quinta-feira, 31 de outubro de 2024

As Aves 3-7

Foi gente igualzinha a esta que uma bela manhã do Congo acordou trinchada à catanada, como os porcos antigos das aldeias, pelo desespero de bandos de africanos, fartos das mentiras do branco, fartos das vilanias do branco, fartos da opressão do branco. Fingindo-se virgens ofendidas, os governantes de Lisboa puseram-se a gritar que estava em perigo o terreiro sagrado da desmoronada sé de Salvador do Congo, enquanto brancos e pretos se afogavam num abismo de pânico e de sangue, a que nenhum irá sobreviver. Cegos e surdos ao correr do mundo, os governantes de Lisboa puseram-se a embarcar à pressa batalhões para Angola, a ver se restauravam a soberania.

Assim caída no sertão, entre forças que mal conhece, a tropa acabará dilacerada entre um vento de ódio que cega, e o medo que entorpece. Ora a presença dum inimigo é o único antídoto contra o medo, toda a gente sabe isso. Mas aqui, em lugar de inimigo, tudo quanto existe é o areal movediço dum imenso embuste, onde qualquer um vai matar para não morrer. E, entre este que é soldado e aquele que se tornou num assassino, vai um passo mal medido. Despejaram-se bombas de napalm sobre multidões de negros atraídos aos largos das igrejas, e os bandos que vinham atacar os povoados, com zagaias e trabucos feitos à mão, eram recebidos à metralhadora, eram dizimados à granada. E os prisioneiros, quando levados ao interrogatório, acabavam assassinados à facada, com o sabre-baioneta a enterrar-se lentamente na carne, à procura de caminho para um órgão vital.

Desde cedo se tornou a tropa um motivo de desprezo dos brancos, culpada de todos os males. E os políticos dementes de Lisboa, que sacrificavam a interesses velados a vida de milhões de criaturas, cedo demais começaram a cantar a sua vitória, o que lhes ficou nas mãos não foi uma pátria restaurada, mas um cadáver a apodrecer. O Congo inteiro transformou-se em terra de ninguém, restaram as picadas que o capim havia de engolir, restaram os destroços das casas que as chuvas foram arrastando para o rio, restou este grito sufocado das plantações abandonadas, que o mato depressa reclamou. Erguidos na paisagem, cercados de trincheiras e toscas torres de vigia, ficaram apenas os barracões de madeira das guarnições de quadrícula, na esperança de que se mantivessem de pé enquanto a loucura durasse.

Gaspar não teve que viver esses tempos originais. Nas vazias amplidões do Congo,a única ez que Gaspar teve contactos directos com oinimigo naquela guerra foi através duma fotografia. Isto logo à chegada, andava ela por ali entre papéis, abandonada no tampo duma secretária onde se acumulavam planos e ordens de missão. A cara deformada e sem feições dum negro que caíra nas mãos da tropa mostrava um olhar que já não parecia de gente, por certo era o retrato dum cadáver, Gaspar nunca chegou a sabê-lo. (Cont.)

domingo, 20 de outubro de 2024

As Aves 3-6

O terror insano que alastrara no Congo, nos primeiros anos da guerra, foi maré tempestuosa que a exaustão do tempo apaziguara. As primeiras companhias de soldados saíam dos porões dos navios ao som do Angola é nossa, e eram recebidas por multidões de colonos tomados por um misto de pânico e delírio, acreditando uns que a vingança seria arrasadora e terminal, e outros que a pacificação estava ao alcance duns breves tiros de morteiro. De resto, a maioria da tropa era da mesma estirpe do colono africanista. Vinha das mesmas aldeias onde nada mudara há séculos, a abarrotar de gente que não tinha dois palmos de terra onde plantar uma couve e cair morta, das mesmas aldeias onde a vida era rudíssima, e onde o único futuro era a bem-aventurança mítica dos cartazes de propaganda da Lição de Salazar, a abarrotar de gente que já não sabia fazer outra coisa senão tirar o chapéu à casta de figurões que a bem da nação tinha o país por conta, para suprir as faltas do povo sempre hão-de bastar os carregamentos da caritas da América, que isto é gente de boa e desenfastiada boca, do queijo de plástico e do leite em pó das fábricas da América, distribuídos por um abade qualquer, louvado seja Deus que tão equilibrado e aprazível fez o mundo. Era gente que andara a fugir da miséria a vida toda, por onde mundo houvesse, pelos subúrbios da Europa ultimamente, por Índias e Brasis desde há séculos, pelas Áfricas quando lho permitiram, um dia desembarcou numa baía dos trópicos esta gente a quem disseram, tudo quanto a vista alcança é Portugal.

