quinta-feira, 30 de junho de 2016

Vulcão

Al Pacino interpreta no filme a personagem do cego coronel Slade. Ver o filme é chegar à beira dum vulcão. E mergulhar no mundo e no espírito da figura é correr o risco de cair no vórtice dum caldeirão contraditório, humano, afectivo, moral, ético, deontológico e fascinante. Fugir dele é indispensável.
É o que eu faço. Para a leitura de Mataram a Cotovia, o único romance que Harper Lee deixou publicado em 1960. Também chegou da América e resgata-me, porque também ele é excelente.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Incendiários

Ler a nossa imprensa miserável, feita pelo jornalismo que temos, é correr riscos sérios de intoxicação.

O desplante, a ousadia e a arrogância deste nazi são inacreditáveis!

Fazem lembrar os nazis de má memória!

Adenda auto-crítica: Este post enganador e calunioso é fruto impulsivo da ingenuidade do autor. Que ainda não criara real consciência do estado lastimoso a que chegou a imprensa portuguesa. Um território a arder, literalmente!
Não sei bem a quem, mas apresento desculpas!

Livros

Se um autor escrever uma novela, e a editar em livro que o leitor leva para casa e lê, seguindo uma diegese em que o próprio livro se tornou protagonista da trama narrativa, o resultado é insólito e só pode ser surpreendente... 
A certa altura diz o protagonista:
« (...) Era natural que nos quisessem dar um nome, chamar-nos qualquer coisa, porque eles [os homens] chegaram primeiro. Mas acha que foi por acidente que escolheram uma palavra que, em muitas das suas línguas, é do género feminino? Um livro é, para um grande número de seres humanos, uma ela. Assim, o nosso lugar no grande esquema das coisas ficou definido desde o início no seu mundo dominado pelos homens. Na sua sociedade, éramos equivalentes às mulheres - uma posição, como é bem sabido, não muito invejável.
O nosso primeiro dever era dar-lhes prazer. (Está certo, iluminar também: mas o iluminismo é apenas uma das formas que o prazer assume, ainda que não particularmente um prazer popular.) Em primeiro lugar, prazer masculino, claro,  já que o vício de ler foi, durante muito tempo, privilégio dos homens. Mais tarde, também algumas mulheres a ele sucumbiram, mas, no fundo, nada mudou, a situação tornou-se apenas mais perversa. Ninguém, claro, nos perguntou alguma vez se queríamos seguir por este caminho, se nos dava prazer. Longe disso! Tínhamos simplesmente de ser atraentes, obsequiosos, e estar disponíveis sempre que algum homem tivesse vontade de se divertir um pouco connosco.
Iniciavam a relação a qualquer momento, em qualquer lado - quanto mais público fosse o espaço melhor, de modo que satisfizessem o seu exibicionismo. (...)»
Muito mais tarde, sobre o nascimento dum livro:
«(...) Com os editores [a mãe] acontece mais ou menos o mesmo. Aqui, o papel do macho insaciável é preenchido pelos autores. Quem mais? E de que serve dizer-lhes que existem já demasiados livros no mundo, que está tudo cheio, as bibliotecas e as livrarias estão a deitar por fora, as prateleiras terrivelmente congestionadas, os armazéns e depósitos arqueados como malas demasiado apinhadas, que está tudo prestes a atingir o ponto de ruptura? O comedimento é desconhecido, há muito que não existe qualquer sentido de proporção natural. São absolutamente surdos à voz da razão. 
É certo que os impulsos instintivos são inatos, é compreensível, mas nos tempos que correm estão disponíveis contraceptivos. Deixai que os leitores escrevam tudo o que querem, se isso os deixa felizes, ninguém lhes leva a mal, mas que usem preservativos; nem toda a escrita tem de conduzir ao nascimento dum livro. Mas não, o mero prazer não é suficiente para estes tipos, não é a realidade. O prazer de nada vale, se o fruto da sua masculinidade não for exibido aos olhos de todos. Tem de ser um livro. Sem um livro, sentem que não alcançaram nada. (...)»
[Dois excertos de O Livro, Zoran Zivkovic, Ed. Cavalo de Ferro, Maio 2016, Lx]
O autor tem uma grande imaginação, muita criatividade, às vezes fantasia. Tem um discurso narrativo poderoso e substantivo, dispõe de recursos invejáveis para o ofício. 
Só que... a novela que prometeu ao leitor não está neste livrinho; o que lá está são conceitos, são ironias, são conselhos, ao menos implícitos, sempre pertinentes. 
É por isso que o livrinho é um equívoco. Podia ser um ensaio, surpreendente embora. Mas Literatura, com as malas-artes dela, é que não é.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Exit

Opus 61.
É certo que lhes não tenho dado grandes atenções. A vida corre, o Verão é curto, escasso o tempo para tudo. 
Mal saí hoje, ouvi um galrejar ao canto, e a cabecita dele a espreitar da janela. Pus-lhe finalmente a vista em cima. Ao largo os pais, inquietos como sempre.
Partirão quando lhes chegar a hora. No alpendre não há troikas insolentes, nem bestas a formatar-nos a vida. Aqui Bruxelas não manda, nem comissões, nem conselhos, nem a tropa calvinista aos empurrões. Vão partir no seu momento, estes bretões. 

Arte urbana

 Lisboa é actualmente uma das cidades com a melhor arte de rua do mundo.
[sardinha assada no pão]

Ó Costa!

Falar é isso mesmo, porra! O resto é putedo e gelatina!

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Súmula

1 - O PPD, versão primeira e original do genérico PSD, só ofereceu aos portugueses uma criação própria: deu-lhes um Dom Sebastião novo, o tal que há séculos faz as delícias deles. O Sá Carneiro foi um político que deixou rasto, não por aquilo que fez, mas por aquilo que havia de fazer, se não tivesse morrido antes do tempo. Pobre dele e mais de nós!
Fora disso, o PPD foi um cóio onde encontraram sossego os refugiados da ala liberal do caetanismo. Que ainda hoje dormiriam sossegados no regaço cómodo do mestre de Santa Comba, pai de todos.
Tem-se adaptado aos tempos, no seu papel de cavalgar o povo. A versão última foi essa catástrofe do governo de sipaios que aí houve, chegados do sertão para se vingarem da história.
2 - O PCP é uma seita de fiéis, que ainda vai a despacho com o fantasma do Stalin, para orientar a agenda.
3 - O BE é um cozinhado, onde se misturam trotskistas, maoístas e stalinistas trânsfugas, cuja convivência pacífica é um mistério. Cabe à Catarina reger este conjunto, pela retórica fluente e aggiornata, pelas hormonas juvenis a saltitar, pelas circunstâncias da conjuntura. Mas a sua estratégia explícita é o poder. E a táctica implícita é varrer o PCP, mas sobretudo corroer o PS. 
4 - Só há um partido social e democrático, portador da bandeira da liberdade e da democracia. É o PS (do Costa). E o governo dele é a única resposta que Portugal pode dar às elites burocratas e arrogantes de Bruxelas, que se alimentam do cadáver dos mais frágeis. Trituram povos ao serviço da finança mais negra, em troca dumas migalhas. E são pagas do bolso dos europeus.
Logo veremos como é que o governo do Costa se aguenta no turbilhão, com os dois apoios que tem. Porque se o não conseguir, só resta aos portugueses regressar à casa da partida, e asilar outra vez no PPD.
5 - Ao exemplo do brexit inglês, acaba de responder a Catarina, numa voz que passa por viril: se essas bestas de Bruxelas insistirem nas sanções a Portugal, a pretexto do défice de 2015 de que elas foram responsáveis e mandantes, fica-nos o referendo para salvar a dignidade, de que não podemos abdicar. E assim parece.
Uma tal perspectiva é tentadora, como cantiga que fica no ouvido. Mas não deixa de ser enganadora. Mesmo sabendo que a maioria dos eleitores indígenas acabaria a preferir permanecer nesta Europa de chacais. 
Um povo assoberbado com a precariedade e a sobrevivência, não pensa em coisas maiores. O Sócrates que o diga!

