A menina era gentil. E bonita, santo Deus! Da ementa que me trouxe constava xôpa grelhada.
Pareceu-me estranho. Pedi explicações.
- É um peixe do mar, sei lá!
Fiquei na mesma. E logo ela harmonizou. Abriu o menu da véspera, paspada no carvão.
- Come e cala-te! - disse eu, a rosnar com os meus botões.
terça-feira, 30 de setembro de 2008
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
Nocturno, em si, menor
Alguns dormitam, maçados, nos beliches, ele viaja a noite inteira a pé. Entre o bar e o corredor, entre uma nova cerveja e os considerandos do salário que recebe. Quase setecentos contos, mesmo quando não embarca. Como agora, que vem a casa ver a mulher. Mas isso há-de acontecer só amanhã, lá pelo meio-dia, em chegando à Pampilhosa, depois de atravessar a infindável noite basca, e leonesa, e castelhana, num Sud-Expresso lôbrego.
Alfredo tem trinta anos e deixou a escola antes do tempo, em Mira. Foi trabalhar com o pai, nesse tempo havia quarenta companhas só nas artes da xávega. A princípio puxavam a rede à unha, com juntas de bois que enterravam os cascos no areal macio. Hoje não chegam à dúzia. O peixe foi-se embora, será culpa das chuponas espanholas. E ficou tão barato na lota quanto é caro nas bancas do mercado, não se compreende Portugal. Paga-se o gazol do barco e o resto mal dá para viver. De forma que o pessoal começou a emigrar lá para fora e ele foi parar a Quipert, ao pé de Nantes. Foi há dois meses, mais um cunhado, é a primeira vez que vem a casa.
Em Quipert saem para o mar à quinzena, e Alfredo é o cozinheiro. O dono do barco é tão velho que já não navega, toda a companha de sete é contratada. Mas o peixe vai à lota ao mesmo preço para todos e toda a gente ganha dinheiro. Só não se entende o que se passa em Portugal.
Alfredo vem excitado com os considerandos do salário que recebe. Jantou no restaurante, bebeu uma garrafa de vinho, no fim pediu um conhaque e pagou quarenta euros mas valeu a pena. Depois foi aturando a noite a poder de cervejas, e é por isso que já lhe arrasta a voz, e tem este bafo choco e amargoso, e repisa outra vez os considerandos do salário que recebe. Quando chega a Vilar Formoso desce ao cais durante meia hora, o tempo de mudar a máquina ao comboio. Bebe outra cerveja na cantina, com uns camaradas negros que exercitam um hip-hop lusófono, e também chegam da Europa.
Lá pelo meio-dia, toldado como vai, Alfredo levará tempo a encontrar-se com a mulher. E quando o conseguir, vão ser horas de apanhar outra vez o comboio para voltar a Quipert, ao pé de Nantes. Onde agora é cozinheiro, sempre que sai ao mar, a pensar nos considerandos do salário que recebe.
Alfredo tem trinta anos e deixou a escola antes do tempo, em Mira. Foi trabalhar com o pai, nesse tempo havia quarenta companhas só nas artes da xávega. A princípio puxavam a rede à unha, com juntas de bois que enterravam os cascos no areal macio. Hoje não chegam à dúzia. O peixe foi-se embora, será culpa das chuponas espanholas. E ficou tão barato na lota quanto é caro nas bancas do mercado, não se compreende Portugal. Paga-se o gazol do barco e o resto mal dá para viver. De forma que o pessoal começou a emigrar lá para fora e ele foi parar a Quipert, ao pé de Nantes. Foi há dois meses, mais um cunhado, é a primeira vez que vem a casa.
Em Quipert saem para o mar à quinzena, e Alfredo é o cozinheiro. O dono do barco é tão velho que já não navega, toda a companha de sete é contratada. Mas o peixe vai à lota ao mesmo preço para todos e toda a gente ganha dinheiro. Só não se entende o que se passa em Portugal.
Alfredo vem excitado com os considerandos do salário que recebe. Jantou no restaurante, bebeu uma garrafa de vinho, no fim pediu um conhaque e pagou quarenta euros mas valeu a pena. Depois foi aturando a noite a poder de cervejas, e é por isso que já lhe arrasta a voz, e tem este bafo choco e amargoso, e repisa outra vez os considerandos do salário que recebe. Quando chega a Vilar Formoso desce ao cais durante meia hora, o tempo de mudar a máquina ao comboio. Bebe outra cerveja na cantina, com uns camaradas negros que exercitam um hip-hop lusófono, e também chegam da Europa.
Lá pelo meio-dia, toldado como vai, Alfredo levará tempo a encontrar-se com a mulher. E quando o conseguir, vão ser horas de apanhar outra vez o comboio para voltar a Quipert, ao pé de Nantes. Onde agora é cozinheiro, sempre que sai ao mar, a pensar nos considerandos do salário que recebe.
Pegos floridos
E só voltou a encontrá-la muitos anos mais tarde, acabado de regressar a Vale do Açor, depois de consumir, num estanco de barbeiro carioca, os seus melhores trinta anos. Tinha ido espairecer a alma solitária ao Senhor da Pedra, ali abaixo de Moreira de Rei, talvez conheça. Naquele tempo era a romaria mais popular da redondeza, não havia cão nem gato que não aproveitasse o sol novo da Páscoa para dar um prazer ao corpo, escarmentado pelas rudezas do inverno. Ele havia merendas colectivas pelos outeiros, qualquer um mais descarado podia associar-se, havia bailes de concertina nos largos e terreiros, e sociedades de pândegos que se armavam, tarde fora, à volta duma cartola de palheto, plantada ali sobre dois cavaletes.
Antes, porém, havia a missa e o sermão, em que o povo era chamado a capítulo. Nesse tempo era assim, e mal visto ficava o pregador que não deixasse a fungar meia capela. Depois a procissão descia ao vale e voltava a subir a encosta, era aquilo uma serpente colorida a espreguiçar-se por rodeiras e canadas, lenta e compassada, não fosse algum santo sofrer um tropeção e cair do andor.
Contou-me depois que ficara, solitário, à sombra dum carvalho sobranceiro ao adro da capela, sem devoção bastante para tão rudes andanças, a ver recolher a procissão, quando a viu a passar. E disse-me que sentira, neste passo, o coração a saltar-lhe do peito, a querer impor-lhe, embora mal parecesse, a pergunta derradeira, uma última fala com ela.
É que lhe ficara sem resposta o mistério fatal, um enigma cerrado, desde o dia funesto em que descera a correr a ladeira sem fim da Sobreposta, caminho do moinho, onde passou a tarde a ajudá-la na horta. Ia bem, o namoro, a um lado concordavam os pais, a outro tinha ela um riso transparente que endoidava a cabeça, e uns olhos de água que assim devia ser o mar, e um jeito manso de mãos que fazia bulir o peito, só de vê-lo. E foi ao morrer da tarde que ele deixou cair a pergunta, quando é que haverei de cá tornar, a ver-te. E ela, feiticeira, tornarás quando os pegos já estiverem floridos, e quando os moirões estiverem caídos, e quando os mortos forem enterrando os vivos, então cá tornarás. Isto disse e recolheu a casa, que a mãe a reclamava.
Voltou ele a subir a ladeira sem fim da Sobreposta, e chegou a casa já de noite. A cabeça em desconcerto largava perguntas às estrelas, quando estarão os pegos já floridos, e onde os tais moirões caídos, e que mortos a enterrar que vivos. Mas se do céu caiu algum sinal não pôde ele entendê-lo, nunca mais encontrou a hora de voltar.
Quando a viu ao recolher da procissão, gastou um ror de tempo a vencer embaraços, a reconhecer-lhe ao longe a silhueta já pacificada, a estudar-lhe nos modos algum jeito dos antigos sinais, até que se tornou azada a ocasião. Vinha ela a sair o portal da capela, no meio doutras devotas, e logo ele apareceu à mão esquerda, abrindo caminho no adjunto, como quem vai apenas a passar. Entre a hesitação e a surpresa, os olhos negros dela pareceram-lhe cansados, por um momento pareceram-lhe aflitos, pareceram-lhe perdidos. Alguns cabelos, que o lenço deixava a descoberto, não tinham já a antiga luz da seda. E o peito, debaixo da blusa de ramagens, tinha agora uma vastidão inesperada, mas guardava a placidez benigna das imagens doutro tempo.
Uma ira zangada veio em breve a toldar-lhe o semblante, desapareceres assim, nunca mais lá tornares, acabei por casar e fui viver para Sequeiros, hoje encontro-me viúva, tenho filhos por aí, homens já feitos, nunca mais lá tornaste, e os olhos a fugirem, perturbados. E as mãos dele a afoitarem-se para ela, nunca resolvi o teu mistério nem atinei com a hora de voltar, ainda hoje a não sei, tornarás quando os pegos já estiverem floridos, e aqui me hás-de dizer que hora era a tua.
