domingo, 23 de dezembro de 2018

Deluxe!

Daquele tempo já não há quem se lembre, tanto que nem existiu. Mas eu nunca mais me esquece. Saíamos dos aviões a pingar suor e sangue, as botas encharcadas e os fatos de voo numa lástima. O jipe ia-nos buscar à placa e descarregava-nos no barracão da esquadra, onde uns velhos aparelhos de ar condicionado mantinham a Bissalanca respirável.
No bar tínhamos água de Vichy a cinco mil réis o copo. As fontes todas da pátria corriam na valeta dos caminhos, lacrimejando entre Minho e Alentejo. Mas nós tínhamos Vichy, muito cara mas termal, muito deluxe!

Urgências

Circunstâncias casuais levaram-me a acompanhar uma pessoa amiga à urgência dum hospital. E o que seria um exercício breve e rotineiro transformou-se em meia dúzia de longas horas de espera. Deu para chegar a casa à meia-noite.
As ambulâncias iam e vinham num corrupio, os bombeiros manobravam macas, os médicos e os enfermeiros mal davam para as encomendas a atender os pacientes. Eram todos velhos e idosos, os pacientes, já no fio da navalha, um deles vinha mesmo embrulhado em celofane, como os chocolates do Natal. 
Às vezes um clínico desapertava a bata, esquecia o estetoscópio pendurado no pescoço, e vinha cá fora fumar ao canto um cigarro furtivo. Eu acompanhava-o na escapadela, todo contente por não ser médico, por não ser bombeiro, por não ser doente, por não ser um chocolate do Natal. 
Mas fugia da sala de espera colectiva, para não ouvir as conversas das mulheres de rabo grande, que ensurdeciam o ar e não davam descanso aos telemóveis.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

A curva da chouriça

No Inverno de 43 não havia nada em Lisboa, além da miséria das senhas de racionamento. Da Europa chegavam estrondos da guerra, da qual nos livrava um santo milagreiro de nome já esquecido. E a Espanha matava a fome como podia, sarando as feridas doutra guerra já passada.
De forma que, ao chegar o Natal, os patrões aguardavam que eu lhes mandasse da aldeia carregamentos de fruta, de queijos e fumeiros, em grandes cestos vindimos despachados no comboio ao domicílio.
A estação ficava a trinta quilómetros. E o carro de bois carregado, ao passo lento das vacas, demorava uma boa meia dúzia de horas.
A meio da noite saímos de casa, eu, um criado mais um cão. E no cimo da carga tivemos o cuidado de levar feno para os bichos e lenha para fazer uma fogueira. O frio era de rachar.
E lá passámos Trancoso e o Chafariz do Vento, da Broca para baixo era sempre a descer. Foi quando começaram a aparecer fusos de gelo nos focinhos das vacas. À medida que as pobres respiravam, os vapores gelavam sem demora, era uma lástima.
Quando a manhã começou a clarear chegámos nós à curva da chouriça, em que a estrada fazia volta inteira a dois passos da estação. Parámos um migalho, para descansar os bichos e fazer uma fogueira. Mas tínhamos as mãos tão engaranhadas que os dedos recusavam acender os fósforos. Por sorte nossa deu connosco um cristão do Feital, que vinha da estação e subia para casa. E meia hora depois recuperámos ânimo.
Despachámos a carga ao domicílio, e voltámos bem melhor.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Era uma vez...

"Vinte mil índios à direita, mais vinte mil à esquerda, e o Gary Cooper sozinho."
Era altura do anjo da guarda agir. Doutro modo… um cobói, uma cultura, um império iam à vida!

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Andarilhos

Pois foi assim. O Zé Canelas cansou-se daquela vida e foi-se embora para a África. Nunca mais cá voltou nem deu notícias. Só uma vez mandou uma carta com um papel lá dentro que valia um tostão. E assim se soube que tinha ido parar a Benguela, um cemitério de brancos.
A mulher era tecedeira, e bem se cansava ela a dar à peanha. Mas a vida era uma miséria. E o Canelas, que era filho ainda garoto, herdou o nome do pai e foi para o Forno Telheiro a servir de pastor. Sempre seria melhor do que vender água a copo na feira de Agosto.
A patroa aviava-lhe a merenda numa meia das dela. Ele dividia o farnel com o cachorro de guarda, e já conhecia pelo nome meia dúzia de chalanas. Até que um dia se cansou daquilo, abandonou o ganau e foi-se embora.
O regresso a casa da mãe durou três dias, era longe, mas o Canelas lá aguentou a fome. E depois por lá andou, até que alguém o levou de marçano para a cidade. Foi esse um tempo que nunca mais esqueceu.
Tudo quanto agenciava mandava para casa, para os irmãos. Ele eram roupas, calçados, e até os mimos que algumas freguesas davam. Mas nunca mais se esqueceu daquela terra. Só de lá veio já homem, para casar com a namorada dum irmão, que se fora à procura do pai e logo morreu de paludismo. Em Benguela.
Muitos anos depois era ele feitor dos Crespos, (condição a que acedeu por ter casado com a mulher, que os Crespos não eram parvos). E o primeiro ensaio de aventuras só não se verificou porque ela, por uma vez, se recusou. - Tu vais para o teu Brasil, que eu fico aqui! Ele, naturalmente, acobardou-se.
Mais tarde a panca de África deu-lhe forte e feio. E ele lá foi. Enchiam-lhe as medidas os sonhos falsos de africanistas manhosos de que se ouvia falar. Porém, dois anos depois, voltou a casa de saco sacudido e o espírito num farrapo. Valeu-lhe o ninho que a mulher mantinha feito, e onde ele acabou por se reconstruir.
Mas foi sol de pouca dura. Manipulador exímio, um dia agarrou nos dois filhos mais novos e voltou para lá com eles. Casou uma filha por procuração e comprou uma loja numa picada da Angónia, onde vendia gasolinas e chitas reles e comprava milho e feijão que os pretos produziam nas machambas. Meteu a vida dos filhos num inferno, manipulou as contas da casa, e teve a esperteza de abandonar tudo antes do fim e pôr-se ao fresco. Doutro modo, eram os pretos quem teria ajustado contas com ele.
Muito mais tarde havia de se finar, quando acabou a pilha duracel que lhe instalaram no peito e o transformou num farrapo.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Contos 1