Banksy

Mais um brexit arrependido?                       {clicar]

domingo, 26 de junho de 2016

Verão

Esqueci-me das palavras. Fui à horta levar água às plantinhas. Arranquei os alhos a mando do Seringador. Violei as leis canónicas do dia do Senhor. De enxada na mão, escandalizei vizinhos politicamente correctos. E agora vou almoçar à beira do rio, porque a selecção ganhou e eu guardo uma costela patriótica. 
O meu brexit foi um sucesso (porque não há nele, evidentemente, infiltrações parasitas de nazis racistas). E o défice, a dívida e os "nossos credores" do Norte, esses, que se vão foder! Que o Verão é curto.

sábado, 25 de junho de 2016

Blogues

Há aí meia dúzia de lugares que tenho por visita diária obrigatória.
Este (onde nem todos os dias encontro acesa a candeia), é a minha romaria predilecta.
Não sei hoje, nem sabia nessa altura, donde é que vinha este lume.

Duas da manhã

O estardalhaço do inesperado e saudável Brexit foi tal, que nem o rouxinol se ouve. Esta noite arrisco-me a sonhar inglês.

Amarcord

Numa aldeia italiana de há um século, festeja-se a chegada da Primavera com uma fogueira ritual, onde se queima a bruxa "Juízo". E é num registo irónico, mordaz, se não sarcástico, que se desenrola uma sucessão de episódios divertidíssimos, com tipos que só saem da cabeça de Fellini:
- Gradisca, a cocotte burguesa e sonhadora, que agita as águas mais fundas e mais secretas;
- O advogado erudito, que explica a história que ninguém quer ouvir;
- A escola, onde mestres e alunos são um inesgotável manancial de humor e irreverência;
- Volpina, a libertina pobre;
- O poeta, operário da construção: O meu avô assentava tijolos / O meu pai assentou tijolos / Eu ainda assento tijolos / E a minha casa onde está?
- O crescimento do fascio e o endeusamento do Duce;
- O gramofone no campanário a difundir de noite a Internacional, com toda a tropa fascista a disparar para o sino, até que o gramofone desaba na rua e se cala;
- O construtor civil e a sua agitada vida familiar;
- A visita ao seu irmão Teo, um lunático internado que urina sem abrir a braguilha; acaba empoleirado numa árvore a gritar voglio una donna, e recusa-se a descer.
Há história, tradições, atavismos e ironia quanto baste, neste universo felliniano. E o filme acaba no casamento da Gradisca, porque há sempre um momento de acabar.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Bolama

No início de 1931 caíram na Guiné, em Bolama, então capital da colónia, dois hidroaviões da esquadrilha de Italo Balbo (o Gago Coutinho italiano...) que tentava fazer a ponte aérea entre Roma e o Rio de Janeiro.
Desse desastre resta na ilha de Bolama, ainda surpreendentemente intacto, um monumento em pedra com a legenda "Mussolini ai Caduti di Bolama», inaugurado em Dezembro de 1931.
A esquadrilha, com 14 aparelhos, chegou a Bolama no dia de Natal de 1930. Era o último ponto de paragem em África, justamente por ser o mais próximo de Porto Natal, no Brasil. Depois de vários dias em Bolama para reparações e à espera de condições atmosféricas favoráveis, voltaram a levantar voo a 5 de janeiro de 1931. Caíram 2 aparelhos, provocando 5 mortos. Os restantes chegaram ao Rio de Janeiro,  no dia 15.
Dos 14 aviões Savoia-Marchetti S.55, apenas onze concluíram a viagem. Cinco pilotos morreram ao descolar da ilha de Bolama,...
O Governo português autorizara Mussolini a arrancar com o seu ambicionado projecto de construção de uma aeroporto na Ilha do Sal, indispensável para a ligação da Itália com os países da América do Sul onde residiam importantes comunidades italianas... A guerra frustrou os intentos de ambos os Governos.
[Vindo de JJ.]

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Poema a jeito, quer dizer, à pós-moderna!

Viaja-se a Lisboa de comboio, vai-se ao Porto de autocarro.
Lisboa tem avós mouros, no Porto os tios são celtas.
Lisboa teve um dia um terramoto, o Porto ainda sofre de o não ter.
Lisboa tem a luz que ninguém esquece, já o Porto é cinzentão inglês.
O Porto foi ao Brasil, mas os jacarandás floresceram em Lisboa.
Em Lisboa há sotaques tropicais, no Porto é mais vernáculo de caserna.
Por Lisboa anda o calor do Estreito, e no Porto os arrepios da nortada.
No Porto vivem história e tradição, em Lisboa há cosmopolitismo e ecos de epopeias.
Em Lisboa culturas acontecem, no Porto há performances non-stop.
Por Lisboa andam as mamas ao sol, no Porto abrigaram-se da aragem.
No metro de Lisboa há um tocador de concertina com um cão pequeno ao ombro, no do Porto não há tocador nem cão.
Os velhos do Restelo ficaram no Porto, em Lisboa sobrevivem as lendas de aventureiros.
Lisboa teve uma praia das lágrimas, no Porto há os olhos molhados dela.
Lisboa salgou a carne das caravelas, no Porto ficaram as tripas dela.
No Porto há gente que vai a falar sozinha, em Lisboa ninguém ouve os que passam a falar.
Em Lisboa há seis milhões de lampiões, no Porto há dragões a cuspir lume.
O Porto carrega a história, Lisboa mandou escrevê-la.
Nas ruas de Lisboa há muitos BMW's, no Porto é mais Porsches e Ferraris.
No Porto tudo começa, em Lisboa tudo acaba.
No Porto vive o passado, o futuro é em Lisboa.
O presente só na Lapa!

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Mais

Estilhaços gangrenados. Do delinquente Relvas!

Estilhaços

Que infectam e gangrenam. Duns delinquentes que aí andaram à solta.