E ela, ainda bonitona, na face uma rosa a abrir. Florescem os pegos todos, à hora em que neles dá o lume das estrelas. Caídos estão os moirões quando os pais já não vigilam. E os mortos enterram os vivos, quando só restarem cinzas num fogo que se apagou. Toda a noite esperei por ti, só a alta madrugada me venceu.
Havia noutro tempo destinos assim, talvez já tenha visto. Bem piores até que o destes dois. Que lá foram, disputando, por entre a multidão, parecia haverem florido todos os pegos do mundo.
Antes, porém, havia a missa e o sermão, em que o povo era chamado a capítulo. Nesse tempo era assim, e mal visto ficava o pregador que não deixasse a fungar meia capela. Depois a procissão descia ao vale e voltava a subir a encosta, era aquilo uma serpente colorida a espreguiçar-se por rodeiras e canadas, lenta e compassada, não fosse algum santo sofrer um tropeção e cair do andor.
Contou-me depois que ficara, solitário, à sombra dum carvalho sobranceiro ao adro da capela, sem devoção bastante para tão rudes andanças, a ver recolher a procissão, quando a viu a passar. E disse-me que sentira, neste passo, o coração a saltar-lhe do peito, a querer impor-lhe, embora mal parecesse, a pergunta derradeira, uma última fala com ela.
É que lhe ficara sem resposta o mistério fatal, um enigma cerrado, desde o dia funesto em que descera a correr a ladeira sem fim da Sobreposta, caminho do moinho, onde passou a tarde a ajudá-la na horta. Ia bem, o namoro, a um lado concordavam os pais, a outro tinha ela um riso transparente que endoidava a cabeça, e uns olhos de água que assim devia ser o mar, e um jeito manso de mãos que fazia bulir o peito, só de vê-lo. E foi ao morrer da tarde que ele deixou cair a pergunta, quando é que haverei de cá tornar, a ver-te. E ela, feiticeira, tornarás quando os pegos já estiverem floridos, e quando os moirões estiverem caídos, e quando os mortos forem enterrando os vivos, então cá tornarás. Isto disse e recolheu a casa, que a mãe a reclamava.
Voltou ele a subir a ladeira sem fim da Sobreposta, e chegou a casa já de noite. A cabeça em desconcerto largava perguntas às estrelas, quando estarão os pegos já floridos, e onde os tais moirões caídos, e que mortos a enterrar que vivos. Mas se do céu caiu algum sinal não pôde ele entendê-lo, nunca mais encontrou a hora de voltar.
Quando a viu ao recolher da procissão, gastou um ror de tempo a vencer embaraços, a reconhecer-lhe ao longe a silhueta já pacificada, a estudar-lhe nos modos algum jeito dos antigos sinais, até que se tornou azada a ocasião. Vinha ela a sair o portal da capela, no meio doutras devotas, e logo ele apareceu à mão esquerda, abrindo caminho no adjunto, como quem vai apenas a passar. Entre a hesitação e a surpresa, os olhos negros dela pareceram-lhe cansados, por um momento pareceram-lhe aflitos, pareceram-lhe perdidos. Alguns cabelos, que o lenço deixava a descoberto, não tinham já a antiga luz da seda. E o peito, debaixo da blusa de ramagens, tinha agora uma vastidão inesperada, mas guardava a placidez benigna das imagens doutro tempo.
Uma ira zangada veio em breve a toldar-lhe o semblante, desapareceres assim, nunca mais lá tornares, acabei por casar e fui viver para Sequeiros, hoje encontro-me viúva, tenho filhos por aí, homens já feitos, nunca mais lá tornaste, e os olhos a fugirem, perturbados. E as mãos dele a afoitarem-se para ela, nunca resolvi o teu mistério nem atinei com a hora de voltar, ainda hoje a não sei, tornarás quando os pegos já estiverem floridos, e aqui me hás-de dizer que hora era a tua.
E ela, ainda bonitona, na face uma rosa a abrir. Florescem os pegos todos, à hora em que neles dá o lume das estrelas. Caídos estão os moirões quando os pais já não vigilam. E os mortos enterram os vivos, quando só restarem cinzas num fogo que se apagou. Toda a noite esperei por ti, só a alta madrugada me venceu.
Havia noutro tempo destinos assim, talvez já tenha visto. Bem piores até que o destes dois. Que lá foram, disputando, por entre a multidão, parecia haverem florido todos os pegos do mundo.
da capo - 12
SOBREVIVÊNCIAS
Em 1970, na esquadra da Ota, tudo chegava da América, ressalvando os géneros do rancho que vinham das hortas de Alenquer. Os aviões eram da guerra da Coreia, e a literatura que neles vinha inclusa tinha eficácia há muito comprovada, ou nas escolas do Texas ou em bases do Arizona. Ninguém sabia porquê, mas tudo funcionava. E obtinha-se a máxima produtividade com investimento mínimo, um conceito alienígena que só muito mais tarde assentaria arraiais no linguajar comum.
Faltava-nos treinar a sobrevivência no mar. E se a questão parece de somenos, num país de marinheiros, logo adquire as dimensões duma Ilíada caseira, quando calha apagar-se o fogareiro a trinta milhas da costa. E lá veio uma equipa americana.
Fingiu-se o mar na piscina que ali estava, ao fundo duma ladeira, rodeada de eucaliptos. Um cabo de aço amarrado numa copa, um rappel vertiginoso, e no fim um abraço de madrasta, à nossa espera nas águas de Fevereiro. Livra-te do arnês do pára-quedas, nada até ao salva-vidas que além está, a dançar ao rés das ondas, iça-te lá para dentro sem demora, verifica a pistola de sinais, os fumos e tudo o resto, não te esqueças dos anzóis que te farão muita falta, se ainda não congelaste estás muito bem assim, já que estás na mão de Deus.
Depois era só vencer os cem metros da ladeira, as botas a chocalhar e o fato a gotejar limos, e o vento enregelado que vinha do Montejunto, a morder-nos nas orelhas, a alancear-nos o peito.
A princípio ainda corri, mas aos poucos foi-me afrouxando o passo. E à porta do alojamento caí na primeira escada. Foi aí que me encontrou aquele anjo da guarda da senhora das limpezas, que vinha a pegar no turno. Deu o alerta, pôs-se a gritar por ajudas, e soltou-me das vestes encharcadas os ossos que estalavam sem controlo. Levaram-me escada acima, meteram-me num chuveiro, gritaram que o médico viesse. E ele veio, um velho que era dentista, e estava na escala de serviço. Só o meu corpo é que não obedecia, tomado dum frenesi.
Desistiram do chuveiro que fervia, enfiaram-me na cama, e abraçaram a mim, numa esperança de milagre, o corpo generoso da femme de ménage, que me ofereceu o peito avantajado. Era uma pietá pagã. Mas nem ela conteve o motim dos meus ossos, nem acalmou aquela rebelião. E ainda hoje estou para decifrar o raciocínio do médico, que fez sair a mulher e lhe tomou o lugar, implorando ao meu corpo que parasse de vibrar.
Lentamente foi amainando o desvario, e os meus ossos deixaram de estalar. Eu voltei a tomar posse de mim mesmo e dispensei os serviços do médico. Tudo isto contaram-mo depois, o resto dos pormenores não os sei. Mas foram por muito tempo motivo de chacota. E talvez tema dum congresso médico, ou de algum brain-storming na América, a gente sabe lá!
Em 1970, na esquadra da Ota, tudo chegava da América, ressalvando os géneros do rancho que vinham das hortas de Alenquer. Os aviões eram da guerra da Coreia, e a literatura que neles vinha inclusa tinha eficácia há muito comprovada, ou nas escolas do Texas ou em bases do Arizona. Ninguém sabia porquê, mas tudo funcionava. E obtinha-se a máxima produtividade com investimento mínimo, um conceito alienígena que só muito mais tarde assentaria arraiais no linguajar comum.
Faltava-nos treinar a sobrevivência no mar. E se a questão parece de somenos, num país de marinheiros, logo adquire as dimensões duma Ilíada caseira, quando calha apagar-se o fogareiro a trinta milhas da costa. E lá veio uma equipa americana.
Fingiu-se o mar na piscina que ali estava, ao fundo duma ladeira, rodeada de eucaliptos. Um cabo de aço amarrado numa copa, um rappel vertiginoso, e no fim um abraço de madrasta, à nossa espera nas águas de Fevereiro. Livra-te do arnês do pára-quedas, nada até ao salva-vidas que além está, a dançar ao rés das ondas, iça-te lá para dentro sem demora, verifica a pistola de sinais, os fumos e tudo o resto, não te esqueças dos anzóis que te farão muita falta, se ainda não congelaste estás muito bem assim, já que estás na mão de Deus.
