... que se prevê longa.
Mas fica atento o molosso de guarda. Não vá passar por aqui o cabotino do Santana Lopes, a garantir outra vez a ruína à câmara de Lesboa.
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
Mais equívocos - 2
A CP realiza no Verão programas variados de comboios turísticos: o da Gastronomia, entre Lisboa e Vila Velha de Ródão; o da Aventura, com actividades desportivas; o da Festa das Vindimas; e o comboio histórico do Douro, com material do início do século, entre a Régua e Foz-Tua.
A procura destes comboios turísticos está em crescimento. No Verão passado aumentou 36%.
A linha do Tua, entre outros considerandos, é uma das cinco linhas de montanha mais belas da Europa. E é neste contexto que a sua destruição irreparável aparece claramente como um crime contra o património.
Os auroques do Côa, com muito respeitinho, bem podiam albergar-se no palácio que em seu nome construíram, no alto duma colina, e vai ficar devoluto. E ao mesmo tempo escondiam a vergonha paisagística que a interrupção da obra lá deixou. Mas para isso era preciso tê-los no sítio, coisa que se não vislumbra.
A procura destes comboios turísticos está em crescimento. No Verão passado aumentou 36%.
A linha do Tua, entre outros considerandos, é uma das cinco linhas de montanha mais belas da Europa. E é neste contexto que a sua destruição irreparável aparece claramente como um crime contra o património.
Os auroques do Côa, com muito respeitinho, bem podiam albergar-se no palácio que em seu nome construíram, no alto duma colina, e vai ficar devoluto. E ao mesmo tempo escondiam a vergonha paisagística que a interrupção da obra lá deixou. Mas para isso era preciso tê-los no sítio, coisa que se não vislumbra.
Portugalmente (64)
(...)
A Moreira de Rei já chamaram ninho de águias, sobre um montão de rochas. E o viajante concorda. Se das águias não encontra sinal, que o tempo as levou para outros ares, já o ninho cá ficou e rochedos não faltam. Só a história, e a teimosia dos homens no que é seu, explicam um lugar assim. A igreja, logo à entrada, é de antiga fábrica românica, com bárbaros cachorros zoomórficos. O viajante encontrou a chave na porta lateral e foi cumprimentar a padroeira, que é Santa Maria. Já viu os caixotões do tecto, pintados com cenas devotas, e os painéis com figuras de santos, que são uns regalões. No mais ignoto lugar sempre lhes cabe a moradia mais aprimorada, e nunca lhes faltam esmeros e frescuras, como agora podemos ver. As talhas reluzentes de castanho genuíno trazem ao viajante lembranças do padre Júlio, que antes de tomar aqui os paramentos descarregava as pistolas na mão do sacristão.
Do padre já se não lembra Manuel, nem a mulher, que atravessam o largo atrás duma carroça. São velhos, mas não tanto. Só lhes constam as boas famas que ficaram no povo, e ainda se lembram bem da Carlotinha e do irmão, que eram filhos. Ela há muito que se ficou num parto, ele morreu há poucos anos. Mas agora já não têm padre residente, que os não há. Chegou a haver esperanças num rapazola aí do povo, que andava no seminário. Mas um dia tomou-se de amores e resolveu desistir, Deus é quem sabe.
Saberá ou não, isso é outra conversa. O burrico é que parece não ter dúvidas, já lá vai adiante com três sacos de milho e uns molhos de feijão para secar. Os donos seguem atrás e o viajante vai com eles. Manuel andou uns anos na emigração, como toda a gente. Foi onde ganhou dinheiro para comprar esta casa e arranjá-la, aqui à vista do castelo. Mas era uma vida desgraçada, aquela, uns escravos do trabalho. Os filhos lá cresceram, lá casaram, ainda hoje lá vivem. Ele, quando pôde, escapuliu-se, que não há como viver na nossa terra.
- Tivemos cá rei e tudo! Se passar no castelo, há-de lá ver a cadeira!
Manuel esvazia a carroça e recolhe o jumento, que já o afligem o calor e a mosca. E a mulher fica a espalhar ao sol as maçarocas, na laja que se estende logo ao traço da porta. A canzoada que ladra ali ao lado, no quintal da residência paroquial, é do padre de Trancoso, que vem rezar os ofícios quando calha. E está tão belicosa, a cainçada, que nem deixa conversar. Com batedores assim, o padre há-de ser bom caçador. Mas o viajante fica a pensar que o padre Júlio caçava muito melhor.
(...)
A Moreira de Rei já chamaram ninho de águias, sobre um montão de rochas. E o viajante concorda. Se das águias não encontra sinal, que o tempo as levou para outros ares, já o ninho cá ficou e rochedos não faltam. Só a história, e a teimosia dos homens no que é seu, explicam um lugar assim. A igreja, logo à entrada, é de antiga fábrica românica, com bárbaros cachorros zoomórficos. O viajante encontrou a chave na porta lateral e foi cumprimentar a padroeira, que é Santa Maria. Já viu os caixotões do tecto, pintados com cenas devotas, e os painéis com figuras de santos, que são uns regalões. No mais ignoto lugar sempre lhes cabe a moradia mais aprimorada, e nunca lhes faltam esmeros e frescuras, como agora podemos ver. As talhas reluzentes de castanho genuíno trazem ao viajante lembranças do padre Júlio, que antes de tomar aqui os paramentos descarregava as pistolas na mão do sacristão.
Do padre já se não lembra Manuel, nem a mulher, que atravessam o largo atrás duma carroça. São velhos, mas não tanto. Só lhes constam as boas famas que ficaram no povo, e ainda se lembram bem da Carlotinha e do irmão, que eram filhos. Ela há muito que se ficou num parto, ele morreu há poucos anos. Mas agora já não têm padre residente, que os não há. Chegou a haver esperanças num rapazola aí do povo, que andava no seminário. Mas um dia tomou-se de amores e resolveu desistir, Deus é quem sabe.
Saberá ou não, isso é outra conversa. O burrico é que parece não ter dúvidas, já lá vai adiante com três sacos de milho e uns molhos de feijão para secar. Os donos seguem atrás e o viajante vai com eles. Manuel andou uns anos na emigração, como toda a gente. Foi onde ganhou dinheiro para comprar esta casa e arranjá-la, aqui à vista do castelo. Mas era uma vida desgraçada, aquela, uns escravos do trabalho. Os filhos lá cresceram, lá casaram, ainda hoje lá vivem. Ele, quando pôde, escapuliu-se, que não há como viver na nossa terra.
- Tivemos cá rei e tudo! Se passar no castelo, há-de lá ver a cadeira!
Manuel esvazia a carroça e recolhe o jumento, que já o afligem o calor e a mosca. E a mulher fica a espalhar ao sol as maçarocas, na laja que se estende logo ao traço da porta. A canzoada que ladra ali ao lado, no quintal da residência paroquial, é do padre de Trancoso, que vem rezar os ofícios quando calha. E está tão belicosa, a cainçada, que nem deixa conversar. Com batedores assim, o padre há-de ser bom caçador. Mas o viajante fica a pensar que o padre Júlio caçava muito melhor.
(...)
Relíquia antiga - V
Era uma vez uma família muito pobre. Vivia numa aldeia em que as noites eram escuras, e mais longas ainda quando a noite se punha a cantar nas barrigas, antes de chegar a manhã.
Certa noite, num serão de pão escasso, lembrou-se o pai de contar uma história. E vai ele, que bom seria, mulher, termos dinheiro para comprar uma cabra. Havíamos de levá-la à vez a pastar pelos caminhos, para ela encher a barriga dos botões de silvas bravas, quando o sol, na primavera, constrói jardins nas paredes. E quando a noite chegasse, e a cabra voltasse a casa, íamos colher-lhe o leite, e as noites seriam longas, e a família cresceria, já viste mais alegria.
Mas eu não gosto de leite, tornou o filho mais novo. E quando o outono chegar, e as silvas ficarem duras, subo ao freixo do valado, e do mais dourado ramo se há-de fartar nosso gado, disse o outro, confiado. Mas eu não gosto de leite, insistiu o desgraçado.
Numa breve conclusão, perde o pai o seu vagar, e ali mesmo obriga o revel e obstinado filho a engolir duas grandes tigelas de leite na companhia dos irmãos, que assim dormiram toda a santa noite, de barriguinha calada.
É claro que tudo isto aconteceu num tempo muito antigo, enquanto havia milagres e cabras que davam leite.
Certa noite, num serão de pão escasso, lembrou-se o pai de contar uma história. E vai ele, que bom seria, mulher, termos dinheiro para comprar uma cabra. Havíamos de levá-la à vez a pastar pelos caminhos, para ela encher a barriga dos botões de silvas bravas, quando o sol, na primavera, constrói jardins nas paredes. E quando a noite chegasse, e a cabra voltasse a casa, íamos colher-lhe o leite, e as noites seriam longas, e a família cresceria, já viste mais alegria.
Mas eu não gosto de leite, tornou o filho mais novo. E quando o outono chegar, e as silvas ficarem duras, subo ao freixo do valado, e do mais dourado ramo se há-de fartar nosso gado, disse o outro, confiado. Mas eu não gosto de leite, insistiu o desgraçado.
Numa breve conclusão, perde o pai o seu vagar, e ali mesmo obriga o revel e obstinado filho a engolir duas grandes tigelas de leite na companhia dos irmãos, que assim dormiram toda a santa noite, de barriguinha calada.
É claro que tudo isto aconteceu num tempo muito antigo, enquanto havia milagres e cabras que davam leite.
terça-feira, 29 de setembro de 2009
O trigo e o joio
Na vida dos portugueses já não escasseavam motivos de aflição, nem lhes fazia falta esta calamidade. De elites indigentes trazem às costas uma larga história, do tamanho de séculos.
Mas há no caso vertente o joio e o trigo, que é preciso distinguir.
O trigo não será de primeira, é trigo turco. Mas também com ele se faz pão.
Quando ao joio há que levá-lo à eira, o vento ajuda.
Carta fechada
E assim estamos conversados, Senhor Prof. Cavaco Silva!
Para mim já não era novidade ser muito longa a lista dos actores que em Portugal desempenham papéis muito para lá das suas competências.
Agora fico a saber, ainda assim com surpresa, que o seu nome ocupa nela o lugar mais cimeiro. Mas é o que mais se tem visto, na história de Portugal.
Para mim já não era novidade ser muito longa a lista dos actores que em Portugal desempenham papéis muito para lá das suas competências.
Agora fico a saber, ainda assim com surpresa, que o seu nome ocupa nela o lugar mais cimeiro. Mas é o que mais se tem visto, na história de Portugal.
Santíssima Trindade
A pós-modernidade é um elixir destilado nos alambiques da América, e está em todo o lado: na economia, nas artes, na política, nas formas do pensamento, na extravagância do clima, na vida quotidiana, e até na religião. Pois nem a Santíssima Trindade é agora o que já foi.
Hoje é o desemprego em massa (que já veio), a explosão de falências em cascata (que aí estão), e o desabar do sistema monetário (que aí vem).
Basta-lhe o que se passa no Iraque e no Afeganistão, onde afogaram a América, connosco pela mão.
Hoje é o desemprego em massa (que já veio), a explosão de falências em cascata (que aí estão), e o desabar do sistema monetário (que aí vem).
Basta-lhe o que se passa no Iraque e no Afeganistão, onde afogaram a América, connosco pela mão.
Pobres... de espírito!
Portugal apresentou na ONU a proposta de alargar a área marítima das 200 para as 350 milhas. - O Hiper-Cluster do Mar são os Descobrimentos do séc. XXI! - confidenciou Mira Gomes, outro Infante D. Henrique que é secretário de estado.
Entretanto dizem os jornais que um tribunal de Ponta Delgada condenou o ministério da Defesa a pagar uma indemnização aos pescadores açoreanos, por prejuízos resultantes da ausência de fiscalização das frotas pesqueiras estrangeiras na ZEE dos Açores, entre 2002 e 2004. Por força das grandes frotas de pesca, como é o caso da espanhola e das de outros estados, os recursos haliêuticos estão a ficar cada vez mais escassos, atenta a grande quantidade de embarcações e artes depredadoras. Paulo Portas, um Neptuno que era ministro do Mar, alegou a impossibilidade de fazer fiscalização sem meios.
Aqui há uns anos, perguntei eu a um almirante que foi comigo à escola, por que razão adquiria Portugal uma parelha de submarinos. Ele respondeu-me logo que essa era a arma dos pobres, mas não disse que era a dos pobres de espírito. Deixou à história a rudeza da verdade.
Portugalmente (63)
(...)
Lá segue, entre fogos, pela estrada da Meda. E dizer fogos é só um bem de falar, que já se vai tornando cansativo. A encosta da direita é uma mancha de carvões recentes, e a da esquerda um espinhaço de fraguedos, que os incêndios mais antigos deixaram a descoberto. Ficou este mar ondulante de barrocos que o viajante segue pela margem, e o vai acompanhando até Moreira de Rei.
Nestes prados da quinta dos Cavalos não há cavalos nenhuns. Só João vai caminhando pela berma da estrada e o viajante pára ao lado dele. Não sendo velho é uma figura antiga, delida pelo tempo, ou pela vida. E há nele uma servitude primitiva que este viajante já julgava extinta. De manhã tirou-se de cuidados e foi à vila ao médico espanhol, à boleia dum vizinho. Em breve se despachou e agora não há transportes, não tem remédio senão voltar a pé. Tem a mãe à espera em casa, já muito velha, e ainda mais achacada do que ele. Há mais irmãos, mas desgarraram todos, depois que voltaram de Angola. Foram para lá quando eram pequenos, cresceram nos colonatos do Cunene. Havia o gado, e aquelas terras grandes... Agora o que lhe vale é o rendimento mínimo.
Quando o carro estaca no largo, João ainda não se convenceu de que o viajante parou na estrada e o trouxe para casa. O que lhe vale é o rendimento mínimo. E ao vê-lo assim, a afastar-se cabisbaixo, fica a pensar o viajante que deu boleia a um símbolo de alguma coisa maior.
(...)
Lá segue, entre fogos, pela estrada da Meda. E dizer fogos é só um bem de falar, que já se vai tornando cansativo. A encosta da direita é uma mancha de carvões recentes, e a da esquerda um espinhaço de fraguedos, que os incêndios mais antigos deixaram a descoberto. Ficou este mar ondulante de barrocos que o viajante segue pela margem, e o vai acompanhando até Moreira de Rei.
Nestes prados da quinta dos Cavalos não há cavalos nenhuns. Só João vai caminhando pela berma da estrada e o viajante pára ao lado dele. Não sendo velho é uma figura antiga, delida pelo tempo, ou pela vida. E há nele uma servitude primitiva que este viajante já julgava extinta. De manhã tirou-se de cuidados e foi à vila ao médico espanhol, à boleia dum vizinho. Em breve se despachou e agora não há transportes, não tem remédio senão voltar a pé. Tem a mãe à espera em casa, já muito velha, e ainda mais achacada do que ele. Há mais irmãos, mas desgarraram todos, depois que voltaram de Angola. Foram para lá quando eram pequenos, cresceram nos colonatos do Cunene. Havia o gado, e aquelas terras grandes... Agora o que lhe vale é o rendimento mínimo.
Quando o carro estaca no largo, João ainda não se convenceu de que o viajante parou na estrada e o trouxe para casa. O que lhe vale é o rendimento mínimo. E ao vê-lo assim, a afastar-se cabisbaixo, fica a pensar o viajante que deu boleia a um símbolo de alguma coisa maior.
(...)
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
Portugalmente (62)
(...)
8
Hoje acordou cedo o viajante, que tem as horas contadas. Esperam-no ao fim da tarde os cavalinhos rupestres no baixo Côa, há que meter pés ao caminho, que vai ser longo. Já se despediu das muralhas de Trancoso, já deixou para trás as portas do Carvalho, já segue para norte pela estrada da Meda. Para trás ficou também a capela de Santa Luzia que não pôde visitar, tão fechada que estava debaixo do seu arco românico.
O bairro da mesma santa, estendido pelo arrabalde que se dispersa na encosta, é uma pequena parte de Trancoso moderno. Mas não há ponto cardeal que a febre da construção tenha poupado. O viajante perdeu-se ontem à noite nos dilatados subúrbios e não pode imaginar donde vem tanta gente habitar estas casas. Por força haverá muitas vazias, que todos os munícipes concentrados na vila não haviam de chegar para as ocupar. Mas a perplexidade do viajante é sem motivo. Havendo dispersas no país inteiro meio milhão de casas devolutas, sempre uma parte caberia a Trancoso, a menos que houvesse um milagre qualquer. A especulação imobiliária fez-se galinha de ovos doirados há uns anos, não há terra em que o betão e uma ideia peregrina de progresso não andem de braço dado. Os construtores trocam as leis e os planos por peitas e ganhuças, os edis fazem o mesmo por taxas e derramas, e os governos, sobre todos, abdicam do país por impostos e sisas. Os banqueiros multiplicam capitais, como é da sua função. E alguém há-de pagar um dia esta factura, se ela não estiver já hoje a pagamento.
O viajante vai ficando cansado destes embates com a realidade, sempre espessa e concreta e angulosa. Ouriçada de esquinas afiladas, que deixam feridas nas mãos. O que dava jeito a este viajante era acreditar em trovas e refugiar-se nelas, se para consolo de almas foram inventadas. Mas não tem ele essa sorte. Há-de parecer que anda à procura de quebra-cabeças e não é verdade. São os quebra-cabeças que vêm ter com ele. Parou aqui à saída da vila, para ver as instalações do mercado dos gados, sem sinais de ocupação há muito tempo. Num lugar de ruralidades dominantes é sempre um gosto vê-las, mesmo assim vazias, que já estarão à espera se um dia o gado voltar. Mas não estão sós no desamparo, pois logo ali à direita, espraiados no vale, andam quinze hectares de pomar abandonados. O viajante pára o carro num caminho de saibro, pula uma parede a observar melhor. O matagal pagão assoberbou as árvores, que lá vão resistindo aos gritos pela encosta. Algumas já secaram, outras lambeu-as o fogo, muitas granjearam frutos enfezados que tornaram à braveza natural. Na vastidão da tapada ficou a branquejar uma inútil estação de tratamento.
