quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Escolha livre

Eu não entendo nada de finanças. Nem quero. Mas o teatro dos ocupantes do Rendeiro não logra comover-me. Não me toca, não se me inscreve cá dentro, conforme diria o outro. Apenas me faz pensar.
Se há uns anos atrás uma qualquer pitonisa governamental tivesse descido à praça a recomendar a estes piquenos aforradores que mudassem de critérios, e não entregassem dinheiro a vigaristas nem a aventureiros a troco de promessas tentadoras, não faltaria berreiro. O mercado sacrossanto, a liberal escolha, a individual iniciativa, a ganância geradora, a livre concorrência, o fim das tutelas estatais, esse comunismo enfim!
Agora que as barbas ardem, já clamam porque o governo!...enquanto o Rendeiro passa descontraído. Queremos o nosso dinheiro!... com os impostos daqueles que os pagam, pois claro.
Há nisto tudo alguma mascarada e muita desfaçatez. E o governo devia ter deixado falir o banco na altura oportuna, aplicando-se aos depósitos as normas em vigor. Que pensam eles que aconteceu a milhares de depositantes de instituições que faliram por esse mundo fora? Que é feito de tanta livre escolha?!

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Aclaramento

Ainda bem que as eminências médicas decidiram finalmente que em Portugal a homossexualidade não é uma doença a reclamar remédio. E eu fico mais descansado, com a certeza de que não terei à perna um dia destes um curandeiro qualquer.
Ainda o não disseram três doutores. Mas o mais certo é também não ser moléstia mórbida a heterossexualidade, equipa em que, mal ou bem, tenho jogado.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Pai Natal

Diz-se que nascer é uma benesse. E assim será. Mas a bênção verdadeira consiste em ser infante no seio dum casalinho português da middle-class. É uma cornucópia de bem-aventuranças bem digna do Pai Natal.
A primeira decisão que os papás tomam, mal o infante se instala nas suas vidas, é deixarem de ser mulher e homem. Abdicam da condição, no bom propósito de se tornarem papás a tempo inteiro.
Há um tempo em que o infante se limita a deglutir, a dormir e a defecar. E os dois papás, enquanto seguem ansiosamente o gráfico dos pesos e medidas, vivem o seu período de exaltação.
Depois o infante começa a gatinhar, começa a gaguejar, ensaia os primeiros gestos de representação. É então que os dois papás, mais a família inteira, e também os amigos que vieram, lhe oferecem o papel de prima-donna e lhe cedem o palco inteiro. Organizam no salão uma roda em volta dele e cada um a seu modo o estimula. A mamã pede-lhe um gesto, a tia dá-lhe uma deixa, a avó bate-lhe palminhas à precocidade. E o infante faz o pino, puxa a orelha do gato, deita a linguita de fora, cospe na mão da madrinha. A distância entre o infante e um macaquito de circo reduz-se perigosamente. Mas ganha imenso a alegria do salão e a felicidade colectiva.
O infante já descobriu que está no centro dum mundo onde nada mais existe que o seu egoísmo cruel. E estabelece metodicamente a sua ditadura, em que vai introduzindo invencíveis tácticas de guerrilha. Não tem horas de dormir ou de comer, nem de chegar ou partir, nem de falar ou de ouvir.
O casalinho há muito que anda esfalfado, que não dorme, que não vive. Evita lugares públicos onde se exija alguma compostura, e há muito tempo que trabalha a meio gás. Mas assume esse calvário em função dum projecto de família, e mais que tudo em função do seu projecto de futuro.
Tendo assim sido menino, o infante faz-se criança, e torna-se adolescente, e há-de alcançar um dia a maturidade. Na escola descobriu o telemóvel, conheceu o mp3 dum companheiro, ouviu falar duma nova play-station. E só há boa cara para os papás se eles aceitarem o negócio. Caso contrário não abre a porta do quarto. Depois a cena repete-se por aquela marca de roupa, por um acessório gótico, por um camuflado da guerra do Afeganistão.
Um dia a criança quer ir à discoteca. E os papás, que já não têm vida própria, que têm que trabalhar, que deixaram de ter intimidade, que há muito se não entendem, que padecem de impotência irreversível, pagam a um segurança profissional que a venha buscar a casa, e a devolva às quatro da manhã.
Os papás já não são uma família. A criança agora só tem mamã, porque o papá foi-se embora. E um dia o adolescente, desinteressado da escola, vai à sua viagem de finalistas, porque no último período fez um esforço que afinal não resultou. A mãe arranja um segundo trabalho, porque um só não chega para as encomendas. Além dum carro para poder ir às aulas, ela tem que pagar as propinas numa privada, onde o infante se há-de licenciar um dia em Relações Internacionais.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Baronatos

O que se passa em Portugal há décadas, na gestão das faculdades de medicina e na formação de novos médicos, devia fazer-nos reflectir. Porque mostra exemplarmente o género de políticos e a espécie de médicos que nos têm tratado da Saúde.
Impossibilitados de aceder às faculdades de medicina por limitações e numerus clausus de natureza perversa, 1300 jovens portugueses frequentam actualmente cursos na Europa: em Espanha, na Chéquia, em Malta, em cascos de rolha.
Centenas de milhares de portugueses não têm médico de família.
Em 34 municípios da região norte havia, em 2008, menos de um médico por cada mil habitantes.
Em muitas regiões do país, os concursos para médicos de família ficam sistematicamente desertos.
Há muitos anos que Portugal contrata os médicos que não tem em Espanha, no Uruguai, na Papuásia, onde os houver.
Mais de metade dos médicos inscritos na Ordem tem hoje mais de 50 anos.
Um médico em cada oito tem mais de 65 anos.
Em resultado das duas anteriores, muitas escalas da urgência alimentam-se de turbo-médicos.
Em Moçambique há 800 médicos, e em Angola 2400.
E no entanto, a propósito da abertura dum curso de medicina na Universidade de Aveiro, o bastonário da Ordem dos Médicos não tem parado de verberar a decisão do governo, porque dentro de poucos anos haverá médicos no desemprego.
Uma atitude assim é um despautério escandaloso. Ao bastonário dos médicos é indiferente que o país se transforme e evolua, ou siga sendo o logradouro da bicharada, atávico e tolhido há muitas gerações. Importante é mantê-lo neste regime de captura, ao serviço dos seus interesses corporativos.
Mais vergonhosa do que isto só a atitude dos governos, e dos inúmeros ministros da Saúde, que há décadas são cúmplices deste regabofe.
O governo actual vem finalmente agitar as águas turvas. Isso explicará o frenesi com que uns farsantes, e outros videirinhos, lhe pedem a cabeça.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A complexidade e o caos

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal


Num ensaio intitulado “ Do progresso, suas leis e suas causas” o filósofo inglês Herbert Spencer, que viveu no século XIX, escreveu: “Na Sociedade, no Governo, na Indústria, no Comércio, na Linguagem, na Literatura, na Ciência e na Arte, o progresso esteve sempre associado a um processo de evolução, através de sucessivas transformações, do mais simples para o mais complexo. Essencialmente, o progresso tem consistido na transição do homogéneo para o heterogéneo.”
Na verdade as sociedades primitivas eram muito simples na sua organização, havendo entre os seus membros muito pouca diferenciação de funções. Quase todos eles se ocupavam da caça ou da recolha dos alimentos que a natureza oferecia. E, nessas sociedades, a escolha das chefias baseava-se no processo natural de seguir o mais forte ou o mais apto.
A domesticação de animais e plantas permitiu criar excedentes alimentares. Esse facto conduziu à sedentarização e fez aparecer na sociedade outras funções, as quais, numa primeira fase, eram de carácter religioso, militar ou administrativo. Mais tarde o desenvolvimento da indústria e do comércio trouxe os artesãos, os mercadores, os médicos, os artistas, os escritores. Surgiram depois os banqueiros, os agiotas e os prestamistas.
E as sociedades foram-se tornando, pouco a pouco, mais estruturadas e diferenciadas. Em particular, a nossa civilização global é caracterizada por uma extrema complexidade, traduzida na especialização, na diferenciação de funções, e na existência de acentuadas hierarquias entre os seus membros. O todo é suportado por uma panóplia de ferramentas, de equipamentos e de infra-estruturas de apoio, interligadas pela rede informática, pela rede eléctrica e pela rede de comunicações. E onde existe uma grande interdependência entre as vários partes do sistema organizativo.
Esta sofisticação traz consigo algumas desvantagens como, por exemplo, o acréscimo do risco de ruptura de um ou vários elementos do sistema, o qual fica, assim, mais vulnerável. E a complexidade tem ela própria, inerente, um custo de manutenção, que está associado a um “input” energético sempre crescente, exigido para a alimentar.
A questão da complexidade crescente na evolução (num sentido não necessariamente darwinista) tem sido tratada por vários autores. Um deles, Joseph Tainter, no seu livro “O colapso das sociedades complexas”, aborda a importante relação da complexidade com o colapso. Sugere mesmo uma definição de colapso, que para ele é "uma rápida redução da complexidade".
A tese de Tainter pode resumir-se à seguinte ideia: quando a introdução dum acréscimo de complexidade num sistema exigir um custo superior ao benefício que ela produz, o sistema tende a colapsar. É o próprio autor que nos explica o conceito: “Em civilizações antigas que tive oportunidade de estudar, como foi o caso do Império Romano, verifiquei que o maior problema que elas enfrentaram foi quando tiveram de suportar custos muito elevados, apenas para manter o “status-quo”. Tinham de investir enormes somas para resolver problemas, sem retorno positivo. Muitas vezes apenas para manter o que já existia. Isto reduziu a vantagem de ser uma sociedade complexa”.
Na extrema sofisticação que caracteriza o nosso mundo “civilizado”, convém não ignorar estes princípios. No século XXI, o mundo vai ter de ocupar-se a manter e reparar as grandes estruturas criadas no século passado. Isto com um custo que, em certos casos, pode ser superior ao custo de as construir. E não devemos esquecer que as sociedades complexas são mais propensas ao aparecimento de acontecimentos insólitos e impactantes, como foi o caso do 11 de Setembro (aquilo que alguém designou como “cisnes negros”).
A este propósito ocorre perguntar: por que não valorizar mais as coisas simples? Já lá vai o tempo em que as castanhas assadas se embrulhavam em papel de jornal, em que nas nossas aldeias se criavam animais, em que o queijo e os enchidos se curavam ao calor das lareiras. Em nome sabe-se lá de quê, criaram-se normas para complicar as coisas, inclusive um organismo (a ASAE) para as fiscalizar e fazer aplicar.
A acreditar em Tainter, o futuro pode ser bem mais promissor para as sociedades simples. Afinal foram os Bárbaros que venceram os Romanos!

