quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Um tantinho de nozes

Angelina tem mais de setenta anos e vive em Dine, que é o lugar onde nasceu. É um aldeia com fornos de cal, abandonados há muito. E fica atrás do derradeiro monte que limita os fins do mundo. Chega-se lá depois de passar muitas encruzilhadas, e é um lugar tão bonito que nem apetece deixá-lo.

É aqui que Angelina vive, com uma cadela que se chama Luna. Ouve uma pessoa um nome assim e põe-se a fazer perguntas ao instinto.

A seu tempo foi Angelina mãe solteira, duma filha que vive na cidade. Trabalha no comércio, a rapariga, e Angelina está toda contente. Gosta mais de a ver longe neste ofício, do que perto a labutar no campo. Ressalvando a tristeza comum de se encontrarem só de horas em quando. Mas um dia há-de-lhe dar uma netinha.

Angelina vive perto da fontana, ao lado duma represa que também serve de tanque de lavar. E quando chega o Natal faz um presépio ali no jardinzito, para alegria e animação do povo. A casa fica além, debaixo da parreira, e vivem hoje nela a dona e a cadela, conforme antigamente lá viviam a filha e a mãe já velha. Sempre que voltava a casa, Angelina punha-se a fingir a voz duma vizinha, às punhaladas na porta com recados urgentes. - Oh que assim és tontinha, minha filha! - E riam ambas no fim.

Ao contrário do resto da aldeia Angelina não anda de preto, porque não é viúva. E por sobre ser uma mulher com ar alegre, tem um espírito aberto, dado e solto. O melhor será chamar-lhe livre, porque o é. Ninguém lho amansou, que é o que sucede as mais das vezes, quando passa por cima das mulheres o rolo compressor da conjugalidade.

À despedida oferece-nos um tantinho de nozes e castanhas. E confessa que, por esse mundo além, só lhe agradava ver a árvore de Natal numa praça do Porto. Dizem na televisão que não há outra maior, e ela acredita.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Um plebeu chamou-lhe um dia vaca sagrada.

 

                           Eduardo Lourenço