Umas vezes protesta o viajante contra a própria ignorância e falta de entendimento. Outras muito suspeita que dez cursos de economia não haviam de chegar para lhe tornar compreensível este mundo. Dá consigo a perguntar o que o faz correr assim, andar por montes ardidos, e pomares abandonados, e terras adormecidas donde a vida desertou. Vinha à procura dum país, a ver se lhe encontrava ao menos as raízes. Mas só esbarra em perguntas que ficam sem resposta. Anda por ali a restolhar no capim, a tropeçar em tubagens de rega, a arranhar-se nos silvedos. Abre os braços à carícia do sol, oferece o peito ao ar de vidro da manhã, e com tanto se dará por satisfeito. É um tolo, este viajante, a querer entender o mundo. Deu com a fronteira da parede, esbarrondou umas pedras, saltou para a carreteira e foi-se embora.
(...)
8
Hoje acordou cedo o viajante, que tem as horas contadas. Esperam-no ao fim da tarde os cavalinhos rupestres no baixo Côa, há que meter pés ao caminho, que vai ser longo. Já se despediu das muralhas de Trancoso, já deixou para trás as portas do Carvalho, já segue para norte pela estrada da Meda. Para trás ficou também a capela de Santa Luzia que não pôde visitar, tão fechada que estava debaixo do seu arco românico.
O bairro da mesma santa, estendido pelo arrabalde que se dispersa na encosta, é uma pequena parte de Trancoso moderno. Mas não há ponto cardeal que a febre da construção tenha poupado. O viajante perdeu-se ontem à noite nos dilatados subúrbios e não pode imaginar donde vem tanta gente habitar estas casas. Por força haverá muitas vazias, que todos os munícipes concentrados na vila não haviam de chegar para as ocupar. Mas a perplexidade do viajante é sem motivo. Havendo dispersas no país inteiro meio milhão de casas devolutas, sempre uma parte caberia a Trancoso, a menos que houvesse um milagre qualquer. A especulação imobiliária fez-se galinha de ovos doirados há uns anos, não há terra em que o betão e uma ideia peregrina de progresso não andem de braço dado. Os construtores trocam as leis e os planos por peitas e ganhuças, os edis fazem o mesmo por taxas e derramas, e os governos, sobre todos, abdicam do país por impostos e sisas. Os banqueiros multiplicam capitais, como é da sua função. E alguém há-de pagar um dia esta factura, se ela não estiver já hoje a pagamento.
O viajante vai ficando cansado destes embates com a realidade, sempre espessa e concreta e angulosa. Ouriçada de esquinas afiladas, que deixam feridas nas mãos. O que dava jeito a este viajante era acreditar em trovas e refugiar-se nelas, se para consolo de almas foram inventadas. Mas não tem ele essa sorte. Há-de parecer que anda à procura de quebra-cabeças e não é verdade. São os quebra-cabeças que vêm ter com ele. Parou aqui à saída da vila, para ver as instalações do mercado dos gados, sem sinais de ocupação há muito tempo. Num lugar de ruralidades dominantes é sempre um gosto vê-las, mesmo assim vazias, que já estarão à espera se um dia o gado voltar. Mas não estão sós no desamparo, pois logo ali à direita, espraiados no vale, andam quinze hectares de pomar abandonados. O viajante pára o carro num caminho de saibro, pula uma parede a observar melhor. O matagal pagão assoberbou as árvores, que lá vão resistindo aos gritos pela encosta. Algumas já secaram, outras lambeu-as o fogo, muitas granjearam frutos enfezados que tornaram à braveza natural. Na vastidão da tapada ficou a branquejar uma inútil estação de tratamento.
Umas vezes protesta o viajante contra a própria ignorância e falta de entendimento. Outras muito suspeita que dez cursos de economia não haviam de chegar para lhe tornar compreensível este mundo. Dá consigo a perguntar o que o faz correr assim, andar por montes ardidos, e pomares abandonados, e terras adormecidas donde a vida desertou. Vinha à procura dum país, a ver se lhe encontrava ao menos as raízes. Mas só esbarra em perguntas que ficam sem resposta. Anda por ali a restolhar no capim, a tropeçar em tubagens de rega, a arranhar-se nos silvedos. Abre os braços à carícia do sol, oferece o peito ao ar de vidro da manhã, e com tanto se dará por satisfeito. É um tolo, este viajante, a querer entender o mundo. Deu com a fronteira da parede, esbarrondou umas pedras, saltou para a carreteira e foi-se embora.
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domingo, 27 de setembro de 2009
Filhós e gato
Pronto, o gato não foi às filhós!
Isso é um bem, mas não basta, para dar um sentido à fábula!
Trata-se agora de encher a gaveta delas!
Isso é um bem, mas não basta, para dar um sentido à fábula!
Trata-se agora de encher a gaveta delas!
Ecos da Sonora - XX
Aí está um livrinho, chegado do Brasil, que se lê com algum prazer e ainda maior proveito! O Português Que Nos Pariu, de Ângela Dutra de Meneses. Em memória do bisavô, João Jorge Gaio Júnior, que em meados do séc. XIX deixou Vila Real de Trás-os-Montes e se fez ao mar, o trabalho é um voo de pássaro sobre a história dos portugueses, e sobre o que a autora pensa que nós somos. Com um humor, uma ironia, um espírito e uma desfaçatez que só podiam vir-nos do Brasil.
Os nossos donos da História, os encartados, não deixarão de fazer esgares de desdém. Isto se não chegarem à heresia! E têm toda a razão. Pois mesmo quando só serve para nos baralhar a cabeça, a ciênciazinha histórica é um assunto muito sério. Não deve andar assim na rua, de minissaia.
Mas descontemos-lhe nós algum par de cedências ao cliché, os versos octassílabos d'Os Lusíadas, e alguma estranheza do discurso, que já era esperada. O livrinho é um regalo.
E os portugueses de carne e osso ganhariam em lê-lo (ou em ouvi-lo, já agora!). Para se limparem do ranço fedorento do Pinheiro Chagas, e da sua História Alegre!
sábado, 26 de setembro de 2009
Canalhice
Nunca se fez aqui campanha partidária, embora já se tenha feito, (e sempre se fará), anti-campanha. Para zurzir uma certa escumalha, que tresanda a sarjeta.
Ainda hoje, e desde há vários dias, se lê nalguma imprensa que o congelamento da promoção do juiz Rui Teixeira foi proposto por três vogais indicados pelo PS no CSM. Supostamente para "punir" um juiz que ousou prender Paulo Pedroso, no caso da Casa Pia.
Ora é sobejamente conhecido, há demasiado tempo, que o dito congelamento foi proposto por Laborinho Lúcio, figura notória de ministro da Justiça de Cavaco Silva. Enquanto não se deslindar o processo interposto pelo arguido, por indevida prisão.
Assim sendo, só pode concluir-se duma forma: o que anima as televisões e os jornais, que repetidamente propalam atoardas, à volta deste como doutros assuntos, é apenas canalhice. Que não surpreende, mas enoja.
Ainda hoje, e desde há vários dias, se lê nalguma imprensa que o congelamento da promoção do juiz Rui Teixeira foi proposto por três vogais indicados pelo PS no CSM. Supostamente para "punir" um juiz que ousou prender Paulo Pedroso, no caso da Casa Pia.
Ora é sobejamente conhecido, há demasiado tempo, que o dito congelamento foi proposto por Laborinho Lúcio, figura notória de ministro da Justiça de Cavaco Silva. Enquanto não se deslindar o processo interposto pelo arguido, por indevida prisão.
Assim sendo, só pode concluir-se duma forma: o que anima as televisões e os jornais, que repetidamente propalam atoardas, à volta deste como doutros assuntos, é apenas canalhice. Que não surpreende, mas enoja.
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
Portugalmente (61)
(...)
Saudoso já de alguma realidade, vai acabar o seu dia na feira, onde anda tudo numa roda-viva em azáfamas de última hora. Já está montada a tômbola das rifas, à entrada, para distribuir ursinhos de peluche e batedeiras eléctricas a quem acertar na lotaria. Logo depois vem o poço da morte, andam a acabar-lhe a escadaria. Entre braços de carrocéis voadores, pistas de engenhos de choque e as diversões costumeiras, sente o viajante a falta dos espelhos aldrabões, e do comboio fantasma, e da rampa do canhão. Terão passado de moda, que já estão aqui as quinquilharias de plástico, e as barracas das bonecas matrafonas que vieram das fábricas chinesas, e os colares e os couros e as missangas que chegaram do Magrebe. Há balcões ambulantes de churros e farturas, e está pronta a exposição dos automóveis, tanto novos como usados. E também a das máquinas industriais e agrícolas, que tanta falta faziam nesses campos.
O viajante deixa atrás o arraial e passou ao multi-usos, onde lhe prometeram actividades económicas e artesanais. Mas para elas ainda é cedo, que o pavilhão está fechado. E assim chega finalmente ao terreiro das esplanadas, e das tasquinhas típicas que vinham anunciadas. Já estão prontas à espera de clientes, mesmo em frente da boca negra do palco monumental, que lá vai derramando pelo rossio inteiro trovões experimentais.
É aqui que há-de bater o coração da feira, a acreditar no programa que uma brochura divulga abundantemente. Antigamente durava ela três dias e pagava-se a si mesma. E não tinha programa nenhum, além daquele imposto pelos negócios a fazer, pelas precisões da vida e os sonhos do ano inteiro. Agora alargaram-na para doze, e criaram-lhe um programa oficial. A este viajante mais parece que, em vez duma feira com um programa, o que tem lugar aqui é um programa a precisar duma feira. Tudo nele se resume ao desfile dos artistas que em cada noite irão subir ao palco.
O viajante resiste à tentação de ficar em Trancoso à espera da abertura. Posta de lado pelas mudanças do mundo, a feira de São Bartolomeu já não existe, morreram as condições que durante séculos a fizeram viver. Agora é um arraial de fim do verão, e traz apenas um vago sobressalto aos comércios da vila. É um frívolo evento, que só se mantém de pé à custa do orçamento camarário. Uma teimosia de publicistas que a usam como bandeira, e tomam erradamente o seu ruído por sinal de vitalidade e de progresso.
Neste mundo de ilusões do marketing moderno, não é indispensável que uma coisa exista para a tornar realidade. Basta que se fale dela. O viajante ouviu há dias no rádio a mesma filosofia a um esforçado cidadão de Alcochete. Quis entrar no livro dos recordes com a sua fila de jipes, para pôr a terra no mapa e obrigar o mundo inteiro a falar dela. É a versão mais moderna das trovas do Bandarra. Há séculos que Portugal vive delas.
(...)
Saudoso já de alguma realidade, vai acabar o seu dia na feira, onde anda tudo numa roda-viva em azáfamas de última hora. Já está montada a tômbola das rifas, à entrada, para distribuir ursinhos de peluche e batedeiras eléctricas a quem acertar na lotaria. Logo depois vem o poço da morte, andam a acabar-lhe a escadaria. Entre braços de carrocéis voadores, pistas de engenhos de choque e as diversões costumeiras, sente o viajante a falta dos espelhos aldrabões, e do comboio fantasma, e da rampa do canhão. Terão passado de moda, que já estão aqui as quinquilharias de plástico, e as barracas das bonecas matrafonas que vieram das fábricas chinesas, e os colares e os couros e as missangas que chegaram do Magrebe. Há balcões ambulantes de churros e farturas, e está pronta a exposição dos automóveis, tanto novos como usados. E também a das máquinas industriais e agrícolas, que tanta falta faziam nesses campos.
O viajante deixa atrás o arraial e passou ao multi-usos, onde lhe prometeram actividades económicas e artesanais. Mas para elas ainda é cedo, que o pavilhão está fechado. E assim chega finalmente ao terreiro das esplanadas, e das tasquinhas típicas que vinham anunciadas. Já estão prontas à espera de clientes, mesmo em frente da boca negra do palco monumental, que lá vai derramando pelo rossio inteiro trovões experimentais.
É aqui que há-de bater o coração da feira, a acreditar no programa que uma brochura divulga abundantemente. Antigamente durava ela três dias e pagava-se a si mesma. E não tinha programa nenhum, além daquele imposto pelos negócios a fazer, pelas precisões da vida e os sonhos do ano inteiro. Agora alargaram-na para doze, e criaram-lhe um programa oficial. A este viajante mais parece que, em vez duma feira com um programa, o que tem lugar aqui é um programa a precisar duma feira. Tudo nele se resume ao desfile dos artistas que em cada noite irão subir ao palco.
O viajante resiste à tentação de ficar em Trancoso à espera da abertura. Posta de lado pelas mudanças do mundo, a feira de São Bartolomeu já não existe, morreram as condições que durante séculos a fizeram viver. Agora é um arraial de fim do verão, e traz apenas um vago sobressalto aos comércios da vila. É um frívolo evento, que só se mantém de pé à custa do orçamento camarário. Uma teimosia de publicistas que a usam como bandeira, e tomam erradamente o seu ruído por sinal de vitalidade e de progresso.
Neste mundo de ilusões do marketing moderno, não é indispensável que uma coisa exista para a tornar realidade. Basta que se fale dela. O viajante ouviu há dias no rádio a mesma filosofia a um esforçado cidadão de Alcochete. Quis entrar no livro dos recordes com a sua fila de jipes, para pôr a terra no mapa e obrigar o mundo inteiro a falar dela. É a versão mais moderna das trovas do Bandarra. Há séculos que Portugal vive delas.
(...)
Carta entreaberta
Ao Senhor Presidente da República
Prof. Aníbal Cavaco Siva
Excelência
Bem contra a minha vontade, (que não empenharia assim um voto meu!), é V.Excia o Supremo Magistrado do meus país. Porém assim o quiseram os meus concidadãos. E eu... noblesse oblige... não sei se me faço entender.
O meu país vai a votos. E eu também lá quero ir, mas tenho hesitações a esclarecer. Entre um primeiro-ministro, que bem ou mal governou, e uma candidata da oposição que agora quer governar, e me promete a Verdade. Dirijo-me a V. Excia, pois não vejo outra porta onde bater.
Disseram os jornais que um V/ assessor fiel, a mando de V.Excia segundo o próprio afirmou, lhes denunciou uma patifaria do primeiro-ministro. O qual efectuou, ou mandou efectuar, escutas ou vigilâncias ilegais em V/ Casa, em benefício próprio.
A ser verdade, o caso estava arrumado, e eu já sabia onde riscar a cruzinha. Porque não quero deixar aos meus netos uma Pátria de escroques e jagunços. Mas não está, e as dúvidas persistem. Porque há dias demitiu V.Excia o V/ assessor fiel. Que cumprira fielmente as V/ ordens.
De forma que a questão é a seguinte. Houve escutas ilegais, e o primeiro-ministro é um fora-da-lei a entregar à polícia? Ou mandou V.Excia anunciar o que não houve, em benefício da oposição que me promete a Verdade?
Esqueço facilmente o assessor, porque a figura do bode expiatório já se me tornou comum. Mas preciso de ver desfeita esta embrulhada, por causa dos meus direitos de cidadania. Por causa do meu país. E só V.Excia me pode ajudar nisso. Aguardo a V/ resposta até ao dia dos votos.
Prof. Aníbal Cavaco Siva
Excelência
Bem contra a minha vontade, (que não empenharia assim um voto meu!), é V.Excia o Supremo Magistrado do meus país. Porém assim o quiseram os meus concidadãos. E eu... noblesse oblige... não sei se me faço entender.
O meu país vai a votos. E eu também lá quero ir, mas tenho hesitações a esclarecer. Entre um primeiro-ministro, que bem ou mal governou, e uma candidata da oposição que agora quer governar, e me promete a Verdade. Dirijo-me a V. Excia, pois não vejo outra porta onde bater.
Disseram os jornais que um V/ assessor fiel, a mando de V.Excia segundo o próprio afirmou, lhes denunciou uma patifaria do primeiro-ministro. O qual efectuou, ou mandou efectuar, escutas ou vigilâncias ilegais em V/ Casa, em benefício próprio.
A ser verdade, o caso estava arrumado, e eu já sabia onde riscar a cruzinha. Porque não quero deixar aos meus netos uma Pátria de escroques e jagunços. Mas não está, e as dúvidas persistem. Porque há dias demitiu V.Excia o V/ assessor fiel. Que cumprira fielmente as V/ ordens.
De forma que a questão é a seguinte. Houve escutas ilegais, e o primeiro-ministro é um fora-da-lei a entregar à polícia? Ou mandou V.Excia anunciar o que não houve, em benefício da oposição que me promete a Verdade?
Esqueço facilmente o assessor, porque a figura do bode expiatório já se me tornou comum. Mas preciso de ver desfeita esta embrulhada, por causa dos meus direitos de cidadania. Por causa do meu país. E só V.Excia me pode ajudar nisso. Aguardo a V/ resposta até ao dia dos votos.
Rabecada ecológica
A muitíssimos autores, do meu país e dos outros, que vendem livros aos milhões!
Não escrevas, mermão! Não cedas à tentação! Há mais livros que embondeiros na paisagem! E ao mundo não falta lixo, faltam árvores!
Não escrevas, mermão! Não cedas à tentação! Há mais livros que embondeiros na paisagem! E ao mundo não falta lixo, faltam árvores!
terça-feira, 22 de setembro de 2009
Eleições - 3
Já uma vez aqui foi dito, e hoje se volta a dizer, por razões de força maior: o PSD (do Cavaco, do Barroso, do Lopes, do Mendes, do Meneses, da Manuela e dos outros todos) é desde há muitos anos actor primeiro no palco da tragédia nacional (que não ocupou sozinho).
Se os portugueses ainda hoje não entenderam isso, é porque merecem o que têm. E sobretudo aquilo que vão ter. Embora precisassem doutra coisa.
Se os portugueses ainda hoje não entenderam isso, é porque merecem o que têm. E sobretudo aquilo que vão ter. Embora precisassem doutra coisa.