Perdas e ganhos

Por ter ido à cidade perdi o ritual celta do solstício das Chãs, mas ganhei uma surpresa inesperada. Mão carinhosa descobriu nos cafundós da Wook um exemplar desta edição da Quasi e ofereceu-mo, que eu já não tinha nenhum.
[Toto, 17 de Maio de 1969]
«(...) Vinha Gaspar descendo a avenida João XXI, para o Campo Pequeno, à procura duma pensão, era ainda um menino dentro da sua farda de aviador. Trazia nos olhos aflitos o fascínio das paisagens de Angola, e as saudades dos amigos que tinha visto morrer, e as imagens absurdas que lhe povoavam os pesadelos e o aterravam, depois daquele encontro assim de cara aberta com a morte, num desastre aparatoso. Tinham-no mandado, ainda menino defender a pátria. E ele acreditava que havia pátria, e que esta era uma e a mesma grande mãe de todos, e que devia defender-se, lá onde fosse preciso. E foi, e lá pôs a sua força generosa nas mãos dos que mandavam na pátria, e agora estava ali, regressado à retaguarda para recuperação no hospital, como se retaguarda houvesse, e trazia a alma cheia de rasgões e de medos, a precisar dum bálsamo, a precisar duma atenção da pátria, a precisar dum seu gesto suave no cabelo, como fazem as mães. E ao descer a avenida João XXI, desamparado que nem um cão à chuva, à procura duma pensão, de Gaspar falamos, pois claro, teve a revelação dolorosa da inutilidade de tudo. Poisou no chão o pequeno saco de viagem e encostou-se a uma ombreira alta. A multidão passava, era Setembro, e havia formas bonitas de mulheres expostas nos trajes exíguos, e havia um desdém ocupado nos homens que passavam engravatados, aos pares, com largos gestos de mão, a discutir importantíssimos interesses, e havia indiferença nos olhares que às vezes desciam até ele, sentado assim sem forças no degrau de pedra dum patamar, se dentre eles algum era olhar de poeta chegava-lhe embrulhado num cetim de fastio, ou numa grande tristeza, como se fosse um lamento, e havia um desprezo altivo nos lábios vermelhos das matronas que lá iam, agitando braceletes douradas. Havia olhos tristes e risadas escancaradas, a vida passava ao seu lado, como um rio, indiferente ao seu naufrágio interior, cega e surda à hecatombe da juventude que apodrecia lentamente nos planaltos africanos, que endoidecia lentamente nos planaltos africanos, afinal é mentira tudo quanto diz a propaganda oficial. e eu prefiro rosas, meu amor, à Pátria, afinal esta pátria é uma madrasta galdéria que tem vergonha do abcesso africano, que prefere desconhecer o abcesso africano, que esquece, para não sentir, a dor que todos os abcessos provocam. 
Gaspar confundiu aqui os alhos com os bugalhos, o seu desespero interior não lhe deixou ver mais um cão à chuva em cada transeunte, quando é disso que em verdade se trata, perdoemos-lhe nós a metonímia aflita, estamos apesar de tudo mais folgados, nós fazemos pela vidinha em cada dia, ele não pode. Talvez Gaspar sinta apenas inveja de não poder, isso não é muito claro, mas a verdade é que meteu dó a si próprio, tinham-no atraído assim com falas patrióticas para o violarem atrás do capim, atrás de todas as roças de café que existiam no planalto, atrás de todas as cantinas do mato que trocavam milho e feijão por reles chitas coloridas, atrás das mesas de todos os bares nocturnos da ilha de Luanda, onde inglesas de Moscavide cavalgavam um estropiado can-can, antes de se meterem às estradas de Malange e Salvador do Congo, tinham-no atraído para o violarem atrás da pesporrência vil de todos os colonos que cheiravam a suor e pediam armas, que desprezavam a tropa e exigiam armas para massacrar os pretos todos e resolver a guerra num ai, tinham-no violado atrás do palanque azul do 10 de Junho, à beira do Tejo que marulhava indiferente a tudo, à beira de viúvas também elas violadas pela cicatriz gelada das cruzes de guerra póstumas ao peito.
O exército é o espelho da nação, e isto  era o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótrica, o exército português é tão bom como os melhores. Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, pois convém a César dar o que de César é, e para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem , entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra. Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver. E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um  par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida custa a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores.
Dizia isto a pátria, enquanto empilhava nos anexos do hospital militar os destroços dos mutilados, Gaspar tinha-os visto passar de relance em cadeiras de rodas, amamentados por enfermeiros discretos, o olhar vazio confinado a corredores sombrios que apenas pesadelos habitavam, dizia isto a pátria ao mesmo tempo que escondia atrás de muros altos, para que ninguém os visse, os restos da guerra que o furor de marés longínquas vinha arrojar ali, como troféus perversos. Nessa tarde, ao descer a avenida João XXI a caminho do Campo Pequeno, Gaspar ouviu claramente o que a pátria dizia, olhou para si próprio e sentiu-se um cordeiro imolado.
Mais tarde voltou à África, ao aroma azedo dos bairros negros e aos lamaçais do Corubal, às evacuações de soldados estropiados das pistas de terra do mato, leve-me depressa, meu alferes, não me deixe morrer, meu alferes, ambulância à chegada com médico e sangue, médico e sangue, médico e sangue, voltou aos alertas dia e noite com aviões de museu, despejavam-se bombas em catadupa sobre as bolanhas silenciosas, sobre a paisagem de rios indiferentes, sobre a África inteira, e do chão subiam cogumelos de fumo espesso que eram a raiva das acácias violentadas, que eram a fúria dos embondeiros a desmoronar-se, e ondas de choque faziam ranger as velhas carcaças dos aviões que se retiravam à pressa. Voltou aos alertas dia e noite, para aliviar os quartéis flagelados a toda a hora pela artilharia do inimigo, pelos morteiros do inimigo, pelos foguetões do inimigo, abria-se um buraco na barriga dos velhos dakotas e semeavam-se bombas à mão pela noite africana, lá em baixo acendiam-se fiadas de pequenos fogachos brilhantes, fogos-fátuos de fim do mundo, espécie de rosários sacrílegos, berravam os capitães da tropa ao rádio o seu desespero indefeso, enquanto desencravavam a espingarda automática em subterrâneos lúgubres, cobertos de sacos de areia e troncos de palmeira apodrecidos.
Um dia voltou a Lisboa, já a revolução tinha tomado o freio nos dentes. Percorria a cidade uma euforia que só acontece uma vez na vida, porque não há energia que a viva duas vezes, e inundava praças e avenidas uma grande catarse colectiva... (...)»
[As Aves Levantam Contra o Vento, Jorge Carvalheira, Ed. Quasi, Famalicão 2007]
[Flor à beira dum pântano, no sertão]

terça-feira, 21 de junho de 2016

Referendo

Passei tempos a elaborar sobre a questão, andava a escrever um post onde dava conta de conclusões muito parecidas.
Porém para quê, se tudo está contido aqui, sintetizado e claro!

Comboio e Sócrates

Regresso da cidade num comboio ronceiro. Depois da Pampilhosa é lastimoso, a partir de Santa Comba Dão é deprimente. Bom para ir buscar a morte! Pior do que o ligeirinho que trouxe de Salamanca o Jacinto para Tormes, há cento e tal anos.
Conduzidos ou manipulados ou iludidos por pseudo-elites, por corporações de falsários, e por esquerdistas estrábicos, os portugueses correram com um Sócrates que aí houve. Meteram-no na prisão e condenaram-no na praça pública, à falta de melhor.
E pagarão a factura, que remédio! Dentro de cinquenta anos, ainda andarão a chorar baba e ranho por um comboio decente que os leve à Europa!

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Solstício

Tarde de peregrinação a Riba-Côa. À entrada do Juízo, um pastor já trôpego vem atrás do seu rebanho. E elas, que são todas mochas, fazem o que têm a fazer. Tresmalham-se pela estrada e eu paro a vê-las passar.
Lá para trás vem a pastora, a acompanhar duas cabras e uma ovelhita mais coxa. Saúdo-as e vou à vida.
À saída da Barreira, chega no rádio o timbre de veludo dum contra-tenor: - Agnus Dei qui tolis pecata mundi... 
E já num cruzamento trotam no asfalto quatro perdizitas. Eu paro a vê-las trotar. Pararam todas e ficam a olhar para mim, ali ao lado, vê-se mesmo que a escutar os veludos do cantor, a inundar-se em harmonias. - Miserere nobis... miserere nobis...
Arranco e deixo-as para trás. Não quero centopeias lá em casa, nem eflúvios emocionais de crepúsculo.

domingo, 19 de junho de 2016

Há luar

Nesta noite que chegou, antiquíssima e idêntica. Cães que ladram e umas rãs a coaxar.

