quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Interrupção

As palavras são como os linhos antigos. De tanto andarem a cote, chega um dia em que ficam encardidas, a precisar de barrela. Há que estendê-las ao sol e deixá-las a corar, até ganharem brancura.
É o que aqui se fará durante uns tempos.

Portugalmente (75)

(...)
Camilo é escrivão num tribunal do Porto, passa agora umas férias em Almendra, que é a sua terra e fica perto. E seria uma vergonha não ter visto ainda os cavalinhos, se em casa de ferreiro os espetos de pau não fossem de uso corrente, conforme diz o ditado. Decidiu-se hoje, espera a sua vez juntamente com uns franceses. E trouxe ao viajante a sorte grande, conforme adiante se verá.
O fim do dia vem perto. Mas este condutor que acaba de chegar não está aqui para outra coisa senão servir os clientes e ganhar o seu salário. Nem que fosse ao lusco-fusco haveria cavalinhos. E os visitantes metem os pés ao caminho, salvo seja.
A quinta da Ervamoira, que além na encosta fronteira se derrama sobre o rio, é um presépio natural que o espelho da barragem haveria de inundar. O guia confidencia que houve tranquibérnias várias, terraços improvisados, plantações de última hora e compromissos bancários, para engordar as indemnizações. Com a suspensão das obras a expropriação não veio, aos bancos não lhes agrada esperar, e a quinta acabou nas mãos dum vinhateiro francês. Mas o vinho não perdeu qualidades nem fama, e seria a maior perda se a barragem se fizesse.
Na praia da Penascosa encontram os visitantes três fragas iluminadas, três telas de arte rupestre. Já forçaram os fatigados olhos a deslindar os auroques filiformes, entrelaçados com cabras montesas, veados picotados e cavalinhos de crinas ao vento. Outra vez voltam a ver, ou a tentar, e a ouvir num francês estropiado que as gravuras têm pelo menos 18.400 anos, datados pelo carbono 14. Não sabem se estas figuras demarcavam territórios, se eram rituais propiciatórios de nómadas caçadores, ou se tinham função mais transcendente. Olham em volta a rudeza da paisagem que se abandona ao crepúsculo, e as ovelhas que recolhem, a tasquinhar pela margem, quem sabe se a recordarem os primos antepassados. O silêncio em que regressam é o da melancolia. Já o destes visitantes denota constrangimento, para não dizer alguma decepção. É Camilo quem o rompe.
Que nada vai subtrair à importância das gravuras. Serão elas capital para uma nata de académicos, uma elite de arqueólogos, um escol de especialistas. Mais do que isso não despertam emoções nem provocam romarias, e os números aí estão para o ilustrar. O significado próprio dos cavalinhos não tem correspondência visual, pouco diz a espíritos iletrados, nunca será espectáculo que atraia multidões. Por isso quem prometeu eldorados turísticos com a suspensão da barragem foi vendedor de ilusões. E o museu que andaram a construir é outra peça da mesma encenação. Um dia, festivamente, alguém há-de vir inaugurá-lo. E depois desse breve sobressalto, de romaria de verão, cumprirá o papel dos elefantes brancos, que tem largas tradições na nossa terra.
O viajante sustenta que uma barragem é sempre um compromisso, entre o que se perde nela e tudo quanto se ganha na sua construção. Veja-se o caso do Tua, uma linha de montanha das mais belas da Europa, que a empresa logo exigiu em troca dos cavalinhos. O património e a história que nela vão enterrar é de valor incalculável, sem qualquer forma de mitigar as perdas.
Chegou ainda a falar-se em deslocar as gravuras, e noutras soluções de remissão. Mas logo uns eruditos gritaram heresia, que os cavalinhos ficavam sem contexto, privados de chão terreno. Era a história que perdia o pé, e lá pararam as obras. Mal convencido por semelhante argumento, o viajante não sabe em que ficar.
Agora há quem se agarre ao pequeno negócio, há quem defenda o precário trabalho, há quem tenha receios do clima e dos míldios de Junho. A empresa das barragens procurou outros lugares, onde provocará danos maiores. E aos mestres da ciência arqueológica servem os cavalinhos do Côa de muletas de carreira e modos de afirmação. Josué tinha razão, a suspensão da barragem foi um erro clamoroso. E mais razão tinha um sábio que já houve, ao lembrar que a solução dum problema qualquer nunca pode ser achada nas mãos de quem o criou.
O farpão é de Camilo, que já não conheceu o padre Júlio, velho conterrâneo seu de quem estaremos lembrados. Nem sabe das histórias de Ramón vermelho, que ficaram lá para trás. Mas picou-lhe logo a pulga na orelha, quando vieram à baila.
Ou ele é verdade que há horas de sorte, como já se ouviu dizer, ou simples fortuna deste viajante. Ganha um jantar em Almendra, em troca de explicar ao companheiro como foi que o padre Júlio se tornou o pai dos pobres. E ganha um anfitrião, que amanhã lhe há-de mostrar este reino de colinas encantadas.
(...)