Depois era só vencer os cem metros da ladeira, as botas a chocalhar e o fato a gotejar limos, e o vento enregelado que vinha do Montejunto, a morder-nos nas orelhas, a alancear-nos o peito.
A princípio ainda corri, mas aos poucos foi-me afrouxando o passo. E à porta do alojamento caí na primeira escada. Foi aí que me encontrou aquele anjo da guarda da senhora das limpezas, que vinha a pegar no turno. Deu o alerta, pôs-se a gritar por ajudas, e soltou-me das vestes encharcadas os ossos que estalavam sem controlo. Levaram-me escada acima, meteram-me num chuveiro, gritaram que o médico viesse. E ele veio, um velho que era dentista, e estava na escala de serviço. Só o meu corpo é que não obedecia, tomado dum frenesi.
Desistiram do chuveiro que fervia, enfiaram-me na cama, e abraçaram a mim, numa esperança de milagre, o corpo generoso da femme de ménage, que me ofereceu o peito avantajado. Era uma pietá pagã. Mas nem ela conteve o motim dos meus ossos, nem acalmou aquela rebelião. E ainda hoje estou para decifrar o raciocínio do médico, que fez sair a mulher e lhe tomou o lugar, implorando ao meu corpo que parasse de vibrar.
Lentamente foi amainando o desvario, e os meus ossos deixaram de estalar. Eu voltei a tomar posse de mim mesmo e dispensei os serviços do médico. Tudo isto contaram-mo depois, o resto dos pormenores não os sei. Mas foram por muito tempo motivo de chacota. E talvez tema dum congresso médico, ou de algum brain-storming na América, a gente sabe lá!
terça-feira, 23 de setembro de 2008
Arte e imitação
Gastei anos e anos em escolas, em universidades técnicas, a esgrimir contra fórmulas, a dissecar impedâncias, a sondar estados de alma em micro-chips. Tive uma bolsa na América, pós-graduei-me em sistemas, fui mestre em micro-correntes. E acabei autoridade na selva oscura da robótica.
Quando ousei aventurar-me no mercado, rejeitou-me o tecido empresarial por ter currículo a mais. E após várias peripécias acabei a retrair-me em casa, assustado com um país que me odiava a ciência, pensava eu.
Volvidos anos em negra depressão, constou-me um dia que toda a arte estava na iniciativa própria, na ousadia privada. E concluí que, assim sendo, o caminho era a arte.
Eu tinha construído, no desarranjo do quarto, meia dúzia de autómatos que jogavam à bola. Para me distrair. Fiz umas adaptações e deixei-os vaguear sobre uma tela. Um deles reproduzia na perfeição os tiques do urso enjaulado. Outro era mestre nos pânicos do polvo acossado, a disparar borrões negros. O mais sofisticado simulava orgasmos de coelho, e rematava a obra com o toque final do mestre.
Muito em breve não me saíam da porta as galerias, ninguém calava os mecenas, nem os conselhos de administração sedentos de arte não figurativa. Os meus robôs dilataram horários, organizaram-se em turnos, e nos picos da estação mourejavam em simultâneo, vinte e quatro horas porque o relógio mais não tinha.
Uma noite preparei-lhes o terreno, mergulhei o estúdio em luz febril, liguei-os no automático e fui-me à cama, tomado de stress. Na manhã seguinte achei estendido no chão um retrato da Mona Lisa, carregado de mistérios.
Antes que eu visse uma dinheirama a arder, fui-me logo aos robôs e arranquei-lhes as tripas. Era o que mais faltava, após tantas conquistas da modernidade, voltarmos agora à arte como imitação da natureza!
Quando ousei aventurar-me no mercado, rejeitou-me o tecido empresarial por ter currículo a mais. E após várias peripécias acabei a retrair-me em casa, assustado com um país que me odiava a ciência, pensava eu.
Volvidos anos em negra depressão, constou-me um dia que toda a arte estava na iniciativa própria, na ousadia privada. E concluí que, assim sendo, o caminho era a arte.
Eu tinha construído, no desarranjo do quarto, meia dúzia de autómatos que jogavam à bola. Para me distrair. Fiz umas adaptações e deixei-os vaguear sobre uma tela. Um deles reproduzia na perfeição os tiques do urso enjaulado. Outro era mestre nos pânicos do polvo acossado, a disparar borrões negros. O mais sofisticado simulava orgasmos de coelho, e rematava a obra com o toque final do mestre.
Muito em breve não me saíam da porta as galerias, ninguém calava os mecenas, nem os conselhos de administração sedentos de arte não figurativa. Os meus robôs dilataram horários, organizaram-se em turnos, e nos picos da estação mourejavam em simultâneo, vinte e quatro horas porque o relógio mais não tinha.
Uma noite preparei-lhes o terreno, mergulhei o estúdio em luz febril, liguei-os no automático e fui-me à cama, tomado de stress. Na manhã seguinte achei estendido no chão um retrato da Mona Lisa, carregado de mistérios.
Antes que eu visse uma dinheirama a arder, fui-me logo aos robôs e arranquei-lhes as tripas. Era o que mais faltava, após tantas conquistas da modernidade, voltarmos agora à arte como imitação da natureza!
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
domingo, 21 de setembro de 2008
da capo - 11
O SULTÃO
A donzela, digo eu, terá os seus quinze anos. Vai sentada ao lado da janela, enquanto masca a chicla ruidosa, num estalar de beiços. Sujeita-lhe a gaforina um par de óculos espelhados, de tartaruga pintada.
Ele vai sentado ao lado, um pé no banco da frente. Vai tão indiferente ao mundo, tão alheio à companhia, faz-me lembrar um sultão.
Os olhares da donzela vão na rua, mas volta e meia cai numa agitação. Debruça-se para ele, varre-lhe na face a linguita rosada, arrasta-lhe nos lábios um beicinho. Passa-lhe o dedo na cana do nariz, morde-lhe o lóbulo frio, dá-lhe dentadinhas a fingir. E afunda-lhe a língua no fosso auricular que lhe está mais à mão.
Ele queda-se impassível, desdenhoso, e eu fico extasiado a seguir-lhes os maneios. Se não sei muito bem em que mundo me encontro, menos ainda sei de que mundo eles vêm. Ela faz-me lembrar escravas dos haréns. E ele um califa de costumes modernos, que veio à rua arejar a favorita.
À saída não fico mais tranquilo. Ele passou adiante, imperturbável. Porém as calças dela, que são de gancho curto, deixam-lhe a descoberto os balões das cadeiras, a explodir obesidade. Ela enfeitiça-me os olhos com os mistérios do umbigo, antes de me estoirar nas fuças o balãozito da chuinga.
Segue ele à frente, ela atrás, para contentar o profeta. Eu aproveito-lhe o contentamento, e desço de novo à terra.
A donzela, digo eu, terá os seus quinze anos. Vai sentada ao lado da janela, enquanto masca a chicla ruidosa, num estalar de beiços. Sujeita-lhe a gaforina um par de óculos espelhados, de tartaruga pintada.
Ele vai sentado ao lado, um pé no banco da frente. Vai tão indiferente ao mundo, tão alheio à companhia, faz-me lembrar um sultão.
Os olhares da donzela vão na rua, mas volta e meia cai numa agitação. Debruça-se para ele, varre-lhe na face a linguita rosada, arrasta-lhe nos lábios um beicinho. Passa-lhe o dedo na cana do nariz, morde-lhe o lóbulo frio, dá-lhe dentadinhas a fingir. E afunda-lhe a língua no fosso auricular que lhe está mais à mão.
Ele queda-se impassível, desdenhoso, e eu fico extasiado a seguir-lhes os maneios. Se não sei muito bem em que mundo me encontro, menos ainda sei de que mundo eles vêm. Ela faz-me lembrar escravas dos haréns. E ele um califa de costumes modernos, que veio à rua arejar a favorita.
À saída não fico mais tranquilo. Ele passou adiante, imperturbável. Porém as calças dela, que são de gancho curto, deixam-lhe a descoberto os balões das cadeiras, a explodir obesidade. Ela enfeitiça-me os olhos com os mistérios do umbigo, antes de me estoirar nas fuças o balãozito da chuinga.
Segue ele à frente, ela atrás, para contentar o profeta. Eu aproveito-lhe o contentamento, e desço de novo à terra.
sábado, 20 de setembro de 2008
Pastiche IV
Entre o não-ser e o ser vai um enigma.
Se um deus intervier, dois haverá.
Sê tu, sem mais perguntas ao silêncio.