Lua Cheia (ou quase)

Gasto a manhã toda na horta, em tarefas que a estação tornou urgentes. Fiz metade de quanto tinha a fazer. E a horta sabe já que perdeu a guerra do meu tempo, mas aproveita o sol e barafusta.
E mais aproveito eu, uma das poucas vantagens destas tecnologias. De auriculares nos ouvidos, meto o telefone no bolso e oiço rádio. Poupo tempo (que é dinheiro ou outra coisa parecida) e jogo uma simultânea em tabuleiros vários. Bingo, pois!
Foi assim que dei comigo a ouvir, na antena 2, uma conversa entre o radialista animador e uma académica de voz ainda juvenil.
Não duvido, por um segundo, de que há por aí historiadores ilustres, mesmo os novos, conhecedores, de alforges cheios de invejável e profícuo saber. Mal feito fora! Só não entendo por que terá o radialista escolhido para a conversa de hoje  uma académica assim. Só pode ser porque ele a equivale em atributos. Bem parece!
Anda aí a paisagem cheia disto. De doutorados juvenis, que aprenderam uns papagueios no anfiteatro duma faculdade de Letras, e não sabem, que não podem, fazer mais que repeti-los. Escrevem um livrinho sobre uma rainha, arriscam às vezes um romance histórico. Acabam a dar lições e a difundir exponencialmente a ignorância de que sofrem.
A conversa de hoje ocupa-se da ínclita geração, essa esquina culminante, a das opções decisivas. Ir ao mar tenebroso ou deixar de ir, ir a Marrocos pela fé, à Mina pela escravaria, à Índia pela canela e a pimenta. 
O infante Navegador, dono da ordem de Cristo e dos tesouros templários, manobrava para ir ao mar.
O infante dom Pedro, duque de Coimbra e regente do reino na menoridade do rei Afonso V, recalcitrava, a hesitar... 
Depois veio o desastre de Tânger, e um infante que chamaram Santo, para lhe limparem as lágrimas de cativo sacrificado, e um rei Duarte melancólico, pusilânime e enfermiço, e a intriga de Alfarrobeira, e dom Pedro atraído à ratoeira e enterrado na campa rasa de Alverca, antes de lhe darem mausoléu mais ajustado, um rei Afonso juvenil, nas mãos da fidalguia e dos Braganças...
A académica de voz ainda juvenil vai explicando aquilo tudo como pode e como sabe. Não conhece o pensamento dialéctico, muito antigo; não raciocina sobre as contradições e os jogos de poder, tudo acontece na vida e nas sociedades por acção dum deus-ex-maquina. Ao resto chamará anacronismos errados, que um historiador não comete. 
Nem usa no seu discurso essa figura do príncipe das sete partidas, o infante que fez o seu grand-tour e correu meia Europa. Que encontrou e aprendeu ideias novas, nas cortes, nas políticas, no pensamento, na religiosidade. Que saiu de cá na treva medieval e voltou no amanhecer do Renascimento, senda aberta ao que era novo e havia de ser futuro.
A ínclita geração acabou dizimada pelo Navegador do chapeirão, o único a lucrar naquilo tudo. Cinco séculos depois, pagámos nós a factura, vinda num correio histórico, muito antigo. Quem assistiu à chegada do carteiro foi o Alfredo Cunha, que o fotografou a la minuta.
[Adenda: À tarde vou à cidade e passo na livraria.
1 - O Livro, de Zoran Zivkovic estava lá na Bertrand. É uma novela em que o livro é protagonista. Começa assim: 
" Não é fácil ser um livro. (...) Ninguém com um mínimo de inteligência pode negar que, além da humanidade, nós, os livros, somos os únicos seres inteligentes à face da Terra. (...) E poderiam eles (os humanos) passar sem nós? Deus nos livre! Sem livros, qual seria a condição da raça humana? Continuariam a arrastar-se no mesmo estado, primitivo e miserável, em que os encontrámos quando aparecemos, há cinco mil anos: uma espécie conhecida pela sua capacidade de esquecer mais rapidamente as coisas do que as memorizar. Não estivéssemos nós à mão para oferecer a nossa abnegada ajuda na tarefa da memorização, não tivéssemos nós memorizado em seu nome, esses pobres seres não teriam qualquer história. Teriam esquecido praticamente tudo. E como poderia alguém apresentar-se como um indivíduo inteligente, se não recordasse o seu próprio passado, incluindo o passado recente? (...) ".  Meto O Livro no bornal e pronto! De passagem regozijo-me por ver no escaparate o Haja Luz!, do prof. Jorge Calado, em 3ª edição. Custa quase 50€, mas vale bem mais do que isso, e do que umas férias nas Caraíbas!
2 - No parque de estacionamento encontro à frente do panzer o focinho imponente, descomunal e assustador dum BMW multipurpose. Assusto-me e aterro-me e pergunto-me: - Será que os portugueses já compravam coisas destas, antes de os levarem ao cheiro das canelas, há quinhentos anos?
3 - Telefono a um amigo que vive longe, a perguntar se posso almoçar com ele na 2ª feira. Diz-me que não, nesse dia tem almoço previsto com a vaca sagrada. É o prof. Eduardo Lourenço, de São Pedro do Rio Seco, sobretudo agora que o levaram para o conselho de estado.
Sempre a ironia nos foi um salvamento, sempre certeira e mordaz, sempre fatal.]

sábado, 18 de junho de 2016

Sertões

Naquele tempo havia no planalto uma base aérea que apoiava um continente. E a base tinha uma messe com um firmamento no tecto. Era azul e nele havia tudo quanto se esperava, as constelações do hemisfério-sul em relevos de barro. 
Não é que houvesse ali lugar para metafísicas, o fito era a ilustração mundana dos aviadores. Não estando qualificados para voo nocturno, também não tinham dispensa de o fazer. Que isso do voo nocturno era assunto contingente. Dependia só do circunstancialismo! 
Havia em frente do bar um sistema inglês de estereofonia, com colunas de som que eram costas de sofás, e variados discos de vinil. Estendidos na carpete, nós ouvíamos às noites o Jacques Loussier que dava lições de Bach, enquanto o barista renovava nos copos o malte e as pedras de gelo. 
Até que um dia... O melhor é ver aqui. E ali também.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Um pouco mais de sol... Um pouco mais de azul...

Há um Portugal novo aí, a despontar. Trabalho ainda de Sócrates, de Mariano Gago, de Maria de Lurdes Rodrigues, e das mudanças na Educação, mormente a musical.
Trata-se aqui de Joana Bagulho, cravista. O Seixas, a Cremilde R. Fernandes e outros poucos deixaram de andar sozinhos a atravessar o deserto. 