domingo, 20 de dezembro de 2009

Em Nome da Pátria

Brandão Ferreira, que foi piloto da FAP, acaba de publicar um livro de muitas páginas, a que chamou EM NOME DA PÁTRIA - Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa. É um livro surpreendente, que ele consagra à verdade histórica e aos bons portugueses. E ainda (não satisfeito com tanto) para que, na eterna luta, o Bem vença o Mal.
Eu tropecei nele há dias, quando não resisti a entrar na livraria. E foi enquanto lhe passava os olhos que me senti a viajar às arrecuas, a um tempo antigo, escuro e doloroso.
Os guerrilheiros africanos ainda são, no livro, os terroristas. As colónias seguem sendo as nossas províncias ultramarinas, que representavam 95% do território nacional e 60% da população portuguesa. Do colonialismo português não se poderá falar, por causa da tal verdade histórica, e porque isso envolveria ambições imperiais que não tivemos. O que Portugal realizou foi uma peculiar acção colonizadora, paternal e abençoada. A guerra das colónias era uma guerra justa, e ao fazê-la tinha o país toda a razão do seu lado.
Aqui é forçoso concluir que o Mondlane, o Nino Vieira, o Amílcar Cabral, o Agostinho Neto e outros eram todos portugueses maus. Assim como o Gungunhana, e os sumbes amotinados, e os ambuílas, e os cuanhamas, e outros muitos ao longo de muito tempo. Fossem eles portugueses bons e outro galo cantaria!
As Forças Armadas sustentaram um conflito de que estávamos a sair vitoriosos. E vitoriosos dele sairíamos, se a vontade de defesa nacional não tivesse claudicado, na sequência dos acontecimentos que se seguiram ao golpe de estado de 25 de Abril de 1974. Essa aventura duns rapazes nada patriotas e pouco responsáveis, agindo na ressaca duma noite mal passada.
Aqui o autor muda a ordem dos factores, põe o efeito no lugar da causa. Mas a sua arrogância vai mais longe. Permite-lhe verberar o comando de Vassalo e Silva na Índia, e considerar lícita a ordem de Salazar que pretendeu apenas ganhar tempo, trocando a vida do contingente por oito dias de teatro diplomático internacional.
Esbarra uma pessoa neste arrazoado e não acredita no que está a ouvir. Mas vai-se ver melhor e compreende-se. O autor terminou a Academia Militar em 1974. Depois fez um tirocínio de 18 meses na América. Ao regressar, a guerra era passado, e ele já não teve o privilégio de participar nela. Em 99 passou à reserva, e foi comandante de linha aérea. Algures neste percurso fez-se mestre em estratégia no ISCSP.
Quer dizer, o sr. tenente-coronel parece mas não foi. Nunca provou as guerras africanas, e assim tão pouco lhe custa mandar a realidade às malvas. Tudo quanto faz sobre o assunto é teorizar by the book. E estaria no seu integral direito de escolar aplicado, se o que pratica não fosse um exercício de renovada mistificação e antiquíssima trapaça. Nos arquivos, donde foi desenterrar anacronismos, não encontrou notícias do Exercício Alcora, nem dos planos do regime colonial de pôr nas mãos da defunta Rodésia e do extinto apartheid sul-africano a tarefa de esmagar os terroristas maus portugueses.
Adriano Moreira, que terá sido seu mestre no Instituto, cedeu à obra um prefácio. A perspectiva do autor tem parentesco com a iluminação do V Império, que não se apagou de Vieira a Agostinho da Silva.
Se não há ironia nisto, nem esse parentesco é verdadeiro. O V Império é um Além de iluminados, é o prado metafísico onde pastam os visionários, resguardados das contingências do mundo. Não é o caso desta obra, que, a despeito da miopia, em momento algum se afasta da factualidade concreta. Nem do autor, que está parado no tempo, confuso no nevoeiro. Segue padrões muito antigos, quando invoca a Pátria em vão.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Palcos

Tou aqui a escrever à pressa a ver se ainda vou a tempo. É que não quero perder o S. João por nada deste mundo.
A última vez que lá fui explanaram-me em palco um romance inteirinho. Um daqueles russos à maneira, a abarrotar de pormenores de alma, que leva bem à vontade seis meses a soletrar. E ainda aproveitei o segundo intervalo para ir ao casamento da prima Balbina. Era coisa apalavrada há muito e custou-me desamparar a rapariga. Mas lá voltei a tempo de assistir ao desenlace e participar nas palmas, quando os actores andam fora e dentro, fora e dentro, fora e dentro, a plateia toda em pé e uns espontâneos aos gritos.
Agora prometem-me a leitura dos versos integrais do Paraíso Perdido, a propósito dum enredo qualquer do Mestre Gil. É certo que tenho para esta noite a viagem a Cancún, uma semana inteira, a aproveitar as pechinchas da gripe dos porcos, a esquivar-me aos frios que aí andam. Mas a coisa promete tempo para tudo, e paraísos perdidos é comigo. Se nunca falhei nenhum, não ia agora faltar ao do S. João. Nem aos aplausos finais.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Fado antigo

O periclitante governo de Sócrates é uma tripla ironia. À portuguesa. À primeira não tem alternativa, no deserto político instalado. À segunda não tem pernas para andar, porque lhas tolhe a maioria absoluta do sr. Aguiar-Branco. E à terceira ficará na história, por duas decisões demolidoras: o TGV, tal como foi lançado, e o novo aeroporto, conforme está previsto.
Nem um nem outro têm sustentação, nem correspondem ao que o país precisa. Económica, técnica e financeiramente, ambos são equívocos fatais. São o temerário passo em frente de quem chegou à beira do precipício.
Um dia serão capelas imperfeitas, ou palácios da Ajuda inacabados, que a nossa colectiva inconsciência por fim assimilará. Para que se cumpra a tradição das quimeras, e o velhíssimo fado da pobreza.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Elites, idiotas úteis e papagaios avençados

As elites dirigentes, que há séculos se ocupam em conduzir a pátria pela trela, desprezam há muito o contacto com a realidade. Substituíram-na por mitos, que poupam muito trabalho e servem bem para atestar a escudela do povo, enquanto guardam para si os lombinhos da presa.
Mas nunca lhes faltaram profetas do futuro, pensadores visionários, idiotas úteis, e múltiplos papagaios avençados a espalhar as boas novas.
Agostinho da Silva julgava que Portugal civilizou a Ásia, a África e mais a América. Só lhe faltou civilizar a Europa, coisa que não perde pela demora!
Caetano Veloso, entrevistado no último Ípsilon, encantou-se com a ideia e declara amar a frase, que acha uma pérola de ousadia criativa. A ideia é muito bonita, porque é muito desabusada e na contramão do óbvio.
Alexandra Lucas Coelho, o papagaio de serviço, lá justificou a avença.
As elites aconchegaram os flancos nos coxins do 5º Império.
Os portugueses embarcam para a Europa, a ver se matam a fome.
A pátria é que não sai da cepa torta.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Comédia

Que Vasco Graça Moura escreva no jornal pérolas como “A porcaria”, em que insulta os eleitores para achincalhar adversários políticos, ainda vá que não vá. Qualquer urso em duas patas, ao longe, parece um homem. E um urso que traduz Dante está familiarizado com a Comédia Divina, e as outras comédias todas.
Já, porém, que o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, ilustríssima eminência, terceira anda do poder, vá buscar à lixeira a preciosidade, e a desfralde como bandeira no seu site, é mais que um gesto de urso que aprecia a comédia. Ursos que tais são as personagens dela.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Mandá-los foder!

O primeiro-ministro José Sócrates não será, a vários títulos, flor que dê jeito cheirar. Tem defeitos, limitações, tiques, teimosias, obstinações, tendências para o disparate e fragilidades várias. Além disso veio da província, como diz a outra senhora. Falta-lhe o bafo a que rescendem as elites, e o único pedigree que elas lhe reconhecem é o de arrivista.
Porém, mal ou bem, desde há 35 anos, o governo de Sócrates foi o único que ensaiou alguns pequenos passos para fazer de Portugal um país. Para alterar este triste fadário a que as citadas elites (de políticos, de bispos, de barões, de doutores, de banqueiros, de juízes, de economistas, de empresários) há séculos nos condenaram.
Bem sabemos, claro, que há oposições. E que existe a mirífica esperança de encontrar entre elas qualquer alternativa ao governo de Sócrates. Pois que Sócrates é uma besta refinada!
Mas assistindo ao espectáculo do último debate do governo na Assembleia da República, e atentando no papel desempenhado por Manuela Ferreira Leite, e Aguiar Branco, e Paulo Portas, e Francisco Louçã, e outros quejandos, tudo o que Sócrates devia ter feito era mandá-los foder. E nós com ele, antes que a todos nos fodam, ainda mais.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Petróleo - a hora da verdade

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal


O mês de Novembro que agora termina foi fértil em notícias e acontecimentos relacionados com a energia. Logo no dia 10, foi apresentado em Paris o relatório anual da Agência Internacional de Energia (AIE), relativo a 2009. Refiro-me ao ” World Energy Outlook 2009”, um relatório sempre ansiosamente esperado, muito comentado, amplamente esmiuçado e analisado.
Nos anos recentes a AIE (e sobretudo o seu economista chefe e responsável pelo estudo, o Dr Fatih Birol) tem vindo paulatinamente a tomar posições mais “realistas”, e a alertar o mundo para situações previsíveis de iminente quebra na produção de crude. Ano após ano, têm vindo a ser revistas, sucessivamente em baixa, as estimativas de produção para o ano-meta de 2030: em 2005 eram 120 milhões de barris/dia; em 2006 baixou-se para 115 milhões; neste ano de 2009 a previsão aponta para não mais do que 105 milhões de barris/dia.
Em 2008 a AIE alertou o mundo para o previsível esgotamento rápido dos campos petrolíferos actualmente em exploração. Indicou mesmo a preocupante taxa de 6,5% de diminuição anual da extracção. Foi também nesse ano que se falou da imperiosa necessidade de lançar, até 2030, novos projectos de exploração equivalentes à produção de quatro Arábias Sauditas, só para repor o que se irá perder nas jazidas actuais. Ora um tal objectivo deve considerar-se muito ambicioso e improvável de alcançar, visto corresponder a 40 milhões de barris de crude/dia, quase metade da produção mundial actual.
Porém, as notícias que mais agitaram os interessados nos assuntos da energia foram dois artigos publicados no Guardian: o primeiro no dia 9 de Novembro, véspera da apresentação do relatório anual da AIE; o segundo no dia 14.
No artigo do dia 9, intitulado “Key oil figures were distorted by US pressure”, uma fonte não identificada da AIE afirmava que o início do esgotamento do petróleo está muito mais próximo do que aquilo que se diz. E que só não se diz toda a verdade em virtude da pressão exercida pelos Estados Unidos, os quais, desta forma, pretendem evitar o pânico e a pressão sobre os preços.
No artigo do dia 14, o Guardian publicava as conclusões de um estudo da Universidade de Upsala, que contraria e revê em baixa as previsões da AIE. O artigo baseava-se nos estudos do Dr Kjell Aleklett para concluir que, em 2030, o mundo não extrairá mais do que 75 milhões de barris de petróleo por dia. Ou seja, menos 30 milhões do que aquilo que indicam as previsões da AIE.
Estes escaldantes artigos provocaram reacções. De entre elas sobressai uma carta de Colin Campbel, geólogo reformado, especialista de jazidas e fundador da ASPO, dirigida ao jornal. Nessa carta ele conta todo o historial relacionado com as previsões de produção de petróleo e diz: “Os desafios são muito grandes e torna-se claro que os governantes devem começar a preparar-se urgentemente para o que nos espera. Acredito que os artigos do Guardian possam ajudar a despertar os governantes da OCDE, e servir de pretexto para introduzir novas políticas. E, ao mesmo tempo, permitir que a AIE passe a produzir estatísticas mais realistas sobre a verdadeira situação no que respeita à produção de crude”.
Em Inglaterra não se fizeram esperar outras reacções. Uma organização empresarial veio mesmo pedir ao governo de Gordon Brown que reveja a sua posição sobre a avaliação dos riscos de uma eventual quebra na produção de petróleo.
Este circunstancialismo veio colocar de novo no centro das atenções o problema do pico do petróleo. Tudo começou em 1956 com o alerta de Hubbert King, que anunciou correctamente para 1970 o pico de produção nos Estados Unidos. Seguiu-se em 1957 a esclarecida palestra do contra-almirante Rickover, o pai do submarino nuclear. E finalmente, em 2005, o relatório Hirsh, que concluiu pela necessidade de um largo período de preparação para mitigar os efeitos de uma crise no abastecimento de petróleo.
Estamos a falar do maior desafio que a Humanidade vai ter de enfrentar nos próximos anos. Um desafio que não se resolve com paliativos, nem com hidrogénio, nem com energias renováveis, e possivelmente nem com energia nuclear. Só uma corajosa política de verdade por parte dos dirigentes, e uma mudança nas formas de vida das sociedades, pode contribuir para ajudar a resolver este problema. Preparar a transição com tempo é uma obrigação de todos. E meter a cabeça na areia só agravará a questão.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Interrupção

As palavras são como os linhos antigos. De tanto andarem a cote, chega um dia em que ficam encardidas, a precisar de barrela. Há que estendê-las ao sol e deixá-las a corar, até ganharem brancura.
É o que aqui se fará durante uns tempos.