Se um deus intervier, dois haverá.
Sê tu, sem mais perguntas ao silêncio.
da capo - 10
PAÍS SEM SOSSEGO
Três quartos de Portugal não existem há muito. Criaram-se à lei da natureza, serviram de lastro às caravelas, formigaram por tudo quanto é mundo, e fugiram a salto para a Europa a ver se matavam a fome.
Agora deram-lhes carta de alforria, como se a vida se fizesse por milagre. O orçamento é curto, a justiça ressona atrás das togas, a educação multiplica iletrados, e já nem a saúde faz fortunas.
Um Portugal assim não tem sossego. Ou volta ao nada que já foi, em proveito da casta, durante cinco séculos, ou encontra o portão do 5º Império, que uns visionários lhe dão por garantido.
Três quartos de Portugal não existem há muito. Criaram-se à lei da natureza, serviram de lastro às caravelas, formigaram por tudo quanto é mundo, e fugiram a salto para a Europa a ver se matavam a fome.
Agora deram-lhes carta de alforria, como se a vida se fizesse por milagre. O orçamento é curto, a justiça ressona atrás das togas, a educação multiplica iletrados, e já nem a saúde faz fortunas.
Um Portugal assim não tem sossego. Ou volta ao nada que já foi, em proveito da casta, durante cinco séculos, ou encontra o portão do 5º Império, que uns visionários lhe dão por garantido.
Ecos da Sonora VIII
Esgotado pelas errâncias crepusculares de Al Berto, e pela algidez das suas madrugadas, subo as escadas a custo e abandono-me num banco do jardim. Calado fico meia hora a ver passar o mundo, a ruminar no que vejo.
Afinal há um segredo no gesto de estar vivo. É acreditar que vale a pena, e seguir. Seguir sempre, atrás dos outros. Mesmo sem acreditar que vale a pena.
Afinal há um segredo no gesto de estar vivo. É acreditar que vale a pena, e seguir. Seguir sempre, atrás dos outros. Mesmo sem acreditar que vale a pena.
terça-feira, 16 de setembro de 2008
da capo - 9
PAÍS PARTIDO
Portugal teve um estado, antes de ser uma nação. Teve um esqueleto, antes de ganhar corpo. E quando começava a ganhá-lo, deslocalizaram-no para a Índia. Desacertou o passo e agora é o que se vê. Um país partido em dois países.
Um ficou com a história, mas perdeu o futuro. Arqueja debaixo dela. O outro é o país do sucesso, alheado do passado, bêbado de ilusões. Um esbraceja para escapar à penúria. O outro agita-se sem destino, como as formigas doidas. Nenhum entende o outro, e ambos mutuamente se desprezam.
O enterro dos dois será no mesmo dia. Até lá, há quem ganhe com isso. Conforme sempre foi.
Portugal teve um estado, antes de ser uma nação. Teve um esqueleto, antes de ganhar corpo. E quando começava a ganhá-lo, deslocalizaram-no para a Índia. Desacertou o passo e agora é o que se vê. Um país partido em dois países.
Um ficou com a história, mas perdeu o futuro. Arqueja debaixo dela. O outro é o país do sucesso, alheado do passado, bêbado de ilusões. Um esbraceja para escapar à penúria. O outro agita-se sem destino, como as formigas doidas. Nenhum entende o outro, e ambos mutuamente se desprezam.
O enterro dos dois será no mesmo dia. Até lá, há quem ganhe com isso. Conforme sempre foi.
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
da capo - 8
PAÍS LITORAL
Os portugueses mudaram-se para a costa. Tanto ouviram contar histórias de marinheiros, que agora só se querem nas dunas. Alguns mesmo na rebentação.
As marés é que vão ganhar com isso. Em qualidade e volume dos destroços.
Os portugueses mudaram-se para a costa. Tanto ouviram contar histórias de marinheiros, que agora só se querem nas dunas. Alguns mesmo na rebentação.
As marés é que vão ganhar com isso. Em qualidade e volume dos destroços.
sexta-feira, 12 de setembro de 2008
Tabuleta
Aqui se têm publicado, e se continuarão a publicar, alguns textos que já viram a luz noutros lugares.
Dois são os motivos para o fazer. Primeiro para os tanger ao lugar que lhes incumbe. Segundo porque assim ficam à disposição de eventual leitor que os não conheça. E como todos sabemos, há mais alegria no céu por um pecador que se arrepende...
Dois são os motivos para o fazer. Primeiro para os tanger ao lugar que lhes incumbe. Segundo porque assim ficam à disposição de eventual leitor que os não conheça. E como todos sabemos, há mais alegria no céu por um pecador que se arrepende...
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
da capo - 7
TUDO PELA PÁTRIA
Manuel Passos é homem para sessenta. - Mais um pouco! - concede ele, a silvar a dentadura. Há trinta anos regressou de Angola e deixou passar o tempo. Logo que o génio lhe deu algum sossego, arranjou a caixa dos apetrechos. E quando está de maré vem abancar no Rossio, os olhos cheios de paisagens africanas. Toma o lugar do cliente, encosta-se à parede da farmácia, e fica-se a olhar os restos do império, que ainda passam.
Traz no braço dois obuses tatuados, pequeno espólio do servíço militar.
GAC 2 - Tudo pela Pátria - 1968
E ao mesmo tempo que vai puxando o lustro, olha de lado um africano enorme, que lá vai, de braço dado, com a sua matrona branca.
- Cada um com o seu é que estaria bem! Branco a branco, preto a preto! Mas cada um sabe da sua vida!
A matrona e o africano pararam no passeio, a quezilar com um patrício inconformado.
- A cabeça é o ponto fraco deles, vê-se na porrada e nos estudos. Não são dados a inventar, ficam-se pelo que ouviram. E nunca se atiram de cabeça!
As lembranças que me sobraram da guerra desmentem-lhe a teoria. Mas alimento a conversa e tomo notas.
- Isso é para quê, diga lá?!
- Para nada! É tudo pela Pátria!
O Passos põe-se a olhar os canhões que traz no braço. E sorri-me, displicente, já andava esquecido deles.
Manuel Passos é homem para sessenta. - Mais um pouco! - concede ele, a silvar a dentadura. Há trinta anos regressou de Angola e deixou passar o tempo. Logo que o génio lhe deu algum sossego, arranjou a caixa dos apetrechos. E quando está de maré vem abancar no Rossio, os olhos cheios de paisagens africanas. Toma o lugar do cliente, encosta-se à parede da farmácia, e fica-se a olhar os restos do império, que ainda passam.
Traz no braço dois obuses tatuados, pequeno espólio do servíço militar.
GAC 2 - Tudo pela Pátria - 1968
E ao mesmo tempo que vai puxando o lustro, olha de lado um africano enorme, que lá vai, de braço dado, com a sua matrona branca.
- Cada um com o seu é que estaria bem! Branco a branco, preto a preto! Mas cada um sabe da sua vida!
A matrona e o africano pararam no passeio, a quezilar com um patrício inconformado.
- A cabeça é o ponto fraco deles, vê-se na porrada e nos estudos. Não são dados a inventar, ficam-se pelo que ouviram. E nunca se atiram de cabeça!
As lembranças que me sobraram da guerra desmentem-lhe a teoria. Mas alimento a conversa e tomo notas.
- Isso é para quê, diga lá?!
- Para nada! É tudo pela Pátria!
O Passos põe-se a olhar os canhões que traz no braço. E sorri-me, displicente, já andava esquecido deles.
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
da capo - 6
TABACARIA
Ela, mascando a chicla de boquinha aberta, os óculos arrumados no toucado. Ele, a bermuda abaixo do joelho, de barriga precoce a desabar.
Ela vai à escola de Comunicação Social, ele à Sociologia.
- Tás a ver?! Álvaro de Campos! Não gostas?
- Quê, o das odes?! Não, eu sou mais o outro, o Caeiro! É mais coisa!
Ontem, na festa, ele bebeu, gritou, curtiu o homem do chapéu. Ela apenas riu muito, pulou, os braços a adejar.
Ambos são o futuro, mas ainda é cedo.
Ela, mascando a chicla de boquinha aberta, os óculos arrumados no toucado. Ele, a bermuda abaixo do joelho, de barriga precoce a desabar.
Ela vai à escola de Comunicação Social, ele à Sociologia.
- Tás a ver?! Álvaro de Campos! Não gostas?
- Quê, o das odes?! Não, eu sou mais o outro, o Caeiro! É mais coisa!
Ontem, na festa, ele bebeu, gritou, curtiu o homem do chapéu. Ela apenas riu muito, pulou, os braços a adejar.