Pol Pot

Recentemente editou a Guerra e Paz uma trilogia (edição de luxo) sobre o séc. XX: o Manifesto Comunista (Marx/Engels), o Mein Kampf (Hitler) e o Pequeno Livro Vermelho (Mao Tsé-Tung). Deste último consta sobretudo um longo estudo introdutório, em que Manuel S. Fonseca se pronuncia sobre a China de Mao e o pensamento do líder. 
A mim ajudou-me a entender melhor o belíssimo filme A Imagem Que Falta, sobre o horror absurdo do Camboja de Pol Pot. O que por lá se passou, durante cinco anos, teve origem directa na China maoísta. Só agora compreendo melhor os comos e os porquês.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Loucura ou barbárie ou as duas

"Isto" é o que foi assassinado à facada e a tiro, na Inglaterra. A UE toda inteira que aí anda não o vale!

Sorte

Durante uma dúzia de anos tive a sorte de colaborar como leitor voluntário na Sonora da BPMP, ali a São Lázaro. Um serviço notável criado em 1972 sobre modelo inglês da Students Tape Library do Royal National Institute for the Blind
Foi assim que li, integralmente, o que não teria lido, sorte minha. Exemplos disso são o Don Quixote, e a célebre tradução da Odisseia, que o Tolentino Mendonça fez verso a verso. Faz-me falta ter gravado o Ulisses do James Joyce, era oportuno. Sobretudo porque, uma vez começada, já não se pode interromper a leitura, como acontece cá em casa.
O osso mais duro que roí tinha 800 páginas. Foram os Comentários do Colégio Conimbricense duns escolásticos do séc. XVI, ao Tratado De Anima do Aristóteles, sobre a natureza da alma. Passei páginas e páginas e páginas a atravessar o deserto, isolado na cabina, sem que pudesse entender uma palavra!

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Ai de nós!

Pela distância a que estou, só eu sei o preço que me custa, em energias e tempo, assistir a uma palestra na biblioteca. Ainda bem que isso é da minha gestão.
E lá fui hoje ouvir um académico, que vem duma universidade para falar da obra do Ferreira de Castro.
Oiço-o durante uma hora a alinhar irrelevâncias. E a síntese delas todas é uma frase que lhe esccuto: Ferreira de Castro é um autor de prémio Nobel, na nossa literatura.
Eu bem gostava de dispor da misericórdia de poder chamar a isto ignorância. Mas é de idiotia que se trata.
Ao fim duma hora olho o relógio e vou-me embora discretissimamente. Foi esta a última vez que vim aqui. Ai de nós!

Finalmente a fritilária, as novidades da poesia experimental, e o que mora na Cabeça dum Velho (Cont).

[Esta princesa é a fritilária no seu esplendor singelo, mal se expõe antes de abrir. Porém o que me esperava era a desolação que adiante se verá. 
É o que faz uma Primavera traiçoeira. E ele há tantas|] 

Já regressei das lembranças dos Açores, e do patriarca Zé Pavão a escrever à sombra da glicínia, e das gentilezas da Suzete Melo. O gato escondido já foi à sua vida, com o rabo dele de fora. Mas é num turbilhão de emoções contraditórias que vou a pé à procura de almoço.
No estanco do velho Júlio barbudo mato a galga, com o seu arroz de carqueja, igual ao que era. O Júlio tinha presença marcada na Feira Popular, a Entrecampos, com os seus petiscos da Serra. Hoje reduziu actividades, passou a esquina a uma loja de chocolates modernos e mantém-se na betesga, nesta casita de pasto. Mas lá estão, pendurados nas paredes, uns soldados que vêm de Santarém montados em Chaimites e Panhards, à procura de Lisboa num mapa das estradas, e da vida que neles não vem.
Subo à Serra, numa curva aparece a Cabeça do Velho, a mirar ao longe o Caramulo. Só há uma força capaz de colocar esta cabeça no pedestal em que está: a força e a paciência dum glaciar. Na glaciação de Würms, terminada há uns dez mil anos na Europa, a cabeça deste Velho veio andando, rebolou e tomou formas e ficou aqui parada. Seria um pálido testemunho do que é a eternidade, o silêncio e a maçada dela, se eu lho fosse perguntar. 
Mas não quero saber disso. Fico-me a olhar o Velho, e a pensar que viu andar por aqui os homens de Cro-Magnon e os de Neandertal, paredes-meias. Os de Cro-Magnon acabaram por se impôr, não sei bem se com vantagem dos herdeiros. Inventaram uma linguagem e ganharam, aprendamos-lhe a lição.
No recanto do Rossim a fritilária lá está. Mas tristonha, friorenta, acabrunhada coitada.Vê-se bem que a austeridade lhe chegou também! Lavo o olhar na paisagem, ao longe diviso a Guarda. e parto, que ela me espera. Com atraso certamente, lá haveremos de chegar.
O artista contemporâneo reside em Mérida, a magnífica, e vem de Salamanca, a ilustrada. Entre actividades múltiplas pratica a poesia experimental. E projecta num ecrã uma série de imagens de objectos, ou artefactos manufacturados. Cada objecto tem um nome, que é o título do poema: dois cartuchos de carabina de assalto, um quadrado de tricot com duas pontas, que hão-de ser primeiro e último verso, uma lâmpada sem filamento e alguma coisa lá dentro, o poeta com dois ovos a obturar-lhe os olhos, quatro fotos do poeta, duas com olhos fechados, duas com eles abertos...
O auditório assiste. E eu tenho que esperar pela sessão do Cineclube, que me há-de mostrar esse espanto da Vivian Maier, a ama-fotógrafa do quotidiano de rua, enquanto viveu em Nova Iorque. À meia-noite volto a casa compensado.

Um dois três

Assim à-vol-d'oiseau, os motivos pelos quais o Amadeu de Souza-Cardoso (muito maior que Almada, imensamente maior que o Santa-Rita Pintor), não teve no modernismo de Orpheu mais importante papel.

"Herrar é umano"

terça-feira, 14 de junho de 2016

Lê isto!

Nem sempre o topas assim, lúcido e útil, ordenado e claro!

Pomar aos noventa

Lúcido e sabedor, activo e atento, como poucos. Clica ali e ouve o pouco que te deixarem ouvir.

A arte e o tempo

As esparsas sessões do Cineclube são uma excelente janela de respiração e informação, lá onde outras não existem. Pessoalmente sublinharam-me a importância do filme/documentário. O último apresentado era de 2013, Finding Vivian Maier, sobre um misterioso génio criador da fotografia americana. 
De ascendência remotamente francesa, Vivian Meier foi ama de crianças e famílias em Nova Iorque, durante a segunda metade do séc. XX. E foi ao mesmo tempo fotógrafa compulsiva do quotidiano de rua. Armada da sua Rolleiflex (máquina de cintura), deixou um espólio prodigioso de dezenas de milhares de negativos e rolos por revelar, onde se reconhecem hoje instantâneos de génio.
Nunca foi reconhecida porque nunca se deu a conhecer, nem deu um passo para se mostrar. Até que em 2007, um agente imobiliário americano arrematou num leilão uns caixotes de negativos. Mal sabia o que ali estava.
É daí que nasce o filme-documentário, e as fotos de Maier começam a vir à luz. O meio fotográfico, que nunca a reconheceu, rendeu-se-lhe finalmente, porque a arte vence o tempo. O tempo é mesmo o juiz de última instância da qualidade artística da obra. Se ela o não venceu a ele, é que a obra não é mais que um sucedâneo. Contingente e transitório e fugaz

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Paus por baixo

Não sei o que se passa no alpendre, nem coscuvilho vidas de vizinhos. Porém ontem... 
O maganão do forneiro, de minhoca no bico, veio à fala. Que um dia destes apanha um izijet e vai à América. Diz que há lá umas drogarias onde a M16, daquelas do Afeganistão com trinta e cinco balázios, se vende à discrição. Ora qualquer cidadão, disse o forneiro, tem direito a uma cultura e a um território sagrado, o das boas tradições do colt à cinta.
Proibi-lho terminantemente. Fui ouvir as andorinhas, achei-as preocupadas com a educação dos filhos. Já têm as malas prontas, vão fechar a porta e pôr-se a andar, não querem guerras.
Instalei na rua a câmara de vigilância e um microfone furtivo; quero saber se há televisões americanas na casa da forneirita. 
Na dúvida, já se sabe, paus por baixo! Só me faltavam agora, no alpendre, daéxes e cobóis à morteirada!