Encore

Já uma vez aqui foi dito e hoje se volta a dizer, por ser verdadeiro e pertinente.
Portugal nasceu do capricho dum príncipe. E em lugar de nele construírem um país, os portugueses foram-se a correr sertões, a cavalo no vento.
Do país ficou-lhes a paisagem, que povoaram de desespero. E inventaram esta loucura mansa, que é inimputável e ilude a realidade.
Precariamente vão sobrevivendo nela.

Portugalmente (74)

(...)
Depois de passar a ponte está o viajante em Riba-Côa. Acostumado que vem às estradinhas modernas, já se tinha esquecido das antigas, como esta que tem à espera e parece um mar revolto. Mas o viajante confia no seu velho companheiro, e até Castelo Melhor é um saltinho. Em seu redor, na direcção da Marofa, desenrola-se um planalto de ondulações femininas, de arredondadas colinas que a erosão do tempo boleou. O xisto impera, com proveito dos vinhedos, que alastram em remendos nas encostas. É um reino de olivais e campos de amendoeiras, a pontilhar na paisagem as suas geometrias caprichosas. Bem gostava o viajante de perder tempo com elas, mas a aldeia já está ali à mão direita. E ao fundo duma íngreme calçada chega finalmente ao centro de arte rupestre.
É uma casa aprimorada e tem ar condicionado, pormenor que não é despiciendo a quem aporta aqui num dia assim. Mas as novidades boas são escassas. Três visitantes folheiam revistas da natureza, e a hospedeira acumula como pode as tarefas de recepcionista e de guia das visitas. A tutela cortou no pessoal, o balcão de refrescos deixou de funcionar, está desligada a máquina de café, a viatura sofreu uma avaria e a programada visita foi suspensa. A única salvação está nos guias privados que prestam serviço ao parque e não tardam a voltar. Embora ninguém o afirme, depressa se torna claro que os serviços oficiais bateram em retirada, cedendo o campo ao mercado.
Ao viajante não agradam tais augúrios. Mas aguarda calmamente, não ia agora desistir desta pimenta após ter chegado à Índia. E só sairá daqui depois de tirar a limpo esta contenda, entre uma barragem que ficou a meio e umas gravuras que não sabiam nadar.
Numa loja que há no largo, os produtos regionais da Terra d’Oiro não chegam a seduzi-lo. E a instâncias do viajante, logo se declara a locandeira partidária das gravuras. Por ter receios do clima, dos nevoeiros de inverno em que deixa de haver sol, das frialdades de Junho que fazem a cama ao míldio e estragam o vinho da terra a quem o tem.
Já Josué, que em tempos retornou de Moçambique e hoje está reformado da companhia de electricidade, dedica-se agora à amêndoa e aos subsídios dela, uma vez que a maior parte não chega a ser recolhida. Veio ao café Paleolítico beber a sua cerveja e já viu os cavalinhos todos. Para ele foi um erro clamoroso. A energia e a água são dados determinantes para resolver a equação, e hão-de sê-lo mais ainda no futuro. Além disso a barragem e as gravuras não eram incompatíveis, já que há técnica bastante para levantar uma e preservar as outras. O salto de qualidade prometido pelo turismo não chegou a ter lugar, o desalento é geral, e a maioria das vozes na região só está à espera da conclusão da obra. Depois ficou prometido recuperar a paisagem destruída, mas a vergonha lá está. E o museu que fizeram num cabeço há-de ser um bom refúgio para os auroques. Um dia haverá barragem no baixo Côa.
Ao viajante não surpreende a cizânia, nem lhe compete aqui tomar partido. Veio de longe a ver os cavalinhos e alguma coisa já viu, talvez um guia privado que presta serviço ao parque lhe permita ver o resto.
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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Arabescos

Certo mestre entalhador que um dia houve em Foz-Côa não se perdia nos arabescos.
Quais indulgências plenárias, quais teias corporativas, quais presunções de inocência, qual quê do ónus da prova?!
Tonsurados, abadessas e beatérios avulsos... fogo do inferno com eles!
Ao tempo não havia bacharéis de leis, bem entendido!