A NINFA

Eram os olhos a maior perdição dela. Tão grandes que neles cabia o mundo, tão escuros e fundos que lembravam o mar. Depois vinha a estampa límpida do rosto, debaixo da gaforina asa de corvo: o lábio húmido, a carnação macia, a flor da face cheia de mistério, a prometer abrir-se num sorriso que não chegava a abrir. O resto era o colo generoso, o ventre inquieto, as colunas das ancas a prometer abismos.
Ninguém sabe explicar como apareceu ali, criada na aldeia, aquela ninfa antiga. Olhava-se para ela e vinham à lembrança as deusas primitivas da fertilidade. O mesmo nome, Pristila, era um sinal pagão.
Dava escola para os lados de Aveiro, e vinha a casa sempre que podia. Chegava na carreira, ao fim da tarde, porque o pai, atento à vida, a reclamava. A bem dizer era a aldeia inteira que a exigia.
Na vila sabia toda a gente que o Tunante não era boa rês. Era um vilão bastardo, que fazia deste mundo uma coutada de caça. E todos lhe guardavam respeitinho, mais por instinto primário de defesa, do que por atributos que não tinha. A ninfa confundiu nele a brutidade grosseira com predicados de macho dominante. E quando vinha à vila, a passear, nem lhe escusava as momices atrevidas, nem os avanços de bruto galaroz. E acabou, já mansa e confundida, a enlear-se no assédio do bargante.
No dia em que as férias começaram chegou a ninfa à vila, desceu da carreira ao fim da tarde. Um outra que vinha do comboio havia de pô-la em casa. Mas o Tunante estava à espera dela. Cercou-a de rapapés e cortesias, havia de lhe mostrar a loja nova, logo à entrada das muralhas.
A ninfa deixou-se conduzir. E quando veio a hora da carreira, à beirinha da noite, prometeu-lhe o Tunante que um amigo a levaria a casa, de carrinho, à moda das princesas. E ela logo se rendeu, enleada em semelhante gentileza. Tinha mesa posta e banquete preparado, bom presunto, melhor queijo, de vinho bastava-lhe um dedal, não estava acostumada.
A princípio o Tunante foi cordato, coroou-a de rapapés, quis levá-la com bons modos. Penteou-lhe a gaforina, passeou-lhe as mãos no flanco, encheu-lhe o copo de vinho. E abriu-lhe um botão do peito, só para ter uma visão.
A ninfa aos poucos cedeu, o coração num galope. Dum lado o corpo inteiro a amotinar-se, o sangue a romper as veias, o ventre incendiado a extravasar. Doutro lado um grande medo, a cara dele a perder as feições, e um gesto tão poderoso que a assustava.
Quando quis despir-lhe a blusa, a ninfa ainda resistiu. Mordeu o lábio para evitar um grito, cruzou os braços no peito sublevado, refugiou-se no medo. E o Tunante deteve-se um momento, pareceu abandonar o campo de batalha. Foi ajeitar, ao canto, as mantas que lá tinha. Depois apagou a luz, ergueu numa braçada a ninfa amedrontada e foi estendê-la no chão.
Lá fora passaram socas a tropear na calçada. Porém a ninfa hesitou, reteve outra vez um grito. E já dois braços poderosos lhe sujeitavam o corpo, e as pernas brutas lhe apartavam as colunas, e rudes mãos lhe devassavam o peito. As socas na calçada voltaram a tropear, mas a ninfa retraiu-se. Conteve a respiração, não fosse ouvir-se lá fora o ranger do bragal que estilhaçava. Por três vezes entrou nela um vendaval, três vezes a desfolhou. Depois caiu uma escuridão desamparada, e um lago que arrefecia.
Por fim bateram à porta, era o outro que chegava. Aconchegou a ninfa no banco de trás do seu Volvo marreco e arrancou. Antes de a deixar em casa foi parar na carreteira dos moinhos do Alcaide, ninguém ali passava àquela hora.
O Tunante recolheu as mantas, fechou a porta da loja. Uma ninfa desfolhada dava casamento certo, era raspar-se um homem para o Brasil ou sujeitar-se aos códigos. Porém, em sendo o festim a meias, era ela assumida marafona e os códigos sossegavam. Cumprisse o amigo a sua parte e ficava o problema resolvido.
Quando o Outono chegou, depois das primeiras chuvas, o Tunante subiu para a camioneta e foi recolher à aldeia uns contratos de centeio. Bem o avisaram as sibilas, que desfizesse o negócio, que por lá tinha a morte prometida. Mas ele guardou a sovaqueira no casaco e lá subiu a encosta, a governar a vida. Um homem não saiu para outra coisa das mãos do criador.
O pai da ninfa já estava à espera dele, sentado no balcão. E quando o viu saltar da camioneta, de machado nas unhas foi-se a ele. O outro ficou surpreendido, não podia acreditar. Estendeu a mão à sovaqueira e pôs-se a ladear, queria ver se era verdade. Mas o homem trazia no carão a fúria dum deus irado, como quem chega duma tragédia antiga, o melhor era levar a coisa a sério. E desatou a correr.
As mulheres espreitavam à janela, havia gente que parava pelas hortas, a olhar, silenciosa. A própria tarde parou, a ver um homem cavalgar estrada abaixo, atrás doutro que fugia. Quando o sentia mais perto, virava o braço para trás e disparava. Disparou à passagem do ribeiro, e à horta da Teresa Côta, e à subida do negrilho, e à curva da fraga grande.
Agora chegámos nós à fundeira da encosta, e já cruzámos a estrada, e temos à nossa frente o açude da ribeira. Não nos sobra mais que um tiro, e já nos queima o pescoço o bafo dum deus irado. O Tunante apontou-lhe ao coração e disparou. E o machado, que lá vinha como um raio, enterrou-se-lhe no ombro.
Mas vem dalém um pastor, a correr em altos berros, vem salvar esta desgraça. O primeiro já está morto, nada podemos fazer. Para que nos serve o segundo, um vagabundo. E num golpe de machado abriu-lhe a cabeça ao meio.

sábado, 1 de setembro de 2018

A solidão do mundo

Estou fora três dias. E quando chego esperam-me à janela dois gatos que tenho em casa. Tão impacientes como eu.
Quem diria que o sossego do mundo havia de consistir nisto: homens e bichos que se reencontram.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Aquelas terras grandes...

"(…) Nestes prados da Quinta dos Cavalos não há cavalos nenhuns. Só João vai caminhando pela berma da estrada e o viajante pára ao lado dele. Não sendo velho é uma figura antiga, delida pelo tempo, ou pela vida. E há nele  uma servitude primitiva que este viajante já julgava extinta. De manhã tirou-se de cuidados e foi à vila ao médico espanhol, à boleia dum vizinho. Em breve se despachou e agora não há transportes, não tem remédio senão voltar a pé. Tem a mãe à espera em casa, já muito velha, e ainda mais achacada do que ele. Há mais irmãos, mas desgarraram todos depois que voltaram de Angola. Foram para lá quando eram pequenos, cresceram nos colonatos do Cunene. Havia o gado e aquelas terras grandes… Agora o que lhe vale é o rendimento mínimo.
Quando o carro estaca no meio do largo, ali à beira dum salgueiro-chorão, João ainda não acreditou que o viajante parou na estrada e o trouxe  para casa. O que lhe vale é o rendimento mínimo. E ao vê-lo assim, a afastar-se cabisbaixo, convence-se o viajante de que deu boleia a um símbolo de alguma coisa maior. (…)"
[Peregrinação da Lapa a Riba-Côa, Âncora edit. Lx 2012]

sábado, 25 de agosto de 2018

Hecatombes

Nas estradas do nosso país há todos os dias uma guerra de Tróia. E o melhor Homero dela é o humor do Kusturica.
O resultado são hecatombes atrás de hecatombes, que não comovem os deuses.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Canalhices

"(…) Há que atentar na história dos Encontros de Trancoso. Aqui há uns anos, numa feliz conjugação astral, veio à fala o presidente da Câmara com dois cidadãos do mundo. Eram eles um brasileiro de lusas raízes, arquitecto e compositor entre mais dotes, e um tal Barbas de méritos prováveis de quem nada se apurou. Logo os três se deram conta de não existir no país uma entidade que congregasse os labores de artistas, filósofos, pensadores e cientistas. E consideraram Trancoso o lugar ideal para uma contínua reflexão sobre os males do planeta, através da arte, da ciência e das novas tecnologias. Os três criaram a FACTO logo ali, como quem diz a Fundação para as Artes, Ciências e Tecnologias - Observatório.
O objectivo da FACTO era a promoção de projectos de carácter transdisciplinar, transcultural, transnacional e intermediático. Seja lá isso o que for, em boa hora lhe deram nascimento, que assim veio a ter lugar o primeiro encontro internacional de arte e ciência, a que chamaram o Espírito da Descoberta. Um tal espírito visava promover um momento de informação e debate, gerando uma visão mais ampla, diversificada e profunda de algumas das mais fascinantes descobertas da ciência e das propostas da arte, questionando a sua natureza, os seus fins e o universo humano nelas envolvido.
Perante o duvidoso jargão da propaganda, cresce ao viajante a muita perplexidade. Mas logo veio em apoio de tão peregrino evento uma procissão de aclamadores, entre eles um filósofo europeu, presidente da Associação Mundial de Críticos de Arte, que era também a cabeça honorária do Tribunal Europeu do Ambiente.
Uma tal instituição, que anos atrás já naufragara na Bélgica, por culpa dos governos que faltam aos compromissos, das multinacionais cuja bandeira é o dividendo, e de corrupções avulsas, achara por fim em Londres um porto de acolhimento. Foi nessa altura que o já citado brasileiro-luso se tornou seu director. E os Encontros Internacionais de Arte e Ciência, já firmados em Trancoso, deram então lugar às sessões do Tribunal Europeu do Ambiente. O Espírito da Descoberta cedeu passo às Origens do Futuro, muito embora pareça ao viajante, em linguagem mais terrena, que à tal fome de aventuras visionárias se juntou aqui a mais singela vontade de comer. (…)"

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Feira de Agosto

Há um sobressalto na paisagem. Do céu fugiu a cor. A brisa bate à porta. Vem entrando Saturno, o melancólico.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Panteão?!