Portugalmente (75)

(...)
Camilo é escrivão num tribunal do Porto, passa agora umas férias em Almendra, que é a sua terra e fica perto. E seria uma vergonha não ter visto ainda os cavalinhos, se em casa de ferreiro os espetos de pau não fossem de uso corrente, conforme diz o ditado. Decidiu-se hoje, espera a sua vez juntamente com uns franceses. E trouxe ao viajante a sorte grande, conforme adiante se verá.
O fim do dia vem perto. Mas este condutor que acaba de chegar não está aqui para outra coisa senão servir os clientes e ganhar o seu salário. Nem que fosse ao lusco-fusco haveria cavalinhos. E os visitantes metem os pés ao caminho, salvo seja.
A quinta da Ervamoira, que além na encosta fronteira se derrama sobre o rio, é um presépio natural que o espelho da barragem haveria de inundar. O guia confidencia que houve tranquibérnias várias, terraços improvisados, plantações de última hora e compromissos bancários, para engordar as indemnizações. Com a suspensão das obras a expropriação não veio, aos bancos não lhes agrada esperar, e a quinta acabou nas mãos dum vinhateiro francês. Mas o vinho não perdeu qualidades nem fama, e seria a maior perda se a barragem se fizesse.
Na praia da Penascosa encontram os visitantes três fragas iluminadas, três telas de arte rupestre. Já forçaram os fatigados olhos a deslindar os auroques filiformes, entrelaçados com cabras montesas, veados picotados e cavalinhos de crinas ao vento. Outra vez voltam a ver, ou a tentar, e a ouvir num francês estropiado que as gravuras têm pelo menos 18.400 anos, datados pelo carbono 14. Não sabem se estas figuras demarcavam territórios, se eram rituais propiciatórios de nómadas caçadores, ou se tinham função mais transcendente. Olham em volta a rudeza da paisagem que se abandona ao crepúsculo, e as ovelhas que recolhem, a tasquinhar pela margem, quem sabe se a recordarem os primos antepassados. O silêncio em que regressam é o da melancolia. Já o destes visitantes denota constrangimento, para não dizer alguma decepção. É Camilo quem o rompe.
Que nada vai subtrair à importância das gravuras. Serão elas capital para uma nata de académicos, uma elite de arqueólogos, um escol de especialistas. Mais do que isso não despertam emoções nem provocam romarias, e os números aí estão para o ilustrar. O significado próprio dos cavalinhos não tem correspondência visual, pouco diz a espíritos iletrados, nunca será espectáculo que atraia multidões. Por isso quem prometeu eldorados turísticos com a suspensão da barragem foi vendedor de ilusões. E o museu que andaram a construir é outra peça da mesma encenação. Um dia, festivamente, alguém há-de vir inaugurá-lo. E depois desse breve sobressalto, de romaria de verão, cumprirá o papel dos elefantes brancos, que tem largas tradições na nossa terra.
O viajante sustenta que uma barragem é sempre um compromisso, entre o que se perde nela e tudo quanto se ganha na sua construção. Veja-se o caso do Tua, uma linha de montanha das mais belas da Europa, que a empresa logo exigiu em troca dos cavalinhos. O património e a história que nela vão enterrar é de valor incalculável, sem qualquer forma de mitigar as perdas.
Chegou ainda a falar-se em deslocar as gravuras, e noutras soluções de remissão. Mas logo uns eruditos gritaram heresia, que os cavalinhos ficavam sem contexto, privados de chão terreno. Era a história que perdia o pé, e lá pararam as obras. Mal convencido por semelhante argumento, o viajante não sabe em que ficar.
Agora há quem se agarre ao pequeno negócio, há quem defenda o precário trabalho, há quem tenha receios do clima e dos míldios de Junho. A empresa das barragens procurou outros lugares, onde provocará danos maiores. E aos mestres da ciência arqueológica servem os cavalinhos do Côa de muletas de carreira e modos de afirmação. Josué tinha razão, a suspensão da barragem foi um erro clamoroso. E mais razão tinha um sábio que já houve, ao lembrar que a solução dum problema qualquer nunca pode ser achada nas mãos de quem o criou.
O farpão é de Camilo, que já não conheceu o padre Júlio, velho conterrâneo seu de quem estaremos lembrados. Nem sabe das histórias de Ramón vermelho, que ficaram lá para trás. Mas picou-lhe logo a pulga na orelha, quando vieram à baila.
Ou ele é verdade que há horas de sorte, como já se ouviu dizer, ou simples fortuna deste viajante. Ganha um jantar em Almendra, em troca de explicar ao companheiro como foi que o padre Júlio se tornou o pai dos pobres. E ganha um anfitrião, que amanhã lhe há-de mostrar este reino de colinas encantadas.
(...)

Encore

Já uma vez aqui foi dito e hoje se volta a dizer, por ser verdadeiro e pertinente.
Portugal nasceu do capricho dum príncipe. E em lugar de nele construírem um país, os portugueses foram-se a correr sertões, a cavalo no vento.
Do país ficou-lhes a paisagem, que povoaram de desespero. E inventaram esta loucura mansa, que é inimputável e ilude a realidade.
Precariamente vão sobrevivendo nela.

Portugalmente (74)

(...)
Depois de passar a ponte está o viajante em Riba-Côa. Acostumado que vem às estradinhas modernas, já se tinha esquecido das antigas, como esta que tem à espera e parece um mar revolto. Mas o viajante confia no seu velho companheiro, e até Castelo Melhor é um saltinho. Em seu redor, na direcção da Marofa, desenrola-se um planalto de ondulações femininas, de arredondadas colinas que a erosão do tempo boleou. O xisto impera, com proveito dos vinhedos, que alastram em remendos nas encostas. É um reino de olivais e campos de amendoeiras, a pontilhar na paisagem as suas geometrias caprichosas. Bem gostava o viajante de perder tempo com elas, mas a aldeia já está ali à mão direita. E ao fundo duma íngreme calçada chega finalmente ao centro de arte rupestre.
É uma casa aprimorada e tem ar condicionado, pormenor que não é despiciendo a quem aporta aqui num dia assim. Mas as novidades boas são escassas. Três visitantes folheiam revistas da natureza, e a hospedeira acumula como pode as tarefas de recepcionista e de guia das visitas. A tutela cortou no pessoal, o balcão de refrescos deixou de funcionar, está desligada a máquina de café, a viatura sofreu uma avaria e a programada visita foi suspensa. A única salvação está nos guias privados que prestam serviço ao parque e não tardam a voltar. Embora ninguém o afirme, depressa se torna claro que os serviços oficiais bateram em retirada, cedendo o campo ao mercado.
Ao viajante não agradam tais augúrios. Mas aguarda calmamente, não ia agora desistir desta pimenta após ter chegado à Índia. E só sairá daqui depois de tirar a limpo esta contenda, entre uma barragem que ficou a meio e umas gravuras que não sabiam nadar.
Numa loja que há no largo, os produtos regionais da Terra d’Oiro não chegam a seduzi-lo. E a instâncias do viajante, logo se declara a locandeira partidária das gravuras. Por ter receios do clima, dos nevoeiros de inverno em que deixa de haver sol, das frialdades de Junho que fazem a cama ao míldio e estragam o vinho da terra a quem o tem.
Já Josué, que em tempos retornou de Moçambique e hoje está reformado da companhia de electricidade, dedica-se agora à amêndoa e aos subsídios dela, uma vez que a maior parte não chega a ser recolhida. Veio ao café Paleolítico beber a sua cerveja e já viu os cavalinhos todos. Para ele foi um erro clamoroso. A energia e a água são dados determinantes para resolver a equação, e hão-de sê-lo mais ainda no futuro. Além disso a barragem e as gravuras não eram incompatíveis, já que há técnica bastante para levantar uma e preservar as outras. O salto de qualidade prometido pelo turismo não chegou a ter lugar, o desalento é geral, e a maioria das vozes na região só está à espera da conclusão da obra. Depois ficou prometido recuperar a paisagem destruída, mas a vergonha lá está. E o museu que fizeram num cabeço há-de ser um bom refúgio para os auroques. Um dia haverá barragem no baixo Côa.
Ao viajante não surpreende a cizânia, nem lhe compete aqui tomar partido. Veio de longe a ver os cavalinhos e alguma coisa já viu, talvez um guia privado que presta serviço ao parque lhe permita ver o resto.
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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Arabescos

Certo mestre entalhador que um dia houve em Foz-Côa não se perdia nos arabescos.
Quais indulgências plenárias, quais teias corporativas, quais presunções de inocência, qual quê do ónus da prova?!
Tonsurados, abadessas e beatérios avulsos... fogo do inferno com eles!
Ao tempo não havia bacharéis de leis, bem entendido!