Ambos são o futuro, mas ainda é cedo.
segunda-feira, 8 de setembro de 2008
Angelina
Tem 73 anos e vive em Dine, que é o lugar onde nasceu. É uma aldeia que tem fornos de cal, e fica para lá do derradeiro monte que é preciso galgar, até alcançar os fins do mundo. Chega-se lá depois de passar muitas encruzilhadas, e é um lugar tão bonito que dele não apetece partir. É aqui que vive Angelina, com uma cadela que se chama Luna, ouve uma pessoa um nome assim e põe-se logo a fazer perguntas ao instinto.
A seu tempo foi Angelina mãe solteira, duma filha que vive na cidade. Trabalha no comércio, a rapariga, e Angelina está toda contente. Gosta mais de a ver longe neste ofício, do que perto a labutar no campo. Ressalvando a tristeza de ambas se encontrarem só de horas em quando. Um dia há-de-lhe dar uma netinha.
Angelina vive aqui perto da fontana, ao lado duma presa de rega que também serve de tanque de lavar. E, quando chega o Natal, faz todos os anos um presépio ali no jardinzito, para animação do povo. A casa fica além, debaixo da parreira, e vivem hoje nela a dona e a cadela, conforme antigamente lá viviam Angelina e a mãe. Sempre que chegava a casa, a azougada Angelina punha-se a fingir a voz duma vizinha, às palmadas na porta com recados urgentes. – Oh que assim és tontinha, minha filha! E riam ambas no fim.
Ao contrário do que se vê na aldeia, Angelina não anda de preto, porque não é viúva. E por sobre ser uma mulher com ar alegre, tem um espírito aberto, solto e dado, o melhor será chamar-lhe livre, porque o é. Ninguém lho amansou, que é o que sucede as mais das vezes, quando passa por cima das mulheres o rolo compressor da conjugalidade. Não é provável que Angelina tenha consciência disso. Mas foi com um largo sorriso que logo nos convidou para almoçar, um frango caseiro que já lá tinha ao lume.
À despedida deu-nos um tantinho de nozes e castanhas. E confessou-nos que, por esse mundo além, só lhe agradava ver a árvore de Natal do Porto. Dizem que não há maior, e ela acredita nestas grandezas.
A seu tempo foi Angelina mãe solteira, duma filha que vive na cidade. Trabalha no comércio, a rapariga, e Angelina está toda contente. Gosta mais de a ver longe neste ofício, do que perto a labutar no campo. Ressalvando a tristeza de ambas se encontrarem só de horas em quando. Um dia há-de-lhe dar uma netinha.
Angelina vive aqui perto da fontana, ao lado duma presa de rega que também serve de tanque de lavar. E, quando chega o Natal, faz todos os anos um presépio ali no jardinzito, para animação do povo. A casa fica além, debaixo da parreira, e vivem hoje nela a dona e a cadela, conforme antigamente lá viviam Angelina e a mãe. Sempre que chegava a casa, a azougada Angelina punha-se a fingir a voz duma vizinha, às palmadas na porta com recados urgentes. – Oh que assim és tontinha, minha filha! E riam ambas no fim.
Ao contrário do que se vê na aldeia, Angelina não anda de preto, porque não é viúva. E por sobre ser uma mulher com ar alegre, tem um espírito aberto, solto e dado, o melhor será chamar-lhe livre, porque o é. Ninguém lho amansou, que é o que sucede as mais das vezes, quando passa por cima das mulheres o rolo compressor da conjugalidade. Não é provável que Angelina tenha consciência disso. Mas foi com um largo sorriso que logo nos convidou para almoçar, um frango caseiro que já lá tinha ao lume.
À despedida deu-nos um tantinho de nozes e castanhas. E confessou-nos que, por esse mundo além, só lhe agradava ver a árvore de Natal do Porto. Dizem que não há maior, e ela acredita nestas grandezas.
sábado, 6 de setembro de 2008
Carvão: a coisa pode ficar preta
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO-Portugal
O fim do reinado do carvão como forma dominante de energia no mundo remonta aos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial, quando Winston Churchill, então primeiro lorde do Almirantado, decidiu adoptar o petróleo para substituir o carvão como combustível dos vasos de guerra da Royal Navy. Foi em 1914 que o governo britânico se assumiu como principal accionista da Anglo Persian Oil Company. E, no final da guerra, assegurou o controlo do canal de Suez e o domínio da Mesopotâmia.
Perante a anunciada escassez e os elevados preços do petróleo e do gás, o carvão, que ao longo do séc. XX perdeu muita da sua importância a favor do petróleo, surge de novo como uma esperança para resolver os problemas energéticos do futuro. A produção e o consumo cresceram rapidamente nos anos recentes. E muita coisa entretanto mudou: o smog londrino transferiu-se para Pequim; assiste-se ao esgotamento das reservas e à diminuição da produção no Reino Unido, na Alemanha, na França e na Polónia; o carvão já não é utilizado para aquecer as casas ou para movimentar as máquinas a vapor, mas ainda assegura 40% da produção mundial de energia eléctrica.
Segundo a EIA (Energy Information Agency) seis países, com 84% das reservas e cerca de 80% da produção, protagonizam a cena mundial do carvão: a China, os EUA, a Índia, a Austrália, a Rússia e a África do Sul.
A China, responsável por um terço da produção mundial com 2,9 mil milhões de toneladas por ano, é o maior produtor e ao mesmo tempo o maior consumidor de carvão. O aumento do consumo nos últimos anos tem sido espectacular (crescimento anual médio de 17% entre 2002 e 2005!) prevendo-se a duplicação do seu consumo até 2025. Por tal forma que a China, antes um grande exportador, já irá importar carvão em 2008, e necessitará de importar muito mais no futuro, para fazer face às suas crescentes necessidades. O carvão é o primeiro responsável pelo milagre económico chinês. Isto à custa de elevados níveis de poluição, de emissão de CO2 para a atmosfera, e da perda de muitas vidas humanas. De acordo com um artigo do Times publicado em 2007, terão morrido, num único ano, 5000 mineiros em acidentes nas minas de carvão chinesas.
Os Estados Unidos, que produzem 50% da sua energia eléctrica em centrais a carvão, têm vindo a rever em baixa as suas reservas exploráveis, e prevêem reduzir as exportações daqui até 2025. A Índia depende do carvão para levar energia eléctrica a importantes zonas do país, e projecta construir novas mega-centrais térmicas. A África do Sul está a aumentar a sua capacidade de produção de combustíveis líquidos a partir do carvão na refinaria de Sasol, e projecta também duas novas centrais térmicas a carvão.
A Austrália é o quarto produtor e o maior exportador mundial de carvão, sendo o Japão, a Coreia, Taiwan e a Europa os seus principais clientes. No entanto as exportações da Austrália correspondem apenas a 5% do consumo chinês. A Colômbia e a Indonésia são dois países exportadores que têm vindo a crescer, mas serão insuficientes para satisfazer a crescente procura no futuro.
Existe a ideia de que as reservas de carvão poderão durar para muitos anos. A IEA estima que, com o consumo actual, o abastecimento estará assegurado por 160 anos. Porém, contrariamente ao que se passa com o petróleo ou o gás natural, os países produtores de carvão são também os grandes consumidores, de tal forma que apenas 12 a 15% da produção mundial se destina à exportação. E a tendência é para este valor diminuir no futuro, à medida que os grandes produtores forem aumentando o seu consumo.
O conceituado Energy Watch Group, no seu relatório anual de 2007, avança com a previsão de que a produção mundial de carvão irá entrar em declínio a partir de 2025.Um outro estudo de B. Kavalov, do Institute for Energy (IFE), realizado para a Comissão Europeia, aponta 2015 como o ano em que surgirão os primeiros problemas relacionados com a disponibilidade de carvão para importação, no mercado internacional.
Para países com uma forte dependência energética externa, como é o caso de Portugal, a avaliação tem que ser feita atempadamente. A nossa estratégia de diversificação e a aposta nas renováveis é a correcta, mas o carvão ainda é responsável por cerca de 30% da energia eléctrica que se produz em Portugal. Também nós vamos ter de enfrentar a situação de penúria que se avizinha. A escassez de carvão, associada aos elevados preços desta matéria-prima, terá um forte impacto na factura da energia eléctrica dos portugueses.
Presidente da Marktest e membro da ASPO-Portugal
O fim do reinado do carvão como forma dominante de energia no mundo remonta aos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial, quando Winston Churchill, então primeiro lorde do Almirantado, decidiu adoptar o petróleo para substituir o carvão como combustível dos vasos de guerra da Royal Navy. Foi em 1914 que o governo britânico se assumiu como principal accionista da Anglo Persian Oil Company. E, no final da guerra, assegurou o controlo do canal de Suez e o domínio da Mesopotâmia.
