação.

Eu tinha visto procissões religiosas em 1931, uma em Sevilha, outra em Saragoça, e outra ainda em Cáceres, cidadezinha que contava trinta e oito mosteiros, porta com porta (...). Nessas procissões carregava-se uma estátua da Virgem com diadema de ouro, literalmente coberta de jóias, diamantes, rubis, esmeraldas e outras pedras preciosas, inclusive condecorações e estrelas iguais àquelas que os generais vitoriosos e os diplomatas trazem pregadas aos uniformes de gala. Padres de paramentos dourados caminhavam sob baldaquinos de púrpura e damasco, balanceando turíbulos de prata e filigrana, precedidos de bandeiras de seda e báculos cravejados de pedras preciosas, cercados de acólitos cobertos de rendas, caudatários e meninos de batina roxa que carregavam relicários magníficos, seguidos dum cibório do valor de três milhões de pesetas, que feria a vista como se fora um cacho de diamantes. (...)

domingo, 3 de abril de 2011

Mais vale tarde... 10 - O alcazar de Toledo

(...)
A última acção militar que presenciei foi o cerco do forte de Alcácer, em Toledo. Em confronto com os acontecimentos ulteriores - o horror de centenas de cidades e aldeias destruídas pela "acção civilizadora" dos aviões de bombardeamento italianos e alemães, as incríveis matanças na estrada de Almeria, a bacanal sádica das Vascongadas e das Astúrias, Guernica, Durango, os bombardeamentos aéreos de Barcelona e Valência - pode-se considerar Toledo, talvez, uma bricadeira de crianças. Houve, entretanto, algo de tão desprezível no assédio daquele grupo fortificado de construcções medievais, que a minha memória assinala Toledo como o lugar onde vi a ignomínia fascista descer ao seu nível mais baixo.
A maior parte dos defensores legalistas da cidade retiraram-se em ordem na direcção de Madrid quando entraram as tropas de Franco. Somente os prisioneiros e os doentes foram mortos pelos cinco batalhões de mouros que marchavam na vanguarda do exército "cristão". Ocorreu esta sanguinolenta façanha enquanto Franco e os seus auxiliares se dirigiam à catedral para assistir à missa solene de acção de graças pela captura da cidade, que é a sede do Primaz de Espanha. Enquanto o generalíssimo estava de joelhos, os batalhões do Riff invadiam o hospital municipal e trespassavm com as suas baionetas todos os doentes.
Ao mesmo tempo o mundo entoava hinos aos defensores fascistas do Alcácer, que tinham resistido durante meses nas adegas e câmaras subterrâneas do forte, e que acabaram por ser libertados. O cerco do Alcácer tornou-se um símbolo universal da coragem e resistência fascista. (...) Encerrar-se naquele forte com suas mulheres e filhos e resistir durante meses às investidas diárias da "canalha vermelha" foi decantado como um feito de heroísmo insuperável. Era uma epopeia que atravessaria os séculos, quando todos os demais episódios da guerra civil estivessem esquecidos.
Ela poderá, na verdade, atravessar os séculos, porém não como uma epopeia heróica, mas como uma das mais repugnantes exibições de cobardia e crueldade, pois nessa história de valor fascista há um pequeno equívoco: as mulheres e crianças encerradas com os defensores do forte não eram seus familiares, eram as esposas e filhos dos sitiantes!
A guarnição do Alcácer era composta de cadetes e dos seus instrutores. Por via de regra, os cadetes que cursam uma academia militar não têm idade para estar casados. Assim acontecia no Alcácer. Naturalmente, os rapazes e seus oficiais, na maioria rebentos de famílias nobres, entraram na conspiração geral contra a República.
A 20 de Julho, quando todos os olhos estavam fitos em Marrocos e em Barcelona, os cadetes do Alcácer saíram do forte, e começaram a arrebanhar o maior número de mulheres e crianças que podiam. Isto não foi muito difícil, pois o Alcácer fica nas vizinhanças do bairro mais populoso da cidade. (...)
Os homens tinham saído para o trabalho. Em menos duma hora os nobres fascistas arrastaram algumas centenas de mulheres e crianças e encerraram-nas nas adegas do castelo.(...)
Quando se espalhou a notícia pela cidade e os trabalhadores começaram a voltar, foram recebidos com rajadas de metralhadora ao aventurarem-se nos espaços abertos vizinhos do castelo.(...)
- Se eles nos devolverem as crianças, não lhes tocaremos num só cabelo! - diziam os milicianos ao padre, quando este se encaminhou para o Alcácer, acompanhado de um homem que empunhava uma bandeira branca. - Mas diga-lhes também que se não se renderem faremos saltar o forte inteiro.
O padre voltou meia hora depois e abanou a cabeça.
- Não adianta falar. As mulheres e as crianças estão amontoadas nos túneis. Serão as primeiras a morrer se vocês empregarem a dinamite. (...) Estão em condições lamentáveis. Eu vi-os... foram avisados que morrerão, se vocês atacarem. Diversas mulheres enlouqueceram, três crianças nasceram lá nas caves. Não há alimento, não há leite. Receio que nunca mais vejais os vossos entes queridos.
O vaticínio do padre realizou-se, pois quando Franco entrou em Toledo as mulheres e as crianças sobreviventes foram tiradas do Alcácer e entregues ao capricho dos rifenhos. Os espanhóis costumam dizer que quando os rifenhos se cansam duma mulher, matam-na. (...)