Portugalmente (73)

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O viajante deixa para trás a afogueada charneca da Coriscada e das Tomadias. Já passou o Valtalhado, e as ruínas da estalagem da Rosalina onde em tempos aportavam almocreves de caminho para Além-Doiro, e a veiga dos Areais, que ao mesmo tempo regala um espírito escarmentado e uns fatigados olhos. À entrada do país do vinho fino, as quintas do benefício instalaram-se no vale e os vinhedos tapetaram as encostas. E vão alastrando além, nos altos da Cornalheira, em terraços de plantações recentes. Apertado pelo tempo, o viajante mal passou e andou. Mas exultou finalmente, por encontrar na paisagem sinais de vitalidade.
Logo que alcança Foz-Côa, vai à procura das instalações do parque arqueológico. E se os auroques do rio não forem mais escorreitos do que a fachada de lata da casa dos arqueólogos, de pouco terá valido a maratona. A hospedeira lembra a suspensão das obras da barragem e a criação do parque, a preservação da história e do património antigo, como quem revive as origens do mundo. À curiosidade do viajante responde que no último ano catorze mil visitantes vieram ver as gravuras. E acrescenta que está finalmente pronto o museu de arte rupestre. Um dia destes vão inaugurá-lo, não há bandeira melhor à porta as eleições.
O viajante perdeu-se no caminho. Mas lá foi dar ao museu, no alto duma colina, sem saber o que perdia se o não tivesse encontrado. É um temível baluarte, de proporção desmedida, metade dele enterrado. De olhos fechados à vastidão da paisagem, o fortim não possui uma janela. Faz lembrar ao viajante o serralho dum sultão, dos que havia antigamente nos contos orientais, para arrecadar concubinas resguardadas das tentações do mundo.
Atarefado anda um empreiteiro, a instalar as artérias que hão-de trazer vida às entranhas do monstro. O viajante não pode imaginar o que vão expor lá dentro, se não for uma lição de história virtual, projectada num ecrã, como agora está na moda. Cavalos de animação a beber água num rio, uns indígenas hirsutos à lançada num auroque, um artista a picotar uma cabra numa fraga. O viajante não sabe, mas já nada lhe provoca admiração. E abandona o olhar no panorama, o espelho do Douro a um lado, a outro a fita do Côa, entre os dois uma estação de comboios que deixaram de passar. Neste reino de colinas encantadas, onde há milénios perdidos já se honrava a natureza, o que ficou rio acima depois das obras suspensas é a lição mais-que-perfeita de como devastar uma paisagem. Encostas escalavradas, alcantis, falésias cruas, terraplenos, escombreiras, valagões e desaterros, rasgões de estradas sem fim, tudo ao molho e fé em Deus no mais completo abandono. Muito mais que um património mundial, o que a suspensão das obras ofereceu à humanidade foi um monumento à destruição ambiental, em nome da cultura. E o viajante ficou aqui a saber que não basta ser um homem ilustrado, cosmopolita, humanista. Para ser um bom governante, convirá ter pés assentes na terra e rodear-se de gente de juízo, se a houver.
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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Muros

Os ruidosos festejos da queda do muro de Berlim, (a que também chamaram muro da vergonha porque separava o mal do bem e o paraíso da geena), confirmam o que já era suspeito. De preferência recatado e solitário, o recurso à bebedeira é muitas vezes um acto colectivo. E assim se juntaram na Pariser Platz eminências alemãs, francesas, polacas, inglesas, americanas, uma russa e outras avulsas.
Porém não creio que ontem o tenham feito para uma narça colectiva. Antes vieram a embebedar o pagode, com brindes à liberdade, à democracia, à bem-aventurança e ao futuro. Ao delas, bem entendido, que ao do pagode não.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Portugalmente (72)

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Marialva são três momentos da história, três páginas dela expostas aos olhos do viajante. A primeira é a Devesa, espraiada na charneca. Lado a lado com as vivendas modernas, do peregrino gosto conhecido, guarda a Devesa sinais de algum alento burguês de há cem anos. No desafogo das fachadas de granito com amplos varandins, nos telhados de alto encume que por então se faziam, nos armazéns de comércio de largos portões de ferro. Mas o que veio salvar as frontarias, e as praças e estes recantos, foram os ventos da Europa, e o programa das aldeias históricas dos fundos de coesão.
Há-de parecer que a Devesa é uma criação moderna, e não no é, pois constou ao viajante haver por aí sinais bem mais antigos. De povoamentos romanos, de vilas agrícolas com mosaicos de Baco, do tempo dos imperadores. Nem admira, que sempre o trigo se quis à beira duma ribeira. Porém deles não sabe dar notícia o dono deste café. E o viajante resiste às seduções de Baco, que tem muito que fazer. E já lá vai, monte acima.
A Vila, fora de muros, é a página segunda, e nela a Corredoura está deserta. O casario em volta sofreu restaurações, ao menos os telhados e as fachadas, que por dentro não se arrisca o que lá vai. E agora mesmo pararam para o almoço uns artistas que andam a reformar a igreja de S. Pedro, posta aqui há muitas centenas de anos sobre uma necrópole medieva.
Passa o solar dos condes de Marialva, que os marqueses só mais tarde cá chegaram, e os alpendres da casa do Leão, que espreita lá de cima dum corrimão de pedra do tempo das caravelas, e a torre sineira da igreja de S. João, uma obra dos templários que ficou encastrada na muralha. Isto antes de os cavaleiros serem homiziados, do grande poder que tinham, e os seus tesouros levados a custear a cruz de Cristo, que nos empurrou para a Índia a cavalo no vento. Andam ecos de aventuras africanas a pairar nestes balcões, quem sabe se este brasão não foi conquistado a ferros nas campanhas de Azamor.
Há quinhentos anos era Marialva assim, mesquinhas habitações, mesquinhas hortas com figueiras, mesquinhas as ruelas. Um dia vieram os fundos europeus a dar vida a esta praça, onde dormitam jipes reluzentes de famílias que vieram de longe, à procura de um sossego. Salvaram do abandono estas casas de turismo com piscinas no terraço, e hão-de salvar da penúria o viajante, que nelas tem à espera um cardápio de luxo onde apazigua a fome. A bem dizer não precisava de tanto, mas um dia não são dias.
A porta do Anjo da Guarda é a entrada principal da Cidadela, que é a página terceira. E o viajante, que não faz ideia do que serão mil anos, encontra nela alguma sugestão. Manuel é a única coisa a destoar lá dentro, porque não tem mil anos, embora chegue a parecê-los. Degola aqui umas ervas ruins, levanta além uma pedra caída. Partilha com o viajante a pouca sabedoria, aqui é a porta do Monte que dá para os lados da forca, além abaixo a de Santa Maria, entre ambas a torre dos Namorados, o pouco que dela resta. E do lado do sol-posto é o postigo da traição, atrás daquelas igrejas.
O viajante faz a ronda das muralhas, segue o desenho das ruas e das construções que há nelas, comovem-no estas paredes, um dia já foram casas, de áravos, de romanos, de godos, de muçulmanos, de cristãos, outra vez de maometanos, de portugueses enfim. Hoje são apenas logradouros onde estremecem velhas oliveiras, o tempo chega para tudo. Este paço, na praça do Pelourinho, já foi poder e comando, foi cadeia e tribunal, há cem anos era escola. Hoje é a cara do tempo, e as velhíssimas estrelas da calçada as rugas dele.
No terreiro das igrejas, que são duas lado a lado, uma seria demais. E os seus donos estariam no inferno, se inferno fosse o castigo da malfeitoria humana. A investigação nunca foi feita. Porém os templos assentam num terrapleno que certamente cobriu construções mais antigas. E o viajante tem pena. Tinham mais bênção as casas e as ruelas, e as calçadas em estrela que os pés da gente pisaram, do que estes templos com púlpito exterior, onde nem sempre se deu voz à verdade, e lhes ficaram plantados em cima.
Ali ao lado, na faceira dum penedo, estão inscritas as palavras dum mestre de viajantes, que um dia aqui passou e cedeu às emoções. E se este agora não perde a compostura é por estreme pudor, que onde já correram lágrimas ao mestre não se aventuram as dum aprendiz. Deixa para trás a Cidadela, abrigada no regaço destes montes que há mil anos a embalaram. São belos e comoventes. E embora torturados pelos incêndios e pela insânia dos homens, hão-de aconchegar aqui outros mil anos esta bela adormecida.
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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Portugalmente (71)

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Terra afamada de vinhos é o Carvalhal, aconchegado aqui na fundeira do vale. E resistiu aos incêndios de há uns anos, que deixaram estes montes na miséria que se vê. Mas não entraram no povo, Deus louvado, é o que a dona Agostinha desabafa ao viajante. As cubas de cimento, que lá ficaram atrás com aspecto abandonado, são da adega cooperativa, que há uns anos deixou de trabalhar. Chegou a vir para aí um espanhol. Mas apesar dos bons vinhos a adega não se salvou. Agora os pequenos vinhateiros vendem as uvas ao desbarato, como calha. E os mais velhos lá lhes vão metendo a mula e o arado, mais por vergonha e pelo amor que ainda lhes guardam. Mas se fizessem as contas...
Para escapar a tão mesquinhos assuntos a dona Agostinha vai lá dentro, já volta e traz uma chave. Quer mostrar ao viajante a igreja do Carvalhal, lá tem as suas razões. É uma generosa fábrica com ares de rococó, e tem na capela-mor um tecto surpreendente de caixotões pintados. Mais um pouco e era aqui a corte celestial. Tantos painéis de madeira vieram de muito perto, dum convento que os franciscanos tiveram nos Vilares, para os lados de Marialva, no tempo em que em Portugal havia mil e trezentos, os de São Francisco e os mais. Quando se acabaram as clausuras, por ordem do Mata-Frades, o convento ficou abandonado. Ora roubar por roubar, o povo do Carvalhal foi buscar estes painéis. E foi o melhor que fez.
Ao viajante cativa-o a frescura desta nave, e a corte celestial dos santos todos, e a simpatia da sua acompanhante. Mas tem à sua espera os caminhos do mundo. Segue por uma estradinha à beira duma ribeira, que toda a vida foi carreteira de mulas e hoje é uma fita macia que os fundos europeus aconchegaram. É tão estreita e mesquinha que só um carro elegante cabe nela. Mas o viajante não quer outra coisa. Deixa para trás um campo de escombreiras, e a lagoa dumas minas que houve aqui a céu aberto, e a escassa vedação que lhes guarda as ameaças, com caveiras amarelas. Depressa lhe dão os olhos na muralha de Marialva, a branquejar além no horizonte, há séculos que está à espera.
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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Portugalmente (70)