Portugalmente (73)

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O viajante deixa para trás a afogueada charneca da Coriscada e das Tomadias. Já passou o Valtalhado, e as ruínas da estalagem da Rosalina onde em tempos aportavam almocreves de caminho para Além-Doiro, e a veiga dos Areais, que ao mesmo tempo regala um espírito escarmentado e uns fatigados olhos. À entrada do país do vinho fino, as quintas do benefício instalaram-se no vale e os vinhedos tapetaram as encostas. E vão alastrando além, nos altos da Cornalheira, em terraços de plantações recentes. Apertado pelo tempo, o viajante mal passou e andou. Mas exultou finalmente, por encontrar na paisagem sinais de vitalidade.
Logo que alcança Foz-Côa, vai à procura das instalações do parque arqueológico. E se os auroques do rio não forem mais escorreitos do que a fachada de lata da casa dos arqueólogos, de pouco terá valido a maratona. A hospedeira lembra a suspensão das obras da barragem e a criação do parque, a preservação da história e do património antigo, como quem revive as origens do mundo. À curiosidade do viajante responde que no último ano catorze mil visitantes vieram ver as gravuras. E acrescenta que está finalmente pronto o museu de arte rupestre. Um dia destes vão inaugurá-lo, não há bandeira melhor à porta as eleições.
O viajante perdeu-se no caminho. Mas lá foi dar ao museu, no alto duma colina, sem saber o que perdia se o não tivesse encontrado. É um temível baluarte, de proporção desmedida, metade dele enterrado. De olhos fechados à vastidão da paisagem, o fortim não possui uma janela. Faz lembrar ao viajante o serralho dum sultão, dos que havia antigamente nos contos orientais, para arrecadar concubinas resguardadas das tentações do mundo.
Atarefado anda um empreiteiro, a instalar as artérias que hão-de trazer vida às entranhas do monstro. O viajante não pode imaginar o que vão expor lá dentro, se não for uma lição de história virtual, projectada num ecrã, como agora está na moda. Cavalos de animação a beber água num rio, uns indígenas hirsutos à lançada num auroque, um artista a picotar uma cabra numa fraga. O viajante não sabe, mas já nada lhe provoca admiração. E abandona o olhar no panorama, o espelho do Douro a um lado, a outro a fita do Côa, entre os dois uma estação de comboios que deixaram de passar. Neste reino de colinas encantadas, onde há milénios perdidos já se honrava a natureza, o que ficou rio acima depois das obras suspensas é a lição mais-que-perfeita de como devastar uma paisagem. Encostas escalavradas, alcantis, falésias cruas, terraplenos, escombreiras, valagões e desaterros, rasgões de estradas sem fim, tudo ao molho e fé em Deus no mais completo abandono. Muito mais que um património mundial, o que a suspensão das obras ofereceu à humanidade foi um monumento à destruição ambiental, em nome da cultura. E o viajante ficou aqui a saber que não basta ser um homem ilustrado, cosmopolita, humanista. Para ser um bom governante, convirá ter pés assentes na terra e rodear-se de gente de juízo, se a houver.
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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Muros

Os ruidosos festejos da queda do muro de Berlim, (a que também chamaram muro da vergonha porque separava o mal do bem e o paraíso da geena), confirmam o que já era suspeito. De preferência recatado e solitário, o recurso à bebedeira é muitas vezes um acto colectivo. E assim se juntaram na Pariser Platz eminências alemãs, francesas, polacas, inglesas, americanas, uma russa e outras avulsas.
Porém não creio que ontem o tenham feito para uma narça colectiva. Antes vieram a embebedar o pagode, com brindes à liberdade, à democracia, à bem-aventurança e ao futuro. Ao delas, bem entendido, que ao do pagode não.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Portugalmente (72)