A proposta da SPA de que os restos mortais do Zeca Afonso sejam trasladados para o Panteão Nacional é uma supina patetice. Pior que essa só a do Sá-Carneiro!
Em termos de Liberdade, e de Abril, e de Portugal, um só nome seria consensual: o Salgueiro Maia, que nunca aspirou a nada e fez só o que tinha a fazer.
Os tugas são uns patetas!

terça-feira, 21 de agosto de 2018

O facilitador

No tempo em que os animais falavam e o país era um deserto, o dótor Relvas foi secretário de estado da administração local. Foi quando se divertiu a mandar formar técnicos locais para a operação de aeródromos que não existiam no mato. Quem fazia o serviço era a Tecnoforma, gerida por um tal passos coelho que mais tarde havia de ser primeiro-ministro dum governo de retornados. Uma tal aberração acolhia uma ministra das finanças que de finanças nada sabia, uma ministra da Justiça que andou por aí a fechar tribunais e a meter a justiça num inferno, e o próprio dótor Relvas como adjunto da administração local.
Foi então que passou pela cabeça do Relvas reduzir a administração e poupar: reagrupar e abolir municípios, esse feudo do PPD, que era um manancial inesgotável de arranjinhos e negociatas, e já vinha desde os tempos do Mouzinho da Silveira.
Só que… a direcção da ANMP estava nas mãos do Ruas de Viseu, o tal que mandou apedrejar os fiscais do ambiente! E, quando ele ouviu o Relvas ganir que ia reduzir os municípios, rosnou-lhe um larga o osso terminante. O Relvas meteu o rabo entre as pernas e eliminou 1200 freguesias. Fodeu a vida a mais uns milhares de patetas e ficou todo contente, antes de voltar ao seu papel de facilitador de negócios.
O governo anda agora a pensar em corrigir a argolada. E quando já toda a gente tinha esquecido o dótor Relvas, não é que o cabrão voltou a fazer-se ouvir? Ainda ladra, esse pulha!

sábado, 18 de agosto de 2018

Selvajarias

Ele precisava dum cão para lhe guardar o quinteiro. E foi o Chico Preto que um dia lho arranjou. Ele prendeu-o numa argola antiga e lá o deixou ficar, a mulher tratasse dele.
Nas férias  do Verão o cão via um de nós e parecia que chorava. Gania que era uma dor de alma. Quando o soltávamos, corria desvairado e atirava-se à água fria do tanque.
Até que viemos a descobrir que a água fria era para ele um refrigério. E que ele nos proibia de o soltar por selvajaria pura. Porque o cão vivia rodeado de pulgas que já cobriam o chão e ameaçavam afligir as pessoas.
Mais tarde ele meteu o cão na camioneta, chegou à estrada da quinta dos areais, uma lonjura, e abandonou o pobre, que assim se libertou.
Ando a ler os processos de Moscovo, do cabrãozinho do Stalin, há cem anos atrás. E ele há diferenças entre uma coisa e outra. De quantidade, mas não de qualidade, que a paranóia é a mesma.

Pobres

Este alvenel é um herege. Anda ali a rebocar a cabeceira da igreja de São Pedro, entre um chorrilho de obscenidades. Coitado do santo, que tem que ouvir isto tudo.
A igreja é muito antiga. E quando foi preciso um dia dar-lhe um jeito, foram-se buscar pedreiros à Galiza, pois por cá 50 mil obreiros andavam ocupados a derreter o ouro brasileiro na construção do convento de Mafra, que havia de albergar 300 franciscanos.
Lá vieram os galegos, e logo foram encontrar escondidas na parede novas Trovas do Bandarra, que há 200 anos estavam ali guardadas para escapar à santa inquisição.
Pobre Bandarra, pobres obreiros de Mafra, pobre alvenel herege, pobres de nós!

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Feira d'ano

Nesse tempo a feira de S. Bartolomeu durava três dias e era o centro da vida de toda a região. Nela se pagavam as rendas das courelas, se compravam ou se vendiam gados, se levava uma camisa nova, uma blusa de chita para a filha, um par de tamancas para a patroa… Agora a feira dura mais que uma semana. Mostram-se máquinas e carros e artistas e diversões e passeia-se avenida abaixo avenida acima.
Eu era ainda um cachopo, mal me lembro. Estava com a minha avó materna, debaixo dos freixos grandes, e resolvemos comprar um melão que vinha do Ribatejo. Havia ali um monte deles. Mas o que ela comprou já estava tocado e eu refilei:
- Ó avó, este melão metade está estragado! E vai ela, com a doçura que só ela tinha:
- Temos de ajudar a viver o homenzinho, que remédio!
De facto, muito embora não pareça, outro remédio não há.

domingo, 5 de agosto de 2018

Betadine

O homem levantou-se, reuniu os apetrechos de pesca e chamou o filho. De caminho meteu na bolsa uma embalagem de Betadine.
É um pescador inveterado. Mas aprecia a pesca e não os peixes dela. Esses devolve-os à água. Pega no Betadine, lambuza com ele as beiçolas feridas pelo anzol, e lá vai o peixito a rabiar.
O filho acompanha-o, para aprender a respeitar a natureza.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

T'arrenego bicho mau!

Os direitolas andam aí a exigir honras de Panteão aos restos de Sá Carneiro, que deus haja. Não foi ele mais que uma espécie de D. Sebastião, o tal que ficou na história não pelo pouco que fez, mas pelo muito que havia de fazer, se não tivesse morrido tão cedo.
Do mal o menos, bem pior foi a múmia do Cavaco, que andou pelo poder uns belos trinta anos. Um partido como o PPD, (a quem o poder caiu no regaço um dia, graças às graças da santa madre igreja e à cretinice dos eleitores indígenas), só podia presentear-nos com políticos dessa estirpe.
Mas houve aí bem pior! Lembremos só as manobras do pantomineiro Relvas, que levaram ao governo o Passos da Tecnoforma, e uma gaja das finanças que era a ignorância em pessoa, e outra gaja da Justiça que andou a fechar tribunais… T'arrenego, bicho mau!
Os CTT eram uma empresa eficaz e séria. Pois chegou essa canalha, privatizou aquilo, passou tudo a patacos, e hoje em dia é o que se vê. Phoska-se! 

segunda-feira, 23 de julho de 2018

O mulataz

A Aninhas foi com duas irmãs encontrar-se com o irmão, que estava rico no Congo. E um dia deixou-se levar pelas hormonas e achou-se debaixo dum preto. Lá teve um filho mulato. E voltou à aldeia por imposição do irmão, que não queria essas misturas.
O mulataz veio parar à Torre. Porém a Aninhas não queria que lhe chamasse mãe, não fossem os patrícios pensar o que não deviam.
O rapaz cresceu, e como todos os pretos pelava-se pela aguardente dos brancos. Voltava tarde a casa e sempre bêbado. A Aninhas não gostava de o ver nessa figura e não queria abrir-lhe a porta.
- Se não me abres vou dizer que és minha mãe!
A cirrose tomou conta dele e resolveu depressa a maka.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Num país profundo