Imaginação
À generosa mãe Ceres, antes que volte Saturno!
NOTA: Esta geringonça deixou de responder ao comando "Carregar Imagem".
Por isso falta, à cabeça do ex-voto, uma árvore carregada de pomos maduros, desde os pés à raiz dos cabelos. Quem foi que disse que a imaginação já se não usa?!
NOTA à NOTA: Liberte-se então a imaginação!
Portugalmente (60)
(...)
Esperava-se audiência de estudantes das várias universidades vizinhas de Trancoso, não especificadas pela organização. Ademais de professores, artistas, investigadores e público em geral. A plateia, porém, não chega a duas dúzias de presenças exóticas, as mais delas personagens da própria encenação. Mistura-se nas conversas o linguajar brasileiro com um inglês de várias latitudes, alguém atarefado nos serviços de apoio fala um português genuíno. Mas a tradução simultânea permite ultrapassar a babélica confusão.
O primeiro orador é um artista português. Debita um par de noções elementares sobre a eutrofização das lagoas dos Açores, fala no pico do petróleo e nos limites do crescimento, cita os malefícios da suburbanização e da fordização da sociedade. Discursos consensuais. E acaba por desvendar o seu projecto de capital dum país do futuro, um grande estuário estimulado pela utopia dos jogos olímpicos de 2020, que haverão de ser os primeiros jogos pós-carbónicos.
O segundo orador é um físico judeu, que parte do big-bang original até chegar ao microcosmos dos protões, feitos de quarks ligados por gluões. Revela ao auditório sonolento a descoberta dos quasi-cristais, que têm, como é sabido geralmente, natureza quasi-periódica. E por tanto vir a pêlo do momento, termina com uma incursão ao campo dos números irracionais.
O orador seguinte vem da América, é especialista em novos meios e revoluções editoriais. Para economizar papel, lê a cansativa intervenção num ecrã de computador, e ao viajante parece isto, finalmente, um escrúpulo a merecer registo. Fala de livros, da rede, de mercados e de comunicação. Porém muito vagamente, que a tradução simultânea claudicou.
A seu tempo abandonou a plateia um marquês bem conhecido, anfitrião de lúcidas tertúlias, que veio do seu palácio em Lisboa atraído pelo rumor das propostas. Pôs-se ao fresco e não sabe o que perdeu, que à chegada do crepúsculo vai faltar à vernissage. Na vastidão das paredes da igreja do convento haverá uma instalação dum criativo inglês. A propósito da água, esse líquido precioso, e dos seus aspectos físicos, simbólicos e espirituais, mostra imagens vagas dum feto na bolsa de águas, um banhista às voltas numa piscina, e uma sequência de fotos dum galã americano a metamorfosear-se em boga.
Escapando a intervenções de cientistas avulsos e dum antropólogo indiano, o viajante seguiu o exemplo atilado do marquês, deu às de vila-diogo. E só tornou ao fechar dos trabalhos, para ver como acabava aquilo tudo. Um velho arquitecto português quis saber como é possível redesenhar a humanidade, se o principal dos orçamentos dos governos vai para as armas e as guerras. Um engenheiro brasileiro jurou que na sua terra estava tudo preparado para a nano-tecnologia, só o equilíbrio da economia do mundo os mantinha sossegados. Vindo embora do país que deu ao mundo os camponeses sem-terra, assegura que há nele terra bastante para afectar aos bio-combustíveis, sem molestar a produção alimentar. E porque era, enfim, necessário concluir, alvitrou uma figura feminina que ao menos guardassem os pensadores os telefones dos colegas.
O Tribunal Europeu do Ambiente acabou a anunciar nos jornais a instalação em Trancoso dum projecto-piloto de cidade biológica. Benza-os Deus, ao tribunal e ao projecto, por virem tão a propósito. Pensa isto o viajante, ao lembrar-se do fedor das queijarias da quinta do Forcas, ali abaixo a dois passos. Com os seus lagos de efluentes a céu aberto, empestam a atmosfera à saída para Lamego, inquinam a ribeira de Rio de Moinhos, interditam a rega aos aldeãos, matam as faunas do Távora. Ainda bem que chegaram a Trancoso estes cavaleiros andantes. A vila inteira é que não deu por eles, se antes não caprichou em manter as distâncias. É que há nestas liturgias diletantes um solipsismo patético, há um vazio que dói. Porém muito suspeita o viajante que a tão irreais oficiantes não molestou tão grande alheamento. E custa-lhe a acreditar que a câmara de Trancoso dispenda uma fortuna a financiar tudo isto.
E não é tudo. Buscando nas entrelinhas, acaba por saber o viajante que o dito museu do tempo exporá uma colecção de duzentos relógios dos últimos quatro séculos. Os quais fazem parte do espólio dum inventor e industrial português de contornos indecisos, directo ascendente do já citado compositor brasileiro-luso, a alma destes encontros. E o arrojado museu vai ter o nome do filósofo que é também presidente honorário do Tribunal Europeu do Ambiente. Sabidos que já eram os efeitos, ficam assim conhecidas as causas, não vá alguém iludir-se com os acasos deste mundo. Tudo não passa afinal dum concerto de privadas conveniências. Ora o viajante considera que um tão distinto cenáculo de construtores do futuro bem faria em reunir-se no hotel do Alto dos Frades, para uns serões pacíficos de bridge. Mas não para estes rituais iniciáticos, alheios a uma realidade que absurdamente os ignora e financia. Bem verdade é o que se diz de qualquer poder sem freio. Ou corrompe, ou ensandece.
Isto fica a pensar o viajante, que ainda não imagina a dimensão verdadeira da sandice. Porque os dois encontros anuais da FACTO, para o ano hão-de ser quatro. Dado que anda o planeta mergulhado em ondas de simetria e assimetria, nada como devotar-se a câmara de Trancoso a discutir as magnas questões da Ruptura e Tradição, mecenando conclaves de sumidades internacionais em educação, sistemas cognitivos, design, teoria e história da arte, matemática, arquitectura, música, filosofia da ciência, neurologia e dança. E não vá tanta coisa parecer pouco, há-de o Segundo Encontro Internacional de Arte e Ciência esquartejar o tema das Sociedades de Alto e Baixo Poder. E por haver neste lugar remoto largas famas e melhores tradições visionárias e esotéricas, aqui terá lugar um Encontro Internacional de Arte e Alquimia, onde será chamada a capítulo a Alchimiarte, sociedade de ilustres que em Locarno se ocupam das relações entre uma coisa e outra, desde há séculos. Hão-de fazer do Bandarra um cabalista, há-de justificar-se-lhe um museu. E finalmente - pois que em toda a acção do Tribunal Europeu do Ambiente está francamente presente a ideia da liberdade, resgatada no seu significado clássico, de onde emana uma dinâmica Paideia, em que cada pessoa é responsável pelo desígnio dos seus próprios limites – hão-de voltar as Origens do Futuro, para pôr em pratos limpos a questão.
No mundo caprichoso que aí está, não saberá dizer o viajante se a decadência triste que vai por estas terras é uma fatalidade inescapável. Mas não duvida, depois do que tem visto, de que estas políticas locais só lhes abreviam a sentença. Que Portugal mete medo.
(...)
Esperava-se audiência de estudantes das várias universidades vizinhas de Trancoso, não especificadas pela organização. Ademais de professores, artistas, investigadores e público em geral. A plateia, porém, não chega a duas dúzias de presenças exóticas, as mais delas personagens da própria encenação. Mistura-se nas conversas o linguajar brasileiro com um inglês de várias latitudes, alguém atarefado nos serviços de apoio fala um português genuíno. Mas a tradução simultânea permite ultrapassar a babélica confusão.
O primeiro orador é um artista português. Debita um par de noções elementares sobre a eutrofização das lagoas dos Açores, fala no pico do petróleo e nos limites do crescimento, cita os malefícios da suburbanização e da fordização da sociedade. Discursos consensuais. E acaba por desvendar o seu projecto de capital dum país do futuro, um grande estuário estimulado pela utopia dos jogos olímpicos de 2020, que haverão de ser os primeiros jogos pós-carbónicos.
O segundo orador é um físico judeu, que parte do big-bang original até chegar ao microcosmos dos protões, feitos de quarks ligados por gluões. Revela ao auditório sonolento a descoberta dos quasi-cristais, que têm, como é sabido geralmente, natureza quasi-periódica. E por tanto vir a pêlo do momento, termina com uma incursão ao campo dos números irracionais.
O orador seguinte vem da América, é especialista em novos meios e revoluções editoriais. Para economizar papel, lê a cansativa intervenção num ecrã de computador, e ao viajante parece isto, finalmente, um escrúpulo a merecer registo. Fala de livros, da rede, de mercados e de comunicação. Porém muito vagamente, que a tradução simultânea claudicou.
A seu tempo abandonou a plateia um marquês bem conhecido, anfitrião de lúcidas tertúlias, que veio do seu palácio em Lisboa atraído pelo rumor das propostas. Pôs-se ao fresco e não sabe o que perdeu, que à chegada do crepúsculo vai faltar à vernissage. Na vastidão das paredes da igreja do convento haverá uma instalação dum criativo inglês. A propósito da água, esse líquido precioso, e dos seus aspectos físicos, simbólicos e espirituais, mostra imagens vagas dum feto na bolsa de águas, um banhista às voltas numa piscina, e uma sequência de fotos dum galã americano a metamorfosear-se em boga.
Escapando a intervenções de cientistas avulsos e dum antropólogo indiano, o viajante seguiu o exemplo atilado do marquês, deu às de vila-diogo. E só tornou ao fechar dos trabalhos, para ver como acabava aquilo tudo. Um velho arquitecto português quis saber como é possível redesenhar a humanidade, se o principal dos orçamentos dos governos vai para as armas e as guerras. Um engenheiro brasileiro jurou que na sua terra estava tudo preparado para a nano-tecnologia, só o equilíbrio da economia do mundo os mantinha sossegados. Vindo embora do país que deu ao mundo os camponeses sem-terra, assegura que há nele terra bastante para afectar aos bio-combustíveis, sem molestar a produção alimentar. E porque era, enfim, necessário concluir, alvitrou uma figura feminina que ao menos guardassem os pensadores os telefones dos colegas.
O Tribunal Europeu do Ambiente acabou a anunciar nos jornais a instalação em Trancoso dum projecto-piloto de cidade biológica. Benza-os Deus, ao tribunal e ao projecto, por virem tão a propósito. Pensa isto o viajante, ao lembrar-se do fedor das queijarias da quinta do Forcas, ali abaixo a dois passos. Com os seus lagos de efluentes a céu aberto, empestam a atmosfera à saída para Lamego, inquinam a ribeira de Rio de Moinhos, interditam a rega aos aldeãos, matam as faunas do Távora. Ainda bem que chegaram a Trancoso estes cavaleiros andantes. A vila inteira é que não deu por eles, se antes não caprichou em manter as distâncias. É que há nestas liturgias diletantes um solipsismo patético, há um vazio que dói. Porém muito suspeita o viajante que a tão irreais oficiantes não molestou tão grande alheamento. E custa-lhe a acreditar que a câmara de Trancoso dispenda uma fortuna a financiar tudo isto.
E não é tudo. Buscando nas entrelinhas, acaba por saber o viajante que o dito museu do tempo exporá uma colecção de duzentos relógios dos últimos quatro séculos. Os quais fazem parte do espólio dum inventor e industrial português de contornos indecisos, directo ascendente do já citado compositor brasileiro-luso, a alma destes encontros. E o arrojado museu vai ter o nome do filósofo que é também presidente honorário do Tribunal Europeu do Ambiente. Sabidos que já eram os efeitos, ficam assim conhecidas as causas, não vá alguém iludir-se com os acasos deste mundo. Tudo não passa afinal dum concerto de privadas conveniências. Ora o viajante considera que um tão distinto cenáculo de construtores do futuro bem faria em reunir-se no hotel do Alto dos Frades, para uns serões pacíficos de bridge. Mas não para estes rituais iniciáticos, alheios a uma realidade que absurdamente os ignora e financia. Bem verdade é o que se diz de qualquer poder sem freio. Ou corrompe, ou ensandece.
Isto fica a pensar o viajante, que ainda não imagina a dimensão verdadeira da sandice. Porque os dois encontros anuais da FACTO, para o ano hão-de ser quatro. Dado que anda o planeta mergulhado em ondas de simetria e assimetria, nada como devotar-se a câmara de Trancoso a discutir as magnas questões da Ruptura e Tradição, mecenando conclaves de sumidades internacionais em educação, sistemas cognitivos, design, teoria e história da arte, matemática, arquitectura, música, filosofia da ciência, neurologia e dança. E não vá tanta coisa parecer pouco, há-de o Segundo Encontro Internacional de Arte e Ciência esquartejar o tema das Sociedades de Alto e Baixo Poder. E por haver neste lugar remoto largas famas e melhores tradições visionárias e esotéricas, aqui terá lugar um Encontro Internacional de Arte e Alquimia, onde será chamada a capítulo a Alchimiarte, sociedade de ilustres que em Locarno se ocupam das relações entre uma coisa e outra, desde há séculos. Hão-de fazer do Bandarra um cabalista, há-de justificar-se-lhe um museu. E finalmente - pois que em toda a acção do Tribunal Europeu do Ambiente está francamente presente a ideia da liberdade, resgatada no seu significado clássico, de onde emana uma dinâmica Paideia, em que cada pessoa é responsável pelo desígnio dos seus próprios limites – hão-de voltar as Origens do Futuro, para pôr em pratos limpos a questão.
No mundo caprichoso que aí está, não saberá dizer o viajante se a decadência triste que vai por estas terras é uma fatalidade inescapável. Mas não duvida, depois do que tem visto, de que estas políticas locais só lhes abreviam a sentença. Que Portugal mete medo.
(...)
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
Portugalmente (59)
(...)
Porém esse pouco dá trabalho. Não consta que renda votos, nem garante famas mediáticas a esta hidra delirante, que em cada terra mostra uma cabeça nova. Já se viu como em Trancoso é antiga a pecha dos visionários, dos troveiros utopistas que sonham com o 5º Império. Por isso vai ela erguer um museu às memórias do Bandarra, e já tem prometida uma catedral do tempo, assente em espirais vertiginosas. As castanhas desses soutos, único, real e específico padrão do município, vendem-nas os aldeãos ao desbarato, à mistura com a lama que trouxeram das encostas, deixando a mais-valia nas mãos do traficante. E acabaram englobadas no labéu da origem protegida dos Soitos da Lapa, em condição subalterna, por inépcia do concelho. Mas duas vezes por ano albergará Trancoso os Encontros do Tribunal Europeu do Ambiente, que hão-de colocá-lo nos mapas do mundo, nos caminhos da ciência, nas páginas dos jornais. O próximo, que não tarda, vai questionar As Origens do Futuro. E a audácia do desafio espicaça o viajante, que promete acompanhá-lo, tão depressa ele aconteça.
Há que atentar na história dos Encontros de Trancoso. Aqui há uns anos, numa feliz conjugação astral, veio à fala o presidente da câmara com dois cidadãos do mundo. Eram eles um brasileiro de lusas raízes, arquitecto e compositor entre mais dotes, e um tal Barbas de méritos prováveis de quem nada se apurou. Logo os três se deram conta de não existir no país uma entidade que congregasse os labores de artistas, filósofos, pensadores e cientistas. E consideraram Trancoso o lugar ideal para uma contínua reflexão sobre os males do planeta, através da Arte, da Ciência e das Novas Tecnologias. Os três criaram a FACTO, logo ali, como quem diz a Fundação para as Artes, Ciências e Tecnologias - Observatório. O objectivo da FACTO era a promoção de projectos de carácter transdisciplinar, transcultural, transnacional e intermediático. Seja lá isso o que for, em boa hora lhe deram nascimento, que assim veio a ter lugar o primeiro Encontro Internacional de Arte e Ciência, a que chamaram o Espírito da Descoberta. Um tal espírito visava promover um momento de informação e debate, gerando uma visão mais ampla, diversificada e profunda de algumas das mais fascinantes descobertas da ciência e das propostas da arte, questionando a sua natureza, os seus fins e o universo humano nelas envolvido. Perante o duvidoso jargão da propaganda, cresce ao viajante a muita perplexidade. Mas logo veio em apoio de tão peregrino evento uma procissão de aclamadores, entre eles um filósofo europeu, presidente da Associação Mundial de Críticos de Arte, e também a cabeça honorária do Tribunal Europeu do Ambiente.
Uma tal instituição, que anos atrás já naufragara na Bélgica por culpa dos governos que faltam aos compromissos, das multinacionais cuja bandeira é o dividendo, e de corrupções avulsas, achara por fim em Londres um porto de acolhimento. Foi nessa altura que o brasileiro-luso se tornou seu director. E os Encontros Internacionais de Arte e Ciência, já firmados em Trancoso, deram então lugar às sessões do Tribunal Europeu do Ambiente. O Espírito da Descoberta cedeu passo às Origens do Futuro, muito embora pareça ao viajante, em linguagem mais terrena, que à tal fome de aventuras visionárias se juntou aqui a mais simples vontade de comer.
(...)
Porém esse pouco dá trabalho. Não consta que renda votos, nem garante famas mediáticas a esta hidra delirante, que em cada terra mostra uma cabeça nova. Já se viu como em Trancoso é antiga a pecha dos visionários, dos troveiros utopistas que sonham com o 5º Império. Por isso vai ela erguer um museu às memórias do Bandarra, e já tem prometida uma catedral do tempo, assente em espirais vertiginosas. As castanhas desses soutos, único, real e específico padrão do município, vendem-nas os aldeãos ao desbarato, à mistura com a lama que trouxeram das encostas, deixando a mais-valia nas mãos do traficante. E acabaram englobadas no labéu da origem protegida dos Soitos da Lapa, em condição subalterna, por inépcia do concelho. Mas duas vezes por ano albergará Trancoso os Encontros do Tribunal Europeu do Ambiente, que hão-de colocá-lo nos mapas do mundo, nos caminhos da ciência, nas páginas dos jornais. O próximo, que não tarda, vai questionar As Origens do Futuro. E a audácia do desafio espicaça o viajante, que promete acompanhá-lo, tão depressa ele aconteça.