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E assim veio parar a este lugar, que um dia já se chamou Vale de Ladrões. Foi isso num tempo antigo, quando os ladrões tinham lugar marcado. Porque agora aproveita a liberdade aos meliantes, para levarem à letra o bíblico preceito. Cresceram, multiplicaram-se, confundiram-se entre a gente. E Valflor é o nome que agora tem, nenhum outro lhe assentaria melhor. Fosse visconde este viajante, e não chegasse tão ensombrado de espírito, aqui teria encontrado o seu Vale de Santarém. O verde fresco das vinhas aramadas, a cinza dos olivais, a mancha negra dos sobros além na asa do monte, e o primor destes pomares a derramar-se na encosta até à beira da estrada, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita.
Mas gaba-te, cesto roto! Debaixo das macieiras, todo o chão é um vastíssimo tapete de frutos a apodrecer, mais parece estragação de alguma tempestade. Intrigado e confundido, o viajante dirige-se à quinta, a branquejar ali no arvoredo. E é uma quinteira amedrontada que o recebe com maus modos, enquanto apazigua os cães de guarda.
- Cais trovoada, cais carapuça! A fruta vai para a Concentra, que a leva em camiões. E a do chão é para os gados dos pastores, por troca das estrumadas!
O viajante foi meter o nariz onde não era chamado e caiu na insensatez. Escusado sobressalto o da pobre da quinteira, que tanto se há-de temer de fiscais e burocratas! Embora saiba, de sobra, que só complicam a vida e não dão pão a ninguém, o viajante vestiu-lhes a pele e agora é tarde demais. Jura a si mesmo não voltar a ocupar-se de pomares, abandonados ou não. E é sorte sua não andar por perto o patrão da família! Acaba a desculpar-se da maçadora intrusão, enquanto deita aos cães um olhar desconfiado. Na retirada mira novamente os destroços da fruta. Por pouco inveja as ovelhas, tão regalonas que são.
Mas chega a Valflor recuperado e confiante, não sonhava encontrar um vale assim. As vinhas e as oliveiras caindo pelas encostas a revestir a paisagem mostram que o mundo mudou. Só para Adalberto a mudança é que não foi para melhor. Está ali encostado à galilé da capela de Santo António, apoiado nas muletas. E o viajante pára na grande sombra dos plátanos e estranha-lhe a condição.
- Tive uma hérnia aqui, mas não me correu bem!
Ao dizer isto aponta a um dos lados do ventre, põe-se a contar da operação no hospital. Ficou-lhe presa esta perna, mais tarde ainda lá voltou. Mas nunca mais dispensou os andarilhos.
Aqui não sabe o viajante o que fazer. Nem lhe sobram devoções de milagreiro, que já as consumiu todas, nem um milagre aqui fazia falta. O que faltou à hérnia de Adalberto foi um médico capaz de lhe concertar o corpo, sem ferir o que não carecia de concerto. Seria pedir demais, e ainda bem que o Adalberto tem este ar pacificado. Só uma tal resignação lhe servirá de conforto.
Ele há-de conhecer em Valflor os paços dum almirante que aqui houve, e Salazar visitava! São ali por trás daquelas casas, nem conhece ele outra coisa, se tanto lá trabalhou! Do Salazar é que já se não recorda. Mesmo que o tivesse visto não o podia diferençar, era um homem como os outros.
O viajante só discorda de Adalberto porque sabe, desta história, mais do que ele. Ouviu dizer que nos paços do almirante, em verões antigos, tinham lugar encontros de coração. Mas as damas vinham duas, e o Salazar era um só. A paixão dele era uma castelã, de sangue azul e modos adocicados, diplomática e discreta. O nome dela era uma cordilheira, só ele enchia a página inteira dos assentos. Mas o enlevo que mostrava ao sacripanta era apenas circunstância.
Já a outra era azougada, uma amazona. Desfolhava-se por ele e não controlava os impulsos do corpo, que era tão vasto quanto impaciente. Dizia ela que a vida são dois dias e lá teria razão. Porém ele fazia-se de sonso e não lhe dava saída, que lhe metia medo a mulheraça. E fazia-lhe lembrar a Carlota Joaquina.
Quantas vezes casos bicudos da história, como este do Salazar, encontram explicação assim ao virar da esquina! Isto vai ruminando o viajante, que foi procurar os paços dum almirante e já os encontrou. Abatidos, decadentes, a caminhar para a ruína, tão transitórios como as glórias do mundo. Foi isto um suspiro de amazona, ou alguma porta velha que rangeu?!
Quem em tempos conheceu bem estas escadarias foi Francisca, das Moitas de São Martinho, se derramou nelas as lágrimas melhores. Tinha três filhos mas só lhe sobraram dois, que o terceiro levaram-no umas febres, num sertão de África para onde foi à ventura. Um dia o mais novato andava nuns lameiros, a gadanhar o feno, ali às Águas-Vivas. E lá entrou em despiques com um farsola, por causa duma gaiata. O resto foi o vinho que o fez. Veio para casa mais cedo, foi buscar a caçadeira, e ficou à espera que o carro dos bois parasse no meio do povo. Não era o tal farsola que vinha a cavalo nele, empoleirado na carga, mas ele nem reparou. E vindimou o pai sem o saber, amaldiçoada hora!
A mãe Francisca ateve-se ao almirante, pois a quem... A justiça era tão longe, a vida era tão madrasta, o homem tinha emigrado sem lhe mandar um tostão… Andou que tempos a caminhar para aqui, por esses montes abaixo. Num taleiguito à cabeça trazia o melhor que tinha, que era nada. Guardava no coração uma esperança, nem sabia, de merecer uma atenção do almirante. Mas o filho apanhou a pena máxima, nunca mais se endireitou. E um dia a velha Francisca, perdida aquela ilusão, tomou-se do desalento e lá se deixou morrer.
Às vezes preferia o viajante não ter arcas da memória, esquecer tudo o que ouviu, não ter lembranças de nada. Ver as paisagens do mundo e contentar-se com elas. Sobretudo quando são assim floridas como estas de Valflor, que até serviram de alcova a Salazar.
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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Portugalmente (69)

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Avelino é o nome do pastor, e já tem a sua idade. Veio da Sapateira, lá ao fundo, passando a ribeira, e trabalha aqui na quinta a tomar conta do gado. À noite vai dormir a casa do patrão. Torna com a estrela de alva, ainda a manhã vem em Castela, e se calha traz a merenda aviada, como hoje aconteceu. É cativa, uma tal vida, assim desemparelhada, mas sozinho já ele estava desde que a mulher morreu.
Hoje ninguém pega em tais trabalhos, vive-se não sei de quê, mas Avelino resiste, nas vizinhanças da santa. Fazem-lhe uma festa em Maio, quando chega o último domingo, é coisa de nomeada e junta aqui muito povo. Dizem missa na capela, sai o andor em procissão à volta deste castelo e no fim arrematam-se as oferendas no palanque de cimento. Para resto há o arraial, mais uns copos que se bebem, e assim se passou o dia.
Mas esta santa já não é a verdadeira, que essa vieram cá os dos Gatos e roubaram-na. Depois os de Casteição fizeram-lhe a mesma coisa, guardaram-na lá na igreja e puseram cá uma nova, de muito menos virtude. Dava chuva, a antiga santa, em lha pedindo. Esta agora parece que já não.
- Pois pena é, coitadas das ovelhas! Sempre tinham pasto fresco e renovado!
O que mais toca Avelino, ponderando esta sequia, são as hortas e as vinhas da redondeza, que as ovelhas não têm razões de queixa. A quinta abrange a encosta toda, vai até lá acima, à estrada. E tudo quanto se cultiva nela serve de pasto para o gado. Que as culturas de algum tempo já não merecem a pena.
- Aqui há uns anos o patrão fez umas plantações modernas, aí pela encosta acima. Só arrotear aquilo foi um cabo das tormentas. Eu bem disse que não provava as novidades, depressa abandonou tudo!
Muito embora escarmentado com tudo quanto tem visto, o viajante fica alvoroçado. Mas são horas de partir. O pastor fica a dormir a sesta no frescor da galilé da capela. E ele já seguiu o seu caminho, já retomou a estrada na direcção da Meda. Toda a cumeada em volta é sáfara e maninha, uma plantação aqui nem por milagre da santa. Mas não é preciso muito procurar. Afogadas no crespo matorral, algumas macieiras resistentes fazem lembrar degredos e sertões.
O viajante meteu-se a corta-mato e foi ver com os próprios olhos. À raiz dos pinheiros que voltaram, em restolhais de pastagens e descampados bravios, rojam-se ainda os tubos ressequidos dum sistema de rega gota-a-gota. Não se imagina donde viria a água, nem que frutas poderiam medrar em tão desabrigadas solidões. Mas certo é que houve aqui projectos de pomares, e mais ainda alguém que os aprovou.
O viajante não quer ceder à descrença, mas vai regressando à estrada imerso em cogitações. Tal como noutros momentos que a história já nos mostrou, a bebedeira dos fundos chegados em catadupa, a política medíocre e a corrupção geral endoidaram o país. Quem apanhou, apanhou, quem o não fez, que o fizesse! É esta a palavra de ordem!
O viajante quer alcançar Marialva sem tornar a ver a Meda, que tem um padrão de pedra plantado logo à entrada. É uma homenagem aos soldados que andaram a combater nas províncias ultramarinas. Desenha a silhueta dum soldado, altaneiro e vertical, a projectar-se em fronteiras de lata, que delimitam colónias antigas.
Ora este viajante tem das guerras africanas recordações dolorosas, conforme já deixou dito. E este linguajar de pau deixa-lhe sempre um amargor na boca. Toda a vida ouviu falar dum passado português de marinheiros audazes. Até que um dia notou que, ou não somos, agora, o que já fomos, ou nunca fomos o que disseram de nós. Levaram-nos, é o mais certo, a fingir o que não fomos. Se assim foi, nunca seremos o que nos dizem que somos. Nas nuvens é que ficámos.
Fosse ele a bem da verdade e o viajante havia de emocionar-se, com este padrão da Meda. Fosse ele o justo tributo às mortificações de tantos portugueses, levados ao altar do sacrifício pátrio, mesmo se vão, mesmo se enganador, mesmo demente. Porém este padrão celebra mitos, em lugar de sacrifícios. Tem saudades de quimeras, cheira a mistificação e a trapaça. Por isso o viajante chegou ao cruzamento e fugiu por uma estrada secundária, para escapar a maus encontros.
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terça-feira, 27 de outubro de 2009

Portugalmente (68)

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Em silêncio atravessa Paipenela, onde decide abastecer-se de água, que a sua já se acabou. Pára num pequeno largo e vai por essas ruas, encostado à sombra das paredes, a escapar aos dentes da canícula. E está a pontos de perder as esperanças quando chega ao portão de Benjamim, que anda atarefado no quinteiro, a pôr em ordem a carrinha dos transportes para a Europa.
- Os passageiros são de muitos lados, vêm donde os houver! Às vezes de Lamego, de Pinhel, d’ Além-Doiro, e a maior parte vai para a Suíça. Só é preciso i-los buscar a casa!
Enquanto fala das suas viagens, Benjamim encaminha o viajante a uma torneira, ao fundo do quinteiro. Mas logo este fica preso à porta duma loja atravancada de rodas de automóvel. Há jantes de aço e outras de liga leve, e rimas de pneus de todos os desenhos. Se fossem de uso caseiro, a carrinha de Benjamim podia dar muitas voltas ao mundo.
- Trago-as na volta das viagens, quando não há outra carga. Sempre há-de haver quem as queira!
- E onde é que arranja estas coisas?!
- Estas coisas não se compram! – cumplicia Benjamim.
O viajante põe-se a congeminar. É madrugada nessas ruas da Europa, não custa nada pôr um carro nos calços e levar um par de pneus em bom estado. Por cá estas pechinchas têm muita procura. E aos portugueses, que toda a vida trouxeram nos pés sapatos de heróis defuntos, dão muito jeito os pneus usados da Europa.
Ao viajante não seduz o negócio. Mas não são dele as contas deste rosário, enche a garrafa de água e mete a língua na caixa. Sorte sua foi ter encontrado o atarefado motorista, pois não há, por estas partes do mundo, outro sinal de gentes ou de bichos. A canícula da hora há-de ser a explicação.
E lá segue, estrada fora, a pensar no que esta vida é, quando surge a tabuleta a apontar-lhe o Santuário da Vila Maior. Mais levado pela curiosidade do que por viveza de ânimo, e menos ainda por devoções que não tem, o viajante seguiu a indicação. Trazia assinalada no roteiro a existência dum lugar antigo, onde já vivia gente antes de cá chegarem os romanos, e depois deles os godos, e mais tarde os sarracenos, muito antes das conquistas dos cristãos. Não estava à espera do santuário que a tabuleta promete, e resolve ir tirar a coisa a limpo.
Mesquinha mas escorreita, a estradinha é obra dos mesmos fundos a que já nos habituámos, e desemboca nas costas duma capela, fronteira a um terreiro arrelvado. A capela atesta devoções recentes, de tão cuidada que está. E o viajante já conhece este vezo da Santa Igreja, de instalar oragos milagreiros onde os povos antigos se fixaram, e onde a história andou mexendo há muitos anos. Porém, não lhe faltando gerais e particulares motivos, se ele trouxesse ilusões de maravilhas e milagres, o mais certo era sair daqui de mãos a abanar. Que o prometido santuário mais não é que um simplíssimo lugar de romarias, onde mais contam as folganças do corpo que os recolhimentos de alma. Ao fundo do terreiro há um renque de carvalhos, a sombrear umas mesas de pedra. E ao lado um palanque de cimento, a encobrir um morro de fraguedos, obra deste benfeitor que deixou aqui o nome numa placa.
O viajante já subiu ao morro. E confirma o que diz o seu roteiro, tão claros se mostram nele os vestígios dum castro primitivo. Razão seria, e da máxima força, para o manter resguardado de palanques de arraial. Mas não é esse o entendimento das gentes destes lugares, que não gastam cera com pedras antigas, como ali atrás disseram os pedreiros de Casteição. Nem com pedras antigas nem com ruins defuntos. Foram cobertas de saibro aquelas sepulturas cavadas numa fraga, apenas para alisar uma rodeira a circundar o morro, onde há-de passar a procissão da santa.
O arredor é feito de hortas e retalhos de vinhedos, e tapadas derramadas pela encosta, cercadas de altas paredes. Tudo nos diz serem pedras que já viram muita história, queira Deus não passe aqui um dia destes algum romeiro espanhol. À mão direita há um pombal antigo e uma casa arruinada. É o que sobra duma velha quinta, a lembrar a vila romana que um dia já houve aqui. Essa era a vila maior, a origem mais remota do nome do santuário. Agora serve de abrigo ao rebanho que ali vem, nas horas do maior calor.
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segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Prémio Saramago