A multiplicação de equívocos

Ao contrário do que se diz aqui e ali (paleios em causa própria), o Festival da Gardunha é um ocaso. E não basta à câmara do Fundão financiar um Festival para o ter. É o que mais há por aí, com gente a investir na Cultura, uma vez que as rotundas já estão feitas.
O Festival Literário da Gardunha assenta nalguns equívocos. A ele acorre um público de leitores, que designamos assim. Vão para ouvir os autores e conhecê-los, e darem-se também a conhecer. Mas é um público sobretudo passivo. E os autores acabam a funcionar em circuito fechado, quando não a escovar uns aos outros a caspa da lapela. 
Uns que gostam de se ouvir e outros de afagar o ego, todos omitem a questão essencial que é encontrar-se com os leitores, procurá-los e dar-se a conhecer, ouvir e dizer o que deve ser dito, e a troca de opiniões, e o debate das ideias, que é donde pode vir alguma luz. Esse debate não está previsto, não há tempo para ele nem acontece.
No Festival do ano anterior, ainda encontrei em Alpedrinha o João Ricardo Pedro, cujo primeiro romance O Teu Rosto Será o Último, tinha sido um furor de novidade. Este ano não o encontrei, acabara de lhe ler o Postal de Detroit, na minha opinião um trabalhito falhado.
Os autores presentes vinham todos da área do jornalismo, no domingo em que fui a Alpedrinha. Na mesa a que assisti era o Pedro Dias de Almeida, o Paulo Moura e o veterano José Carlos de Vasconcelos.
O Dias de Almeida reparte-se entre a Visão e a criação poética, e traz poesia lá nas tripas, assim decida um dia pô-la à mostra. O Paulo Moura escreve reportagens notáveis no Público, defende a deontologia profissional e não é pouco. O Vasconcelos vem do Artes e Letras e transporta na cabeça equívocos antigos sobre Literatura e Jornalismo.
Quando a mesa chegou ao fim do tempo programado, tinha eu a apresentar uma questão sintética e sucinta a cada um dos elementos da mesa. Perguntei ao moderador (outro jornalista) quanto tempo haveria para o fazer. E logo ele, impaciente, que era o tempo exacto de fazer as perguntas. Agradeci-lhe a desmedida generosidade, prescindi da intervenção e fui-me embora.
No caminho para o Fundão não encontrei ao chafariz da estrada as caixas de cerejas da estação, será desta Primavera traiçoeira . Nem obriguei o panzer a levar-me a Alcongosta, e à estrada romana da Portela, donde se vê a fronteira entre dois Portugais, o atlântico e o mediterrânico, conforme disse o prof. Orlando Ribeiro.
Vi-me grego, no Fundão, para encontrar um almocito. Porque do festival da Gardunha não vislumbrei um eco, um sobressalto. Parecia mesmo que a vila não sabia da notícia. Mas à tarde, na Moagem, havia a última mesa com a Clara Ferreira Alves, uma menina que já foi convidada Bilderberg e publicou aí um romancinho. E lá esperei para assistir. 
O moderador era também jornalista. Tinha uma resma de perguntas nuns papéis, que lá foi desfolhando, enquanto ela se espraiava em peripécias mundanas que eu já lhe tinha lido no Pai Nosso. Quando a autora confessou que hoje em dia a Literatura dura pouco tempo, tão depressa mudam as modas e as atenções dos leitores, este leitor franziu a sobrancelha. Tinha umas contitas a ajustar com a Ferreira Alves. Mas olhou para o vade mecum do moderador, viu-o claramente a encher pneus e a fazer render o peixe, viu que lhe restavam muitas páginas e decidiu ir-se embora, que mora longe e tem mais que fazer. 
O Festival da Gardunha é uma construção de equívocos, repetidos e contagiosos, a que este leitor não voltará. E estes autores fazem-lhe lembrar uns carvoeiros antigos, pois que torram em carvão o tempo, a paciência e os leitores. Ao mercado servirá o frete, à Literatura não.

domingo, 12 de junho de 2016

O dos afectos

Durante anos e anos, lá do seu púlpito privilegiado, o presidente dos nossos melhores afectos não achou ensejo, ocasião, motivo, para comentar os crimes praticados por um governo de correlegionários seus. Nunca por nunca, e assim ajeitou o ninho.
Agora deitou-se nele e adaptou-se. É abrangente, ecuménico, metediço, e conquistou os palermas dos indígenas, de coração de geleia. É pimba por natureza e por opção, que isso lhe traz dividendos. E um dia destes veremos no que isso dá.
Ai meu Nóvoa, onde ficaste, que fazes cá tanta falta!

Fatigado?!

Sai. Olha as cores na paisagem. Ouve a chilreada em volta. Cheira os aromas no ar. Não albergues emoções nem pensamentos acerca do Verão fugaz, do que foi, do que há-de ser. Voltarás apaziguado. E não te esqueças de congelar as favas que granjearam na horta.

Do Árctico ao Antárctico

É dia de mercado semanal, dia de fazer negócios, ver amigos. E um camponês que se preze nunca falta. Há plantitas a meter à terra, umas fruteiras... Se não for nesta altura é mais um ano que a horta fica frustrada, porque este Verão é fugaz. E eu lá me vou. 
A moça vende-me arandos que recebeu duns viveiros. Encontro-os e não resisto. Andei tempos infindos a descobrir o nome das Krähenbeeren, numa tradução que me tocou fazer. Eram as bagas que o maçarico-esquimó (Numenius borealis) encontrava na costa do Lavrador, quando se empanturrava de energia para descer o Atlântico num voo migratório ininterrupto, até aos mangais da Venezuela. Isto antes de o maçarico ter acabado extinto pela insânia dos homens. Estavam ali os arandos e comprei-os. E revi a história toda.
O maçarico-esquimó nidificava no Árctico. E migrava em seguida até ao sul da Patagónia, onde chegava pelo lado atlântico de todo o continente americano. Por lá andava até encontrar uma fêmea, até que as hormonas lhe lembravam o Árctico, onde o esperava o ninho na reserva do acasalamento. 
No regresso atravessava as planuras da América do Sul, passava por cima dos Andes, tocava no Pacífico nas praias da Colômbia, cruzava o golfo do México e atingia a Luisiana, as planicies sem fim do Oklahoma e do Texas, até que chegava ao Canadá. Era aí que o esperava um corredor da morte que o levou à extinção nos finais do séc. XIX.
Antigo alimento das tribos índias, o maçarico-esquimó foi abatido por caçadores e agricultores americanos que o caçavam às toneladas, e vendiam ao desbarato nos mercados de Chicago.
O maçarico-esquimó era um voador poderoso, e as suas viagens migratórias uma epopeia espantosa. O último chega à reserva sozinho, que a fêmea foi abatida numa planície do Texas. Descreveu-o em pormenor um biólogo canadiano, Fred Bodsworth, que lhe romanceou em 1954 a migração: O Último Maçarico-Esquimó. 
"Provavelmente extinto; avistado pela última vez perto de Galveston, Texas, em 29 de Abril de 1945." 
Não existe, até à data, uma edição portuguesa no mercado. E este escriba recebeu-o de prenda no Natal de 77, em tradução alemã.

sábado, 11 de junho de 2016

Lição

O David Dinis director, esse espírito ligeiro e estreito e jornalista, entrevistou Adriano Moreira.
O velho desfiou-lhe o que sabe, que é muito, sobre história, estratégia, análise da vida nacional e internacional, leituras do mundo e compreensão da vida.
O jornalista ouviu-o quase em silêncio, que remédio.
E quando intervinha para fingir o seu papel, bem puxava para o rasteiro, a mesquinha intriga da comunicação social que temos.
Mas o velho resistiu e deu-lhe uma lição, de sabedoria e lucidez. 
A ele e a muita gente, a quem a quiser ouvir.