Há que atentar na história dos Encontros de Trancoso. Aqui há uns anos, numa feliz conjugação astral, veio à fala o presidente da câmara com dois cidadãos do mundo. Eram eles um brasileiro de lusas raízes, arquitecto e compositor entre mais dotes, e um tal Barbas de méritos prováveis de quem nada se apurou. Logo os três se deram conta de não existir no país uma entidade que congregasse os labores de artistas, filósofos, pensadores e cientistas. E consideraram Trancoso o lugar ideal para uma contínua reflexão sobre os males do planeta, através da Arte, da Ciência e das Novas Tecnologias. Os três criaram a FACTO, logo ali, como quem diz a Fundação para as Artes, Ciências e Tecnologias - Observatório. O objectivo da FACTO era a promoção de projectos de carácter transdisciplinar, transcultural, transnacional e intermediático. Seja lá isso o que for, em boa hora lhe deram nascimento, que assim veio a ter lugar o primeiro Encontro Internacional de Arte e Ciência, a que chamaram o Espírito da Descoberta. Um tal espírito visava promover um momento de informação e debate, gerando uma visão mais ampla, diversificada e profunda de algumas das mais fascinantes descobertas da ciência e das propostas da arte, questionando a sua natureza, os seus fins e o universo humano nelas envolvido. Perante o duvidoso jargão da propaganda, cresce ao viajante a muita perplexidade. Mas logo veio em apoio de tão peregrino evento uma procissão de aclamadores, entre eles um filósofo europeu, presidente da Associação Mundial de Críticos de Arte, e também a cabeça honorária do Tribunal Europeu do Ambiente.
Uma tal instituição, que anos atrás já naufragara na Bélgica por culpa dos governos que faltam aos compromissos, das multinacionais cuja bandeira é o dividendo, e de corrupções avulsas, achara por fim em Londres um porto de acolhimento. Foi nessa altura que o brasileiro-luso se tornou seu director. E os Encontros Internacionais de Arte e Ciência, já firmados em Trancoso, deram então lugar às sessões do Tribunal Europeu do Ambiente. O Espírito da Descoberta cedeu passo às Origens do Futuro, muito embora pareça ao viajante, em linguagem mais terrena, que à tal fome de aventuras visionárias se juntou aqui a mais simples vontade de comer.
(...)
domingo, 20 de setembro de 2009
A melhor garfada de Lisboa!
De António Lobo Antunes já cá cantam uma boa dúzia de romances e três livros de crónicas que foram uma pedrada, uma lição, uma epifania, um gosto no momento em que vieram. Chegou depois mais uma boa dúzia que são um labirinto, uma experimentação, um remexer dos lixos quotidianos desta vida.
A literatura portuguesa tem ali um bico-de-obra.
Os encartados da hermenêutica patinam, hesitantes sobre a pertinência da crítica psicanalítica. E na dúvida jogam pelo seguro: paus por baixo!
Os leitores têm cinquenta anos para desfazer as perplexidades, e entretanto o mundo é grande.
O autor cultiva a imagem, e vai subindo a parada. Mas certezas, certezinhas, ninguém tem. Nem ele próprio.
Há, porém, um outro bico-de-obra em Lobo Antunes, que em breve nos vai presentear com 500 páginas de revelações de alma, onde perpassam a guerra, as mulheres, a meninice, a doença, os vícios, o sexo, os traumas, as relações, e mesmo as tendências suicidas. Não consigo imaginar que interesse terá um leitor neste strip-tease. Nem sequer o próprio autor. Mas talvez as suas confidências sobre um colega de ofício guardem a chave do enigma:
Ele começou muito tarde, podia ser meu pai. Ele odeia-me, mas eu não tenho nenhum problema com ele, ele é que os tem comigo. Esta mulher do Saramago - acho esquisito apaixonar-se pelo Saramago por causa de um livro! - e veio a Lisboa de propósito por causa disso. Na altura ainda nos dávamos, e ele "eh pá, o que é que eu faço agora? É uma miúda mais nova do que a minha filha..."
Lembro-me do José Cardoso Pires dizer que o Saramago era o Namora dos anos oitenta, um boom bestial, críticas espantosas, mas lemos aquilo e é uma merda.
Não sei que pessoas lêem o Saramago, se são pessoas mais velhas, o que sei é que quem andava a escrever sobre o Saramago anda agora a escrever sobre mim.
Eu leio, e pasmo, sem entender o que deu a esta gente. Bem sei que a insânia nacional atingiu alturas pouco vistas. Mas não é sem um traço de vergonha que vejo um homem destes - caído agora no colo duma brasileira que pode ser sua neta! - a imitar as figuras dum adolescente patusco.
A literatura portuguesa tem ali um bico-de-obra.
Os encartados da hermenêutica patinam, hesitantes sobre a pertinência da crítica psicanalítica. E na dúvida jogam pelo seguro: paus por baixo!
Os leitores têm cinquenta anos para desfazer as perplexidades, e entretanto o mundo é grande.
O autor cultiva a imagem, e vai subindo a parada. Mas certezas, certezinhas, ninguém tem. Nem ele próprio.
Há, porém, um outro bico-de-obra em Lobo Antunes, que em breve nos vai presentear com 500 páginas de revelações de alma, onde perpassam a guerra, as mulheres, a meninice, a doença, os vícios, o sexo, os traumas, as relações, e mesmo as tendências suicidas. Não consigo imaginar que interesse terá um leitor neste strip-tease. Nem sequer o próprio autor. Mas talvez as suas confidências sobre um colega de ofício guardem a chave do enigma:
Ele começou muito tarde, podia ser meu pai. Ele odeia-me, mas eu não tenho nenhum problema com ele, ele é que os tem comigo. Esta mulher do Saramago - acho esquisito apaixonar-se pelo Saramago por causa de um livro! - e veio a Lisboa de propósito por causa disso. Na altura ainda nos dávamos, e ele "eh pá, o que é que eu faço agora? É uma miúda mais nova do que a minha filha..."
Lembro-me do José Cardoso Pires dizer que o Saramago era o Namora dos anos oitenta, um boom bestial, críticas espantosas, mas lemos aquilo e é uma merda.
Não sei que pessoas lêem o Saramago, se são pessoas mais velhas, o que sei é que quem andava a escrever sobre o Saramago anda agora a escrever sobre mim.
Eu leio, e pasmo, sem entender o que deu a esta gente. Bem sei que a insânia nacional atingiu alturas pouco vistas. Mas não é sem um traço de vergonha que vejo um homem destes - caído agora no colo duma brasileira que pode ser sua neta! - a imitar as figuras dum adolescente patusco.
A boa capa e o mau capelo
Era uma vez um rapaz que tinha fama e carreira, e uma voz e uma função e algum proveito. No jornalismo, na crónica, no relato, e na nossa vida de leitores e cidadãos.
Um dia decidiu ser escritor. Não trazia no bornal emoções novas, nem formas inovadoras, nem surpreendentes criatividades, nem os deleites misteriosos que a arte às vezes esconde, nem conteúdos particularmente edificantes, nem lições a melhorar o cânone. Por isso nada de novo acrescentou à paisagem.
Trocou de rótulo na imagem que já tinha, embrulhou o produto num marketing adequado, e ganhou uma respeitável quota de mercado.
Agora está confortavelmente sentado em cima dum milhão de livros vendidos em Portugal. Há-de ser conforto dele, que se contenta com pouco, mas não da literatura ou dos leitores. Porque um tal contentamento assenta numa só realidade e em variados equívocos.
A simples realidade é que o rapaz fez negócio. Quanto aos equívocos, um primeiro é pensar que os sucessos de mercado equivalem a literatura. Um segundo é confundir um escritor com um tipo que vende livros aos milhões. E um terceiro será imaginar que as novas ocupações lhe garantem o lugar e a função que já trazia, na vida dos leitores.
Miguel Sousa Tavares rendeu-se aos falsetes da pós-modernidade, num palco onde já sobravam figurantes. Trocou a boa capa por um mau capelo, o que entre nós é pecha muito antiga. E está no seu pleníssimo direito. Mas quem o lia a sério vai sentir-lhe a falta.
ADENDA: Os críticos literários não me aceitam na confraria dos escritores. Eu vendo muito e eles têm preconceitos contra quem vende muito em Portugal. (MST no PÚBLICO de hoje)
Decididamente, MST não compreende a questão, e isso mete-o num beco sem saída. Nem os críticos (que são pouco de fiar!) podem incensar a qualidade que não há, nem a sua bacoca vaidosice lhes pode tolerar a desconsideração. Resta-lhe, assim, a teoria da conspiração.
Um dia decidiu ser escritor. Não trazia no bornal emoções novas, nem formas inovadoras, nem surpreendentes criatividades, nem os deleites misteriosos que a arte às vezes esconde, nem conteúdos particularmente edificantes, nem lições a melhorar o cânone. Por isso nada de novo acrescentou à paisagem.
Trocou de rótulo na imagem que já tinha, embrulhou o produto num marketing adequado, e ganhou uma respeitável quota de mercado.
Agora está confortavelmente sentado em cima dum milhão de livros vendidos em Portugal. Há-de ser conforto dele, que se contenta com pouco, mas não da literatura ou dos leitores. Porque um tal contentamento assenta numa só realidade e em variados equívocos.
A simples realidade é que o rapaz fez negócio. Quanto aos equívocos, um primeiro é pensar que os sucessos de mercado equivalem a literatura. Um segundo é confundir um escritor com um tipo que vende livros aos milhões. E um terceiro será imaginar que as novas ocupações lhe garantem o lugar e a função que já trazia, na vida dos leitores.
Miguel Sousa Tavares rendeu-se aos falsetes da pós-modernidade, num palco onde já sobravam figurantes. Trocou a boa capa por um mau capelo, o que entre nós é pecha muito antiga. E está no seu pleníssimo direito. Mas quem o lia a sério vai sentir-lhe a falta.
ADENDA: Os críticos literários não me aceitam na confraria dos escritores. Eu vendo muito e eles têm preconceitos contra quem vende muito em Portugal. (MST no PÚBLICO de hoje)
Decididamente, MST não compreende a questão, e isso mete-o num beco sem saída. Nem os críticos (que são pouco de fiar!) podem incensar a qualidade que não há, nem a sua bacoca vaidosice lhes pode tolerar a desconsideração. Resta-lhe, assim, a teoria da conspiração.
sábado, 19 de setembro de 2009
Portugalmente (58)
(...)
Já lá vai, estrada fora, de regresso a Trancoso. Ao viajante apenas lhe compete olhar e ver, conforme já deixou dito. Porém às vezes cede-lhe a vontade a maus estados de alma, como agora. Tem anotado como a vida nestas terras, se mesquinha já era antes de entrar o país na Europa, não tem feito senão tornar-se mais escassa e deprimida. E o viajante vai a matutar nesta alegre compita de autarcas fantasistas, que rivalizam apenas em vaidades, e em erguer castelos de ilusões. Tudo o que pensam do futuro do país resume-se a mostrar obra, seja ela qual for, para cativar os votos em tempo de eleições. E aos eleitores parecem agradar tamanhos desconchavos, que apenas lhes garantem no futuro uma pobreza cada vez maior. Sendo os impostos cobrados na capital, lá lhes parece que saem de bolso alheio. E tanto melhor será um presidente, quanto mais dinheiro conseguir gastar.
Portugal já conheceu, ao longo da sua história, momentos de desvario. Foi ele o caso da Índia, quando uma casta de visionários trocou, a seu favor, a boa capa por um mau capelo. Lá foram à ventura o povo e o país, atraídos pelo cheiro da canela, pelo fogo-fátuo de epopeias miríficas. A catástrofe dos dois não tardou a chegar.
Depois veio o ouro brasileiro, eram naus a abarrotar. Mas o país e o povo, se já eram indigentes, na miséria continuaram. Nem um nem outro foram chamados ao banquete. Que a riqueza era do rei e dumas dúzias de comparsas, pagou facturas inglesas, comprou as graças de Roma.
Hoje, porém, chegada assim de improviso esta enxurrada dos fundos, vive o país em liberdade e o povo pode escolher. O resultado é o que se vê e atemoriza o viajante. Porque a democracia assim é uma mentira, cativa de caciques megalómanos que um povo triste eterniza no poder. Se for verdade que no pouco se vê o muito, como pensa o viajante, só Deus sabe o que andará por aí. Mas esta irrealidade extravagante apenas repete a história.
O burgo de Trancoso não sai mal deste confronto com os vizinhos. E na reforma administrativa que um pouco de realismo ditaria aos governantes, seria esta a cabeça dum município único, caso houvesse algum dia em Portugal políticos realistas. Enquanto sim e não, com a tarde a meio e o bom tempo a convidá-lo, o viajante meteu-se aos caminhos do concelho, para o conhecer por inteiro. Bastas vezes voltou a ver o que já tinha visto, pedras e giestas, e uns raros pinheirais de que o fogo se esqueceu. Uma ruralidade pobre e deprimida, traída pelos absurdos da economia moderna, pela ditadura dos números, sem armas nem forças para resistir ao abandono. Mas ficaram nos olhos do viajante os castanheiros da Broca, e os soitos dos Tamanhos, do Frechão e das Courelas, os de Souto Maior cujo nome não engana, e os da Aldeia de Santo Inácio que um dia se chamou Porcas, e os da Castanheira onde vive Manuel Cabreiro, e os do Terrenho que já tinha visitado, e os de Mendo Gordo, que ainda tem, sem o saber, uma estrada medieva, e os da Torre, a da casa das fidalgas, e os de Guilheiro onde não tinha chegado, e os de Sebadelhe onde voltou a passar. Se as castanhas do concelho não forem as melhores do mundo, como já se ouviu dizer, são pelo menos o único brasão que tem valor no mercado. E bem andaria a câmara da vila, seguindo o exemplo do edil António Bravo, que há cem anos fez plantar o parque municipal. Um presidente que o fosse de verdade mandava todos os dias o seu primeiro assessor correr por essas aldeias, a saber de cada um se já plantara na horta o castanheiro do dia. E se ao aldeão faltasse um pé de viveiro, logo lhe oferecia dois. Se ele já não tivesse forças para enxadar uma cova, mandava pôr em acção a máquina escavadora.
(...)
Já lá vai, estrada fora, de regresso a Trancoso. Ao viajante apenas lhe compete olhar e ver, conforme já deixou dito. Porém às vezes cede-lhe a vontade a maus estados de alma, como agora. Tem anotado como a vida nestas terras, se mesquinha já era antes de entrar o país na Europa, não tem feito senão tornar-se mais escassa e deprimida. E o viajante vai a matutar nesta alegre compita de autarcas fantasistas, que rivalizam apenas em vaidades, e em erguer castelos de ilusões. Tudo o que pensam do futuro do país resume-se a mostrar obra, seja ela qual for, para cativar os votos em tempo de eleições. E aos eleitores parecem agradar tamanhos desconchavos, que apenas lhes garantem no futuro uma pobreza cada vez maior. Sendo os impostos cobrados na capital, lá lhes parece que saem de bolso alheio. E tanto melhor será um presidente, quanto mais dinheiro conseguir gastar.
Portugal já conheceu, ao longo da sua história, momentos de desvario. Foi ele o caso da Índia, quando uma casta de visionários trocou, a seu favor, a boa capa por um mau capelo. Lá foram à ventura o povo e o país, atraídos pelo cheiro da canela, pelo fogo-fátuo de epopeias miríficas. A catástrofe dos dois não tardou a chegar.
Depois veio o ouro brasileiro, eram naus a abarrotar. Mas o país e o povo, se já eram indigentes, na miséria continuaram. Nem um nem outro foram chamados ao banquete. Que a riqueza era do rei e dumas dúzias de comparsas, pagou facturas inglesas, comprou as graças de Roma.
Hoje, porém, chegada assim de improviso esta enxurrada dos fundos, vive o país em liberdade e o povo pode escolher. O resultado é o que se vê e atemoriza o viajante. Porque a democracia assim é uma mentira, cativa de caciques megalómanos que um povo triste eterniza no poder. Se for verdade que no pouco se vê o muito, como pensa o viajante, só Deus sabe o que andará por aí. Mas esta irrealidade extravagante apenas repete a história.
O burgo de Trancoso não sai mal deste confronto com os vizinhos. E na reforma administrativa que um pouco de realismo ditaria aos governantes, seria esta a cabeça dum município único, caso houvesse algum dia em Portugal políticos realistas. Enquanto sim e não, com a tarde a meio e o bom tempo a convidá-lo, o viajante meteu-se aos caminhos do concelho, para o conhecer por inteiro. Bastas vezes voltou a ver o que já tinha visto, pedras e giestas, e uns raros pinheirais de que o fogo se esqueceu. Uma ruralidade pobre e deprimida, traída pelos absurdos da economia moderna, pela ditadura dos números, sem armas nem forças para resistir ao abandono. Mas ficaram nos olhos do viajante os castanheiros da Broca, e os soitos dos Tamanhos, do Frechão e das Courelas, os de Souto Maior cujo nome não engana, e os da Aldeia de Santo Inácio que um dia se chamou Porcas, e os da Castanheira onde vive Manuel Cabreiro, e os do Terrenho que já tinha visitado, e os de Mendo Gordo, que ainda tem, sem o saber, uma estrada medieva, e os da Torre, a da casa das fidalgas, e os de Guilheiro onde não tinha chegado, e os de Sebadelhe onde voltou a passar. Se as castanhas do concelho não forem as melhores do mundo, como já se ouviu dizer, são pelo menos o único brasão que tem valor no mercado. E bem andaria a câmara da vila, seguindo o exemplo do edil António Bravo, que há cem anos fez plantar o parque municipal. Um presidente que o fosse de verdade mandava todos os dias o seu primeiro assessor correr por essas aldeias, a saber de cada um se já plantara na horta o castanheiro do dia. E se ao aldeão faltasse um pé de viveiro, logo lhe oferecia dois. Se ele já não tivesse forças para enxadar uma cova, mandava pôr em acção a máquina escavadora.