Ninguém entende bem como isso possa ser. Mas depressa todos se dão conta de que basta a cor da pele para definir uma condição no mundo, afinal sempre valeram a pena as canseiras do Vasco da Gama. Passámos a vida toda numa servidão insuperável, a desbarretar-nos à passagem de condes e doutores, e finalmente aqui nos deparamos com criaturas mais vilipendiadas do que nós, ainda mais oprimidas do que nós, muito mais desprezadas do que nós. Esquecer depressa o sofrimento antigo, enterrar fundo a humilhação dura do passado, é exercício vital se queremos assumir um papel no mundo. Pomos por isso uns óculos escuros no nariz e aprendemos a beber whisky com gelo, armados duma pasta cheia de ar e vento mas carregada de significados, enquanto vamos estalando na calça um cavalo marinho que nos há-de compor a figura e realçar o ar de mando. Roubamos na compra, na venda enganamos, são quentes as pretas e de fadário submisso, o administrador é mais que todos cúmplice e venal, o resto, que é muito, não é nada que um bom sipaio não faça com gosto, é só dar-lhe mão livre. E eis que do mais mesquinho súbdito tirámos um patrão, não foi para outra coisa que os impérios se fizeram. (Cont.)

sábado, 19 de outubro de 2024

As Aves 3-5

Mas a cara gelada deste espelho é que não tinha só o frio para lhe devolver. Diz-se que, em sonhando, se estende a lógica dos sonhos, mesmo de pesadelos não passando. Não é assim com Gaspar, ao menos neste caso, que, entre visões e espectros, o que está vendo ao espelho é a sua própria imagem devolvida. O retrato é quase de corpo inteiro e revela-nos um ventre transparente, onde o celofane tomou o lugar da pele opaca, como nos manequins das aulas de anatomia. Vêem-se claras as circunvoluçõesdas tripas ensanguentadas, o volume dos órgãos íntimos, estranho é não lhe causar isto repugnância, e se não for por se tratar dum sonho, será porque deste interior todos nós somos feitos. A cabeça tem de lado uma parede refeita, diremos restaurada, uma das têmporas é de baquelite castanha, entalhada no crânio. E assenta sobre um pescoço desproporcionado, exageradamente fino e alongado, a prolongar uma coluna também reconstruída, descarnada a espaços, as vértebras cervicais são polidas e brilhantes, apetece aflorar-lhes um dedo, parecem talhadas em chifre cinzento.

Gaspar deixa as mãos descer ao longo do corpo e não encontra as coxas, não encontra as pernas, se quiser mover-se não consegue mais do que arrastar-se sobre os braços, a si próprio faz lembrar a cena dum filme em que os soldados tinham vindo da guerra e estavam pendurados num tecto de hospital, suspensos duma rede como vasos de flores, como presuntos na cura, mergulhados em penumbra e silêncio.

A respiração ofegante e descompassada vai traindo a aflição que se apodera dele, e agora falamos deste real Gaspar que dorme, sai-lhe às vezes do peito um grito abafado, um roncor se diria, benesse caridosa era acordá-lo, já noutras ocasiões em que isto mesmo aconteceu o teríamos feito, assim pudéssemos nós usurpar poder e competências, ademais nos faltando, para tão bicudos casos, um patrono encartado de quem lançar mão, ele há um para a fome, outro para a peste, algum para a guerra, se não todos num só, aqui não édela que se trata, porém antes dos estragos que deixou.