O prémio estimula jovens escritores, atarefados na busca dos grandes temas, afadigados com a boa explanação das matérias da arte. É um estimável desígnio.
Com as suas concessões e os seus deslizes, alguns passos em falso e equívocos não poucos, o romance CAIM é um bom candidato ao prémio do seu autor.

Vultos na paisagem


Um vulto é um espantalho de contornos difusos, e temos dois na paisagem literária: o primeiro é o prémio Nobel, e o segundo a falta dele.
O prémio Nobel, a incurável presunção, diz que o deus criador é um filho da puta, que não é de fiar. E a falta dele, o egocentrismo idólatra, confidencia que o bom deus lhe conduz a desgarrada mão, sempre que escreve.
O deus criador balança entre estas inanidades, já trinta vezes repeso de as ter arrancado ao pó. Mas nada pode fazer. Quer o prémio Nobel, quer a falta dele, já só fecham a torneira febril da produtividade, quando a lista das obras completas ocupar a folha inteira.
E falta pouco, num e noutro caso. Felizmente para a nossa paciência.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A economia de transição

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO-Portugal


Entre os economistas e os gestores, vai-se alargando o consenso sobre aquilo que eles próprios designam como a “necessidade da mudança de paradigma”. Mesmo entre os cornucopianos, aqueles que crêem no crescimento económico contínuo e ilimitado, começam já a pressentir-se dúvidas, reservas e interrogações, quanto à validade das receitas tradicionais para a saída da crise. Sejam elas de pendor monetarista ou keynesiano. “Depois desta crise, nada será com dantes”, é a sentença corrente dos oráculos que, nos órgãos de informação, nas empresas, nas universidades e nos órgãos de poder, tentam prever o futuro da organização económica mundial.
Apesar disso, ninguém arrisca soluções sobre o processo de transição para um modelo económico de tipo diferente. Embora cada dia mais inevitável, ninguém parece saber muito bem como defini-lo e implementá-lo. Existe um estranho tropismo subjacente à actividade económica, traduzido na insistente fé no crescimento, como único remédio para as múltiplas maleitas da crise. É ele que ilumina todas as medidas, e orienta todas as iniciativas que hão-de levar à retoma.
E contudo, parando um pouco para pensar, a lógica mais elementar mostra-nos o enorme equívoco que se esconde atrás desse tropismo. No último século, a população mundial cresceu quatro vezes, sendo que hoje um bilião de seres humanos vive paredes meias com a fome. Imaginamos que não poderá voltar a crescer mais quatro vezes no próximo século, muito longe disso! Além disso o aquecimento global, o pico do petróleo, a poluição, a ameaça de colapso do "Estado Providência", são hoje outras "verdades inconvenientes". Embora algumas sejam já certezas assumidas, a exigir soluções e medidas que não podem ser adiadas por muito mais tempo. Sustentabilidade e crescimento, diz Bartlett, são incompatíveis. E esclarece: "um sistema não pode ter crescimento contínuo se tiver fronteiras a limitá-lo".
Acontece que a economia da transição, tal como eu a imagino, é contrária aos interesses imediatos dos políticos. Não traz votos, exige sacrifícios, convive mal com os modelos do liberalismo económico, e com a chamada “mão invisível” do mercado. Existe mesmo quem questione a possibilidade de a implementar de forma pacífica, para não concluir que só surgirá como consequência de uma ruptura, de um colapso ou de um conflito.
A grande interrogação está em saber como vais ser esta economia, uma vez que não existe, no passado, nenhum modelo de transição a servir de exemplo. A história não revela nenhuma situação em que uma sociedade, ou um grupo, tenha sido capaz de se auto-regular para evitar o colapso. Não o fizeram os maias, nem os romanos, nem os mesopotâmios. Nenhuma civilização extinta parece ter percebido antecipadamente o caminho deslizante para o colapso.
Poderá a nossa, que é global e planetária, poderá ela ser diferente das outras? Algo sugere que sim. Antes de mais, porque existe hoje um grande conhecimento tecnológico. E a facilidade de o partilhar e difundir alcançou, com a Internet, níveis nunca antes vistos. Além disso existe hoje uma "consciência" da Humanidade como um todo, muito diferente das situações passadas.
Entre as grandes questões que, a nível global, terão de ser contempladas num processo de transição, destaco a necessidade de conviver com o crescimento zero, de condicionar o crescimento populacional, de regular as emissões de CO2, e de equacionar o problema energético. O qual passa pelas energias renováveis e pela eficiência energética, e não pode ignorar a discussão da opção nuclear.
Portugal tem seguido um modelo de crescimento baseado no turismo e no betão, ignorando com displicência tudo o resto. Mas tudo indica que esse modelo está a esgotar-se. Manuel Pinho terá sido um Ministro da Economia desajeitado. Mas terá percebido isso, nos dias quentes do verão de 2008, quando disse que estava a chegar ao fim o mundo como até então o conhecíamos. Infelizmente não chegou a dizer como seria ele a partir daí.
Entretanto falam os oráculos em sinais de retoma, e na inversão da crise. E nós acalentamos a ideia falaciosa de que voltaremos em breve aos tempos antigos, em que "tudo será com dantes". Infelizmente é uma esperança vã.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Portugalmente (67)

(...)
Se a vida fossem só as boas vistas, este era o melhor dos mundos. A estradinha é macia, vai seguindo a cumeada na direcção do Douro e parece uma fronteira. À esquerda o vale da Teja e mais além a rudeza das serranias da Lapa, um reino de castanheiros e carvalhos, de matagais bravios e pinhais. À direita o Massueime e as crestadas charnecas da terra quente, pontuadas de vinhedos e olivais, e de inóspitas quebradas a alcançar os confins de Riba-Côa. Já era assim no tempo dos afonsinos, dum lado moram cristãos, doutro são terras de mouros. Vêem-se ao longe os picos da Marofa, da Gata já em Castela, da Malcata lá para o sul. Não se cansam de correr o panorama os olhos do viajante. Pára na encruzilhada dos caminhos, aventura-se a umas fragas mais altas, deleita-se na amplidão do horizonte.
No tocante a lindezas e harmonias, e ao invés do que se vê noutros lugares, os portugueses dão-se por contentes com os favores da natureza. Salvo o monumento antigo, o templo dum outro século ou algum burgo vetusto, basta-lhes para exaltação estética o aprazível recanto na falda duma montanha, o sol-pôr num promontório que afronta o mar oceano, o soberbo panorama onde lhes fica o olhar. A beleza em Portugal não vai além da paisagem. E as suas cores são as que o céu manda, quando não são as do mar. Ao tempo demos feição a este país rural, que aos poucos nos vai morrendo. Mas a história, ou os fios que ela tece, distraiu-nos com miragens e deixou-nos tudo o resto por fazer. Um dia urbanizámo-nos à pressa, para nos tornarmos modernos, mas não criámos qualquer modernidade. E dos nossos fingimentos europeus sobram estendais de fealdade e caos.
A estradinha vai deserta, e a paisagem, que a hora não é propícia. Poucas e magras são as terras de cultivo, cercadas de penedias que os incêndios pertinazes deixaram a descoberto. Mas o viajante já se acostumou a esta solidão. Sabe muito bem que estes caminhos não vêm nos mapas do mundo, e que este Portugal velho não tem lugar na Europa, onde só contam os números e o lucro que deles vem. Mas este pouco é a reprodução miniatural de Portugal inteiro, à procura dele é que veio o viajante. E não contava encontrar a esta hora aqueles três paisanos, que andam atarefados a empilhar umas pedras ali num logradouro. Pára na berma da estrada, vai saber quanto lhe falta até chegar à Meda. A pergunta não passa dum pretexto, o que ele quer é pô-los a falar. Mas os pedreiros levaram-no a sério e alargam-se em comentários. Lá fituram que merece compaixão um sujeito que anda assim longe de casa, a esbracejar no mundo, à torreira deste sol.
Os homens vieram de Casteição, e andam a empilhar as pedras em estrados de madeira, aconchegadas em cercaduras de plástico. Há-de vir um camião de Castaíde a levá-las para Espanha. Os espanhóis forram as casas com elas.
- E donde vêm as pedras?
- Vendem-nas os donos delas! É coisa que não falta por aí!
O homem que assim falou passeia um olhar em volta, a abarcar meia paisagem. O viajante ainda não compreendeu.
- Primeiro vem o mandante, a resolver o negócio com os donos das paredes. Depois chega o pessoal a derrubá-las, e a separar as lascas mais afeitas. É só juntá-las aqui, preparar o carregamento e avisar o patrão. Os espanhóis levam quantas houver.
Ao viajante custa-lhe a acreditar no que está a ouvir. Com permissão dos pedreiros, para não parecer indiscreto, embrenha-se mato adentro e vai ver o campo de batalha. Até onde a vista alcança não há paredes em pé, e o viajante fica embasbacado. Habituou-se a pensar que estes muros desenhavam na paisagem a alma do povo que os ergueu durante séculos. Fazem parte duma herança colectiva. E nunca lhe passou pela cabeça poder alguém chamar-lhes coisa sua e trocá-los por dinheiro. Ao viajante caberá compreender a ganância ou a miséria, mas não entende esta insânia. E não haver um ministro, um juiz, um delegado, um polícia, um deputado, um edil, um pároco, um regedor que intervenha no desmando, só pode significar que Portugal já morreu.
- E como é que apareceu um tal negócio?
- Há muitos anos, sei lá! Veio da raia do Côa, espalhou-se por aí fora, já vai nos montes da Lapa...
- E as paredes dos baldios?
- Mais depressa vão abaixo!
- E você, que pensa deste negócio?
- Cá por mim, do ponto em que me paguem o trabalho...
Abatido com a funesta descoberta, o viajante afasta-se dali, que o abandonaram as palavras.
(...)