No deprimido burgo são de notar três coisas:
- abundam os gabinetes de estética, onde as damas pintam coloridas nails de mãos e pés;
- abundam as tascas que servem copos de vinho, onde eles apanham carraspanas;
- e abundam os carros de tripas ferrugentas que os alemães distribuem, apodrecidos pelo sal das estradas de inverno.
O burgo ao lado é ainda mais insignificante, embora os autarcas de agora o tenham promovido a cidade. É um muito antigo cenóbio de frades beneditos, e tem ao meio uma avenida de quilómetro. Lá dentro vive um dentista que tem um Ferrari vermelho, e acelera com ele cá e lá. É que o resto das estradas não serve para aquela máquina.

domingo, 15 de julho de 2018

Fim do dia

Os estorninhos voam como torpedos, mas são poucos. Lembro-me de ver um dia o cume dum cabeço todo pintado de negro.
As pombas migrantes voltaram a aparecer mas os bandos são pequenos. Porque os pombais já ruíram.
As andorinhas vão na segunda criação e alargaram o condomínio do alpendre. Há um terceiro casal que construiu um ninho e se instalou.
Os gatos são os que ficam mais contentes quando me vêm chegar. Põem-se a jogar às escondidas no meio dos agapantos e comovem-me.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Natureza

Devem ser os netos do corvo vaidoso, daquela história do queijo da velha que o tinha a secar ao sol. Andam aqui à beira da represa, na relva onde os pescadores lançam o isco à truta e os banhistas se bronzeiam.
Mas eu vinha era à procura da raposeta, que muitas vezes vem aqui matar a sede. E logo que ela apareceu, os corvos levantaram voo. Não lhes agradava nada ter que repetir a história do avô que era vaidoso.

domingo, 8 de julho de 2018

Mater dolorosa

O infante era enfezadito e tinha uma grande barriga. O médico disse-lhe que o tratava com correntes galvânicas, mas no burgo só havia corrente eléctrica ao final do dia.
Todos os dias, ao cair da noite, lá ia ela a cavalo na Marquesa, à consulta do doutor. E quando ela acabava regressava já de noite, com o cachopo aconchegado ao peito.
O infante lá se salvou. O pai é que não foi chamado ao caso.

sábado, 7 de julho de 2018

Sezões

Nesse tempo não havia farinhas para os animais. Por isso se cultivavam garrobas* nas colinas de Foz-Côa, e a bicharada chamava-lhe um figo.
No Verão, Adelaide, ainda cachopa, saía da aldeia num grande rancho. O mesmo que no Inverno ia para a azeitona na terra quente. Lá iam apanhar garrobas nas colinas.
Ficavam por lá a semana inteira. Dormiam onde calhava, bebiam água dos charcos, apanhavam sezões, e regressavam a casa quando a semana acabava. 

Espécie de lentilha, dic. Morais.

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Marialvas marados

Cá na horta, os divertimentos que envolvam violência contra animais são expressamente proibidos. Não está prevista a estadia de toiros de lide, já que não há ambiente para eles. Mas os gatos vivem aqui como peixe na água, e são benvindos cachorros, andorinhas, poupas e outros migrantes. Só está interdita a entrada de marialvas marados dos cornos e outros parasitas.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Papa-léguas

Hoje o Trabant ainda sobrevive em filmes do Kusturika. Mas a história mostra que ele era um papa-léguas a dois tempos.
Logo que teve as fronteiras abertas, a Christina foi de Berlim a Belgrado porque queria conhecer o pai. Lá foi e lá regressou. Mas contar isso obriga-nos a voltar atrás algumas décadas.
Em 1943 todos os varões alemães eram poucos para a guerra. Os novos e os velhos. Por isso as tarefas de gestão da visa em solo alemão eram obrigação das mulheres. E a mão de obra agrícola principal era constituída por prisioneiros arrebanhados pela Wehrmacht onde os houvesse. Foi nos arredores de Belgrado que Bogdan foi aprisionado e mandado para a Alemanha.
Foi trabalhar para uma quinta em Eichsfeld, onde tudo era mulheres. E não tardou que a filha da proprietária se tomasse de amores por Bogdan. A guerra um dia chegou ao fim e Bogdan regressou a Belgrado. E Christina lá foi, a conhecer o pai.
Ele era agora jogador de futebol. E só não apareceu no campeonato do mundo, porque a Jugoslávia também já não existe.

sábado, 30 de junho de 2018

Rio

A prosa é um rio grande. Poesia é a viagem rio abaixo. Poetas são aqueles que sabem bolinar.

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Crepúsculo

No lugar onde hoje estou andava eu, há muitos anos, a apascentar as vacas no lameiro. E, quando o crepúsculo chegava, punha-me a cavalo na Marquesa e acompanhava as vacas, que subiam a vereda até chegar à corte.
Tenho saudades desse tempo em que havia árvores, e bichos, e natureza. Ao ombro trazia  um rádio de pilhas, onde perorava um dr. Paulo Pombo, que ladrava um conto radiofónico. Dos contos não me lembro de nenhum.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Prudências

Para lá da vedação há uma pequena horta rodeada de aveleiras. No resto cresce o capim, e o Platão passeia-se por lá. Os grilos...as lagartixas…
Hoje um pastor trouxe o rebanho e as ovelhas andaram por ali, tosando o capim e saboreando as folhas tenras das árvores. Lá pelo meio do rebanho alguns molossos de guarda cumpriam a função.
Logo que os pressentiu, o Platão entrou em casa. Desapareceu completamente debaixo dum sofá, e não saiu de lá enquanto os canzarrões não se foram embora. É que o Platão é filósofo  e leu o livro: sê prudente como a serpente mas simples como as pombas.

terça-feira, 26 de junho de 2018

A casa nova

" Mas quem sabe de emigrações em França é o senhor Primo. Não seria ele o caso, mas havia menino que fazia negócio dos patrícios, encalhados ali em Champigny, na maior das misérias. Sem poiso nem dinheiro, sem conhecer da língua uma palavra, dispunham-se a pagar o que não tinham só para arranjarem trabalho. Outros vinham a Portugal e faziam-se correios, traziam dinheiro em mão para as mulheres dos colegas. Muita vez eram roubados no caminho, ou assim se fazia constar, o dinheiro é que nem sempre aparecia. (…)
A dada altura terão virado os ventos, que o homem desapareceu por muito tempo. Até que numa noite apareceu a arder a casa branca. E quando o tribunal mandou arrestar tudo por causa duns calotes. amanheceram dinamitadas as paredes. São estas as pedras de armas que aqui se hão-de abrigar, quando lhes chegar o dia.
Lá em baixo, num cabeço à margem do lençol de água, reconhece o viajante um cramoiço de pedras. Já foram casa onde gente morou, já prometeram ser um lar de velhos, agora são as ruínas do sucesso moderno, perdidas na paisagem. O viajante fica a olhar o jazigo vazio, e o azul do horizonte no espelho das portadas. Razão tinha quem disse que esta vida é uma feira, cada um vende nela o que tem para vender. (…)

sábado, 23 de junho de 2018

Meteorologias

Há 50 anos estava eu no norte de Angola, não vivi aquilo. E aquilo foi uma circunstância meteorológica tramada, que pôs o regime a coçar os tomates. Na região de Lisboa caiu em poucas horas a quantidade de chuva dum ano inteiro. Setecentos e tal mortos ficaram na lama, no vale de Loures.
A juventude universitária puxou dos galões e fez o que devia. Auxiliou, vacinou, denunciou. O regime censurou, claro.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

País fodido

Há dias fui à cidade, comprar umas calças de verão para esconder as vergonhas. O carro era uma barcaça da Índia, grande com´ó caraças. Estacionei-o dez minutos perto da loja, e quando voltei tinha uma multa no vidro.
A papeleta da multa mandava-me comparecer na esquadra da polícia. E eu lá fui, no dia seguinte, para evitar males maiores. Parei a um quilómetro da esquadra, numa cidade atravancada de latas ferrugentas. Mas consegui lá chegar.
O agente informou-me que o assunto era tratado na esquadra da GNR, na estação dos comboios. Eles é que sabiam se a infração me custaria trinta, ou sessenta euros. Dependia da quantidade de passeio ocupado pela viatura.
Eu não fazia ideia onde era a GNR, e tinha mais que fazer do que andar à procura dela. De modo que optei por mandá-los foder e fui à minha vida.