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Marialva são três momentos da história, três páginas dela expostas aos olhos do viajante. A primeira é a Devesa, espraiada na charneca. Lado a lado com as vivendas modernas, do peregrino gosto conhecido, guarda a Devesa sinais de algum alento burguês de há cem anos. No desafogo das fachadas de granito com amplos varandins, nos telhados de alto encume que por então se faziam, nos armazéns de comércio de largos portões de ferro. Mas o que veio salvar as frontarias, e as praças e estes recantos, foram os ventos da Europa, e o programa das aldeias históricas dos fundos de coesão.
Há-de parecer que a Devesa é uma criação moderna, e não no é, pois constou ao viajante haver por aí sinais bem mais antigos. De povoamentos romanos, de vilas agrícolas com mosaicos de Baco, do tempo dos imperadores. Nem admira, que sempre o trigo se quis à beira duma ribeira. Porém deles não sabe dar notícia o dono deste café. E o viajante resiste às seduções de Baco, que tem muito que fazer. E já lá vai, monte acima.
A Vila, fora de muros, é a página segunda, e nela a Corredoura está deserta. O casario em volta sofreu restaurações, ao menos os telhados e as fachadas, que por dentro não se arrisca o que lá vai. E agora mesmo pararam para o almoço uns artistas que andam a reformar a igreja de S. Pedro, posta aqui há muitas centenas de anos sobre uma necrópole medieva.
Passa o solar dos condes de Marialva, que os marqueses só mais tarde cá chegaram, e os alpendres da casa do Leão, que espreita lá de cima dum corrimão de pedra do tempo das caravelas, e a torre sineira da igreja de S. João, uma obra dos templários que ficou encastrada na muralha. Isto antes de os cavaleiros serem homiziados, do grande poder que tinham, e os seus tesouros levados a custear a cruz de Cristo, que nos empurrou para a Índia a cavalo no vento. Andam ecos de aventuras africanas a pairar nestes balcões, quem sabe se este brasão não foi conquistado a ferros nas campanhas de Azamor.
Há quinhentos anos era Marialva assim, mesquinhas habitações, mesquinhas hortas com figueiras, mesquinhas as ruelas. Um dia vieram os fundos europeus a dar vida a esta praça, onde dormitam jipes reluzentes de famílias que vieram de longe, à procura de um sossego. Salvaram do abandono estas casas de turismo com piscinas no terraço, e hão-de salvar da penúria o viajante, que nelas tem à espera um cardápio de luxo onde apazigua a fome. A bem dizer não precisava de tanto, mas um dia não são dias.
A porta do Anjo da Guarda é a entrada principal da Cidadela, que é a página terceira. E o viajante, que não faz ideia do que serão mil anos, encontra nela alguma sugestão. Manuel é a única coisa a destoar lá dentro, porque não tem mil anos, embora chegue a parecê-los. Degola aqui umas ervas ruins, levanta além uma pedra caída. Partilha com o viajante a pouca sabedoria, aqui é a porta do Monte que dá para os lados da forca, além abaixo a de Santa Maria, entre ambas a torre dos Namorados, o pouco que dela resta. E do lado do sol-posto é o postigo da traição, atrás daquelas igrejas.
O viajante faz a ronda das muralhas, segue o desenho das ruas e das construções que há nelas, comovem-no estas paredes, um dia já foram casas, de áravos, de romanos, de godos, de muçulmanos, de cristãos, outra vez de maometanos, de portugueses enfim. Hoje são apenas logradouros onde estremecem velhas oliveiras, o tempo chega para tudo. Este paço, na praça do Pelourinho, já foi poder e comando, foi cadeia e tribunal, há cem anos era escola. Hoje é a cara do tempo, e as velhíssimas estrelas da calçada as rugas dele.
No terreiro das igrejas, que são duas lado a lado, uma seria demais. E os seus donos estariam no inferno, se inferno fosse o castigo da malfeitoria humana. A investigação nunca foi feita. Porém os templos assentam num terrapleno que certamente cobriu construções mais antigas. E o viajante tem pena. Tinham mais bênção as casas e as ruelas, e as calçadas em estrela que os pés da gente pisaram, do que estes templos com púlpito exterior, onde nem sempre se deu voz à verdade, e lhes ficaram plantados em cima.
Ali ao lado, na faceira dum penedo, estão inscritas as palavras dum mestre de viajantes, que um dia aqui passou e cedeu às emoções. E se este agora não perde a compostura é por estreme pudor, que onde já correram lágrimas ao mestre não se aventuram as dum aprendiz. Deixa para trás a Cidadela, abrigada no regaço destes montes que há mil anos a embalaram. São belos e comoventes. E embora torturados pelos incêndios e pela insânia dos homens, hão-de aconchegar aqui outros mil anos esta bela adormecida.
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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Portugalmente (71)