Porque silenciam a Islândia?

[Aqui se transcreve, porque ajuda a pensar, um texto do eng. Francisco Gouveia, publicado no Jornal Notícias do Douro de 24 de Março]
Não é impunemente que não se fala da Islândia (o primeiro país a ir à bancarrota com a crise financeira) e na forma como este pequeno país perdido no meio do mar, deu a volta à crise. Ao poder económico mundial, e especialmente o Europeu, tão proteccionista do sector bancário, não interessa dar notícias de quem lhes bateu o pé e não alinhou nas imposições usurárias que o FMI lhe impôs para a ajudar.
Em 2007 a Islândia entrou na bancarrota por causa do seu endividamento excessivo e pela falência do seu maior Banco que, como todos os outros, se afogou num oceano de crédito mal parado. Exactamente os mesmo motivos que tombaram a Grécia, a Irlanda e Portugal.
A Islândia é uma ilha isolada com cerca de 320 mil habitantes, e que durante muitos anos viveu acima das suas possibilidades graças a estas "macaquices" bancárias, e que a guindaram falaciosamente ao 13º lugar no ranking dos países com melhor nível de vida (numa altura em que Portugal detinha o 40º lugar). País novo, ainda não integrado na UE, independente desde 1944, foi desde então governado pelo Partido Progressista (PP), que se perpetuou no Poder até levar o país à miséria. Aflito pelas consequências da corrupção com que durante muitos anos conviveu, o PP tratou de correr ao FMI em busca de ajuda.
Claro que a usura deste organismo não teve comiseração, e a tal "ajuda" ir-se-ia traduzir em empréstimos a juros elevadíssimos (começariam nos 5,5% e daí para cima), que, feitas as contas por alto, se traduziam num empenhamento das famílias islandesas por 30 anos, durante os quais teriam de pagar uma média de 350 Euros / mês ao FMI. Parte desta ajuda seria para "tapar" o buraco do principal Banco islandês.
Perante tal situação, o país mexeu-se, apareceram movimentos cívicos despojados dos velhos políticos corruptos, com uma ideia base muito simples: os custos das falências bancárias não poderiam ser pagos pelos cidadãos, mas sim pelos accionistas dos Bancos e seus credores. E todos aqueles que assumiram investimentos financeiros de risco, deviam agora aguentar com os seus próprios prejuízos.
O descontentamento foi tal que o Governo foi obrigado a efectuar um referendo, tendo os islandeses, com uma maioria de 93%, recusado a assumir os custos da má gestão bancária e a pactuar com as imposições avaras do FMI. Num instante, os movimentos cívicos forçaram a queda do Governo e a realização de novas eleições.
Foi assim que em 25 de Abril (esta data tem mística) de 2009, a Islândia foi a eleições e recusou votar em partidos que albergassem a velha, caduca e corrupta classe política que os tinha levado àquele estado de penúria. Um partido renovado (Aliança Social Democrata) ganhou as eleições, e conjuntamente com o Movimento Verde de Esquerda, formaram uma coligação que lhes garantiu 34 dos 63 deputados da Assembleia).