(...)
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
Metástases
Num país que confundiu Cavaco Silva com um estadista, a peripécia das escutas de Belém não surpreende. É apenas um outro patamar da insânia, uma fasquia nova, em que o Supremo Magistrado da Nação assume o estatuto de intriguista de alcova.
Ao pé disto, Isaltinos, Valentins, Dias Loureiros, deputados Pretos, barões rotundos, senadores de papel, escroques variados, e os milhares de capangas que lhes vivem à sombra, são notas de roda-pé na história do PSD.
Para a vida do país, a questão reside apenas na vastidão das metástases.
Ao pé disto, Isaltinos, Valentins, Dias Loureiros, deputados Pretos, barões rotundos, senadores de papel, escroques variados, e os milhares de capangas que lhes vivem à sombra, são notas de roda-pé na história do PSD.
Para a vida do país, a questão reside apenas na vastidão das metástases.
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
O dito e o feito
De link em link, dei comigo num blogue que arvora uma bandeira patriota: Aqui não se diz mal de Portugal!
Há gente assim, nascida de cu para a lua. Da vida não conhece mais que o próprio umbigo. E confunde o gesto bíblico de picar aos bois, arada fora, com um tércio de bandarilhas, à tarde, no redondel.
Há gente assim, nascida de cu para a lua. Da vida não conhece mais que o próprio umbigo. E confunde o gesto bíblico de picar aos bois, arada fora, com um tércio de bandarilhas, à tarde, no redondel.
Tutelas
Em Portugal, o poder autárquico tem tutela legal, mas não tem tutela de mérito. Quer isto dizer que qualquer edil pode construir na sua terra a disneilândia, para divertir os munícipes. À tutela só é permitido esmiuçar-lhe as contas do projecto.
Se o país não tivesse outras questões maiores, esta só bastaria para lhe arruinar os orçamentos.
Se o país não tivesse outras questões maiores, esta só bastaria para lhe arruinar os orçamentos.
A inversa
Diz-se que a superfície coberta de todos os shoppings que Portugal construiu já é bastante para neles caber a população inteira.
Não há fome que não dê em fartura, o que é um bem. O pior é que a inversa também é verdadeira.
Não há fome que não dê em fartura, o que é um bem. O pior é que a inversa também é verdadeira.
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
Portugalmente (57)
(...)
Segue por montes e vales, por aldeias que não vêm no mapa, avista a outra face do Almansor com quem já fez amizades, cruza pontões de ribeiras ao fundo de encostas que o fogo descarnou, chega finalmente ao Carapito de que alguma vez falou e onde nunca pensou ir, deixou para trás um Mosteiro sem ver mosteiro nenhum, passou por quintas perdidas onde já ninguém habita, conheceu Sobral Pichorro, conheceu Forno Telheiro, e voltou ao mundo dos vivos quando parou nas cancelas duma passagem de nível, ao lado duma estação de comboios.
O viajante está perto de Celorico. E logo depois da ponte que atravessa o rio Mondego, dá de caras com um Centro de Investigação Gastronómica. Em bom rigor desconhece do que trata a descoberta, com tão apurado nome. Mas tinha-se esquecido do almoço e resolve tomar parte nas investigações. É dupla sorte a sua. Porque na margem bucólica do rio, entre salgueiros e freixos verdejantes, o que descobre é um restaurante aprimorado, e um comensal solitário. Matou a fome, o viajante, com sabores muito antigos. E com breves diligências ouviu do companheiro de repasto muito mais do que esperava saber. O restaurante é obra da câmara, e salvou da ruína um velho lagar de azeite abandonado. O trabalho é mais-que-perfeito, ninguém lhe discutirá o resultado. O pior é o que fica por dizer.
Se por junto povoarem o concelho uns oito mil habitantes já é muito. Os funcionários da câmara são trezentos e cinquenta. O orçamento anual rondará oito milhões. As dívidas acumuladas somam vinte e tal milhões. A cinco milhões vão as obrigações de curto prazo.
Com tantos milhões a zumbir-lhe nos ouvidos, o viajante lembra histórias já passadas. Gostava de conhecer o partido da câmara, mas o conversador iludiu a pergunta. Houve mudanças de partido, nas passadas eleições. E o presidente novo, ao entrar no gabinete, encontrou um ecrã cego no computador, e logo ao lado uma arma, um carregador de balas, e uma folha de papel em branco, para as últimas vontades. A primeira notícia que o telefone lhe trouxe vinha da companhia de electricidade. Ameaçava cortar os fornecimentos, por falta contumaz de pagamento.
O viajante dá consigo a imaginar enredos duvidosos, mas o filme ainda agora começou. Há uns anos fez a câmara uma escola profissional que nunca teve cursos nem alunos, hoje ninguém sabe ao certo a quem pertence. A empresa municipal tem a seu cargo esta cozinha de investigação, e um museu do queijo e do agricultor, e um centro de coordenação dos transportes, seja lá isso o que for, e um centro cultural com biblioteca e Internet, e um posto de turismo, e uma esplanada num jardim. O complexo das piscinas, apetrechado com sauna e banhos turcos, está encerrado há anos por não haver dinheiro para o manter. E o solar do queijo da serra, aí num palacete que vale a pena ver, já teve uma loja no Chiado lisboeta para levar ao mercado as produções locais. Esse tanto não pôde o viajante comprovar.
A realidade já ultrapassou a mais fértil fantasia. Mas o confidente junta ao rol de extravagâncias um hotel de cinco estrelas, que foi criado à custa do orçamento e se mantém encerrado. O viajante não quer acreditar. Paga a conta e vai à procura do hotel, não sabe o que há-de fazer da sua incredulidade. Passa por quatro rotundas, uma delas duplicada, e depois de muito mourejar vem a achar-se em frente do solar Corte-Real, e do irmão Brandão de Melo, na aldeia-fortaleza de Linhares. O bufão tinha razão. Os dois solares são agora a luxuosa pousada de Santa Eufêmia, fechada por enquanto aos turistas que hão-de vir, porque não houve dinheiro para lhe comprar a mobília. Querendo Deus, lá chegaremos um dia, confessa a hospedeira do turismo. E este viajante, incréu de milagres caprichosos, ouviu-lhe o desabafo piedoso e bateu em retirada.
(...)
Segue por montes e vales, por aldeias que não vêm no mapa, avista a outra face do Almansor com quem já fez amizades, cruza pontões de ribeiras ao fundo de encostas que o fogo descarnou, chega finalmente ao Carapito de que alguma vez falou e onde nunca pensou ir, deixou para trás um Mosteiro sem ver mosteiro nenhum, passou por quintas perdidas onde já ninguém habita, conheceu Sobral Pichorro, conheceu Forno Telheiro, e voltou ao mundo dos vivos quando parou nas cancelas duma passagem de nível, ao lado duma estação de comboios.
O viajante está perto de Celorico. E logo depois da ponte que atravessa o rio Mondego, dá de caras com um Centro de Investigação Gastronómica. Em bom rigor desconhece do que trata a descoberta, com tão apurado nome. Mas tinha-se esquecido do almoço e resolve tomar parte nas investigações. É dupla sorte a sua. Porque na margem bucólica do rio, entre salgueiros e freixos verdejantes, o que descobre é um restaurante aprimorado, e um comensal solitário. Matou a fome, o viajante, com sabores muito antigos. E com breves diligências ouviu do companheiro de repasto muito mais do que esperava saber. O restaurante é obra da câmara, e salvou da ruína um velho lagar de azeite abandonado. O trabalho é mais-que-perfeito, ninguém lhe discutirá o resultado. O pior é o que fica por dizer.
Se por junto povoarem o concelho uns oito mil habitantes já é muito. Os funcionários da câmara são trezentos e cinquenta. O orçamento anual rondará oito milhões. As dívidas acumuladas somam vinte e tal milhões. A cinco milhões vão as obrigações de curto prazo.
Com tantos milhões a zumbir-lhe nos ouvidos, o viajante lembra histórias já passadas. Gostava de conhecer o partido da câmara, mas o conversador iludiu a pergunta. Houve mudanças de partido, nas passadas eleições. E o presidente novo, ao entrar no gabinete, encontrou um ecrã cego no computador, e logo ao lado uma arma, um carregador de balas, e uma folha de papel em branco, para as últimas vontades. A primeira notícia que o telefone lhe trouxe vinha da companhia de electricidade. Ameaçava cortar os fornecimentos, por falta contumaz de pagamento.
O viajante dá consigo a imaginar enredos duvidosos, mas o filme ainda agora começou. Há uns anos fez a câmara uma escola profissional que nunca teve cursos nem alunos, hoje ninguém sabe ao certo a quem pertence. A empresa municipal tem a seu cargo esta cozinha de investigação, e um museu do queijo e do agricultor, e um centro de coordenação dos transportes, seja lá isso o que for, e um centro cultural com biblioteca e Internet, e um posto de turismo, e uma esplanada num jardim. O complexo das piscinas, apetrechado com sauna e banhos turcos, está encerrado há anos por não haver dinheiro para o manter. E o solar do queijo da serra, aí num palacete que vale a pena ver, já teve uma loja no Chiado lisboeta para levar ao mercado as produções locais. Esse tanto não pôde o viajante comprovar.
A realidade já ultrapassou a mais fértil fantasia. Mas o confidente junta ao rol de extravagâncias um hotel de cinco estrelas, que foi criado à custa do orçamento e se mantém encerrado. O viajante não quer acreditar. Paga a conta e vai à procura do hotel, não sabe o que há-de fazer da sua incredulidade. Passa por quatro rotundas, uma delas duplicada, e depois de muito mourejar vem a achar-se em frente do solar Corte-Real, e do irmão Brandão de Melo, na aldeia-fortaleza de Linhares. O bufão tinha razão. Os dois solares são agora a luxuosa pousada de Santa Eufêmia, fechada por enquanto aos turistas que hão-de vir, porque não houve dinheiro para lhe comprar a mobília. Querendo Deus, lá chegaremos um dia, confessa a hospedeira do turismo. E este viajante, incréu de milagres caprichosos, ouviu-lhe o desabafo piedoso e bateu em retirada.
(...)
Não anda nem desanda
Há vinte anos atrás, as luminárias que mandam no país condenaram a linha do Douro ao abandono, sem remorso nem vergonha. E em nome dum progresso que só existia nas suas cabeças e nos seus negócios, fecharam-na a partir do Pocinho.
Agora, a Comissão de Coordenação da Região Norte suspira pela recuperação do troço de Barca de Alva. O que é isso de 25 milhões, perante o que se perdeu?! Até dá para fazer negócios novos!
Os espanhóis é que não parecem pelos ajustes, mas talvez as coisas se componham. O que se não compõe é a nossa vida, que não anda nem desanda. Mas algum dia foi doutra maneira?!
da capo - 30
A PISTA DA ILHA CARAVELA
Aqui há trinta e tal anos, no dia em que os ecos da mudança começaram a alastrar pela Guiné adentro, numa espécie de maré enchente que as notícias da BBC traziam lá de longe, logo um vento de esperança agitou os corações cansados daquela gente toda. Pois se é da liberdade que estamos a falar, quem é que vai agora chegar fogo às peças e aos canhões? Parecia pertinente a questão.
Já há muito tempo que nada se mexia no teatro, a não ser os aviões e os caranguejos cegos, que trotavam nas bolanhas durante a maré vaza. Mesmo assim, era sempre com pezinhos de lã que o faziam, não fosse algum diabo tecê-las. E demónios tecedores era o que não faltava, a animar aquela paisagem. Que o diga o Chefe do Estado Maior da Força Aérea, que tinha na secretária da Avenida da Liberdade nove requerimentos de pilotos aviadores a pedirem dispensa de o ser. Aguardavam punição exemplar.
E foi assim, lembro-me como se fosse ontem, que o último bombardeamento aéreo aconteceu ao final da manhá do dia 9 de Maio. Lá fomos em voo rasante até ao objectivo, a encaixar na coluna a pancadaria inclemente da turbulência, seguia eu a asa do coronel comandante, um velho homem excelente, com o rabo mais calejado que um chimpanzé do mato. Do objectivo ergueram-se três cogumelos de fumarada negra. E depois disso não se voltou a ouvir por ali o estrondear dos canhões do império, suponho que se calaram de cansaço. Ou de velhice.
O tempo trouxe, aos poucos, a confirmação do que se vinha cogitando. Pois se é da liberdade que estamos a falar, quem vai agora chegar fogo às peças e aos canhões? E viu-se claramente que a guerra era acabada, quando começaram a passar ao largo, de gurupés apontado a casa, rebanhos de caravelas roídas pelos búzios, a adornar de fantasmas de almirantes de barbas e conquistadores zarolhos, de destroços de piratas e negreiros, de missionários comidos pelos cafres, de donatários cúpidos, de exploradores de sertões, e dos vagamundos de que falavam os livros antigos. Perante tais evidências não havia que duvidar, a guerra era passado.
De forma que alguém começou a pensar no melhor modo de trazer para casa os aviões, nem todos eram sucata centenária. Maneira expedita era fazê-lo saltitando, África acima, com a primeira escala na ilha do Sal. Quem dobrara, descendo, tantos bojadores, melhor os dobraria, já subindo. O problema eram as oitocentas milhas sobre o mar, e a garantia de passar por cima delas sem molhar os pés. De modo que se resolveu tirar a coisa a limpo e fazer o teste definitivo da autonomia dos aviões, com carga máxima de combustível, à máxima altitude utilizável, que eram treze mil e quinhentos metros.
E lá fui eu atrás do coronel comandante, o tal velho homem excelente de quem já se falou. Parecíamos dois sísifos condenados, até chegar aos quarenta mil pés. E por lá andámos a desenhar no ar triângulos minúsculos, a tropeçar em fronteiras, ainda agora esbarrámos no Senegal e já estamos à vertical da linha de Conacri, só o vasto mar dos Bijagós é que nos dava um pouco mais de folga.
Gorou-se, porém, a prova real do exercício. Pois que, a dada altura, sobressaltaram o chefe as estranhas cabriolas que o meu avião se pôs a desenhar. Desabituado de tamanhas alturas, o regulador automático começara a cortar-me o oxigénio da máscara. Como se nada fosse comigo, eu fui perdendo o controle do avião, mais tarde era a visão que já me ia falecendo. E foi o grande saber do velho comandante que o levou a colar-se atrás de mim, a ditar-me procedimentos que eu reproduzia em gestos desconexos, a conduzir-me à entrada da pista que eu já não descortinava, e a mandar-me despejar no asfalto a passarola, que acabou rebocada à mão para o estacionamento.
Tínhamos passado entretanto sobre a ilha Caravela, a norte dos Bijagós, naquele estranho exercício de bilhar às três tabelas. E eu tinha visto, no meio duma vastidão de coqueiros, uma enorme faixa de macadame, que me pareceu uma pista de aviões. Algum tempo mais tarde, pois que o tempo disponível tinha passado a ser muito, consegui o acordo dum piloto de helicópteros para o passeio turístico. Levámos connosco um jovem alferes médico, aterrámos numa praia semeada de bolas de nafta escura, e logo um grupo de negras primitivas apareceu a saudar-nos, entre risadas tímidas. Vestiam tangas de ráfia pré-históricas, que eu só conhecia das gravuras da etnografia ultramarina, e ali mesmo nos deram a admirar os peitos do império, assim abertamente expostos à carícia do sol, um deles apresentava um nódulo visível, que o jovem médico logo aproveitou para diagnosticar. E a pista enorme lá estava, enigma rectilíneo e vastíssimo, o piso ainda irregular, de macadame não compactado.
Ficou-me sempre vivo este mistério, que não se decifrou em trinta anos. Nunca ouvi uma palavra sobre ela. E a minha primeira explicação foi que um governador previdente pensou nela como garantia de retaguarda. Viessem as tropas a ser empurradas para o mar, às mãos do inimigo ou às dos políticos dementes de Lisboa, e ali achariam refúgio seguro.
Até que tropecei há tempos na chave do enigma, quando vi num jornal um par de onagros bem falantes, a escoicinhar contra a descolonização criminosa. Se colónias ainda houvesse, compravam eles por bom preço umas divisas de furriel amanuense, para não irem comandar em Madina do Boé uma companhia de atiradores. E pois que colónias já não há, por força as retomarão, para virem depois a descolonizá-las sem crime.
São os pais da Pátria em versão pós-moderna. E já têm na ilha Caravela uma testa de ponte. A Pátria, essa, está ansiosa por lhes inscrever o nome na parede do forte do Bom-Sucesso, ali ao lado da Torre de Belém. Sendo para quem é, há-de arranjar-se um espaço disponível. E talvez assim, calados os canhões, se venham a calar, também, as bestas.
Aqui há trinta e tal anos, no dia em que os ecos da mudança começaram a alastrar pela Guiné adentro, numa espécie de maré enchente que as notícias da BBC traziam lá de longe, logo um vento de esperança agitou os corações cansados daquela gente toda. Pois se é da liberdade que estamos a falar, quem é que vai agora chegar fogo às peças e aos canhões? Parecia pertinente a questão.
Já há muito tempo que nada se mexia no teatro, a não ser os aviões e os caranguejos cegos, que trotavam nas bolanhas durante a maré vaza. Mesmo assim, era sempre com pezinhos de lã que o faziam, não fosse algum diabo tecê-las. E demónios tecedores era o que não faltava, a animar aquela paisagem. Que o diga o Chefe do Estado Maior da Força Aérea, que tinha na secretária da Avenida da Liberdade nove requerimentos de pilotos aviadores a pedirem dispensa de o ser. Aguardavam punição exemplar.
E foi assim, lembro-me como se fosse ontem, que o último bombardeamento aéreo aconteceu ao final da manhá do dia 9 de Maio. Lá fomos em voo rasante até ao objectivo, a encaixar na coluna a pancadaria inclemente da turbulência, seguia eu a asa do coronel comandante, um velho homem excelente, com o rabo mais calejado que um chimpanzé do mato. Do objectivo ergueram-se três cogumelos de fumarada negra. E depois disso não se voltou a ouvir por ali o estrondear dos canhões do império, suponho que se calaram de cansaço. Ou de velhice.
