Foi gente igualzinha a esta que uma bela manhã do Congo acordou trinchada à catanada, como os porcos antigos das aldeias, pelo desespero de bandos de africanos, fartos das mentiras do branco, fartos das vilanias do branco, fartos da opressão do branco. Fingindo-se virgens ofendidas, os governantes de Lisboa puseram-se a gritar que estava em perigo o terreiro sagrado da desmoronada sé de Salvador do Congo, enquanto brancos e pretos se afogavam num abismo de pânico e de sangue, a que nenhum irá sobreviver. Cegos e surdos ao correr do mundo, os governantes de Lisboa puseram-se a embarcar à pressa batalhões para Angola, a ver se restauravam a soberania.
Assim caída no sertão, entre forças que mal conhece, a tropa acabará dilacerada entre um vento de ódio que cega, e o medo que entorpece. Ora a presença dum inimigo é o único antídoto contra o medo, toda a gente sabe isso. Mas aqui, em lugar de inimigo, tudo quanto existe é o areal movediço dum imenso embuste, onde qualquer um vai matar para não morrer. E, entre este que é soldado e aquele que se tornou num assassino, vai um passo mal medido. Despejaram-se bombas de napalm sobre multidões de negros atraídos aos largos das igrejas, e os bandos que vinham atacar os povoados, com zagaias e trabucos feitos à mão, eram recebidos à metralhadora, eram dizimados à granada. E os prisioneiros, quando levados ao interrogatório, acabavam assassinados à facada, com o sabre-baioneta a enterrar-se lentamente na carne, à procura de caminho para um órgão vital.
Desde cedo se tornou a tropa um motivo de desprezo dos brancos, culpada de todos os males. E os políticos dementes de Lisboa, que sacrificavam a interesses velados a vida de milhões de criaturas, cedo demais começaram a cantar a sua vitória, o que lhes ficou nas mãos não foi uma pátria restaurada, mas um cadáver a apodrecer. O Congo inteiro transformou-se em terra de ninguém, restaram as picadas que o capim havia de engolir, restaram os destroços das casas que as chuvas foram arrastando para o rio, restou este grito sufocado das plantações abandonadas, que o mato depressa reclamou. Erguidos na paisagem, cercados de trincheiras e toscas torres de vigia, ficaram apenas os barracões de madeira das guarnições de quadrícula, na esperança de que se mantivessem de pé enquanto a loucura durasse.
Gaspar não teve que viver esses tempos originais. Nas vazias amplidões do Congo,a única ez que Gaspar teve contactos directos com oinimigo naquela guerra foi através duma fotografia. Isto logo à chegada, andava ela por ali entre papéis, abandonada no tampo duma secretária onde se acumulavam planos e ordens de missão. A cara deformada e sem feições dum negro que caíra nas mãos da tropa mostrava um olhar que já não parecia de gente, por certo era o retrato dum cadáver, Gaspar nunca chegou a sabê-lo. (Cont.)