São coisa já antiga, estas assombrações que assim chegam sem marcar visita, vêm do tempo em que Gaspar andou pelos sertões de Angola, chamado a defender a pátria. Havia nas vazias amplidões do Congo alguma coisa de fascinante e hipnótico, com elefantes solitários a passear o tédio por chanas sem limite, com vastos bandos de pernaltas brancas que lavavam todo o dia os pés nos charcos, e anafados crocodilos de pedra tomando eternamente o sol nas margens das lagoas. Um homem sentia-se minúsculo, esmagado por tamanha grandeza. E se era da vastidão sem fim dos horizontes que o feitiço provinha, se da aterradora força das florestas, ou das serras majestosas donderios se despenhavam, Gaspar não chegou a sabê-lo ao certo. A vida decorria num limbo de inconsciência e voluntarismo perigoso, como num jogo de roleta russa, e as energias da juventude aprisionada assim nos limites do arame farpado fervilhavam em circuito fechado, sem objectivos nem sentido claro. Os mais velhos refugiavam-se na família que traziam atrás, ancorados no cais de miúdos e privados interesses, alguns almejavam cruzes de guerra para enfeitar a carreira. Os outros faziam por sobreviver, morriam às vezes em acidentes vãos e desatinados, poucos se davam ao incómodo de formular perguntas a que ninguém queria responder. O mais importante era queimar o tempo, era queimar as forças, era queimar infindáveis horas de voo numa ilusão de utilidade, enquanto os dias tombavam um a um, como folhas de outono, riscados num calendário. (Cont.)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

As Aves 3-4

Invenção não é, porém, este bando de presos comuns que agora mesmo escancarou as grades da ala norte da prisão,blina e vem abrindo cela a cela a estes encarcerados. Têm nas unhas as chaves do armeiro e deixaram já livre o caminho até ao pátio interior, ecoam por estes muros difusos gritos das famílias que lá fora se anunciaram, enquanto vão retumbando os estampidos das armas automáticas, não há janelas para ver o que acontece mas cada um de nós o adivinha, e aos poucos nos vamos encontrando no corredor, ainda desconfiados deste livramento que por tão ínvios caminhos nos chega, ainda suspeitosos, perguntando a quem no-las oferece, de que nos servem as chaves que armas devem cerrar e não abrir, quando um velho, de autorizado aspecto, se dá conta da cilada que ali está sendo urdida, se nos apanham lá fora, pior de armas na mão, somos todos ceifados, recolher à cela, camaradas, recolher à cela.

Quem se vai recolher, mas não à cela, é Gaspar, mais a restante embaixada. Assim sem darmos conta chegámos a Palência, onde tínhamos parada prometida, as horas são já mortas, maneira de dizer que a cidade está dormindo. Cruzou a pequena viatura por essas ruas, a esta hora livres de constrangimentos de trânsito, como se buscasse pelo faro esta praceta onde nos apeámos. Ninguém disse palavra, muito natural em se tratando de escolher pousada em terra estranha, concluamos não ser hoje a primeira vez que este carro aqui vem parar, ali está o hostal chocolate esperando por nós há uma vida, um pequeno letreiro verde a piscar na algidez da neblina.

Um recepcionista ensonado entregou as chaves aos hóspedes que em silêncio vão já subindo a escada circular, tudo decorre sem hesitações, como se tudo estivesse previsto, e Gaspar vai correndo os dedos no macio corrimão enquanto sobe ao primeiro andar, nunca a palavra se ajustou assim fisicamente ao gesto, como esta mão aflorando a madeira, se a causa não for o peso da minúscula mala, sê-lo-á o cansaço da noite, que é já longa. Cada um fechou a porta atrás de si, e terá sido o peso das pálpebras a impedir-nos de atentar no jovem par que já desapareceu, se afinal é um casal a sério, se dormirão juntos os dois, esta era a oportunidade de o saber, que assim desperdiçámos.