O tempo trouxe, aos poucos, a confirmação do que se vinha cogitando. Pois se é da liberdade que estamos a falar, quem vai agora chegar fogo às peças e aos canhões? E viu-se claramente que a guerra era acabada, quando começaram a passar ao largo, de gurupés apontado a casa, rebanhos de caravelas roídas pelos búzios, a adornar de fantasmas de almirantes de barbas e conquistadores zarolhos, de destroços de piratas e negreiros, de missionários comidos pelos cafres, de donatários cúpidos, de exploradores de sertões, e dos vagamundos de que falavam os livros antigos. Perante tais evidências não havia que duvidar, a guerra era passado.
De forma que alguém começou a pensar no melhor modo de trazer para casa os aviões, nem todos eram sucata centenária. Maneira expedita era fazê-lo saltitando, África acima, com a primeira escala na ilha do Sal. Quem dobrara, descendo, tantos bojadores, melhor os dobraria, já subindo. O problema eram as oitocentas milhas sobre o mar, e a garantia de passar por cima delas sem molhar os pés. De modo que se resolveu tirar a coisa a limpo e fazer o teste definitivo da autonomia dos aviões, com carga máxima de combustível, à máxima altitude utilizável, que eram treze mil e quinhentos metros.
E lá fui eu atrás do coronel comandante, o tal velho homem excelente de quem já se falou. Parecíamos dois sísifos condenados, até chegar aos quarenta mil pés. E por lá andámos a desenhar no ar triângulos minúsculos, a tropeçar em fronteiras, ainda agora esbarrámos no Senegal e já estamos à vertical da linha de Conacri, só o vasto mar dos Bijagós é que nos dava um pouco mais de folga.
Gorou-se, porém, a prova real do exercício. Pois que, a dada altura, sobressaltaram o chefe as estranhas cabriolas que o meu avião se pôs a desenhar. Desabituado de tamanhas alturas, o regulador automático começara a cortar-me o oxigénio da máscara. Como se nada fosse comigo, eu fui perdendo o controle do avião, mais tarde era a visão que já me ia falecendo. E foi o grande saber do velho comandante que o levou a colar-se atrás de mim, a ditar-me procedimentos que eu reproduzia em gestos desconexos, a conduzir-me à entrada da pista que eu já não descortinava, e a mandar-me despejar no asfalto a passarola, que acabou rebocada à mão para o estacionamento.
Tínhamos passado entretanto sobre a ilha Caravela, a norte dos Bijagós, naquele estranho exercício de bilhar às três tabelas. E eu tinha visto, no meio duma vastidão de coqueiros, uma enorme faixa de macadame, que me pareceu uma pista de aviões. Algum tempo mais tarde, pois que o tempo disponível tinha passado a ser muito, consegui o acordo dum piloto de helicópteros para o passeio turístico. Levámos connosco um jovem alferes médico, aterrámos numa praia semeada de bolas de nafta escura, e logo um grupo de negras primitivas apareceu a saudar-nos, entre risadas tímidas. Vestiam tangas de ráfia pré-históricas, que eu só conhecia das gravuras da etnografia ultramarina, e ali mesmo nos deram a admirar os peitos do império, assim abertamente expostos à carícia do sol, um deles apresentava um nódulo visível, que o jovem médico logo aproveitou para diagnosticar. E a pista enorme lá estava, enigma rectilíneo e vastíssimo, o piso ainda irregular, de macadame não compactado.
Ficou-me sempre vivo este mistério, que não se decifrou em trinta anos. Nunca ouvi uma palavra sobre ela. E a minha primeira explicação foi que um governador previdente pensou nela como garantia de retaguarda. Viessem as tropas a ser empurradas para o mar, às mãos do inimigo ou às dos políticos dementes de Lisboa, e ali achariam refúgio seguro.
Até que tropecei há tempos na chave do enigma, quando vi num jornal um par de onagros bem falantes, a escoicinhar contra a descolonização criminosa. Se colónias ainda houvesse, compravam eles por bom preço umas divisas de furriel amanuense, para não irem comandar em Madina do Boé uma companhia de atiradores. E pois que colónias já não há, por força as retomarão, para virem depois a descolonizá-las sem crime.
São os pais da Pátria em versão pós-moderna. E já têm na ilha Caravela uma testa de ponte. A Pátria, essa, está ansiosa por lhes inscrever o nome na parede do forte do Bom-Sucesso, ali ao lado da Torre de Belém. Sendo para quem é, há-de arranjar-se um espaço disponível. E talvez assim, calados os canhões, se venham a calar, também, as bestas.
terça-feira, 15 de setembro de 2009
Elite delinquente, dum regime marginal, dum estado pária
O facto é surpreendente. Mas ainda hoje há em Portugal espíritos fantasistas, a sustentar que a guerra das colónias estava praticamente ganha, e que os "militares de Abril" foram um bando de cobardes, que entregaram o eldorado ao comunismo internacional.
Já se sabia que Portugal emergira dos destroços do império em situação de naufrágio. Mas ainda não era conhecida a profundidade da insânia a que o regime fascista conduzia o país. Culpou-se Marcelo Caetano de indecisão, que afinal não existiu. A sua solução para a questão colonial era indiscutivelmente militar.
A abertura do Arquivo Histórico Militar e do Arquivo do Secretariado-Geral da Defesa Nacional permitiu aos investigadores Aniceto Afonso e Matos Gomes lançar uma luz nova sobre o assunto.
A partir de 1968, sabe-o bem quem por lá andou, a Força Aérea Sul-africana prestava apoio logístico e de transporte às tropas portuguesas em Angola. Havia helicópteros directamente empenhados em operações, e a Força Aérea Portuguesa tinha ao serviço numerosas aeronaves cedidas pela África do Sul.
Em 4 de Março de 1970, esse tipo de apoio táctico transformou-se numa aliança formal. Numa reunião havida em Pretória nessa data, as delegações militares portuguesa e sul-africana analisaram a situação em Angola e Moçambique. E em face dos fracos resultados obtidos pelo esforço de colaboração anterior, o tenente-general Frazier propôs um plano de defesa para a África Austral, que estabeleça as normas de utilização das tropas disponíveis de forma coordenada e planeada, para fazer face ao inimigo comum. Era o Exercício Alcora.
O aprofundamento da aliança, e o acordo sobre o Exercício Alcora, foi assinado na reunião de 14 de Outubro de 1970, pelo coronel Rocha Simões, da Secretaria-Geral da Defesa Nacional, e pelo brigadeiro Greyvenstein, do Ministério da Defesa sul-africano. A Rodésia de Ian Smith juntar-se-ia à aliança na reunião seguinte, a 30 de Março de 1971. Nessa reunião foram definidos os territórios Alcora, hoje repartidos por cinco estados: África do Sul, Angola, Moçambique, Namíbia e Zimbabwe.
Há 7 actas, de 7 reuniões (duas por ano), alternando entre Lisboa e Pretória. Em Novembro de 1972, em Lisboa, foi definido o conceito estratégico da aliança. As ameaças são o comunismo e o nacionalismo africano. E o objectivo é assegurar a inviolabilidade individual dos territórios Alcora, pela eliminação da subversão. É decidido organizar uma força estratégica constituída por meios aéreos de ataque e forças terrestres altamente móveis, que assegurem uma intervenção oportuna e eficiente. A uma adequada propaganda caberá convencer as nações africanas e o mundo livre de que a sua própria sobrevivência está sendo ameaçada na África Austral.
Em Outubro de 1973 é firmado o acordo entre os Ministérios da Defesa de Portugal e da África do Sul para a criação de uma Organização Permanente de Planeamento Alcora (PAPO). E na sexta reunião de alto nível, em Salisbúria, logo em Novembro seguinte, avançou-se no sentido de um exército comum, com Quartel-General sedeado em Pretória, sob o comando do general sul-africano Clifton.
O QG deveria entrar em funções em Janeiro de 1974. Mas a demora na nomeação dos representantes portugueses e rodesianos atrasou o processo. Pressionada pelo evoluir da situação, a África do Sul assume claramente a iniciativa e os encargos da aliança. E nessa reunião manifesta-se disposta a mobilizar cem mil soldados brancos para as brigadas mistas, prontas para intervir em qualquer ponto de Angola e Moçambique. De Portugal reclamava apenas o empenhamento de algumas companhias de comandos e pára-quedistas.
Em 8 de Março de 1974, o ministério português das Finanças contrai junto do South African Reserve Bank um empréstimo de 150 milhões de rands, para compra de material de guerra.
O governo de Lisboa debatia-se com uma dupla contradição. Enquanto membro fundador da NATO, não podia integrar uma aliança formal com dois estados votados ao ostracismo internacional. E não se vê como conciliar uma tal política, racista e discriminatória, com a doutrina do Estado Novo, de um mítico país pluricontinental e multirracial.
Em 24 de Junho de 1974, a 7ª reunião prevista para Lisboa realizou-se em Pretória, sendo a delegação portuguesa chefiada pelo gen. Bastos Machado. Na situação resultante do 25 de Abril, e instado pelos restantes comparsas, o general afirmou que o objectivo do governo português era obter um cessar-fogo, para negociações com os nacionalistas africanos. E considerou conveniente manter o segredo e suspender quaisquer acções conjuntas, mormente em Moçambique.
Em Maio de 1975 houve encontros em Lisboa, para analisar a devolução de grandes quantidades de material e equipamentos "emprestados" a Portugal. E o Exercício Alcora conheceu o fim, com a independência das colónias portuguesas.
O Zimbabwe tornou-se independente em 1980.
O apartheid sul-africano caiu em 1991.
A invasão de Angola em 1975, e o papel sul-africano nas guerras civis da UNITA e da RENAMO, ganha assim nova clareza.
Sem apoio de retaguarda, a orgia sanguinária da RENAMO exauriu-se em 1992.
E a guerra civil angolana só terminou quando Jonas Savimbi foi abatido no leste de Angola, descartado pela CIA.
Em 1995, o marechal Costa Gomes fez uma enigmática referência a uma misteriosa "arma invencível" da África do Sul. E mais tarde, na Comissão Verdade e Reconciliação, foi dito que havia um programa de miniaturização de armas nucleares tácticas na África do Sul, em colaboração com Israel.
A Guiné era, neste contexto, um caso reconhecidamente insustentável e perdido. Mas o efeito-dominó arrastaria Angola e Moçambique, o que era incompatível com os interesses do regime, e com os compromissos de Portugal junto dos seus dois comparsas. Por isso o gen. Bettencourt Rodrigues, em Setembro de 1973, marchou para Bissau com ordens de "resistir até à exaustão".
NOTA: Tudo isto ajuda a esclarecer o estranho facto de o Movimento dos Capitães não ter sido oportunamente jugulado pela PIDE. A insânia do regime levou a outro critério: o último a sair que apague a luz!
Mais equívocos - 1
Há guerra na capoeira por causa do TGV, mas não pelas boas razões. Porque a questão fundamental não está em saber se a ligação Lisboa-Madrid deve ser construída ou não. A primeira prioridade portuguesa, quando se fala do TGV, é a ligação à Europa, é a substituição urgente dum Sud-Expresso centenário, tornado hoje impraticável, ineficaz e lôbrego. Ora essa ligação directa à Europa não acontecerá passando por Madrid.
Um viajante que parta de Lisboa (e mais ainda do Porto) para o centro da Europa, mais depressa apanhará um avião, do que um comboio que passa por Madrid, e deriva para Valladolid, e só depois para Irun. A rota directa e eficaz está estabelecida há muito, e passa por Vilar Formoso, Salamanca, Valladolid, etc.
Por outro lado, a linha Lisboa-Madrid serve mais Madrid do que Lisboa. Acentua a centralidade ibérica da capital espanhola. E Lisboa passa a ser mais um dos vértices do polígono ibérico, tal como o são Sevilha, Valência, Bilbau, Barcelona e A Coruña.
Das numerosas linhas de TGV previstas pelos ilustres negociadores portugueses, uma só, e fundamental, lhes escapou: era a que ligaria o país à Europa. Esse equívoco deixou aos espanhóis o campo aberto para não construirem nenhuma via de alta velocidade entre Valladolid e a fronteira de Vilar Formoso.
Ligar o Porto a Vigo, e Faro a Huelva, e Lisboa a Madrid e mesmo Lisboa ao Porto, são problemas acessórios, quando se fala do TGV. Porque o grande erro está feito. Nem tem remédio, nem desgraçadamente causa surpresa.
Um viajante que parta de Lisboa (e mais ainda do Porto) para o centro da Europa, mais depressa apanhará um avião, do que um comboio que passa por Madrid, e deriva para Valladolid, e só depois para Irun. A rota directa e eficaz está estabelecida há muito, e passa por Vilar Formoso, Salamanca, Valladolid, etc.
Por outro lado, a linha Lisboa-Madrid serve mais Madrid do que Lisboa. Acentua a centralidade ibérica da capital espanhola. E Lisboa passa a ser mais um dos vértices do polígono ibérico, tal como o são Sevilha, Valência, Bilbau, Barcelona e A Coruña.
Das numerosas linhas de TGV previstas pelos ilustres negociadores portugueses, uma só, e fundamental, lhes escapou: era a que ligaria o país à Europa. Esse equívoco deixou aos espanhóis o campo aberto para não construirem nenhuma via de alta velocidade entre Valladolid e a fronteira de Vilar Formoso.
Ligar o Porto a Vigo, e Faro a Huelva, e Lisboa a Madrid e mesmo Lisboa ao Porto, são problemas acessórios, quando se fala do TGV. Porque o grande erro está feito. Nem tem remédio, nem desgraçadamente causa surpresa.
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
As Lições da Ilha da Páscoa
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
Perdida na imensidão do Oceano Pacífico, a cerca de 4.000 Km da costa chilena e a 2.000 da ilha mais próxima, a remota Ilha da Páscoa é o exemplo quase perfeito de um sistema económico e civilizacional isolado. Nela aconteceram coisas extraordinárias, que ainda hoje deixam intrigados os investigadores, etnólogos, arqueólogos e sociólogos.
A ilha foi descoberta para o mundo por um holandês, em 1722, no dia de Páscoa. E logo impressionou os seus descobridores: estava pejada de estátuas gigantes - os moais - com mais de 10 metros de altura, talhadas em pedra. Umas alinhadas em frente das praias, outras espalhadas pela ilha, outras que pareciam ter sido abandonadas a meio do transporte. Finalmente havia algumas ainda a ser talhadas no seio da rocha mãe, deixadas a meio do corte pelo estatuário.
Este cenário parecia traduzir um abandono repentino do local, como um grande plano que foi deixado a meio. Sucederam-se as interrogações: quem talhou as estátuas, por que razões foram esculpidas, como eram transportadas com o seu peso enorme (a maior tinha 270 toneladas!)? Não havia árvores à vista, a sugerir a utilização de alavancas ou engenhos, nem fibras vegetais que denunciassem a produção de cordame. Homens fortes e numerosos teriam sido necessários para tais tarefas! Mas essa imagem entrava em contradição com os nativos encontrados pelos descobridores: eram em número escasso, e fracos, e mal alimentados, e pouco activos.
Logo se aventaram hipóteses, chegando mesmo a falar-se da intervenção de extraterrestres. Mas foi Jared Diamond, no seu famoso best-seller “Colapso”, que trouxe uma interpretação para o que terá sucedido. A Ilha da Páscoa foi colonizada por povos oriundos da Polinésia que ali chegaram, nos seus pequenos barcos, ao sabor das correntes e dos ventos. Encontraram uma ilha densamente arborizada e nela prosperaram, tendo chegado a ser uns 30.000. A floresta dava-lhes lenha para se aquecerem, e abrigava aves e animais que serviam de alimento. Além disso fornecia-lhes madeira para construírem barcos de pesca, e fabricarem as alavancas e os rolos com que transportavam as estátuas.
Mas a exploração intensiva da floresta levou ao seu esgotamento. Os habitantes não fizeram a necessária reposição, o isolamento fez o resto, e a civilização colapsou. Apenas os moais nos permitem hoje reconstituir a tragédia ocorrida e extrair algumas lições:
1) O crescimento exponencial da utilização dos recursos pode levar ao seu rápido esgotamento.
2) Uma civilização pode extinguir-se, quando se extingue o seu principal recurso.
3) As coisas podem passar-se de repente e sem aviso.
Certamente que o abandono do último moai não terá coincidido com o corte da última árvore. Terá acontecido muito antes, quando a floresta escasseou, o alimento se tornou exíguo, e os clãs começaram a disputar a posse dos recursos que desapareciam. Este terá sido o tempo de uma crise profunda e angustiante, em que a população da Ilha se reduziu pela Guerra, pela Fome, pela Peste e pela Morte.
No mundo globalizado e voraz em que vivemos, isolado na imensidão do Cosmos, o nosso planeta é uma espécie de Ilha da Páscoa. A floresta que a natureza ofereceu aos pascoais representa os recursos da nossa energia fóssil, o petróleo em particular. E o mundo, indiferente aos avisos da história, continua a construir, um pouco por toda a parte, os seus moais. Atente-se ao que se passa no Dubai. E, com alguma perspicácia, talvez os identifiquemos à nossa porta.
O que aconteceu na Ilha da Páscoa foi uma tragédia para os habitantes. Mas esta história tem apenas o valor de uma metáfora, porventura não mais impressionante de que a história do “Lobo e dos três porquinhos”.
E como em tempos de crise não é agradável falar de tragédias, o melhor é promover a comédia. Voltemos, confiados, ao trabalho, que o combate pela retoma não pode esperar. Se deixarmos de talhar os nossos moais, que mais nos restará para fazer?!
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
Perdida na imensidão do Oceano Pacífico, a cerca de 4.000 Km da costa chilena e a 2.000 da ilha mais próxima, a remota Ilha da Páscoa é o exemplo quase perfeito de um sistema económico e civilizacional isolado. Nela aconteceram coisas extraordinárias, que ainda hoje deixam intrigados os investigadores, etnólogos, arqueólogos e sociólogos.