terça-feira, 19 de junho de 2018

E assim foi

Ensonado, o rouxinol dormiu numa videira. Durante a noite uma gavinha cresceu e prendeu a pata do rouxinol. Para se ver livre, o rouxinol virou-se para a virgem e logo ficou solto.
Porém sujeito a repetir toda a noite no silvado: Nossa senhora disse, disse, disse, que não dormisse, que não dormisse, que não dormisse… E assim foi!

domingo, 17 de junho de 2018

Favas

No rés-do-chão a estação de correios ainda lá está. E no 1º andar havia quartos para dormir, num tempo em que mais nada havia. Passei aqui uma noite.
Ao lado passava a linha do comboio, e ainda passa. Os comboios, sempre retardatários, são iguais aos que trouxeram o Jacinto, que vinha de Paris a Tormes. Na essência, nada mudou, nem as favas!

terça-feira, 12 de junho de 2018

Muito a propósito...

Neste troço de estrada uma placa limita os 50 Kms. E eu não consigo imaginar a velocidade a que passou o grande filho da puta que atropelou este gato. Tinha que ser.
O bicho ficou estendido no alcatrão. E o condutor foi depressa para casa estender os pés à lareira, porque o cabrão do inverno veio para ficar. Como tudo o que é mau!

terça-feira, 5 de junho de 2018

O marrafinha

O pai tinha partido para a África longínqua, a cumprir um destino que era o mesmo, desde há séculos. E nunca mais deu sinal de vida. Os três ganapos ficaram nas mãos da mãe, que era tecedeira, e pouco tinha para lhes dar além da fome.
O garoto foi servir como pastor para uma aldeia distante, e a patroa aviava-lhe a merenda numa meia das dela. Ele aguentou-se algum tempo. Mas um dia fartou-se, abandonou o gado e regressou a casa. Chegou ao fim de três dias.
Alguém o encaminhou para Matosinhos, onde foi servir de marçano numa loja. E tudo quanto podia mandava-o para casa, para ajudar a mãe e os irmãos. O tempo em que ele próprio ensaiaria as aventuras de África ainda vinha longe. Mas já estava traçado.

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Arroz de chabéu

No labirinto dos Bijagós havia a ilha de Bubaque. Era uma estância balnear improvisada que permitia um dia ou dois de folga: nos alertas, nos bombardeamentos, na fuga aos Strela russos, naquele absurdo todo.
Em Bubaque instalara-se um cabo-verdeano que mantinha alojamentos primários e cozinhava um excelente arroz de chabéu. O chabéu eram as bagas das palmeiras e davam ao cozinhado o tom amarelado do açafrão. Um tinto do Cartaxo, que vinha em garrafões, compunha o repasto.
Isto foi assim há muitos anos. Tão absurdo que mal dá para acreditar, mas foi.

sábado, 2 de junho de 2018

Timidez

O sol ainda ia alto quando a raposeta pintalegreta passou pela vinha das brasileiras e achou que estavam verdes, não prestam. E ela aproveitou para beber água.
Andava ali um pescador às trutas, a ver se a cana lhe dava um sinal. Por isso a raposeta afoitou-se pela margem e bebeu metade da represa.
Ia ela de rabo comprido e focinhito aguçado pelo meio dos rosmaninhos, quando eu pus um pé fora do carro. Ela não estava interessada em encontros, acelerou o passo, saltou o muro e lá se foi vinha acima. Um caso de timidez!

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Corpo de Deus

Os patitos que nadam na represa, o rebanho que pasta nos salgueiros da margem, os cães que vigiam a retaguarda, tudo isto será o corpo de deus que festejam com tapetes de flores em volta da igreja, no final da tarde. Sem a Natureza nada tinha justificação!

domingo, 27 de maio de 2018

Transportes

"Os portugueses levaram o milho da América para a África, onde se adaptou de tal maneira que em fins do séc. XVI se dava ao milho americano o nome de "milho da Guiné". A laranjeira-doce foi trazida para o país depois da viagem de Vasco da Gama, e no séc. XVI generalizou-se a sua cultura na metrópole e nas colónias. A laranja da China entrou em Portugal em 1635, e foi daí difundida pelo Velho e Novo Mundo. Os portugueses encontraram o tabaco na América e espalharam-no pela África e pela Ásia. Do Brasil levaram os portugueses a batata-doce para a África, e o ananás para a África e a Ásia. Para a América levaram da África a bananeira. Há quem afirme que deles tomaram os japoneses o conhecimento da planta do chá. (...)" 

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Bárbaros

A avezita agitava-se, tonta, no alcatrão. Parecia bêbeda mas não era nada disso.
Tinha sido vitimada por um desses energúmenos que passam a ferro tudo o que apareça pela frente: peões, cachorros, pássaros, comboios, gatos.
Hesitei ao passar-lhe um pneu por cima. Mas para quê prolongar tal agonia?! 

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Simulacros

Foi esta, certamente, a última vez que fui a Lisboa. De comboio, que é a melhor opção.
Assim me achei na gare do Oriente, aquele palmeiral de ferro com simulacros da Índia que o Calatrava engendrou. É um belíssimo sítio para apanhar uma pneumonia!
O comboio, até à Pampilhosa, lá se vai desenrascando. Mas quando entra na linha da Beira Alta é uma desgraça. A velocidade é menor do que a da carruagem que trouxe o Jacinto a Tormes, há 150 anos!

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Miragens

"Era para a Coroa de um milhão de cruzados o produto da especiaria em cada ano, livre do custo e de todas as outras despesas, incluindo nestas as perdas marítimas. Mas todo esse dinheiro gastava o rei D. Manuel com o seu fausto particular e com o que dava loucamente a uma multidão de parasitas, que acorriam à capital de todos os pontos do reino.
Apesar de toda a riqueza da pimenta, a administração financeira era sempre deficitária. Todos em Portugal procuravam viver do comércio da Índia, directa ou reflexamente, por intermédio do monarca. O dinheiro era dado à aristocracia, e passava desta aos estrangeiros, a quem se compravam todas as coisas. O Transporte, pois, destruía a indústria do país, em vez de ser, como conviria, o fomentador da sua indústria, pela fixação da riqueza do trabalho nacional. Os portugueses traziam à Casa da Índia os produtos orientais, e os navios estrangeiros vinham buscá-los a Lisboa. Mais tarde os holandeses não procederam da mesma forma, ao despojá-los do monopólio. (...)
Os portugueses tomavam para si a parte difícil, arriscada e dispendiosíssima, do trabalho do Transporte, deixando aos outros o melhor proveito. (...)"

domingo, 20 de maio de 2018

Colonatos

"Nestes prados da quinta dos Cavalos não há cavalos nenhuns. Só João vai caminhando pela berma da estrada e o viajante para ao lado dele. Não sendo velho é uma figura antiga, delida pelo tempo, ou pela vida. E há nele uma servitude primitiva que o viajante já julgava extinta. De manhã tirou-se de cuidados e foi à vila ao médico espanhol, à boleia dum vizinho. Em breve se despachou e agora não há transportes, não tem remédio senão voltar a pé. Tem a mãe à espera em casa, já muito velha, e ainda mais achacada do que ele. Há mais irmãos, mas desgarraram todos, depois que voltaram de Angola. Foram para lá quando eram pequenos, cresceram nos colonatos do Cunene. Havia o gado e aquelas terras grandes... Agora o que lhe vale é o rendimento mínimo.
Quando o carro estaca no meio do povo, ali à beira dum salgueiro-chorão, João ainda não acreditou que o viajante parou na estrada e o trouxe para casa. O que lhe vale é o rendimento mínimo. E ao vê-lo assim, a afastar-se cabisbaixo, convence-se o viajante de que deu boleia a um símbolo de alguma coisa maior. (...)."
[in Peregrinação da Lapa a Riba-Côa]

sábado, 19 de maio de 2018

O maior filho da puta da história de Portugal

"Foi D. Duarte um rei muito bom, mas infeliz, não só por nevropata, mas também pela mágoa que lhe causou D. Henrique com a sua teimosia de uma segunda expedição a Marrocos, contra o parecer do rei e de D. Pedro, a quem tal política, excessivamente comercial ou de transporte, em prejuízo da produção, parecia "trocar uma boa capa por um mau capelo".
A expedição fez-se; e quando os portugueses cercavam Tânger, um exército mouro cercou-os a eles, cortou-lhes a comunicação com os navios, e só lhes prometeu o embarque contra a promessa de restituírem Ceuta, ficando em reféns, como garantia da execução dela, o infante D. Fernando.
Ceuta não foi restituída; D. Duarte morreu de desgosto, e a D. Fernando, martirizado em África, libertou-o a morte da sua miséria em 1443."