domingo, 18 de outubro de 2009

Maus sinais

A falência do PSD, como coisa politicamente relevante, não é de hoje nem tem remédio. Mas é um mau prenúncio para o país.
Ele foi sempre o melhor espelho da sociedade que somos, no que ela tem de pior. Nenhum partido reflecte as entranhas do país, melhor que o PSD. Nenhum lhe foi tão igual, mesmo quando a maioria votou diferente.
O PSD pegou de estaca quando a liberdade veio, num composto de antigas ruralidades e algumas eminências assustadas. Pilotado por caciques, encomendado por padres, gerido por arrivistas, nunca teve outra mola ideológica que não fossem as benesses do poder. E foi servindo de palco a figuritas cinzentas, fiéis assíduas das missas da ditadura, sem a mais leve noção do que pudesse ser um país diferente e novo.
Num país que estava todo por fazer, o PSD mandou construir estradas e pagou aos empreiteiros, quando chegaram os fundos europeus. E enfeitou-nos o futuro com um novo D. Sebastião. O tal que ficou na história não por aquilo que fez, mas por aquilo que havia de fazer, se não tivesse morrido antes do tempo. Ora disso já nós estávamos servidos.

sábado, 17 de outubro de 2009

Portugalmente (66)

(...)
À beira da estrada, num pequeno café, logo encontra refrigério. Que além de professora reformada e boa conversadora, a dona Mariazinha é a gentileza em pessoa. Os clientes são escassos, salvo este velhote que tem bócio e vem encher a garrafa do tinto. E ela está entretida no croché, enquanto a irmã lá dentro traquina na cozinha. Logo quer saber a que anda o viajante, assim exposto ao calor, e o que faz ele na vida, e donde vem. Mas depressa aparece a cozinheira, a dar fé do que se passa. E acabam, ambas as duas, a contar ao viajante a história de Ramón.
O homem dormia na casa da escola, num quarto que ficava por trás do quadro preto. A dona Mariazinha e a irmã eram crianças na altura, e nunca mais se esqueceram do mistério. A professora encostava todos os dias o quadro àquela porta, e proibia alguém de lá entrar. Um dia em que a apanharam distraída houve quem a fosse abrir, e todos viram Ramón, que estava a dormir lá dentro. Logo nesse dia soube a aldeia inteira que havia um homem na casa das professoras.
Elas eram três irmãs. Uma trabalhava na costura, outra ocupava-se da casa, e a terceira dava as aulas aos garotos. O homem era galego, dos vermelhos, andou na guerra de Espanha. E quando caíram as portelas da serra de Guadarrama, e a Casa de Campo sucumbiu às investidas do Franco, perderam-se também as esperanças de Ramón. Com o batalhão destroçado, em vez de recolher à ratoeira de Madrid, enterrou a escopeta por trás duma ruína e pôs-se a andar na direcção contrária. Mais de noite que de dia, mais por carreiros de bichos que por caminhos de gente, viu ao longe a serra de Ávila, depois os montes de Francia, passou dias escondido em casebres de pastores, um era de Alba de Tormes, outro era de Santo Estêvão, três vezes morreu de fome, e já lá iam dois meses quando uma noite saltou o rio Águeda e chegou a Portugal. Alguém lhe deu inculcas em Almendra, e assim ficará explicado que o homem tenha vindo bater à porta do padre Júlio, aqui nos confins do mundo.
Durante muito tempo não saiu Ramón de casa, que o padre Júlio não era tolo nenhum. Até que um dia calhou ele morrer, e o Ramón foi ao enterro. Desde então deu em sair à rua, que já não aguentava a solidão. Juntou-se às fainas do campo, pôs-se a trabalhar à jorna, fez amigos aí no povo. No final já se mostrava pelas festas, não faltava a um bailarico, era mais um entre a gente. Sabia a guarda do caso há muito tempo, e as ordens eram severas. Mas sempre que ela aparecia, alguém havia a passar a palavra. E sumia-se o Ramón, no quarto por trás do quadro.
Um dia apareceu no povo um amola-tesouras que ninguém conhecia. Ficou dias por aí, rua abaixo, rua acima, a soprar numa flauta esganiçada. Foi ao Zabro, às Moreirinhas, aos Moinhos das Cebolas, a meter-se no coração de toda a gente e a dar fé das passadas de Ramón. Já não havia mais facas para aguçar, nem mais tesouras da poda, nem navalhas de enxertia, quando a guarda cá voltou. E o amolador, que afinal era espião, delatou-lhe o segredo de Ramón.
O padre já cá não estava, que era duro de roer. O Ramón foi parar ao calabouço, antes de o devolverem ao Vale dos Caídos, onde acabaram com ele. E a dona Mariazinha e a irmã ficaram sem escola, que as professoras desapareceram daí.
À saída, depois das alongadas despedidas, passa o viajante por uma escola abandonada. Logo ao lado, ali no alto, está São Sebastião, que a seu tempo encobriu a Carmina, à espera da escuridão. No final, pensando bem, conclui o viajante que o rei que Moreira teve não foi o pobre dom Sancho.
(...)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A influência do vinho nas elites

Para o Euro 2004, foi construído um estádio num descampado de Aveiro. Palco de dois ou três jogos, custou 65 milhões.
O edil da cidade era então socialista, mas o projecto recebeu o eufórico acolhimento de todos os partidos do executivo municipal.
Entretanto o Beira-Mar desapareceu da Liga, engoliram-no as marés, afogou-se em cambalachos.
A construção ainda está a pagamento, e a simples manutenção é um quebra-cabeças no orçamento camarário.
O responsável da empresa municipal Parque Desportivo de Aveiro já apontou a solução: proceder à implosão do empreendimento.
O pior é o trotil que aquilo leva! A somar às bebedeiras desta câmara, e à de Faro, à de Leiria...

O Tua e os cavalinhos, outra vez!

A afirmação é polémica, concedo que discutível. Este lhe chamará blasfema, aquele despropositada, o outro coisa pior. Para mim é simplesmente verdadeira. Olhados globalmente, os militares portugueses constituem uma das poucas classes profissionais que não fazem rir o mundo, nem envergonham o país internacionalmente.
Houve um tempo em que Eanes tinha um certo ar sinistro, de patilhame comprido e óculo escuro. Mais tarde foi Presidente, foi à escola de Navarra. E hoje diz coisas que fariam pensar os beaux-esprits de que esta pátria anda cheia, se a pátria contasse mais do que o seu próprio umbigo.
Numa tertúlia do casino da Figueira que discutia a energia, Eanes lembrou a necessidade de ultrapassar os nossos atavismos na questão do nuclear. E sobretudo (é a isso que o caso vem!) assentiu que os cavalinhos do Côa não saberão nadar. Mas já tiveram tempo de aprender!
A expressão há-de ser rude, mas não lhe falta clareza. E de finezas retóricas andamos nós todos fartos, que somos de carne e osso verdadeiro.
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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Portugalmente (65)

(...)
As ruas de Moreira têm calçada antiga, do bom tempo, não ficaram à espera que os fundos europeus viessem cuidar delas. E depressa chega o viajante ao largo do pelourinho, vistoso exemplar manuelino com cinco degraus. Cercado de fraguedos e hortas secas, o povoado é pequeno. Filho de estratégias muito antigas, nasceu à sombra do castelo que além está, no alto dum penhasco. Ganhou em esplendores e amplidão de vistas o que perdeu em espaço vital. Afora as casas, algumas modernizadas, tudo o que se pode ver neste adro minúsculo são antiguidades de outro tempo. A primitiva igreja de Santa Marinha, há muito sem usos litúrgicos, ainda hoje tem à porta o padrão das medidas correntes, entalhado nas colunas. Bastando a qualquer um dois côvados de burel para cobrir os ombros, estava aqui a justa medição. E se estes primores de pedra do pelourinho impressionam o viajante, mais o comove a secular gravidade do negrilho ali ao lado. Já sustentou uma frondosa copa, já a perdeu, e agora ganhou outra renovada. Só a frescura da sombra, que o viajante aproveita, é que se mantém igual.
Mais antigas do que o largo, e o castelo, e o negrilho, são estas sepulturas cavadas a picão, na rocha dura. A igreja de Santa Marinha foi-lhes construída em cima, e muitas outras ficaram por aí, disseminadas no largo. Há sepulturas debaixo das casas e dos canteiros de flores, algumas estão cobertas pela base do pelourinho, outras foram ocupadas pelas raízes do negrilho. A julgar pela dimensão e a fundura, dormiram nelas o sono derradeiro adultos e crianças, infantes e anciãos. Fossem eles justos, fossem pecadores, adormeceram todos a contemplar o sol, que todas elas foram escavadas na direcção exacta do nascente. Estão aqui, ombro com ombro, na grande igualação da morte. Mas porque o nascer do sol varia de lugar no horizonte, nem todas são paralelas. Este aqui morreu dos frios do inverno, aquele além sucumbiu às estiagens do verão, põe-se a imaginar o viajante. Se as contas baterem certas, logo aqui se pode ver a falta que faz ao mundo a sombra refrescante dum negrilho, e o fogo dos ramos dele.
Para chegar ao penhasco do castelo tem este viajante que subir uma empinada ladeira. Já passou à porta duma mulher de preto, que tem os figos a secar num tabuleiro, enquanto malha o feijão à sombra dum alpendre. Mas vinha tão afoito e decidido, à procura da cadeira do rei Sancho, que o viajante mal lhe deu a salvação. Muito a custo subiu à cidadela, ao pouco que dela resta, com este sol desapiedado a morder-lhe nos costados. Não viu cadeira nenhuma, e as bagas de suor que já lhe escorrem da fronte põem-no descorçoado. Manuel não está aqui para o ajudar. E apesar do panorama deslumbrante, decide bater em retirada, para escapar à canícula.
Bom refúgio era a sombra do negrilho, se não estivesse ocupada por duas famílias buliçosas, à volta dum farnel improvisado. Vêm dos lados de Aveiro, e andam à procura de alguma casita velha que possam reconstruir, cativas deste silêncio e do sossego da aldeia. Mas fazem tal barulheira que logo vem um vizinho, a explicar as qualidades dum queijo que lá tem para lhes vender. As mulheres falam tão alto que deixam o adro inteiro atordoado, era uma vez o sossego dum largo. E o viajante despede-se do negrilho, algum lugar há-de haver onde matar a sede.
(...)