O partido do poder (PP) perdeu em toda a linha. Daqui saiu um Governo totalmente renovado, com um programa muito objectivo: aprovar uma nova Constituição, acabar com a economia especulativa em favor de outra produtiva e exportadora, e tratar de ingressar na UE e no Euro logo que o país estivesse em condições de o fazer, pois numa fase daquelas, ter moeda própria (coroa finlandesa) e ter o poder de a desvalorizar para implementar as exportações, era fundamental.
Foi assim que se iniciaram as reformas de fundo no país, com o inevitável aumento de impostos, amparado por uma reforma fiscal severa. Os cortes na despesa foram inevitáveis, mas houve o cuidado de não "estragar" os serviços públicos tendo-se o cuidado de separar o que o era de facto, de outro tipo de serviços que haviam sido criados ao longo dos anos apenas para serem amamentados pelo Estado.
As negociações com o FMI foram duras, mas os islandeses não cederam, e conseguiram os tais empréstimos que necessitavam a um juro máximo de 3,3% a pagar nos tais 30 anos. O FMI não tugiu nem mugiu. Sabia que teria de ser assim, ou então a Islândia seguiria sozinha e, atendendo às suas características, poderia transformar-se num exemplo mundial de como sair da crise sem estender a mão à Banca internacional. Um exemplo perigoso demais.
Graças a esta política de não pactuar com os interesses descabidos do neo-liberalismo instalado na Banca, e de não pactuar com o formato do actual capitalismo (estado de selvajaria pura) a Islândia conseguiu, aliada a uma política interna onde os islandeses faziam sacrifícios, mas sabiam porque os faziam e onde ia parar o dinheiro dos seus sacrifícios, sair da recessão já no 3º Trimestre de 2010.
O Governo islandês (comandado por uma senhora de 66 anos) prossegue a sua caminhada, tendo conseguido sair da bancarrota e preparando-se para dias melhores. Os cidadãos estão com o Governo porque este não lhes mentiu, cumpriu com o que o referendo dos 93% lhe tinha ordenado, e os islandeses hoje sabem que não estão a sustentar os corruptos banqueiros do seu país nem a cobrir as fraudes com que durante anos acumularam fortunas monstruosas. Sabem também que deram uma lição à máfia bancária europeia e mundial, pagando-lhes o juro justo pelo que pediram, e não alinhando em especulações. Sabem ainda que o Governo está a trabalhar para eles, cidadãos, e aquilo que é sector público necessário à manutenção de uma assistência e segurança social básica, não foi tocado. Os islandeses sabem para onde vai cada cêntimo dos seus impostos.
Não tardarão meia dúzia de anos, que a Islândia retome o seu lugar nos países mais desenvolvidos do mundo. O actual Governo Islandês, não faz jogadas nas costas dos seus cidadãos. Está a cumprir, de A a Z, com as promessas que fez.
Se isto servir para esclarecer uma única pessoa que seja deste pobre país aqui plantado no fundo da Europa, que por cá anda sem eira nem beira ao sabor dos acordos milionários que os seus governantes acertam com o capital internacional, e onde os seus cidadãos passam fome para que as contas dos corruptos se encham até abarrotar, já posso dar por bem empregue o tempo que levei a escrever este artigo.