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Dona Elvira

Hoje em dia é a alcunha dum carro clássico, mas nesse tempo era nome de gente. E a dona Elvira subia todos os dias as inclementes ladeiras da Sobreposta para ir dar escola a Casteição.
Estava casada com o Guinemer, que foi buscar tal nome não se sabe aonde. Era uma espécie de herege, que se dava mal com o padre. E um dia construiu uma fábrica de moagem debaixo duns castanheiros. Um motor acionava a mó alveira, e isso acelerou o abandono dos moinhos de água, pela ribeira abaixo.
Um dia o Guinemer partiu para a África e a dona Elvira foi com ele. Constou que ele morreu debaixo dum tractor, que um preto fez empinar e cambulhou. E a dona Elvira regressou mais tarde, numa ponte aérea que aí houve.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Decadência

"Essa monarquia, acostumando o povo a servir, habituando-o à inércia de quem espera tudo de cima, obliterou o sentimento instintivo da liberdade, quebrou a energia das vontades, adormeceu a iniciativa; quando mais tarde lhe deram a liberdade não a compreendeu; ainda hoje a não compreende nem sabe usar dela. (...)
A estas influências deletérias, a estas duas causas principais de decadência, uma moral e outra política, junta-se uma terceira, de carácter sobretudo económico: as Conquistas."
(...) Pois bem, meus senhores: o Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo; a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno".
Santo Antero participou desta maneira nas Conferências do Casino Lisbonense em 1871. Mais tarde deu um tiro nos miolos, num jardim açoreano.

sábado, 12 de maio de 2018

Despotismos

O Chico Preto tinha-lhe oferecido o cão. Ele trouxe-o para casa e prendeu-o numa argola para guardar o quinteiro. Se algum de nós aparecia, o cão chorava como uma criança. Às tantas reparámos que as pulgas tinham tomado conta dele e já cobriam o chão. E o que ele queria era correr, desvairado, e atirar-se à água frígida do tanque. Era o refrigério do pobre do cão.
Por isso nos proibia que alguém o soltasse. Por sadismo puro. Porque os déspotas são todos assim. Avariados dos cornos.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Aqueles cães

No meio dessas andanças, enquanto a conversa deslizava, entrámos pelo quinteiro. Lá ao fundo havia um cabanal, onde o Zé guardava as lenhas do Inverno. E diminuto era o lugar para elas, que a mor parte do telheiro estava atravancada por um exótico mostrengo: um prisma descomunal, coberto de ferrugens e de lixo.
O Zé confidenciou-me que já fora um depósito de gasolinas. Esta enterrado em Tete, numas bombas que ele tinha à beira da picada que dava para o Moatize. Antes de juntar as tralhas e pôr-se a mexer para a Beira, mandou vir os pretos todos, fê-los desenterrar o mastodonte, subiu-o para a caixa do camião e trouxe tudo no convés dum navio.
Agora ali estava ele, e estava ali muito bem. Não tinha deixado nada àqueles cães.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Marquês de Pombal

Em momentos críticos é que fazem falta homens providenciais. Foi o que aconteceu com o Marquês.
Viveu em Londres e em Viena, onde casou e aprendeu o espírito moderno. Secretário do rei D. José, ficou na história como a imagem do déspota impiedoso. O caso do jesuíta Malagrida, para quem o terramoto de Lisboa foi um castigo de deus, ajudou muito.
Ele sabia que em Portugal nada poderia ser feito sem partir os dentes à fidalguia todo-poderosa. Os Távoras esquartejados em Belém, no beco do Chão Salgado, e o duque de Aveiro que o digam.
Além disso o filão do ouro do Brasil estava esgotado. Quando veio o terramoto de Lisboa, era preciso reconstruir a baixa pombalina, coisa que ele fez notavelmente, apoiado numa equipa de arquitectos notáveis. 
Com a morte do rei veio a rainha louca, que vivia aterrorizada com a violência do Marquês. Os aristocratas procuravam apenas a vingança. E graças a ela o Marquês acabou homiziado em Pombal.

terça-feira, 8 de maio de 2018

E as tripas?!

 
 
Num tempo que se perde na infância, trabalhou lá em casa um rapaz que depois foi para a pesca do bacalhau, talvez para Ílhavo. Agora aparece este australiano armado em historiador, a contar epopeias sobre a história dos navegadores portugueses, e as índias, e os Vascos da Gama, e os pescadores dos dóris..
 "Todos os dias pequenas fragatas de Lisboa lhe traziam sal e mantimentos, ambos em grande quantidade, e homens descalços, de cesto à cabeça, lançavam montes de sal para dentro do enorme porão. (...)". Faltam as tripas!

segunda-feira, 7 de maio de 2018

sábado, 5 de maio de 2018

O Angústias

Nesta altura o céu mostra-o abundantemente. As chamadas nuvens de desenvolvimento vertical elevam-se por vezes a grandes altitudes. E lá dentro é um cafarnaum. Um avião que não tenha radar e seja apanhado numa coisa dessas parece um brinquedo.
Aconteceu ao Angústias, de tal maneira que ele saiu na vertical, com o solo a dois passos. Agarrou no manche a duplas mãos e puxou por ele desvairadamente para não embater no solo.
Apanhou um tal cagaço que nunca mais quis voar. Foi dirigir uma repartição qualquer de pessoal, onde eu mais tarde o encontrei. Mas isso não vem agora ao caso.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Deserto

O burgo já viveu tempos diferentes. Primeiro foi quando nele viveram os judeus, há muitos anos, quando alinharam a corredoura como hoje ainda é.
Mais tarde, quando era habitado, tinha uma livraria no largo da Avenida. Comprei lá ao Caramelo as mais antigas coisas de que me lembro: a 25ª Hora e A Ponte sobre o Drina.
Hoje o burgo é um deserto como outros.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Abrir os olhos

Em Maio de 68 tinha eu acabado de chegar ao sertão do norte de Angola. Mas os ecos dos acontecimentos de Paris chegaram lá, através da Paris-Match. É proibido proibir!
Em Praga o estudante Ian Palach imolou-se pelo fogo na praça Venceslau.
A vida é longa e muitas vezes confusa. E abrir os olhos leva muito tempo.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Coração

Tinha por animais um grande apreço, ao contrário dos irmãos. Um dia o cachorrito que tinha foi atropelado na picada pelo machimbombo. Ela teve um enorme desgosto, e o funeral foi um caso nunca visto. O caso tocou o próprio motorista, que dias depois lhe trouxe um cãozito novo. E as lágrimas acabaram por passar.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

Modos de vida

Havia uma bancada enorme. Ao fundo a recta de chegada das corridas de cavalos. Em segundo plano um auditório ao ar livre, onde havia concertos ao domingo à tarde. Para o povo.

sábado, 28 de abril de 2018

Maio


A propósito vem este haiku muito antigo, aqui traduzido duma versão alemã:

"Floresce a giesta negral.
Mas as abelhas evitam-na
Salvo quando constipadas."