Azia pós-moderna

Não tive, na altura, qualquer consciência disso, e havia de levar muitos anos a criá-la. Mas a primeira vez que arrisquei o pé no areal movediço da pós-modernidade foi em meados da década de 60.
Era uma noite medonha de Fevereiro, quando embarquei num velho quadrimotor que lá foi a ribombar a noite inteira, por cima do Atlântico. Ele atracou finalmente na ilha Terceira. E eu fiquei a perceber, depois daquela batalha, como é que aquilo tinha resistido à ponte aérea de Berlim.
A minha secreta finalidade era beber uma coca-cola. E logo na primeira noite fui ao bar americano, roído de curiosidade. Sentei-me a uma mesa onde luzia um frasco vermelho de estearina, dei ao gatilho da lata e ainda hoje tenho o sabor guardado nas papilas.
Ao lado conversavam duas amazonas, com um acento do Mississipi que eu conhecia dos filmes. E uma delas relatava uma viagem que fizera a França. A certa altura visitara um cható, uma coisa tipo estate em maiorzinho, que tinha um rio ao fundo da encosta. Era uma coisa verdadeiramente amazing. Pena é que a tivessem construído tão perto da via férrea, onde um comboio apitava muitas vezes.
Eu, que já saboreara a primeira coca-cola, pedi mais uma lata, antes de arriscar o primeiro alexander. Mas quando o rapaz do bar, um açoriano de bigodes, veio trazê-la à mesa, um texano ao balcão esticou o braço sorrateiro, e pescou lá de dentro uma garrafa de rum. Despejou-a em cima do balcão, e logo um camarada fez faiscar o Zippo. E foi uma agitação, um verdadeiro bródio juvenil, quando um terceiro compincha arrancou da parede um extintor e o esvaziou nas labaredas.
A certa altura reparou um deles na farda nova que eu tinha, de um azul novo e composto. Quis saber se aquilo era um uniforme português. E eu deixei-o encabulado, lembro-me perfeitamente, quando lhe confidenciei, num discurso etilizado, que era do vietcong.
Fiquei ali mais três dias, a encharcar-me em coca-cola, a interiorizar o progresso daquela civilização. Aprendi a apertar parafusos meticulosamente, e afoguei-me na pós-modernidade, sem saber no que me estava a meter. Dia e noite chegavam aviões, cargueiros descomunais, que logo punham em bandeira três quartos dos motores, mal se apanhavam no chão. Depois lá iam atrás do follow-me, as carcaças a tremer e os travões a uivar mugidos de bisonte, até pararem algures, na placa de estacionamento que ocupava o vale inteiro.
Nas estradas passavam banheiras imponentes, a ronronar dezenas de cilindros, arrastando pachorrentas toneladas de ferro. Muitas delas atacadas da ferrugem, por causa do salitre que chegava do mar. A gasolina era ao preço da uva mijona. Mas bem caras eram as tampas dos depósitos, quase todas já roubadas. As mais comuns eram fundos de latas de coca-cola, cortadas à tesoura.
Vim de lá entusiasmado, o papo cheio de coca-cola, e uma grande crença no papel dos parafusos na arquitectura do mundo. Mal eu imaginava no que aquilo iria dar. Andei anos até lavar as tripas daquela grande azia pós-moderna.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Comunidades de transição

As gerações do último século tiveram o privilégio histórico de dispor duma energia abundante e barata, que levou milhões de anos a gerar: os hidrocarbonetos fósseis. Graças a eles a vida transformou-se completamente, e grande parte da população do planeta pôde usufruir dum desenvolvimento nunca experimentado. Foi também graças a eles que as sociedades mais evoluídas construíram um modelo de desenvolvimento edificado sobre o crescimento contínuo, baseado no mercado e no consumo.
Três são os estados possíveis dum sistema que opera em universo finito:
1 - estático ou congelado;
2 - em expansão, até ao limite físico do seu universo;
3 - oscilatório, com mecanismos de auto-compensação;
No que diz respeito ao nosso planeta, é hoje clara a consciência dos limites em variados campos: na energia, na poluição, na água potável, no solo arável, no aquecimento global, nas alterações climáticas, na exploração predatória dos recursos, na extinção das espécies, na biodiversidade.
O desequilíbrio atingido é multifacetado e já inegável. Se todos os habitantes da terra consumissem à medida das sociedades ocidentais, só os recursos de quatro planetas iguais satisfariam as suas necessidades. E o presente modelo de desenvolvimento apenas sobrevive se apoiado no mesmo consumismo frenético e no mesmo impossível crescimento contínuo.
Pelo que a pergunta se torna imperiosa: é possível que as sociedades humanas se desenvolvam e progridam, sem crescimento contínuo, sem consumismo predatório, sem mercado todo-poderoso?
O conceito de comunidades de transição surge como resposta, como busca. E vai fazendo o seu caminho por esse mundo.

Antes que esqueça... porque vamos ter mais!

No "Prós e Contras" de anteontem, onde uma parte das comadres tomou parte, o essencial ficou claro.
Há um ano e meio atrás, a Casa Civil do sr. Presidente urdiu uma moscambilha contra o governo, em benefício do PSD. Sócrates andava a vigiar Belém.
Em Agosto passado, José Manuel Fernandes prestou-se ao frete e disponibilizou o PÚBLICO para levantar a lebre e dar corpo à coisa. Noticia que Belém tem suspeitas de que há escutas por parte de S. Bento.
O sr. Presidente conhece as notícias e sabe da manobra, mas não ata nem desata. Não confirma, não desmente, não actua. Fica-se pela conivência táctica. Enquanto no PSD se amplifica a verborreia da asfixia democrática em que o país mergulhou.
Até que o e-mail interno do PÚBLICO chega ao EXPRESSO e ao DN. E o e-mail é explosivo. Diz expressamente que o sr. Fernando Lima, às ordens do patrão Cavaco, servindo-se do PÚBLICO, organiza uma cabala contra Sócrates, em favor da oposição. A qual cabala devia simular origens na Madeira, para cobrir o rabo ao gato.
O sr. Henrique Monteiro, que é pago por Balsemão, não faz notícia do e-mail. E alega não o fazer, porque a fonte era política. E o EXPRESSO não faz a política das fontes. Faz jornalismo ético e deontológico, que é o seu.
Já o DN, analisada a questão, decide publicar o e-mail, porque ele contém informação vital para os portugueses, sobretudo em período eleitoral. E José Manuel Fernandes verbera João Marcelino, por violar correspondência interna e pessoal da redacção do PÚBLICO, traindo os códigos sagrados do jornalismo.
Nesta história, José Manuel Fernandes é um canalha, e só pode vir meter os pés pelas mãos. Henrique Monteiro é um cúmplice cobarde, que apenas pretende espalhar a confusão, lançar cortinas de fumo, impedir a compreensão da moscambilha. Paquete de Oliveira, honra lhe seja feita, aproveitou a oportunidade para zurzir os dois escroques. E o sr. Presidente, que a seu tempo demitiu sem demitir o assessor Fernando Lima, e há semanas apareceu na televisão para dizer o que não disse, fez o melhor que podia, para escapar aos estilhaços: fazer de sonso patético, tentar comer-nos por parvos, contar absurdas histórias da carochinha, e esperar que a chuva venha e tudo passe.
E nós todos... estamos bem servidos!

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Pobres

- Ó mãe, o que é um pobre?!
- É quem não tem dinheiro para comprar comida, e ter roupa, e passear...
- Ó mãe, o pai é pobre?
- Disparate! Porque é que perguntas isso?!
- Porque a Inês disse... que o pai me foi buscar ontem à tarde, num carro mais pequeno!
- E tu, achas que o pai é pobre?
A rapariga ouviu a conversa à filha de 5 anos, à saída do colégio. Uma escola da Linha, com nome de missionários, e uma propina que lhe custa uma fortuna. E à noite, canalha já arrumada, abriu-se com o marido.
- Dizem que tu és pobre, na escola da Maria!
- Terão razão, sei lá! Tão porquê?!
- A Inês acha que tu andas num carro muito pequeno...
O rapaz, que há tempos mudou de empresa, mudou também de carro de serviço. Agora tem ao seu dispor um pequeno utilitário, discreto e eficaz.
Os papás da Inês andam a pagar ao banco um todo-o-terreno de 300 cavalos. E o plasma e o quarto novo. E as férias do verão passado, num paraíso exótico. E o T3, no bairro do Rosário. E a propina da Inês, já com dois meses de atraso.
É muita coisa, coitados, mesmo para ricos! Têm mais do que razão para dizer mal do governo, com esses despautérios todos do rendimento mínimo!

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Pausa

... que se prevê longa.
Mas fica atento o molosso de guarda. Não vá passar por aqui o cabotino do Santana Lopes, a garantir outra vez a ruína à câmara de Lesboa.

Mais equívocos - 2

A CP realiza no Verão programas variados de comboios turísticos: o da Gastronomia, entre Lisboa e Vila Velha de Ródão; o da Aventura, com actividades desportivas; o da Festa das Vindimas; e o comboio histórico do Douro, com material do início do século, entre a Régua e Foz-Tua.
A procura destes comboios turísticos está em crescimento. No Verão passado aumentou 36%.
A linha do Tua, entre outros considerandos, é uma das cinco linhas de montanha mais belas da Europa. E é neste contexto que a sua destruição irreparável aparece claramente como um crime contra o património.
Os auroques do Côa, com muito respeitinho, bem podiam albergar-se no palácio que em seu nome construíram, no alto duma colina, e vai ficar devoluto. E ao mesmo tempo escondiam a vergonha paisagística que a interrupção da obra lá deixou. Mas para isso era preciso tê-los no sítio, coisa que se não vislumbra.

Portugalmente (64)

(...)
A Moreira de Rei já chamaram ninho de águias, sobre um montão de rochas. E o viajante concorda. Se das águias não encontra sinal, que o tempo as levou para outros ares, já o ninho cá ficou e rochedos não faltam. Só a história, e a teimosia dos homens no que é seu, explicam um lugar assim. A igreja, logo à entrada, é de antiga fábrica românica, com bárbaros cachorros zoomórficos. O viajante encontrou a chave na porta lateral e foi cumprimentar a padroeira, que é Santa Maria. Já viu os caixotões do tecto, pintados com cenas devotas, e os painéis com figuras de santos, que são uns regalões. No mais ignoto lugar sempre lhes cabe a moradia mais aprimorada, e nunca lhes faltam esmeros e frescuras, como agora podemos ver. As talhas reluzentes de castanho genuíno trazem ao viajante lembranças do padre Júlio, que antes de tomar aqui os paramentos descarregava as pistolas na mão do sacristão.
Do padre já se não lembra Manuel, nem a mulher, que atravessam o largo atrás duma carroça. São velhos, mas não tanto. Só lhes constam as boas famas que ficaram no povo, e ainda se lembram bem da Carlotinha e do irmão, que eram filhos. Ela há muito que se ficou num parto, ele morreu há poucos anos. Mas agora já não têm padre residente, que os não há. Chegou a haver esperanças num rapazola aí do povo, que andava no seminário. Mas um dia tomou-se de amores e resolveu desistir, Deus é quem sabe.
Saberá ou não, isso é outra conversa. O burrico é que parece não ter dúvidas, já lá vai adiante com três sacos de milho e uns molhos de feijão para secar. Os donos seguem atrás e o viajante vai com eles. Manuel andou uns anos na emigração, como toda a gente. Foi onde ganhou dinheiro para comprar esta casa e arranjá-la, aqui à vista do castelo. Mas era uma vida desgraçada, aquela, uns escravos do trabalho. Os filhos lá cresceram, lá casaram, ainda hoje lá vivem. Ele, quando pôde, escapuliu-se, que não há como viver na nossa terra.
- Tivemos cá rei e tudo! Se passar no castelo, há-de lá ver a cadeira!
Manuel esvazia a carroça e recolhe o jumento, que já o afligem o calor e a mosca. E a mulher fica a espalhar ao sol as maçarocas, na laja que se estende logo ao traço da porta. A canzoada que ladra ali ao lado, no quintal da residência paroquial, é do padre de Trancoso, que vem rezar os ofícios quando calha. E está tão belicosa, a cainçada, que nem deixa conversar. Com batedores assim, o padre há-de ser bom caçador. Mas o viajante fica a pensar que o padre Júlio caçava muito melhor.
(...)