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Terra afamada de vinhos é o Carvalhal, aconchegado aqui na fundeira do vale. E resistiu aos incêndios de há uns anos, que deixaram estes montes na miséria que se vê. Mas não entraram no povo, Deus louvado, é o que a dona Agostinha desabafa ao viajante. As cubas de cimento, que lá ficaram atrás com aspecto abandonado, são da adega cooperativa, que há uns anos deixou de trabalhar. Chegou a vir para aí um espanhol. Mas apesar dos bons vinhos a adega não se salvou. Agora os pequenos vinhateiros vendem as uvas ao desbarato, como calha. E os mais velhos lá lhes vão metendo a mula e o arado, mais por vergonha e pelo amor que ainda lhes guardam. Mas se fizessem as contas...
Para escapar a tão mesquinhos assuntos a dona Agostinha vai lá dentro, já volta e traz uma chave. Quer mostrar ao viajante a igreja do Carvalhal, lá tem as suas razões. É uma generosa fábrica com ares de rococó, e tem na capela-mor um tecto surpreendente de caixotões pintados. Mais um pouco e era aqui a corte celestial. Tantos painéis de madeira vieram de muito perto, dum convento que os franciscanos tiveram nos Vilares, para os lados de Marialva, no tempo em que em Portugal havia mil e trezentos, os de São Francisco e os mais. Quando se acabaram as clausuras, por ordem do Mata-Frades, o convento ficou abandonado. Ora roubar por roubar, o povo do Carvalhal foi buscar estes painéis. E foi o melhor que fez.
Ao viajante cativa-o a frescura desta nave, e a corte celestial dos santos todos, e a simpatia da sua acompanhante. Mas tem à sua espera os caminhos do mundo. Segue por uma estradinha à beira duma ribeira, que toda a vida foi carreteira de mulas e hoje é uma fita macia que os fundos europeus aconchegaram. É tão estreita e mesquinha que só um carro elegante cabe nela. Mas o viajante não quer outra coisa. Deixa para trás um campo de escombreiras, e a lagoa dumas minas que houve aqui a céu aberto, e a escassa vedação que lhes guarda as ameaças, com caveiras amarelas. Depressa lhe dão os olhos na muralha de Marialva, a branquejar além no horizonte, há séculos que está à espera.
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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Portugalmente (70)