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Maus hábitos

Há muitos anos parei o carro à beira da estrada que vinha da Bissalanca e avancei por uma plantação de cajueiros. Os frutos davam um sumo excelente. A certa altura apareceu um fazendeiro, tinha eu o saco praticamente cheio. Os meus argumentos não o convenceram, mas lá me deixou partir, de rabo entre as pernas.
Muito mais tarde parei o carro à beira da estrada, a deslado da barragem de Montargil. De cesta no braço avancei pomar adentro, disposto a refastelar-me com uma barrigada de pêssegos.
E foi o dono que me surpreendeu, protestando com tanto desaforo.
Pedi desculpa, voltei ao carro, e prometi a mim mesmo que perderia os maus hábitos.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

E depois do adeus!

Quando o 25 de Abril aconteceu em Lisboa estava eu na Guiné, a escapar aos mísseis Strela que o PAIGC utilizava.
Chegaram as férias e vim para Lisboa. Mas já não regressei porque as guarnições do mato tinham começado a jogar à bola com os guerrilheiros.
O 25 de Abril depressa me transformou a vida num trinta e um enorme. Porque eu nunca tive o espírito de me deitar debaixo da figueira e ficar à espera que os figos maduros me caíssem na boca.
No princípio de 1976 parti para o primeiro exílio, a que outros se seguiram. Lembro-me disso e penso: 25 de Abril sempre, que tarde veio!

terça-feira, 24 de abril de 2018

Necrófagos

Os abutres do Egipto e os britangos habitam nas falésias do Penedo Durão, no Douro internacional. Raramente aqui aparecem. Mas o mundo está mudado até para os necrófagos. Vieram aqui à procura dalguma cabra velha, ou duma rês perdida no monte.
Eram seis, e nunca agitam as asas. Aproveitam as correntes ascendentes, rodam a várias alturas, observam e aguardam.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Ama-seca

Gosto de animais, por razões que não carecem de explicação. Um rebanho de ovelhas era muito, e além disso guardador de rebanhos já temos um. Assim trouxe para casa dois gatos. Um macio e timorato, o outro explorador e aventureiro. Um dia cuspi nas mãos e fiz de mim ama-seca.
O aventureiro feriu-se seriamente, numa vedação, num resto qualquer de arame farpado, eu sei lá. A veterinária coseu-lhe a pele ferida e meteu-lhe a cabeça num funil que tinha à mão. O bicho parece um astronauta, mas não consegue comer nem beber água à vontade.
Durante uma semana, até ele se refazer, depende da minha mão.
É o que nos vale a ambos.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Cuco apressado

Encontrei um ovo de cuco à beira do caminho. Como todos os pulhas, este precipitou-se. Foi à procura dum ninho de pássara ingénua mas é cedo. Deixou o ovo ali e foi à vida.

quinta-feira, 19 de abril de 2018

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Rebeldes

Não contam argelinos nem marroquinos: esses tinham, uns e outros, bairros inteiros por conta, só em Paris. Não era assim no resto dos países árabes.
Começaram na Tunísia a ouvir-se as vozes da primavera árabe. Logo depois veio a Líbia, onde o Kadhafi dormia numa tenda guardado por amazonas. A Nato andou à caça dele e encontrou-o escondido num esgoto. Depois disso a Líbia desapareceu.
A seguir veio o Egipto, o Iraque e as fictícias armas químicas do Saddam. Até chegarmos à Síria.
Com as costas quentes por Moscovo, o Assad não cedeu. Despejou bombas barril sobre os rebeldes e mandou bugiar os anunciadores da Primavera árabe.
Restam as tropelias do palhaço pintado de amarelo, que manda na Casa Branca.

domingo, 15 de abril de 2018

Basta

Sobe a encosta, embebeda-te de  azul e não penses. Sente, silencia, e basta.
Se chover abriga-te numa lapa. 

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Tempos

A Primavera já se mostrou sete vezes, mas sete se arrependeu.
O camponês foi à horta e atolou-se.
As andorinhas tremeram de frio, cruzaram o estreito e voltaram ao deserto.
As florinhas das fruteiras são promessas de açafates de ameixas doces.
De horas em quando o sol ainda desponta mas fica-se na promessa.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Tijolos e trovas


O meu avô amassava tijolos
O meu pai fazia tijolos
Todo o dia eu carrego tijolos
E a minha casa onde está?!

[Fellini - AMARCORD]

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Sátiro

Chamo-lhe assim e não é que o fosse. Mas era filho da dona Sátira, talhado para futuros, como então se cria.
Um dia foi mobilizado para Angola como alferes e foi parar a Carmona. Não tardou que lhe caísse nas mãos uma donzela, herdeira duma fazenda de café. Chegava ela das mãos dum outro alferes do arre-macho, que acabara o serviço e regressara à metrópole. O sátiro foi apanhado e casou.
Depois do regresso foi viver para uma quinta da família, à vista do rio Mondego. A água vinha do rio, lá ao fundo, a um quilómetro de distância. E tinha no portão, à beira da estrada, um painel de azulejos da Viúva Lamego.
Um dia vendeu a quinta e arranjou trabalho temporário na Siderurgia. Andou por lá uns tempos, enquanto a mulher e a sogra se instalavam numa transversal da avenida de Roma.
A fazenda de café tinha ido à vida. E a mulher dava aulas, a sogra passava o tempo e o sátiro punha na cabeça um chapéu à Sherlock Holmes e apanhava porrada das duas. Só para aprender aquilo que a vida custa. Mas foi tarde.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Sinfonia


E o vento que vibrava nas agulhas dos pinheiros era uma sinfonia de sussurros doces. Hoje ouve-se a estalada das pás dos aeródinos a rodar no céu, a criar energia e calor. São os escravos modernos dum império velho. 

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Vida

A cadela claudicou no parto, porque a história das fêmeas que morreram a parir não se esgota nos humanos.
Tinha lá dentro seis filhos nados-mortos.
A dona da cadela deixou correr duas lágrimas tristes.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Diálogos

O Platão cresceu, ganhou bochechas de gato dominante, uns grandes bigodes e muita sabedoria.
Ontem foi à horta e encontrou a cobra, que saía da toca onde passara o inverno.
Logo ela se pôs com as fosquinhas do costume, a fazer olhinhos e tal. Só p'ra ver se o levava à certa.
E vai ele: - Ó menina, o que tu sabes a mim já me esqueceu!
E lá foi, à procura de aventuras melhores.

domingo, 14 de janeiro de 2018

Eu bem te digo, António!

Atão e o onde, o quando, o como, o porquê e com que fim?!