Manipulação?!

Aprende o que é e abre-me os olhos, caralho! Para não seres o último a saber.

Banksy

[prenda de JJ)
Artista de rua, graffiti, Bristol, 1974. Stencil e aerossol. Mordacidade anti-autoridade e anti-poder. Bristol, Londres, Nova Iorque, Paris...

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Rabugices

Saio cedinho ao alpendre e chega-me aos ouvidos uma rabugice. Inesperada, infantil, nem quero acreditar. Nunca a tinha ouvido assim!
Fico a imaginar um berço matinal ainda ensonado, se dos vizinhos de cima ou dos debaixo não distingo. Balbuciou um resmungo e calou-se.
Ou isto foi um ganapo a saudar-me lá do ninho, ou perguntou apenas: - Ó mãe, quem é este meco ali?
Ela ajeitou-lhe a mamita e ele voltou a dormir.

Nuvens Novas

Esta Transit Cloud está em Auckland, Nova Zelândia, à entrada duma estação de comboios. É uma obra do escultor Gregor Kregar. Samsa?

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Orgulha-te isto?!

A mim sim, e muito. Como não, depois de cinco anos de governo de vergonhosos traidores, que quiseram privar-nos da dignidade?! 

Os Bilderberg's

Ainda te resta alguma dúvida?! Nem esta?!

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Tão idiotas são

Uns que dizem que o flamenco gitano é andaluz genuíno blá blá blá...
como outros que afirmam que o lirismo fadista é português e saudosista, porque o Brasil blá blá blá...

Haja Luz!

Jorge Calado foi distinguido com o prémio Universidade de Lisboa/2016, no valor de 25 mil €, "pelo seu percurso como cientista, professor e divulgador da Ciência".
Eu rejubilo. Porque afinal nem tudo se nos extraviou definitivamente. É verdade que os portugueses não conhecem, nem querem conhecer, o Haja Luz!, essa coisa espantosa e nunca vista, produzida por um de nós: um tratado de sabedoria, de cultura, de humanismo, de iluminismo, de holismo...
Nota: A Sonora da Biblioteca Pública Municipal do Porto, ali a São Lázaro, tem no espólio esta obra gravada em audio, para cegos, amblíopes e incapacitados de ler. Não há desculpas para a desconhecer. 

Reparos da forneirita

No princípio encontrava só uma, a mourejar. A mesma? Ia e vinha, ia-se embora quando eu saía ao alpendre, desconfiada, insegura. E eu, que não distingo géneros de géneros, via nela a mesma criatura.
Agora andam sempre duas, atarefadas para chegar a casa, no bico uma minhoca a esbracejar. Saúdo-as e deixo-lhes lugar. Que à Natureza não serve a babilónia das redes sociais.

Um preto e quatro agulhas ao céu

Há tantos anos que nem sei já quantos (e muito menos a propósito de quê) subi a escadaria e entrei no solar do conde. Estive no salão do preto, de que não guardei imagem. Mas lembro-me muito bem do figurão do preto, ali à entrada. Era um boneco de pau, de libré pintado às cores, muito mais alto do que eu. Tinha uma carapinha escura lá em cima, e quando quis ver-lhe a cara nem pestanejou. Não demorei a sair. 
Hoje o conde já não vive aqui, que já morreu há muito. Não vai à missa ao domingo, de boina basca a guardar-lhe a cabeça. Nem joga xadrez com o padre que também já não existe. 
Na outra margem do ribeirinho em frente mandou fazer um chalé, quando a condessa morreu. E albergou mais tarde nele a criada preferida, que o serviu até à morte. 
Um dia o preto foi levado pelos herdeiros, e foi acabar, quem sabe, nalgum antiquário, trocado por bom dinheiro, como eram os bons escravos. Ou então ficou aqui, de sentinela alerta durante anos, até que o solar foi saqueado por um bando de meliantes que o deixaram vazio. Levaram também o preto, se cá estava. 
O povo soube isso tudo mas ficou calado, porque o solar foi sempre um mundo distante. Havia as terras que trazia de renda, e o chapéu velho para tirar da cabeça sempre que o conde passava, e um grande silêncio muito antigo.
Hoje o quinteiro é o logradouro dos gados da dona Rosa, é onde dormem. O matagal dos buxos, onde havia alamedas muito frescas e já foi de interesse público, é uma selva impenetrável. E quando raramente o conde novo cá passa numa pausa dos negócios, recusa-se a entrar lá dentro, que não gosta de ruínas. O povo nem sequer tira o chapéu, prefere ir colher morangos às quintas dos Alpes. 
Dizem que o mundo nunca está parado. Eu passo e penso que só a dança mudou e os volteios do seu baile. Eternos só os ciprestes que além estão, quatro agulhas apontadas para o céu.

Pára, olha...

E escuta isto.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Vida dura

Em 1967, fomos ambos ao PX dos américas e comprámos um disco de vinil: este Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band.
Ouvimo-lo e logo ele o trocou a um amigo por uma Aretha Franklin qualquer. Aquelas músicas eram uma tonteria!
Oiço hoje uma delas e pasmo. Quando essa cantiguinha saiu das mãos dos Beatles, andávamos nós aqui a enternecer-nos com os balbucios do António Calvário, que pedia colo a alguém. Mais andaríamos, durante muito tempo.
A vida é dura, amigo, vê-se bem! Mas há sempre uma razão para ela o ser!

Ó cretino!

O que tu zurras em coro com mais um par de alimárias confusas já é conhecido há muito. Cala-te e vai bardamerda, que nem sabes onde é que foi o congresso!
Mais um cretino a zurrar no coro! Mas este cita poetas, arma ao fino, e tão mal sabe escrever. Oh... imprensa nossa!

Ainda uma vez voltando à fria vaca

Quem me ensinou o segredo foi a Bonitona, por ser feia. Escuta e repara nisto [ecrã inteiro].
La belle et la bête' A noite e o dia? O quente e o frio? O menos e o mais? Um sertão e uma avenida? O eros e o thanatos? 
Os apolíneos e os dionisíacos? Os mansos e os mais bravios? Os delicados e os rudes? Os próximos e os remotos? Os longos e os breves? Os meus e os teus? Os rectos e os curvos? Os diurnos e os nocturnos? Os pretos e os brancos? Os graves e os mais agudos? Os solares e os crepusculares?
Toda a vida é exactamente assim: contraditória, oposta, dialéctica. E este milagre só sai quando os contrários se tocam. Céu e inferno esses não, são a fingir, a geena dos perversos.
Só a arte é capaz de exprimir epifanias. A ciência só pode esbracejar, toda que seja.