A ilha foi descoberta para o mundo por um holandês, em 1722, no dia de Páscoa. E logo impressionou os seus descobridores: estava pejada de estátuas gigantes - os moais - com mais de 10 metros de altura, talhadas em pedra. Umas alinhadas em frente das praias, outras espalhadas pela ilha, outras que pareciam ter sido abandonadas a meio do transporte. Finalmente havia algumas ainda a ser talhadas no seio da rocha mãe, deixadas a meio do corte pelo estatuário.
Este cenário parecia traduzir um abandono repentino do local, como um grande plano que foi deixado a meio. Sucederam-se as interrogações: quem talhou as estátuas, por que razões foram esculpidas, como eram transportadas com o seu peso enorme (a maior tinha 270 toneladas!)? Não havia árvores à vista, a sugerir a utilização de alavancas ou engenhos, nem fibras vegetais que denunciassem a produção de cordame. Homens fortes e numerosos teriam sido necessários para tais tarefas! Mas essa imagem entrava em contradição com os nativos encontrados pelos descobridores: eram em número escasso, e fracos, e mal alimentados, e pouco activos.
Logo se aventaram hipóteses, chegando mesmo a falar-se da intervenção de extraterrestres. Mas foi Jared Diamond, no seu famoso best-seller “Colapso”, que trouxe uma interpretação para o que terá sucedido. A Ilha da Páscoa foi colonizada por povos oriundos da Polinésia que ali chegaram, nos seus pequenos barcos, ao sabor das correntes e dos ventos. Encontraram uma ilha densamente arborizada e nela prosperaram, tendo chegado a ser uns 30.000. A floresta dava-lhes lenha para se aquecerem, e abrigava aves e animais que serviam de alimento. Além disso fornecia-lhes madeira para construírem barcos de pesca, e fabricarem as alavancas e os rolos com que transportavam as estátuas.
Mas a exploração intensiva da floresta levou ao seu esgotamento. Os habitantes não fizeram a necessária reposição, o isolamento fez o resto, e a civilização colapsou. Apenas os moais nos permitem hoje reconstituir a tragédia ocorrida e extrair algumas lições:
1) O crescimento exponencial da utilização dos recursos pode levar ao seu rápido esgotamento.
2) Uma civilização pode extinguir-se, quando se extingue o seu principal recurso.
3) As coisas podem passar-se de repente e sem aviso.
Certamente que o abandono do último moai não terá coincidido com o corte da última árvore. Terá acontecido muito antes, quando a floresta escasseou, o alimento se tornou exíguo, e os clãs começaram a disputar a posse dos recursos que desapareciam. Este terá sido o tempo de uma crise profunda e angustiante, em que a população da Ilha se reduziu pela Guerra, pela Fome, pela Peste e pela Morte.
No mundo globalizado e voraz em que vivemos, isolado na imensidão do Cosmos, o nosso planeta é uma espécie de Ilha da Páscoa. A floresta que a natureza ofereceu aos pascoais representa os recursos da nossa energia fóssil, o petróleo em particular. E o mundo, indiferente aos avisos da história, continua a construir, um pouco por toda a parte, os seus moais. Atente-se ao que se passa no Dubai. E, com alguma perspicácia, talvez os identifiquemos à nossa porta.
O que aconteceu na Ilha da Páscoa foi uma tragédia para os habitantes. Mas esta história tem apenas o valor de uma metáfora, porventura não mais impressionante de que a história do “Lobo e dos três porquinhos”.
E como em tempos de crise não é agradável falar de tragédias, o melhor é promover a comédia. Voltemos, confiados, ao trabalho, que o combate pela retoma não pode esperar. Se deixarmos de talhar os nossos moais, que mais nos restará para fazer?!
País precário
Portugal nasceu do capricho dum príncipe. E dele nem os portugueses fizeram um país, nem geraram uma elite que soubesse dirigi-los, em lugar de os cavalgar.
Ficaram com a paisagem, que povoaram de desespero. E inventaram esta loucura mansa, porque é inimputável e ilude a realidade. Precariamente sobrevivem nela.
Ficaram com a paisagem, que povoaram de desespero. E inventaram esta loucura mansa, porque é inimputável e ilude a realidade. Precariamente sobrevivem nela.
Portugalmente (56)
(...)
No seu deambular prefere o viajante estradas secundárias, que são as que melhor mostram o mundo. E foi seguindo por elas que alcançou Aguiar, uma vila adormecida à beira do alto Távora. Tem a mesma população medíocre da Meda, mas carece de qualquer acento urbano e nem sequer produz vinho. Com vagar a foi atravessando, para a não tirar do sossego, até dar com o sobressalto da Senhora do Castelo.
O morro é um lugar antigo. Já existiu nele um castro, e mais tarde um castelejo, hoje sobrevive apenas algum resto duma alcáçova mesquinha. Tem lá dentro uma cisterna de cimento, fizeram-na há muitos anos para distribuição de água e já perdeu serventia. Ao lado da cisterna abandonada, em cima duns pedregulhos, sobreleva uma figura tosca, a imagem perplexa duma santa a abrir os braços ao mundo.
Em redor dos vestígios de muralha estende-se um logradouro baldio, a despenhar-se na encosta. Retoiçam nele as galinhas vadias da vizinhança, tomam o sol uns gatos mandriões, nas escadas dum cruzeiro. Aqui, ali, uns carvalhos anões, duas robínias tristes, uma capela isolada. Ao longe alcança a vista uma pedreira a esventrar uma serra, ouvem-se máquinas a ruminar gravilhas. Há uma coluna de fumo no horizonte, pomares abandonados numa várzea, uma piscina caseira debaixo dum salgueiro, nas costas duma vivenda. É este o desamparo e a inocência da Senhora do Castelo de Aguiar, que em seu sossego estaria, não tivesse a câmara local decidido transformá-la em ex-libris.
O viajante subiu pela direita uma rua entre casas, passou ao lado duma torre antiga. Alcançou o cruzeiro onde dormitam gatos, voltou-se para a cidadela, e lá trepou esforçado uma vereda, até aos braços da santa. Apreciada a paisagem voltou pelo mesmo caminho, e retomou a estrada que deu a volta ao outeiro e já começa a descer. A via tem seis metros de largura. E a acompanhar a descida, à mão esquerda da estrada, segue um passeio de metro.
Porque faltava um passeio à direita, onde a pendente é abrupta, mandou a câmara chamar um paisagista. E logo ele plantou, encosta abaixo, uma centena de metros de passadiço metálico, com dois metros de largura, apoiada em pilastras de cinco metros de altura, a acompanhar a estrada. Com tal cinturão de ferro, iluminada por potentes projectores, a Senhora do Castelo ganhou as proporções dum monumento. E o viajante perdeu uns minutos na visita, mas ganhou muito mais em vertigens alpinas.
Ao fundo da ladeira, num largo mesquinho, sentou-se o viajante à sombra duma olaia. O funcionário da sala da Internet está encostado à ombreira, ao cimo duma escada. Vê-se mesmo que espera um cibernauta que o salve do desamparo em que naufraga. Mas este viajante fica a olhar cá de baixo o viaduto de ferro e nada pode fazer. Outras são as navegações em que se perde, a duvidar do que os seus olhos vêem, a perguntar se andará no seu juízo. Do solitário fica a saber que a câmara local é do mesmo partido há trinta anos, desde que há eleições. E outras coisas que ver em Aguiar, só se for o complexo das piscinas e o estádio municipal, na estrada que além vai.
Lá segue o viajante estrada fora, a queixar-se do sol. Falassem eles e quem mais se queixava eram estes pomares, do desmazelo e da sequia. Que aos munícipes não cabe em Aguiar razão de queixa maior. Só na piscina interior, aquecida em lhe chegando o tempo, cabe metade do concelho. A outra metade tem por sua conta os vastíssimos terraços da piscina de exterior, e os courts de ténis anexos, e os campos de multi-jogos, e um restaurante para almoçar quando lhe apetecer.
O viajante dirigiu-se às hospedeiras de serviço, que eram três na recepção, deu uma volta pelas instalações, e sem surpresa maior as encontrou desertas. Do outro lado da estrada, numa azáfama de ferros, anda um empreiteiro a rematar as bancadas do estádio municipal. É o que lhe está fazendo falta, que já tem um alto muro a circundá-lo, e um verdejante relvado, e as pistas de meio-fundo, e quatro torres de poderosos holofotes, para torneios vespertinos.
O viajante não sabe quanto custa manter umas tais instalações, nem conhece quem lho diga. Por muito esforço que faça, não lhes antevê utentes nem futuro. E acaba a dar razão ao Unamuno, sobre ser Portugal um país de suicidas. Aturdido pela enxurrada dos fundos, que lhe toldam a memória e lhe fizeram esquecer a miséria, diverte-se a construir estes conventos de mafra, enquanto os ingleses compram o vale da Vilariça para as vinhas do seu benefício, os espanhóis se apoderam do montado alentejano e plantam olivais, e os leoneses tomam a seu cargo rebanhos inteiros do planalto mirandês. Em tais contradições deixa o viajante para trás uma Aguiar adormecida. Ainda bem que há um programa a exigir-lhe cumprimento, o seu próximo destino é Celorico.
(...)
No seu deambular prefere o viajante estradas secundárias, que são as que melhor mostram o mundo. E foi seguindo por elas que alcançou Aguiar, uma vila adormecida à beira do alto Távora. Tem a mesma população medíocre da Meda, mas carece de qualquer acento urbano e nem sequer produz vinho. Com vagar a foi atravessando, para a não tirar do sossego, até dar com o sobressalto da Senhora do Castelo.
O morro é um lugar antigo. Já existiu nele um castro, e mais tarde um castelejo, hoje sobrevive apenas algum resto duma alcáçova mesquinha. Tem lá dentro uma cisterna de cimento, fizeram-na há muitos anos para distribuição de água e já perdeu serventia. Ao lado da cisterna abandonada, em cima duns pedregulhos, sobreleva uma figura tosca, a imagem perplexa duma santa a abrir os braços ao mundo.
Em redor dos vestígios de muralha estende-se um logradouro baldio, a despenhar-se na encosta. Retoiçam nele as galinhas vadias da vizinhança, tomam o sol uns gatos mandriões, nas escadas dum cruzeiro. Aqui, ali, uns carvalhos anões, duas robínias tristes, uma capela isolada. Ao longe alcança a vista uma pedreira a esventrar uma serra, ouvem-se máquinas a ruminar gravilhas. Há uma coluna de fumo no horizonte, pomares abandonados numa várzea, uma piscina caseira debaixo dum salgueiro, nas costas duma vivenda. É este o desamparo e a inocência da Senhora do Castelo de Aguiar, que em seu sossego estaria, não tivesse a câmara local decidido transformá-la em ex-libris.
O viajante subiu pela direita uma rua entre casas, passou ao lado duma torre antiga. Alcançou o cruzeiro onde dormitam gatos, voltou-se para a cidadela, e lá trepou esforçado uma vereda, até aos braços da santa. Apreciada a paisagem voltou pelo mesmo caminho, e retomou a estrada que deu a volta ao outeiro e já começa a descer. A via tem seis metros de largura. E a acompanhar a descida, à mão esquerda da estrada, segue um passeio de metro.
Porque faltava um passeio à direita, onde a pendente é abrupta, mandou a câmara chamar um paisagista. E logo ele plantou, encosta abaixo, uma centena de metros de passadiço metálico, com dois metros de largura, apoiada em pilastras de cinco metros de altura, a acompanhar a estrada. Com tal cinturão de ferro, iluminada por potentes projectores, a Senhora do Castelo ganhou as proporções dum monumento. E o viajante perdeu uns minutos na visita, mas ganhou muito mais em vertigens alpinas.
Ao fundo da ladeira, num largo mesquinho, sentou-se o viajante à sombra duma olaia. O funcionário da sala da Internet está encostado à ombreira, ao cimo duma escada. Vê-se mesmo que espera um cibernauta que o salve do desamparo em que naufraga. Mas este viajante fica a olhar cá de baixo o viaduto de ferro e nada pode fazer. Outras são as navegações em que se perde, a duvidar do que os seus olhos vêem, a perguntar se andará no seu juízo. Do solitário fica a saber que a câmara local é do mesmo partido há trinta anos, desde que há eleições. E outras coisas que ver em Aguiar, só se for o complexo das piscinas e o estádio municipal, na estrada que além vai.
Lá segue o viajante estrada fora, a queixar-se do sol. Falassem eles e quem mais se queixava eram estes pomares, do desmazelo e da sequia. Que aos munícipes não cabe em Aguiar razão de queixa maior. Só na piscina interior, aquecida em lhe chegando o tempo, cabe metade do concelho. A outra metade tem por sua conta os vastíssimos terraços da piscina de exterior, e os courts de ténis anexos, e os campos de multi-jogos, e um restaurante para almoçar quando lhe apetecer.
O viajante dirigiu-se às hospedeiras de serviço, que eram três na recepção, deu uma volta pelas instalações, e sem surpresa maior as encontrou desertas. Do outro lado da estrada, numa azáfama de ferros, anda um empreiteiro a rematar as bancadas do estádio municipal. É o que lhe está fazendo falta, que já tem um alto muro a circundá-lo, e um verdejante relvado, e as pistas de meio-fundo, e quatro torres de poderosos holofotes, para torneios vespertinos.
O viajante não sabe quanto custa manter umas tais instalações, nem conhece quem lho diga. Por muito esforço que faça, não lhes antevê utentes nem futuro. E acaba a dar razão ao Unamuno, sobre ser Portugal um país de suicidas. Aturdido pela enxurrada dos fundos, que lhe toldam a memória e lhe fizeram esquecer a miséria, diverte-se a construir estes conventos de mafra, enquanto os ingleses compram o vale da Vilariça para as vinhas do seu benefício, os espanhóis se apoderam do montado alentejano e plantam olivais, e os leoneses tomam a seu cargo rebanhos inteiros do planalto mirandês. Em tais contradições deixa o viajante para trás uma Aguiar adormecida. Ainda bem que há um programa a exigir-lhe cumprimento, o seu próximo destino é Celorico.
(...)
domingo, 13 de setembro de 2009
Sentimento dum ocidental
Nem Lisboa parece o que já foi. Entro pela calçada de Carriche e nem paro na subida. Na livraria da Baixa escasseiam os leitores, mas sobeja a tralha impressa. No Terreiro do Paço entaiparam o rei, o Tejo nem se vê. Acabo a jantar, sozinho, num estanco.
- Se fosse no mês passado!
O espírito do vinho do Cartaxo mantém a solidez. Mas só a dedicação exclusiva do idoso camareiro justifica, no final, a dolorosa.
Cá fora é noite cerrada, a tal soturnidade, a tal melancolia. E os camones fazem bicha em Santa Justa, saudosos destas coisas antigas. Um dia destes montam em Las Vegas uma réplica de gesso.
Ecumenismo
terça-feira, 8 de setembro de 2009
Ecos da Sonora XIX
John dos Passos era neto de emigrantes madeirenses na América. Nasceu em 1896 e frequentou em Paris, durante a Primeira Guerra, os círculos literários do princípio do século. Sartre considerou-o o escritor mais importante do nosso tempo.
Andará no mercado uma edição recente da Trilogia USA - Paralelo 42, 1919 e Dinheiro Graúdo - que desconheço. Aquela de que disponho é da Portugália Editora e não tem data. O que tem é uma tradução de luxo, de Helder de Macedo, coisa que vai sendo raro ver. Ter a oportunidade de reler o Paralelo 42 (que custou na altura o equivalente a 36 cêntimos) mais que um enorme prazer, é uma benesse. Porque deleita, edifica e ensina ao mesmo tempo. E ao contrário das toleimas pós-modernas, é isso que compete às artes literárias.
Transcrevo da Nota Introdutória, que não traz indicação de autoria:
A Trilogia é o conjunto mais devastador que porventura já se ergueu, tendo como pano de fundo os alicerces sociais da nação americana e como tema fundamental a viciação e degradação de carácter, frutos de uma civilização decadente baseada no espírito mercantilista e na exploração sistemática. (...)
(...) estes seres automatizados, embora aparentemente impermeáveis ao menor frémito de sensibilidade, de alegria, dor ou entusiasmo, apresentam-nos, no seu conjunto, um fresco de terrível devastação e desespero: o panorama da vida americana das três primeiras décadas do século é marcado em J. dos Passos pela corrupção, pela futilidade, pela frustração, pelo espírito de derrota. (...)
A Segunda Guerra Mundial, que veio logo a seguir e pulverizou a Europa, foi uma sopa no mel!
Milagre a preto
Contrariando vozes múltiplas, exigências e princípios do direito internacional, Israel constrói mais 455 casas em colonatos da Cisjordânia.
Parecem muitas, mas não é verdade. São bastante menos do que os papagaios amestrados, (pivots, comentadores, publicistas, estrategas, pensadores, formadores de opinião e estudiosos da história) que estão sempre disponíveis para nos ajudar a pensar.
A pensar que os judeus são uma sociedade civilizada e democrática, com direito a existir e a defender-se.
A pensar que os palestinos são radicais terroristas que se fazem explodir pelas esquinas, e disparam rockets de carregar pela boca, e escavam túneis para escapar ao muro, e não aceitam a aniquilação.
A pensar que é avisado não perder a esperança nem o sono. Porque se a América ainda não deu ao mundo, em 50 anos, um milagre a branco, é porque nos quer oferecer um dia destes um milagre a preto.
Parecem muitas, mas não é verdade. São bastante menos do que os papagaios amestrados, (pivots, comentadores, publicistas, estrategas, pensadores, formadores de opinião e estudiosos da história) que estão sempre disponíveis para nos ajudar a pensar.
A pensar que os judeus são uma sociedade civilizada e democrática, com direito a existir e a defender-se.
A pensar que os palestinos são radicais terroristas que se fazem explodir pelas esquinas, e disparam rockets de carregar pela boca, e escavam túneis para escapar ao muro, e não aceitam a aniquilação.