Perante a anunciada escassez e os elevados preços do petróleo e do gás, o carvão, que ao longo do séc. XX perdeu muita da sua importância a favor do petróleo, surge de novo como uma esperança para resolver os problemas energéticos do futuro. A produção e o consumo cresceram rapidamente nos anos recentes. E muita coisa entretanto mudou: o smog londrino transferiu-se para Pequim; assiste-se ao esgotamento das reservas e à diminuição da produção no Reino Unido, na Alemanha, na França e na Polónia; o carvão já não é utilizado para aquecer as casas ou para movimentar as máquinas a vapor, mas ainda assegura 40% da produção mundial de energia eléctrica.
Segundo a EIA (Energy Information Agency) seis países, com 84% das reservas e cerca de 80% da produção, protagonizam a cena mundial do carvão: a China, os EUA, a Índia, a Austrália, a Rússia e a África do Sul.
A China, responsável por um terço da produção mundial com 2,9 mil milhões de toneladas por ano, é o maior produtor e ao mesmo tempo o maior consumidor de carvão. O aumento do consumo nos últimos anos tem sido espectacular (crescimento anual médio de 17% entre 2002 e 2005!) prevendo-se a duplicação do seu consumo até 2025. Por tal forma que a China, antes um grande exportador, já irá importar carvão em 2008, e necessitará de importar muito mais no futuro, para fazer face às suas crescentes necessidades. O carvão é o primeiro responsável pelo milagre económico chinês. Isto à custa de elevados níveis de poluição, de emissão de CO2 para a atmosfera, e da perda de muitas vidas humanas. De acordo com um artigo do Times publicado em 2007, terão morrido, num único ano, 5000 mineiros em acidentes nas minas de carvão chinesas.
Os Estados Unidos, que produzem 50% da sua energia eléctrica em centrais a carvão, têm vindo a rever em baixa as suas reservas exploráveis, e prevêem reduzir as exportações daqui até 2025. A Índia depende do carvão para levar energia eléctrica a importantes zonas do país, e projecta construir novas mega-centrais térmicas. A África do Sul está a aumentar a sua capacidade de produção de combustíveis líquidos a partir do carvão na refinaria de Sasol, e projecta também duas novas centrais térmicas a carvão.
A Austrália é o quarto produtor e o maior exportador mundial de carvão, sendo o Japão, a Coreia, Taiwan e a Europa os seus principais clientes. No entanto as exportações da Austrália correspondem apenas a 5% do consumo chinês. A Colômbia e a Indonésia são dois países exportadores que têm vindo a crescer, mas serão insuficientes para satisfazer a crescente procura no futuro.
Existe a ideia de que as reservas de carvão poderão durar para muitos anos. A IEA estima que, com o consumo actual, o abastecimento estará assegurado por 160 anos. Porém, contrariamente ao que se passa com o petróleo ou o gás natural, os países produtores de carvão são também os grandes consumidores, de tal forma que apenas 12 a 15% da produção mundial se destina à exportação. E a tendência é para este valor diminuir no futuro, à medida que os grandes produtores forem aumentando o seu consumo.
O conceituado Energy Watch Group, no seu relatório anual de 2007, avança com a previsão de que a produção mundial de carvão irá entrar em declínio a partir de 2025.Um outro estudo de B. Kavalov, do Institute for Energy (IFE), realizado para a Comissão Europeia, aponta 2015 como o ano em que surgirão os primeiros problemas relacionados com a disponibilidade de carvão para importação, no mercado internacional.
Para países com uma forte dependência energética externa, como é o caso de Portugal, a avaliação tem que ser feita atempadamente. A nossa estratégia de diversificação e a aposta nas renováveis é a correcta, mas o carvão ainda é responsável por cerca de 30% da energia eléctrica que se produz em Portugal. Também nós vamos ter de enfrentar a situação de penúria que se avizinha. A escassez de carvão, associada aos elevados preços desta matéria-prima, terá um forte impacto na factura da energia eléctrica dos portugueses.
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
Fim de semana no Cartaxo
Assim, tal e qual, ouvi eu o relato.
Eles, a Celeste e o Amândio, são novos, casaram o ano passado por esta altura. Têm o mesmo olhar, os mesmos gestos doces, coisa rara! E já fizeram um ano de casados!
Os outros, os velhotes, são pais dele. Ela com 76 e ele a caminho dos 80 adoçam-me mais a alma do que uma noite de luar em Agosto. Ela tem excesso de peso e sabe-o. Diz que come pouco, mas traz escondidas nos bolsos do avental, no meio dos panos da loiça, amêndoas e outras lambarices. É já ele que a ajuda no banho matinal e que a veste.
- Sabe, quase não posso mexer este braço e nem sei porquê! - diz-me ela, lamentando a situação. Ele faz que não ouve e vai mostrar-me o quintal.
- Aqui já tirei a primeira revoada de batatas, das que vai comer logo. Agora está cá o feijão preto, que é mais tardio. Gosto dele, mas tem que se lhe tirar a casca. Gosto dele mesmo com ela! - digo-lhe eu. Olhou-me e encolheu os ombros, como quem me dá um desconto, que sou da cidade.
- Deste já se tem comido, do outro mais além é para secar. E aqui está a couve lombarda, veja que fechadinha, até dá gosto! Disse que fazia o caldo para a noite, não foi?! Então levamos de cá uma, vai ver que é tenrinha. Aqui temos os tomates, já apanhei alguns pela manhã. E alfaces e pepinos também, que a Celeste disse-me que é como a gente, que gosta de tudo! Mais além, está a ver, são o resto das batatas que nos dão para o ano. São para todos, filhos e quem cá vier. Veja como já estão bonitas as uvas! O ano passado não nos veio ajudar às vindimas, mas este ano tem de vir! É uma festa, comemos e bebemos. Mas nessa altura já tenho os meus oitenta!
Eu já sabia. Por isso é que os filhos andam a pôr um gradeamento novo e a pintar o muro.
- Ali a laranjeira não sei o que lhe deu, que ainda tem laranjas! A tangerineira não, levou-lhe o vento a flor e nem se lhe viu a cor. Mas o limoeiro cá está, e o pessegueiro também. São pequenitos, os sacanas dos pêssegos, mas doces como o mel. As favas e as ervilhas vamos apanhá-las para a semana. Já de lá tirámos muitas, e a sementeira nem foi grande, não senhor! Cebolas ainda aqui estão estas todas, vão secando. Que as outras, as melhores, estão além prontas para ser encabadas. E vamos lá, que nos chamam para o lanche!
Lá fomos. Pão de forno de lenha, com uma só faca, cada um corta o pedaço que quer. Umas tiras de carne assada numas brasas ao lado, uma omelete com salsa, cebola e chouriço, um bolo de chocolate e um pedaço de bola de carne, a tirar o ar campesino à mesa. A completar, uns copitos pequenos, para encher dum vinho caseiro, do Cartaxo!
Ainda aprendi a encabar as cebolas, e pensei que não precisava de tanto, para ser feliz.
Eles, a Celeste e o Amândio, são novos, casaram o ano passado por esta altura. Têm o mesmo olhar, os mesmos gestos doces, coisa rara! E já fizeram um ano de casados!
Os outros, os velhotes, são pais dele. Ela com 76 e ele a caminho dos 80 adoçam-me mais a alma do que uma noite de luar em Agosto. Ela tem excesso de peso e sabe-o. Diz que come pouco, mas traz escondidas nos bolsos do avental, no meio dos panos da loiça, amêndoas e outras lambarices. É já ele que a ajuda no banho matinal e que a veste.
- Sabe, quase não posso mexer este braço e nem sei porquê! - diz-me ela, lamentando a situação. Ele faz que não ouve e vai mostrar-me o quintal.
- Aqui já tirei a primeira revoada de batatas, das que vai comer logo. Agora está cá o feijão preto, que é mais tardio. Gosto dele, mas tem que se lhe tirar a casca. Gosto dele mesmo com ela! - digo-lhe eu. Olhou-me e encolheu os ombros, como quem me dá um desconto, que sou da cidade.
- Deste já se tem comido, do outro mais além é para secar. E aqui está a couve lombarda, veja que fechadinha, até dá gosto! Disse que fazia o caldo para a noite, não foi?! Então levamos de cá uma, vai ver que é tenrinha. Aqui temos os tomates, já apanhei alguns pela manhã. E alfaces e pepinos também, que a Celeste disse-me que é como a gente, que gosta de tudo! Mais além, está a ver, são o resto das batatas que nos dão para o ano. São para todos, filhos e quem cá vier. Veja como já estão bonitas as uvas! O ano passado não nos veio ajudar às vindimas, mas este ano tem de vir! É uma festa, comemos e bebemos. Mas nessa altura já tenho os meus oitenta!