"Deus sabe que eu não queria. Deus conhece o íntimo da minha carne, a razão dos meus pecados e o labirinto das minhas intenções. Deus acompanha-me desde a Índia, onde o meu pai, de bivaque, trabalhava de estafeta na alfândega do porto e a minha mãe cozinhava no telheiro, sob a chuva, a tartaruga do  almoço, e continuou a acompanhar-me pelos anos fora dobrando as palmeiras da praia, nas monções, com um só dedo do seu vento e baixando em pleno dia numa noite absoluta que transtornava as iguanas e as mulheres.
Deus trouxe-me consigo para Moçambique como criado dum marquês que regressava ao reyno numa escuna de velas enfunadas pelos leques das aias, pesada de quinquilharias orientais vendidas depois nos túneis do metropolitano por gurus esqueléticos, acocorados no chão ao lado dum pífaro e de uma caixinha de mortalhas. Na véspera da partida de Lourenço Marques adormeci no quarto de musseque duma chinesa que conhecera duas horas antes, levitando em passinhos curtos numa avenida da Baixa, e ao acordar vi através do seu sorriso mudo, pela janela, os  leques das aias que acenavam no horizonte e um mandarim centenário ajoelhado numa almofada a almoçar carochas duma tigela de Barcelos. (...) O único branco do bairro vendia bíblias, postais eróticos e gira-discos no porta-a-porta da cidade, chamava-se Fernão Mendes Pinto, possuía uma cabana na areia atulhada de refugos de equinócios e recordações da Malásia, sentava-se à beira de água a comover-se com os crepúsculos, fez-me sócio no comércio de evangelhos e uma tarde, ao chegar mais cedo ao musseque, encontrei-o, nu e repulsivo, em cima da rãzita transparente da chinesa que sorria para o tecto a sua doçura inalterável. (...)
Com as automotoras chegavam sem cessar políticos, calceteiros, presidentes de câmara e cobradores de impostos. (...) Uma súbita aldeia de moradias, supermercados e cinemas alisava as dunas e avançava terraços pala mata. Arrumaram o padrão, limpo de folhas, na cave dum museu, à sombra de bustos de cera de exploradores memoráveis. Instalaram um clube naval para comodoros paranóicos num lugre abandonado, depois de o libertarem dos esqueletos de calafates que se desfaziam em pó mal o piaçaba lhes tocava. (...)
Os circos deram em desembarcar de vagões de mercadorias, e os equilibristas armavam as redes em praças roubadas aos eucaliptos e ao capim. De tempos a tempos o governador, acolitado de oficiais bigodudos, visitava os quarteirões pobres prometendo esgotos, e partia com um cabrito nos braços agaloados, ao som do hino, num automóvel gigantesco com um par de bandeirinhas no capot."
[AS NAUS]

sábado, 13 de janeiro de 2018

A seita

A primeira e única coisa que a seita do PPD/PSD trouxe de novo aos portugueses foi um novo D. Sebastião. Um Sá Carneiro que teria feito milagres no seu tempo, se não tivesse morrido tão cedo num desastre de avião, ou lá o que foi.                    
A partir daí foi sempre a descer. E é onde está ainda, apesar da idiotia indígena que não passa sem um pai, falso que seja.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

 

Em Portugal há pacientes que sofrem de fibromialgia desde crianças. E medicam-se com óleo de canabis vindo de Espanha. Porque os ilustrados médicos indígenas só há pouco tempo começaram a reconhecer a fibromialgia. O resto da questão era dos psiquiatras.
Sejam indulgentes os deuses, perante o sofrimento que eles deixaram à solta.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Grumos

Un poème inédit de Patrick Chamoiseau:

Depuis l'effroi, depuis la peur
Depuis la rumeur abyssale des griots et conteurs
Depuis l´encre de celui qui écrit

Depuis la magie du verbe qui ordonne au réel
aux odyssés aveugles qui s´appliquent à tout voir et a tout raconter
Des folies qui galopent dans l´audience des moulins
aux passions qui font scènes dans de plusieurs royaumes
La haute saisie du temps
dans les arcanes du souvenirs et le cosmos de la mémoire

Voici les furies coloniales
L´hécatombe des grandes guerres
Ces gouffres-monde ouverts qui défont la parole
Jusqu'à l'orgueil des langues que n'étaye plus la ciselure du style

Juste à ce point de déroute où
Faulkner

Dans la langue hors toute langue (...)

[Poesia? Ufff! Estes vagidos contemporâneos lidos no Magazine Littéraire  são grumos no leite creme. Vão-se lixar!]

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Bardamerda, diz a juventude!

Já não há bilhetes para o Rock in Rio, que só há-de chegar lá p'ro equinócio!
O pior vai ser se o resto dá para o torto!

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Sentido

Perguntarei aos patos do lago
e aos corvos que às tardes passam a grasnar no céu alto
e aos pardais
que acordam na madrugada
e se põem a viver
onde vão buscar a alma de vencer este gelo
e guardar este sentido

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Este país não é para velhos

Muitos automobilistas tugas são surpreendentes:
- chove a potes, prego a fundo!
- piso seco, fundo a prego!
- há nevoeiro, farolada em cima!
- há um bicho na estrada, passa-se a ferro!
- aquaplanning, o que será ele isso!
Depois encontram-se na morgue e fazem uma festa. Falta é que não fazem cá nenhuma!

domingo, 7 de janeiro de 2018

O cabrão

Está lá tudo contado, e bem, pelo Joaquim Furtado. Agora só falta vê-las. São nove fitas duma hora. Ele ouviu brancos, pretos, mestiços, UPA's, FNLA´s, MPLA´s, colonos, generais, governadores, tutti quanti.
O sacripanta de Santa Comba, esse sepulcro fariseu pintado de branco, deformado pela padraria, fez de toda a gente um nagalho e atirou milhões de pessoas para uma fogueira.
Na Índia mandou a tropa, que não tinha armas, nem munições, nem botas resistir a um exército de 45 mil indianos que reclamavam Goa em 61. Até que Abril chegou, como não podia deixar de ser.
A estátua do sacrista ficou um dia sem cabeça. Talvez assim passe incógnito no inferno.

sábado, 6 de janeiro de 2018

O avô que foi à guerra e contou

Há netos com sorte. Este tem um avô que foi à guerra e escreveu um livro só para ele saber.
"Estávamos para aí há um ano naquela monótona vida de isolamento a lidar sempre com os mesmos camaradas, as conversas não tinham grandes cambiantes, as caras eram sempre as mesmas. Até a paisagem que a princípio era deslumbrante, por ser diferente, não se alterava. O tédio acabaria por nos cacimbar se não mudássemos rapidamente de ares. (...)
Delineou-se a estratégia, e o plano foi amadurecendo e ganhando forma. Estabelecemos o percurso, as paragens, os tempos de estadia, tudo muito bem organizado. E lá fomos à aventura.
Chegámos a Luanda. E na manhã seguinte procurámos a Havaneza do Cruzeiro, uma tabacaria que também alugava automóveis. De lá saímos montados no Anglia Fascinante que foi nosso durante um mês.
A visita às quedas do Duque de Bragança foi um inesquecível deslumbramento. Únicos visitantes, enchemos os olhos e a alma com tanta beleza selvagem que já tínhamos esquecido que existia. Depois rumámos para sul, tendo como objectivo chegar a Moçâmedes, depois de visitar Nova Lisboa e Sá da Bandeira. Como em Moçâmedes a estrada ainda continuava para sul, decidimos ir até ao fim e através do deserto chegámos até Porto Alexandre. (...)
No deserto tirámos fotografias em cima da planta considerada carnívora, única no mundo, a Welvitcia Mirabilis. (...)
Esta viagem durou o exacto tempo das nossas férias. Fizemos o caminho inverso e recomeçámos a contagem dos dias que faltavam para tirar a farda de vez.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Um homem é um homem, um gato é um bicho.

São muito úteis, as máquinas, mas eu não confio nelas. Recuso e anulo todos os tiques e automatismos dos automóveis modernos.
Muito a propósito fui ver um filme do Stanley Kubrick, 2001 Odisseia no Espaço. O filme é uma delícia e uma fonte de ensinamentos. Até que o supercomputador Hall 9000 toma o freio nos dentes e vai para lá do que deve. 
À equipa de astronautas não resta senão desligá-lo. Apesar dos seus protestos.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Noites álgidas

Havia patos à beira do lago, que amanhecia gelado.
E neblinas no bosque e um jornal na padaria.
As noites eram álgidas e solitárias, até que um dia ela deixou entreaberta a porta. Foi uma revelação.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Ano Novo

E o Tsipras grego também teve um réveillon? E o Varoufakis bebeu champagne? E os tiranos da troika bateram com a mão no peito, de vergonha? E o Sócrates da nossa terra, que é feito dele?

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Poesia

Ai de mim que nunca fui poeta! Salvo uma voz que me saiu um dia da boca duma personagem de romance.
Era uma voz de padre, há muitos anos. Um capelão militar, que me encontrou estendido na maca à entrada do hospital, muito mais morto que vivo.
"Somos só verdes vimes que um vento verga!". Foi só isto.