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E assim veio parar a este lugar, que um dia já se chamou Vale de Ladrões. Foi isso num tempo antigo, quando os ladrões tinham lugar marcado. Porque agora aproveita a liberdade aos meliantes, para levarem à letra o bíblico preceito. Cresceram, multiplicaram-se, confundiram-se entre a gente. E Valflor é o nome que agora tem, nenhum outro lhe assentaria melhor. Fosse visconde este viajante, e não chegasse tão ensombrado de espírito, aqui teria encontrado o seu Vale de Santarém. O verde fresco das vinhas aramadas, a cinza dos olivais, a mancha negra dos sobros além na asa do monte, e o primor destes pomares a derramar-se na encosta até à beira da estrada, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita.
Mas gaba-te, cesto roto! Debaixo das macieiras, todo o chão é um vastíssimo tapete de frutos a apodrecer, mais parece estragação de alguma tempestade. Intrigado e confundido, o viajante dirige-se à quinta, a branquejar ali no arvoredo. E é uma quinteira amedrontada que o recebe com maus modos, enquanto apazigua os cães de guarda.
- Cais trovoada, cais carapuça! A fruta vai para a Concentra, que a leva em camiões. E a do chão é para os gados dos pastores, por troca das estrumadas!
O viajante foi meter o nariz onde não era chamado e caiu na insensatez. Escusado sobressalto o da pobre da quinteira, que tanto se há-de temer de fiscais e burocratas! Embora saiba, de sobra, que só complicam a vida e não dão pão a ninguém, o viajante vestiu-lhes a pele e agora é tarde demais. Jura a si mesmo não voltar a ocupar-se de pomares, abandonados ou não. E é sorte sua não andar por perto o patrão da família! Acaba a desculpar-se da maçadora intrusão, enquanto deita aos cães um olhar desconfiado. Na retirada mira novamente os destroços da fruta. Por pouco inveja as ovelhas, tão regalonas que são.
Mas chega a Valflor recuperado e confiante, não sonhava encontrar um vale assim. As vinhas e as oliveiras caindo pelas encostas a revestir a paisagem mostram que o mundo mudou. Só para Adalberto a mudança é que não foi para melhor. Está ali encostado à galilé da capela de Santo António, apoiado nas muletas. E o viajante pára na grande sombra dos plátanos e estranha-lhe a condição.
- Tive uma hérnia aqui, mas não me correu bem!
Ao dizer isto aponta a um dos lados do ventre, põe-se a contar da operação no hospital. Ficou-lhe presa esta perna, mais tarde ainda lá voltou. Mas nunca mais dispensou os andarilhos.
Aqui não sabe o viajante o que fazer. Nem lhe sobram devoções de milagreiro, que já as consumiu todas, nem um milagre aqui fazia falta. O que faltou à hérnia de Adalberto foi um médico capaz de lhe concertar o corpo, sem ferir o que não carecia de concerto. Seria pedir demais, e ainda bem que o Adalberto tem este ar pacificado. Só uma tal resignação lhe servirá de conforto.
Ele há-de conhecer em Valflor os paços dum almirante que aqui houve, e Salazar visitava! São ali por trás daquelas casas, nem conhece ele outra coisa, se tanto lá trabalhou! Do Salazar é que já se não recorda. Mesmo que o tivesse visto não o podia diferençar, era um homem como os outros.
O viajante só discorda de Adalberto porque sabe, desta história, mais do que ele. Ouviu dizer que nos paços do almirante, em verões antigos, tinham lugar encontros de coração. Mas as damas vinham duas, e o Salazar era um só. A paixão dele era uma castelã, de sangue azul e modos adocicados, diplomática e discreta. O nome dela era uma cordilheira, só ele enchia a página inteira dos assentos. Mas o enlevo que mostrava ao sacripanta era apenas circunstância.
Já a outra era azougada, uma amazona. Desfolhava-se por ele e não controlava os impulsos do corpo, que era tão vasto quanto impaciente. Dizia ela que a vida são dois dias e lá teria razão. Porém ele fazia-se de sonso e não lhe dava saída, que lhe metia medo a mulheraça. E fazia-lhe lembrar a Carlota Joaquina.
Quantas vezes casos bicudos da história, como este do Salazar, encontram explicação assim ao virar da esquina! Isto vai ruminando o viajante, que foi procurar os paços dum almirante e já os encontrou. Abatidos, decadentes, a caminhar para a ruína, tão transitórios como as glórias do mundo. Foi isto um suspiro de amazona, ou alguma porta velha que rangeu?!
Quem em tempos conheceu bem estas escadarias foi Francisca, das Moitas de São Martinho, se derramou nelas as lágrimas melhores. Tinha três filhos mas só lhe sobraram dois, que o terceiro levaram-no umas febres, num sertão de África para onde foi à ventura. Um dia o mais novato andava nuns lameiros, a gadanhar o feno, ali às Águas-Vivas. E lá entrou em despiques com um farsola, por causa duma gaiata. O resto foi o vinho que o fez. Veio para casa mais cedo, foi buscar a caçadeira, e ficou à espera que o carro dos bois parasse no meio do povo. Não era o tal farsola que vinha a cavalo nele, empoleirado na carga, mas ele nem reparou. E vindimou o pai sem o saber, amaldiçoada hora!
A mãe Francisca ateve-se ao almirante, pois a quem... A justiça era tão longe, a vida era tão madrasta, o homem tinha emigrado sem lhe mandar um tostão… Andou que tempos a caminhar para aqui, por esses montes abaixo. Num taleiguito à cabeça trazia o melhor que tinha, que era nada. Guardava no coração uma esperança, nem sabia, de merecer uma atenção do almirante. Mas o filho apanhou a pena máxima, nunca mais se endireitou. E um dia a velha Francisca, perdida aquela ilusão, tomou-se do desalento e lá se deixou morrer.
Às vezes preferia o viajante não ter arcas da memória, esquecer tudo o que ouviu, não ter lembranças de nada. Ver as paisagens do mundo e contentar-se com elas. Sobretudo quando são assim floridas como estas de Valflor, que até serviram de alcova a Salazar.
(...)