Eu já sabia. Por isso é que os filhos andam a pôr um gradeamento novo e a pintar o muro.
- Ali a laranjeira não sei o que lhe deu, que ainda tem laranjas! A tangerineira não, levou-lhe o vento a flor e nem se lhe viu a cor. Mas o limoeiro cá está, e o pessegueiro também. São pequenitos, os sacanas dos pêssegos, mas doces como o mel. As favas e as ervilhas vamos apanhá-las para a semana. Já de lá tirámos muitas, e a sementeira nem foi grande, não senhor! Cebolas ainda aqui estão estas todas, vão secando. Que as outras, as melhores, estão além prontas para ser encabadas. E vamos lá, que nos chamam para o lanche!
Lá fomos. Pão de forno de lenha, com uma só faca, cada um corta o pedaço que quer. Umas tiras de carne assada numas brasas ao lado, uma omelete com salsa, cebola e chouriço, um bolo de chocolate e um pedaço de bola de carne, a tirar o ar campesino à mesa. A completar, uns copitos pequenos, para encher dum vinho caseiro, do Cartaxo!
Ainda aprendi a encabar as cebolas, e pensei que não precisava de tanto, para ser feliz.
quinta-feira, 4 de setembro de 2008
da capo - 5
O ACELERA
Nunca diz que aprendeu a guiar à socapa. E sai do carro, ao cimo da subida, no triunfante jeito de quem cortou a meta. Trabalha ali na garagem de recolhas.
A princípio ajudava às lavagens, passava a camurça nos cromados, e fazia sinais aos clientes, olhe à direita, meta-lhe a marcha-atrás. Lá dentro caberiam quarenta, mas entravam sempre mais. E quando saía um, o patrão mexia em três ou quatro. Ele passou anos a estudar-lhe as manobras.
Fez o baptismo de volante num dia em que o patrão foi ao médico. Depois nunca mais parou, até que lhe cederam o comando, a arrumar as viaturas. Agora passa o dia em derrapagens controladas, ataca as curvas no limite, e na rampa de saída mete gás à tábua, como fazem os craques na recta da meta.
Ganhou esta paixão dos carros. E se um dia tiver um, há-de ir à oficina dum amigo, que se dedica ao tuning.
A princípio ajudava às lavagens, passava a camurça nos cromados, e fazia sinais aos clientes, olhe à direita, meta-lhe a marcha-atrás. Lá dentro caberiam quarenta, mas entravam sempre mais. E quando saía um, o patrão mexia em três ou quatro. Ele passou anos a estudar-lhe as manobras.
Fez o baptismo de volante num dia em que o patrão foi ao médico. Depois nunca mais parou, até que lhe cederam o comando, a arrumar as viaturas. Agora passa o dia em derrapagens controladas, ataca as curvas no limite, e na rampa de saída mete gás à tábua, como fazem os craques na recta da meta.
Ganhou esta paixão dos carros. E se um dia tiver um, há-de ir à oficina dum amigo, que se dedica ao tuning.
quarta-feira, 3 de setembro de 2008
Ecos da Sonora VII
O pedido de um utente põe-me de novo nas mãos o NÓ CEGO, de Carlos Vale Ferraz. Toda a vantagem é minha. Porque, a um lado, a sua leitura me compensa das neblinas confusas de certas almas volúveis, das variações sobre a parte vaga da vida, das inanidades de esplanada e das improváveis excitações de cama, que é no que mais tropeço quando vou à livraria. E a outro lado me traz de novo este mergulho na violência da guerra colonial, e na realidade dum tempo que foi nosso, tão impiedoso e tão inverosímil que não se acredita nele.
Uma característica da obra literária é ser sempre mais vasta do que o pouco que mostra. É exprimir muito mais do que aquilo que afirma. E se a linguagem de NÓ CEGO nem sempre é a mais elaborada e cativante, ela será, quem sabe, a mais adequada à expressão duma realidade em si mesma tão crua, que deixa sangue nas mãos com que mexemos nela. A realidade surreal da doença do império, a realidade absurda da guerra das colónias, a dolorosa realidade dos figurantes que a fazem, a realidade dum país alienado de si.
A tropa que comandava não se distinguiria, no porte e na vestimenta, da rufiagem engajada há quatrocentos anos no cais de Lisboa, destinada a contribuir anonimamente para a gloriosa epopeia dos descobrimentos, por causa dos quais estes herdeiros ali estavam a malhar com os ossos (…). Esta tropa maltrapilha reclamava com impaciência do atraso em lhe ouvir a ordem de partida. «Vamos embora, meu capitão.»
Não é pequena a minha admiração por um autor que, passada a vivência de semelhantes experiências, ainda encontra força e sabedoria para no-las dar a conhecer. Muitas obras têm sido escritas sobre esses tempos, algumas delas com o mérito e o brilho que é forçoso reconhecer neste NÓ CEGO. Enfileirando meia dúzia delas, ao seu lado andarão Os Cus de Judas, de Lobo Antunes, Cortes, de Almeida Faria, Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, Percursos: do Luachimo ao Luena, de Wanda Ramos, e uma outra cujo título não podemos desvendar. Saída a lume há uns meses, não mereceu uma letra de divulgação da parte de críticos, nem de publicistas, nem da gente que a seu cargo teria informar o leitor do que se vai publicando. Nem boa nem má notícia, nem preta nem branca.
É sabido, enfim, que nem o amadorismo, nem a incompetência, nem a síndrome da confraria paroquial são coisas de estranhar na nossa pequena terra. Mas o melhor é aceitarmos que alguma razão houve, e pesada bastante, para assim impor tão radical silêncio. Guardemo-lo nós também.
Uma característica da obra literária é ser sempre mais vasta do que o pouco que mostra. É exprimir muito mais do que aquilo que afirma. E se a linguagem de NÓ CEGO nem sempre é a mais elaborada e cativante, ela será, quem sabe, a mais adequada à expressão duma realidade em si mesma tão crua, que deixa sangue nas mãos com que mexemos nela. A realidade surreal da doença do império, a realidade absurda da guerra das colónias, a dolorosa realidade dos figurantes que a fazem, a realidade dum país alienado de si.
A tropa que comandava não se distinguiria, no porte e na vestimenta, da rufiagem engajada há quatrocentos anos no cais de Lisboa, destinada a contribuir anonimamente para a gloriosa epopeia dos descobrimentos, por causa dos quais estes herdeiros ali estavam a malhar com os ossos (…). Esta tropa maltrapilha reclamava com impaciência do atraso em lhe ouvir a ordem de partida. «Vamos embora, meu capitão.»
Não é pequena a minha admiração por um autor que, passada a vivência de semelhantes experiências, ainda encontra força e sabedoria para no-las dar a conhecer. Muitas obras têm sido escritas sobre esses tempos, algumas delas com o mérito e o brilho que é forçoso reconhecer neste NÓ CEGO. Enfileirando meia dúzia delas, ao seu lado andarão Os Cus de Judas, de Lobo Antunes, Cortes, de Almeida Faria, Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, Percursos: do Luachimo ao Luena, de Wanda Ramos, e uma outra cujo título não podemos desvendar. Saída a lume há uns meses, não mereceu uma letra de divulgação da parte de críticos, nem de publicistas, nem da gente que a seu cargo teria informar o leitor do que se vai publicando. Nem boa nem má notícia, nem preta nem branca.
É sabido, enfim, que nem o amadorismo, nem a incompetência, nem a síndrome da confraria paroquial são coisas de estranhar na nossa pequena terra. Mas o melhor é aceitarmos que alguma razão houve, e pesada bastante, para assim impor tão radical silêncio. Guardemo-lo nós também.
Gás natural: fragilidades à vista
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO-Portugal
Portugal aderiu ao gás natural em 1997, e essa forma de energia já representa 15% da energia primária consumida no nosso país. Estima-se para os próximos anos um crescimento médio do consumo superior a 10%. Isso fará subir, já em 2012, o peso do gás natural no balanço energético dos actuais 15% para 22%. Os nossos principais fornecedores são a Argélia (através do gasoduto do Magreb, via Espanha) e a Nigéria, de onde chega o gás que, depois de liquefeito, é transportado em navios metaneiros, que o descarregam no terminal de Sines.
Enquanto o petróleo, dadas as suas características, é a forma de energia privilegiada para os transportes, o gás natural é utilizado nas cozinhas e no aquecimento doméstico, na produção de electricidade e na indústria. Nesta última aplicação, tem um papel importante na produção de fertilizantes.