Restolhada

Durante a caminhada matinal passo à beira da represa. Mas oiço uma restolhada e aproximo-me. Ao longo de toda a margem andam cardumes de peixes a espadanar à tona. Agitam-se e fazem uma ruideira que eu não conhecia. Serão percas, trutas, carpas vindas lá das profundezas, não faço ideia, não sei.
Apoiado nos bastões ponho-me a subir o velho caminho mau, com tracção às quatro e redutoras. Antigamente era péssimo o caminho, próprio só de cascos de quadrúpedes. Mas agora faz lembrar uns campos elíseos novos, sem flâneurs a percorrê-los. Mas vão ficar para sempre o caminho mau, mesmo sendo uma avenida. 
Lá ao cimo no café procuro um pescador. 
- São carpas a desovar, vêm lá do fundo a libertar os ovos que ficam ao sol no meio dos caniços. E eles hão-de chocar. É claro que os achigãs vão ter a sua festa, mas a geração lá fica e continua. 
São lições da Natureza, que não conhece emoções  Faz o que deve ser feito e lhe compete fazer.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Tudo o que tem que ser tem muita força!

Essa cabra burocrática de Bruxelas, a comissária europeia da Concorrência (que andou por trás do descalabro do Banif) já admite a capitalização da CGD como banco estatal, que o governo do Costa pretendia.
Com isto retira mais um tapete aos náufragos marginais e decadentes que aí andaram com malfeitorias.
Ainda ladram, na comunicação social avençada. Mas o governo do Costa e dos portugueses é soma e segue!

Tarde sabática, a fritilária, um gato e o rabo dele e a poesia experimentalista

Aproveito a tarde plácida e vou visitar a fritilária, há-de ser o tempo dela. É uma florinha que há anos conheci num recanto da Serra, perto do vale do Rossim, encontrou-a uma amiga brandeburguesa, aqui há anos atrás, com a sua invejável cultura da natureza e das botânicas dela. Quando a fritilária floresce e abre ao sol, mostra em cada pétala a filigrana dum tabuleiro de xadrez. Desde então esse recanto tornou-se-me lugar de romaria anual.
Foi assim que fui parar a Gouveia. As casas do Toural já não existem, nem a compota das framboesas que lá havia. Percorro toda a vila, não encontro lugar para estacionar, paro o carro em cima dum passeio que tenho mais que fazer. O panzer é pesado e já está velho, ninguém o quer para nada salvo o dono. E atrás de mim pára outro, que se põe à minha espera de janela aberta.
- Sou filho dum grande amigo seu, companheiro doutros tempos, falava muito de si. Vi-o lá atrás e queria-lhe falar. Agora moro aqui mas sou açoreano. Lembra-se do nome dele? -Pergunto e ele não mo diz, prefere dar-me tempo a recordações.  
O rapazola tem um sotaque exótico, dos Açores ou da Madeira, não sei bem. Não o  encontro nos arquivos mas tem sotaque de ilhéu sem fingimento.
Vem-me à lembrança a ilha de São Miguel, há uns 40 anos. E há mais anos ainda lembro-me da Bissalanca, como poderia eu limpar esses impérios da memória, se nos custaram tanto a edificar?!
- Então lembra-se do meu pai, do nome dele? - insistia o rapazola. E eu acabei por arriscar-lhe o Pavão. 
Tinha-o conhecido em Tancos, em setenta, onde fui parar ao fim dum ano de hospital. Estilhaços que sobraram dum acidente brutal que eu tivera no Congo, porque o império era vasto, ainda que mais pequeno que a loucura lusitana. Adiante! 
E o Pavão, chegado da Bissalanca, contava-me as aventuras do Caco, esse lendário general do monóculo. O Baldé (Caco Baldé) sabia que as morteiradas do Nino Vieira enterravam mais o prato na lama das bolanhas, sempre que disparavam. E ele, de cabeçorra ainda cheia das lições do VI Exército na batalha de Stalingrad, descia dos helicópteros no meio dum sertão, via onde caía a primeira granada, a próxima já não cairia ali. Por isso era destemido, de pingalim nas unhas, um padrão de pedra à frente das suas tropas, que haviam de pacificar a pretalhada. O Caco não pacificou ninguém com os seus congressos do povo, acabou por desistir, regressou a Lisboa e foi ao Marcelo demitir-se do cargo de César dos Bijagós. Mal sabiam nessa altura, o general e o Pavão, dos mísseis terra-ar que estavam para chegar, e abatiam aviões atrás dos infra-vermelhos como quem caça pardais!
O Pavão acabou o serviço militar e regressou aos Açores, onde foi voar na Sata. E eu fui mobilizado para a Bissalanca, onde assisti às exéquias dum império a fingir. E só voltei a Lisboa depois do 25. Em 1975 fui passar uma semana a São Miguel, onde revi o Pavão e conheci aqueles Pavões todos, uma gente encantadora. O rapazola que estava ali à espera no carro das argolinhas não existia ainda, nem as esperanças dele. Mas afirmava que se lembrava de mim, e das conversas do pai, e viera atrás de mim, na tarde de Gouveia, pois tinha que me falar.
- Era o Pavão! - disse-lhe eu. Pedi-lhe um par de minutos, atravessei a rua, encostei-me à parede e desabei por dentro. Por fim voltei a ele, que me contou o resto. O pai já tinha morrido, e ele viera de França onde esteve a trabalhar, para alargar em Gouveia uns negócios da empresa: chinoiseries, decoração, artefactos do lar, eu sei lá bem! E estava ali, a falar micaelense! Perguntava muito pelos meus netinhos, que ele nunca viu, apenas imaginava.
À despedida meteu-me no carro umas ofertas da empresa, que queria entrar no mercado. Atoalhados, felpos vulgares, uns espanhóis e outros portugueses, cujos lavores  medíocres ele enaltecia. Sublinhava-me o preço das ofertas, e à terceira deu-lhe um valor absurdo. Se eu pudesse oferecer-lhe metade desse valor, para ajudá-lo a pagar o aluguer do carro, pois era um encargo seu...
Senti-me empurrado para um negócio delirante, astucioso. Já me defrontei com paranóias estranhas, é um exemplo. Porém aqui não encontro entorses clínicas. Quando muito há um delírio utilitário, pragmático, uma armadilha para me extorquir uns trocos. Divido em três o valor que o rapazola me pede, mas tenho que passar pelo multibanco. É a gentileza dele que me leva lá, que o panzer fica a dormir. Levanto a massa, entrego-lha e despedimo-nos.
Entendamo-nos agora. Não tenho cá dentro o bicho do cinismo nem o quero, a alma recusa-me esse veneno que uns tipos avisados chamam bálsamo. Olho para os outros com olhar humano, imagino-lhes os dramas pessoais, já tenho caído nalgumas esparrelas. Só posso ver-me assim... às vezes no papel do trouxa. E lá vou à procura do almoço, porque tenho que ir ver a fritilária à Serra. Tenho infinitas probabilidades de estar perante o enigma do gato escondido com rabo de fora. Sinto nas mãos o rabo do gato, sem saber onde é que o gato está escondido. Não contava com uma tarde assim atribulada, com estas emoções e enigmas à solta.
(Continua)