Gaspar relanceou a vista ao ambiente, como que faz um reconhecimento, notou o vasto espelho sobre o toucador a devolver-lhe uma sugestão nua de frio, ninguém estranhará as prevenções dos olhos que assim buscam na paisagem adversa as cores preferidas, e o olfacto os aromas, afinal é este o refúgio em que vamos baixar a guarda e nos renderemos ao descanso. Não são estes por demais singulares, nem aromas nem cores, o cansaço fez o resto, ao enrolar-se nos lençóis parecia que Gaspar se enrolava no sono. E ainda bem, porque Gaspar não deseja pensar. Viu partir do cais esta nau em que tomou lugar, vem assitindo do convés ao soltar lento das amarras, abre-se-lhe em frente um grande mar que desconhece, e não pode adivinhar os caprichos da rota que o espera. Foi-lhe dito que a ausência será longa e imprevisível o evoluir das coisas, bem poderá contar com dez anos lá fora, melhor será refazer a vida de raiz nalgum porto de abrigo, o mundo é grande.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

As Aves 3-3

Assim perderá ele o espectáculo desta récua de prisioneiros que chegou à invicta cidade do Porto, algum deles viajou acorrentado aos ferros da aeronave, para que nem um grão se perdesse da requerida segurança, e durante dois dias nenhum deles comerá pão de vida, e antes disso, horas a fio, vão ficar aqui na aerogare, algemados de mãos e esperando transporte seguro, viremos a saber para onde, aqui serão alvo da caçoada pública e receberão nas caras roxas de frio as chufas e motejos da populaça em fúria, ela sim esquentada ao rubro pela retórica santificada de algum distinto clero, não faltam por aí activíssimas sotainas rasas, arciprestes e cónegos, fossem ele os tempos de el-rei D. Manuel, e estando nós no largo de S. Domingos em Lisboa, tudo acabaria no queimadoiro, ateêmo-lo já que o Santo Ofício está aí não tarda, com dobrada razão se diria, aqui também, remédio santo.

E perderá também as emoções da fuzilaria que há-de haver, não demora, no descampado fronteiro a esta prisão, onde cento e vinte militares encarcerados dividem espaços com os presos comuns. Numa tarde hão-de chegar as famílias, não sabemos se em visita ou manifestação, quiçá por ambas, diz-se que em breve todos estes virão a ser levados a uma prisão, nas serras da Beira, oxalá venham a aproveitar a oportunidade que assim lhes é ofertada de ver o mundo a partir destas altas cotas, numa excelente perspectiva global com que todos terão muito a aprender e alguma coisa a corrigir, o pior é o gelo, o pior é o isolamento, o pior é o que se vai ouvindo e se teme, as falanges de um general de olho de vidro que foi, no tempo próprio, visitar o cerco de Estalingrado e por lá afinou estratégias, operam a partir de Espanha e têm já prevista a emboscada no caminho, tão fácil de fazer naquelas serranias, é isso que nós queremos evitar.

Já saiu a cavalo uma patrulha a conter esta multidão de clamadores, sobretudo aqui divisamos crianças e mulheres gritando, se os homens estão lá dentro, e o quê só o coração delas o dita, um cavalo espantou-se, a história da cavalaria está cheia destes eqídeos poltrões, se não fracos dos quartos, porém nem sempre um graduado, de sabre em riste, desaba assim de costados no chão, como agora pudemos ver. Já relincham cavalos de crinas ao vento, de puro contentamento por se verem assim livres de tão descomedida carga, já um pelotão de guardas infantes atravessa o portão e assenta joelhos em terra, a lavar esta afronta, já se ouvem pelo ar detonações das armas, se não também estridentes farpões e setas várias que pelo ar espesso voam. Dois mortos não se erguerão mais deste chão, e uma criança levará para casa uma bala no corpo, como poderia ela turvar a água a esta béstia, o mais seguro é que, não sendo sua a culpa, tenha sido do pai, quites ficamos, para tanto se inventaram as fábulas, (Cont.)