São múltiplas as vantagens associadas ao gás natural: ao contrário do petróleo, pode ser utilizado sem passar pela refinação; é uma energia limpa, uma vez que a sua combustão produz praticamente só CO2 e água, sem os indesejáveis monóxido de carbono, óxidos de enxofre ou nitrogénio; permite uma utilização muito flexível, podendo os equipamentos de queima ser facilmente accionados, para satisfazer períodos curtos de alto consumo.
As modernas centrais eléctricas a gás, de ciclo combinado, permitem altos rendimentos energéticos. Os investimentos financeiros necessários para as construir não são tão elevados como noutras formas de produção de energia eléctrica, e têm um período de retorno mais rápido. É essa também a aposta portuguesa, estando em desenvolvimento vários novos projectos.
Nestas circunstâncias não admira que o consumo de gás natural tenha tido um crescimento espectacular nos Estados Unidos e na Europa. De tal forma que, nos países europeus da OCDE, o consumo anual aumentou vinte vezes nos últimos 40 anos, situando-se actualmente perto dos 500 mil milhões de metros cúbicos.
A Europa aderiu desde a primeira hora ao gás natural, abastecida inicialmente pela produção doméstica. Mas essa produção, oriunda da Noruega, da Holanda, do Reino Unido e da Alemanha, está a diminuir, e a Europa já importa 45% do gás natural que consome. As principais fontes abastecedoras externas são a Rússia e a Argélia, através de gasodutos. Países como a Alemanha, a Itália e a Espanha têm hoje uma forte dependência exterior. Mesmo no Reino Unido, que já foi um exportador de gás, a situação está a agravar-se. A França tem também uma dependência externa quase total, tornada menos crítica pela opção nuclear.
No futuro, mesmo que continue a absorver a totalidade da exportação russa, ela própria com tendência para declinar pelo natural esgotamento das jazidas e pelo aumento do consumo interno (recorde-se que a Rússia é, a seguir aos EUA, o maior consumidor mundial de gás natural), e a totalidade da produção do Norte de África, a Europa vai ter de recorrer a importações de gás liquefeito doutras origens, possivelmente do Médio Oriente. Aí irá concorrer com o Japão, a Coreia do Sul e também a China, cuja emergência como forte consumidor pode estar para breve.
Para agravar a situação, os Estados Unidos, o maior consumidor mundial, já não são auto-suficientes. Importando uma parte do gás de que necessitam do Canadá e do México, deverão diversificar no futuro as suas fontes de abastecimento, e irão concorrer no mercado global do Gás Natural Liquefeito.
No quadro europeu, e de acordo com a recente análise de um especialista em assuntos de energia, Euan Mearns, essa situação crítica de abastecimento ocorrerá já em 2013. O abastecimento de gás natural irá então experimentar dificuldades, como resultado duma forte pressão da procura. Por outras palavras, mais um pesadelo para a economia: gás natural mais escasso e a preço mais elevado.
Por outro lado, a previsível escassez de petróleo poderá contribuir para uma maior utilização do gás natural nos transportes. Tal ideia foi já expressa num discurso recente de Al Gore, que advogou o abandono do gás natural para a produção de electricidade, em favor da sua utilização nos transportes.
Portugal apostou, e bem, nas energias alternativas. Mas estamos longe de conseguir, com esta opção, a desejável autonomia e independência: a produção hidro-eléctrica está muito dependente das oscilações pluviométricas; a energia eólica ainda é cara, e é intermitente; a produção foto-voltaica é muito cara. É inevitável, no futuro, o recurso a outras formas de energia.
Se ao gás natural ou ao fuelóleo estiver reservado o papel de combustível para as centrais eléctricas de pico (o peakload), então a produção eléctrica de base (o baseload) só poderá ser assegurada no futuro pelo carvão ou pelo nuclear. É esta a discussão a que iremos assistir, e não será uma discussão pacífica. Comparadas as desvantagens do carvão – poluição, emissão de CO2, aquecimento global – com as já bem conhecidas desvantagens do nuclear, é caso para dizer: venha o diabo e escolha!
Presidente da Marktest e membro da ASPO-Portugal
Portugal aderiu ao gás natural em 1997, e essa forma de energia já representa 15% da energia primária consumida no nosso país. Estima-se para os próximos anos um crescimento médio do consumo superior a 10%. Isso fará subir, já em 2012, o peso do gás natural no balanço energético dos actuais 15% para 22%. Os nossos principais fornecedores são a Argélia (através do gasoduto do Magreb, via Espanha) e a Nigéria, de onde chega o gás que, depois de liquefeito, é transportado em navios metaneiros, que o descarregam no terminal de Sines.
Enquanto o petróleo, dadas as suas características, é a forma de energia privilegiada para os transportes, o gás natural é utilizado nas cozinhas e no aquecimento doméstico, na produção de electricidade e na indústria. Nesta última aplicação, tem um papel importante na produção de fertilizantes.
São múltiplas as vantagens associadas ao gás natural: ao contrário do petróleo, pode ser utilizado sem passar pela refinação; é uma energia limpa, uma vez que a sua combustão produz praticamente só CO2 e água, sem os indesejáveis monóxido de carbono, óxidos de enxofre ou nitrogénio; permite uma utilização muito flexível, podendo os equipamentos de queima ser facilmente accionados, para satisfazer períodos curtos de alto consumo.
As modernas centrais eléctricas a gás, de ciclo combinado, permitem altos rendimentos energéticos. Os investimentos financeiros necessários para as construir não são tão elevados como noutras formas de produção de energia eléctrica, e têm um período de retorno mais rápido. É essa também a aposta portuguesa, estando em desenvolvimento vários novos projectos.
Nestas circunstâncias não admira que o consumo de gás natural tenha tido um crescimento espectacular nos Estados Unidos e na Europa. De tal forma que, nos países europeus da OCDE, o consumo anual aumentou vinte vezes nos últimos 40 anos, situando-se actualmente perto dos 500 mil milhões de metros cúbicos.
A Europa aderiu desde a primeira hora ao gás natural, abastecida inicialmente pela produção doméstica. Mas essa produção, oriunda da Noruega, da Holanda, do Reino Unido e da Alemanha, está a diminuir, e a Europa já importa 45% do gás natural que consome. As principais fontes abastecedoras externas são a Rússia e a Argélia, através de gasodutos. Países como a Alemanha, a Itália e a Espanha têm hoje uma forte dependência exterior. Mesmo no Reino Unido, que já foi um exportador de gás, a situação está a agravar-se. A França tem também uma dependência externa quase total, tornada menos crítica pela opção nuclear.
No futuro, mesmo que continue a absorver a totalidade da exportação russa, ela própria com tendência para declinar pelo natural esgotamento das jazidas e pelo aumento do consumo interno (recorde-se que a Rússia é, a seguir aos EUA, o maior consumidor mundial de gás natural), e a totalidade da produção do Norte de África, a Europa vai ter de recorrer a importações de gás liquefeito doutras origens, possivelmente do Médio Oriente. Aí irá concorrer com o Japão, a Coreia do Sul e também a China, cuja emergência como forte consumidor pode estar para breve.
Para agravar a situação, os Estados Unidos, o maior consumidor mundial, já não são auto-suficientes. Importando uma parte do gás de que necessitam do Canadá e do México, deverão diversificar no futuro as suas fontes de abastecimento, e irão concorrer no mercado global do Gás Natural Liquefeito.
No quadro europeu, e de acordo com a recente análise de um especialista em assuntos de energia, Euan Mearns, essa situação crítica de abastecimento ocorrerá já em 2013. O abastecimento de gás natural irá então experimentar dificuldades, como resultado duma forte pressão da procura. Por outras palavras, mais um pesadelo para a economia: gás natural mais escasso e a preço mais elevado.
Por outro lado, a previsível escassez de petróleo poderá contribuir para uma maior utilização do gás natural nos transportes. Tal ideia foi já expressa num discurso recente de Al Gore, que advogou o abandono do gás natural para a produção de electricidade, em favor da sua utilização nos transportes.
Portugal apostou, e bem, nas energias alternativas. Mas estamos longe de conseguir, com esta opção, a desejável autonomia e independência: a produção hidro-eléctrica está muito dependente das oscilações pluviométricas; a energia eólica ainda é cara, e é intermitente; a produção foto-voltaica é muito cara. É inevitável, no futuro, o recurso a outras formas de energia.
Se ao gás natural ou ao fuelóleo estiver reservado o papel de combustível para as centrais eléctricas de pico (o peakload), então a produção eléctrica de base (o baseload) só poderá ser assegurada no futuro pelo carvão ou pelo nuclear. É esta a discussão a que iremos assistir, e não será uma discussão pacífica. Comparadas as desvantagens do carvão – poluição, emissão de CO2, aquecimento global – com as já bem conhecidas desvantagens do nuclear, é caso para dizer: venha o diabo e escolha!
Pastiche II
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