A pensar que é avisado não perder a esperança nem o sono. Porque se a América ainda não deu ao mundo, em 50 anos, um milagre a branco, é porque nos quer oferecer um dia destes um milagre a preto.
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
Portugalmente (55)
(...)
O viajante compreende mas é um bisbilhoteiro, e por isso transpõe o guarda-vento. E dá consigo num amplo vestíbulo, onde um jovem equipado à atleta puxa o lustro aos tacos do mini-golfe, com ar de quem domina o seu ofício. Desagrada-lhe a presença deste curioso exótico, que não tem ares desportistas e quer apenas dar uma mirada nas instalações. Só o chefe poderá autorizá-la.
O viajante esperou e foi recompensado. Subiu uma escadaria e andou por corredores e galerias, e chegou a um amplo bar onde logo foi servido por um par de camareiras, e viu, entre bancadas a preceito, a doca seca da piscina interior às voltas com o aquecimento, e foi levado a um amplíssimo terraço que sobreleva o conjunto, e apreciou a paisagem a alargar-se para Além-Douro, e ficou a saber que naquele corpo ao lado se vai abrir em breve um restaurante. O viajante aproveita a agradável companhia para saber o que há mais a visitar, e logo lhe recomendam o centro cultural.
É um viajante amedrontado que entrou agora no centro, porque o espavento dele pede meças ao complexo das piscinas. Uma hospedeira de uniforme mostra-lhe o auditório do cinema, que exibe a Casa Assombrada sempre que há espectadores; e um salão social de pavimentos flutuantes onde parece ninguém entrar há muito, e tem mesas de jogo e poltronas de couro negro, e pesados móveis espelhados onde dormita um plasma gigantesco, e sofás de desenho de autor, e alfaias de exóticas madeiras, a lembrar um paço de brasileiro antigo; e uma sala de exposições que o viajante há-de ver com mais vagar; e uma nave polivalente onde cabe a Meda inteira, com um palco monumental que já encenou comédias, exibiu ranchos folclóricos, e onde se cantaram fados; e um bar onde o viajante voltou a ser atendido por uma dupla de assistentes disponíveis.
Depois subiu uma escada e mostraram-lhe um salão para encontros e colóquios - de figurões importantes, segredaram-lhe em voz baixa - com cadeiral de espaldar à charlemagne em redor duma távola, que a ser redonda era a do Rei Artur, e onde as camareiras mudam as garrafas de água que à falta de uso ficaram fora de prazo. No resto há gabinetes de trabalho, e salas de formação, numa delas um grupo de mulheres aprende a trabalhar no centro cultural.
O viajante voltou ao rés-do-chão e vem atordoado. Agradece à hospedeira a simpatia e vai ver a exposição pós-modernista, em busca de refrigério. A primeira peça era um guarda-chuva preto, antes de o artista lhe despejar em cima um chapaçal de imundícies avulsas, e o promover a obra de arte. Está ali aberto a um canto da sala, como fonte de emoções estéticas. Mas este ingrato viajante, que não foi à escola de artes, sente apenas uma tosca repugnância. Vai ver outro guarda-chuva além ao fundo, que é prateado e brilhante, salvo um degenerado gomo de cor preta. E não há na exposição mais guarda-chuvas, embora pudesse haver, já que o bom tempo lá fora os dispensa do serviço natural.
Nas paredes há rectângulos pendentes, de acrílico sobre metal, com equações esotéricas, e interrogações fatais, e uma fantástica mão a irromper do alumínio, que o viajante já viu noutros locais a emergir da parede. Andam cardumes de peixes a saltitar nos painéis. Mas o viajante está curto de tempo e prefere ver a peça principal, erguida numa peanha ali no meio da sala. É um galho de azinheira descascado, que pintaram de amarelo, salpicado de luzentes lantejoulas. Enterraram-no num vaso cheio de gogas do rio, como convém às plantas de interior. O artista pôs-lhe o nome de Narcissus, juntou-lhe o bom augúrio dum trevo de quatro folhas, e entrega-o ao licitante por quaisquer trezentos euros.
Aqui chegado, está por tudo o viajante. Já aprendeu que nas artes pós-modernas conta menos aquilo que os olhos vêem e mais o que nos dizem que lá está. Porém suspeita de que a artística comédia encenada nesta sala não difere da farsa politiqueira que lá fora está em palco. Mas a contenda só respeita às exigências do público da Meda. O viajante sai do centro cultural, mal povoado pelo tédio das camareiras, e tropeça numas obras a que não dera atenção. Volta atrás e ouve da hospedeira que andam a construir a biblioteca municipal. O viajante mete-se no carro, abrevia a retirada. E só pára num estanco da avenida principal, à procura duma garrafa de água para ver se afoga esta sede. Está sozinho, o locandeiro. E à pergunta do cliente, responde que o complexo das piscinas é uma coisa extraordinária. Todos os dias recebe, de utentes, meio milhar, e mais no pino do verão, quando chegam os emigrantes. Embaraçado no seu próprio pudor, o viajante vai à sua vida. E despede-se da Meda verdadeira, que anda a lavar as tinas para a vindima, e a preparar o estendal do fim do verão, que já pouco vai durar.
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O viajante compreende mas é um bisbilhoteiro, e por isso transpõe o guarda-vento. E dá consigo num amplo vestíbulo, onde um jovem equipado à atleta puxa o lustro aos tacos do mini-golfe, com ar de quem domina o seu ofício. Desagrada-lhe a presença deste curioso exótico, que não tem ares desportistas e quer apenas dar uma mirada nas instalações. Só o chefe poderá autorizá-la.
O viajante esperou e foi recompensado. Subiu uma escadaria e andou por corredores e galerias, e chegou a um amplo bar onde logo foi servido por um par de camareiras, e viu, entre bancadas a preceito, a doca seca da piscina interior às voltas com o aquecimento, e foi levado a um amplíssimo terraço que sobreleva o conjunto, e apreciou a paisagem a alargar-se para Além-Douro, e ficou a saber que naquele corpo ao lado se vai abrir em breve um restaurante. O viajante aproveita a agradável companhia para saber o que há mais a visitar, e logo lhe recomendam o centro cultural.
É um viajante amedrontado que entrou agora no centro, porque o espavento dele pede meças ao complexo das piscinas. Uma hospedeira de uniforme mostra-lhe o auditório do cinema, que exibe a Casa Assombrada sempre que há espectadores; e um salão social de pavimentos flutuantes onde parece ninguém entrar há muito, e tem mesas de jogo e poltronas de couro negro, e pesados móveis espelhados onde dormita um plasma gigantesco, e sofás de desenho de autor, e alfaias de exóticas madeiras, a lembrar um paço de brasileiro antigo; e uma sala de exposições que o viajante há-de ver com mais vagar; e uma nave polivalente onde cabe a Meda inteira, com um palco monumental que já encenou comédias, exibiu ranchos folclóricos, e onde se cantaram fados; e um bar onde o viajante voltou a ser atendido por uma dupla de assistentes disponíveis.
Depois subiu uma escada e mostraram-lhe um salão para encontros e colóquios - de figurões importantes, segredaram-lhe em voz baixa - com cadeiral de espaldar à charlemagne em redor duma távola, que a ser redonda era a do Rei Artur, e onde as camareiras mudam as garrafas de água que à falta de uso ficaram fora de prazo. No resto há gabinetes de trabalho, e salas de formação, numa delas um grupo de mulheres aprende a trabalhar no centro cultural.
O viajante voltou ao rés-do-chão e vem atordoado. Agradece à hospedeira a simpatia e vai ver a exposição pós-modernista, em busca de refrigério. A primeira peça era um guarda-chuva preto, antes de o artista lhe despejar em cima um chapaçal de imundícies avulsas, e o promover a obra de arte. Está ali aberto a um canto da sala, como fonte de emoções estéticas. Mas este ingrato viajante, que não foi à escola de artes, sente apenas uma tosca repugnância. Vai ver outro guarda-chuva além ao fundo, que é prateado e brilhante, salvo um degenerado gomo de cor preta. E não há na exposição mais guarda-chuvas, embora pudesse haver, já que o bom tempo lá fora os dispensa do serviço natural.
Nas paredes há rectângulos pendentes, de acrílico sobre metal, com equações esotéricas, e interrogações fatais, e uma fantástica mão a irromper do alumínio, que o viajante já viu noutros locais a emergir da parede. Andam cardumes de peixes a saltitar nos painéis. Mas o viajante está curto de tempo e prefere ver a peça principal, erguida numa peanha ali no meio da sala. É um galho de azinheira descascado, que pintaram de amarelo, salpicado de luzentes lantejoulas. Enterraram-no num vaso cheio de gogas do rio, como convém às plantas de interior. O artista pôs-lhe o nome de Narcissus, juntou-lhe o bom augúrio dum trevo de quatro folhas, e entrega-o ao licitante por quaisquer trezentos euros.
Aqui chegado, está por tudo o viajante. Já aprendeu que nas artes pós-modernas conta menos aquilo que os olhos vêem e mais o que nos dizem que lá está. Porém suspeita de que a artística comédia encenada nesta sala não difere da farsa politiqueira que lá fora está em palco. Mas a contenda só respeita às exigências do público da Meda. O viajante sai do centro cultural, mal povoado pelo tédio das camareiras, e tropeça numas obras a que não dera atenção. Volta atrás e ouve da hospedeira que andam a construir a biblioteca municipal. O viajante mete-se no carro, abrevia a retirada. E só pára num estanco da avenida principal, à procura duma garrafa de água para ver se afoga esta sede. Está sozinho, o locandeiro. E à pergunta do cliente, responde que o complexo das piscinas é uma coisa extraordinária. Todos os dias recebe, de utentes, meio milhar, e mais no pino do verão, quando chegam os emigrantes. Embaraçado no seu próprio pudor, o viajante vai à sua vida. E despede-se da Meda verdadeira, que anda a lavar as tinas para a vindima, e a preparar o estendal do fim do verão, que já pouco vai durar.
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Subprime
No que vieram a dar as montagens dos criativos financeiros de Wall Street e da City, é hoje uma história bastamente conhecida. No que darão as instalações dos inventores da arte contemporânea, ainda é cedo para o saber.
Umas e outras são processos fenomenais do mesmo jardim das delícias, em versão popular e pós-moderna. E têm em comum algumas características: a volatilidade, a efemeridade, a irracionalidade, a irrealidade. E ainda a provocação.
A aritmética dos dividendos do sistema financeiro só existia no discurso dos relatórios que os gestores elaboravam. E dum modo semelhante, no universo da arte contemporânea, o que existe não é o que os olhos vêem, lixo tóxico. O que existe é aquilo que os criativos nos dizem que lá está. Nosso é o papel de aceitar o discurso dos farsantes, único preço a pagar (e é bem barato!) para sermos cultos, modernos, dotados de sensibilidade estética, donos de substância cultural e apreciadores de arte.
Antigamente esse estatuto custava mais trabalho, muito mais. Agora, nos tempos da pós-modernidade e da cultura de massas, chega-se lá num ai. Nem faz falta saber ler, porque o discurso é hermético. Basta ir ali a Serralves, assumir o indispensável ar bovino, e passear pel' A Colecção.
- O verdadeiro artista é uma assombrosa fonte luminosa! O verdadeiro artista é uma maravilhosa fonte luminosa!
Uma voz masculina, alternando com uma voz feminina, repete incansavelmente num ecrã, com sotaque brasileiro que fica mais barato, a jaculatória salvífica. E uma criança, talvez farta de os ouvir, ousa a pergunta fatal:
- Isto é a arte, ó mãe?!
A mãe não respondeu nada. E eu tive pena de não ter trazido a faca do Palaçoulo, cravada ali em Zurique, num mapa da Michelin colado numa parede. Faz-me falta na cozinha, e sempre me justificava a espórtula.
Umas e outras são processos fenomenais do mesmo jardim das delícias, em versão popular e pós-moderna. E têm em comum algumas características: a volatilidade, a efemeridade, a irracionalidade, a irrealidade. E ainda a provocação.
A aritmética dos dividendos do sistema financeiro só existia no discurso dos relatórios que os gestores elaboravam. E dum modo semelhante, no universo da arte contemporânea, o que existe não é o que os olhos vêem, lixo tóxico. O que existe é aquilo que os criativos nos dizem que lá está. Nosso é o papel de aceitar o discurso dos farsantes, único preço a pagar (e é bem barato!) para sermos cultos, modernos, dotados de sensibilidade estética, donos de substância cultural e apreciadores de arte.
Antigamente esse estatuto custava mais trabalho, muito mais. Agora, nos tempos da pós-modernidade e da cultura de massas, chega-se lá num ai. Nem faz falta saber ler, porque o discurso é hermético. Basta ir ali a Serralves, assumir o indispensável ar bovino, e passear pel' A Colecção.
- O verdadeiro artista é uma assombrosa fonte luminosa! O verdadeiro artista é uma maravilhosa fonte luminosa!
Uma voz masculina, alternando com uma voz feminina, repete incansavelmente num ecrã, com sotaque brasileiro que fica mais barato, a jaculatória salvífica. E uma criança, talvez farta de os ouvir, ousa a pergunta fatal:
- Isto é a arte, ó mãe?!
A mãe não respondeu nada. E eu tive pena de não ter trazido a faca do Palaçoulo, cravada ali em Zurique, num mapa da Michelin colado numa parede. Faz-me falta na cozinha, e sempre me justificava a espórtula.
domingo, 6 de setembro de 2009
Portugalmente (54)
(...)
7
Ao viajante veio mesmo a calhar este compasso de espera, enquanto aguarda a visita aos cavalinhos do Côa. Há-de parecer que entrou na vila com auras de leão e acaba a sair dela com orelhas de sendeiro. Espera, não espera, há-de aproveitar o tempo. Há-de hoje ver outras terras, indagar-lhes formosuras e primores, cotejá-las com Trancoso. Pôs-se em campo ao princípio da manhã e achou algumas surpresas.
A primeira foi na Meda, onde chegou depois de ver novamente o Solar dos Brasis, ali atrás falado. Passado mais um projecto de floresta falhada nas quintas de Matamá, desceu as ribanceiras do Aveloso, passou a ribeira Teja numa ponte que os romanos fizeram, trepou a ladeira do Outeiro de Gatos e logo arribou à vila. À medida que se foi aproximando, o viajante encontrou vinhas, e olivais, e campos de amendoeiras, sinal de que deixou para trás a terra fria.
Encostada a um morro de granito onde guardavam o celeiro, a Meda foi durante muito tempo um cenóbio de frades beneditos. Só tardiamente um rei lhe deu foral, já o Gama regressara da Índia. Hoje continua a ser a mesma aldeia com uma avenida no meio e o jumento preso à ferradura entalada na parede. Só lhe está faltando à porta o estendal do milho, ao sol do fim do verão, porque o verão ainda não acabou e o milho não está criado.
Igual como em Trancoso, a câmara é do mesmo partido há trinta anos, desde que há eleições. E se o concelho albergar por junto uns seis mil habitantes, não chega na sede a residir um terço. Recentemente fizeram dela cidade. E o viajante pôs-se à procura das razões, que são duras de encontrar. As uvas dos pequenos vinhateiros encontram escoamento na adega cooperativa, que as vai pagando aos sócios quando pode, enquanto se aguentar. E a outra adega, há poucos anos aberta por empresários paisanos, tem hoje as portas fechadas. Foi tudo parar ao tribunal, entre rumores de trapaças e pipas de vinho fabricado a martelo.
Mas quem procura sempre acha, se não for prego é uma tacha. Andando e andando, depois de passar uma rotunda complicada, foi o viajante parar a um arrabalde, onde a câmara local tem devotado o melhor dos orçamentos ao serviço dos munícipes escassos. O complexo das piscinas mete respeito e enxerga-se à distância, com os seus relvados, e sebes, e instalações imponentes a dominar o conjunto. Entre o seu muro e uma estrada periférica, há-de haver um dia um parque de campismo, e outro parque de desportos radicais. Mas isso vai sabê-lo o viajante quando entrar no complexo. Espreitando pelo muro, vislumbram-se dois campos de ténis gémeos, com bancadas à inglesa, e um complicado circuito de mini-golfe, deserto como os irmãos. Desconhece o viajante em que fadigas se perde a juventude da Meda, tão solitária se encontra esta piscina de dimensões olímpicas, e o natatório infantil logo abaixo, na encosta. O viajante rodeia a vedação e chega finalmente à entrada do complexo, onde estão expostos os horários de abertura. Devido à falta de utentes, segundo diz esta nota, forçoso foi encerrar a piscina descoberta, antes do fim da estação. E a piscina de interior, que é aquecida para os rigores do clima, também se encontra fechada, por causa duma avaria maçadora. Aos utentes pede-se compreensão.
(...)
7
Ao viajante veio mesmo a calhar este compasso de espera, enquanto aguarda a visita aos cavalinhos do Côa. Há-de parecer que entrou na vila com auras de leão e acaba a sair dela com orelhas de sendeiro. Espera, não espera, há-de aproveitar o tempo. Há-de hoje ver outras terras, indagar-lhes formosuras e primores, cotejá-las com Trancoso. Pôs-se em campo ao princípio da manhã e achou algumas surpresas.
A primeira foi na Meda, onde chegou depois de ver novamente o Solar dos Brasis, ali atrás falado. Passado mais um projecto de floresta falhada nas quintas de Matamá, desceu as ribanceiras do Aveloso, passou a ribeira Teja numa ponte que os romanos fizeram, trepou a ladeira do Outeiro de Gatos e logo arribou à vila. À medida que se foi aproximando, o viajante encontrou vinhas, e olivais, e campos de amendoeiras, sinal de que deixou para trás a terra fria.
Encostada a um morro de granito onde guardavam o celeiro, a Meda foi durante muito tempo um cenóbio de frades beneditos. Só tardiamente um rei lhe deu foral, já o Gama regressara da Índia. Hoje continua a ser a mesma aldeia com uma avenida no meio e o jumento preso à ferradura entalada na parede. Só lhe está faltando à porta o estendal do milho, ao sol do fim do verão, porque o verão ainda não acabou e o milho não está criado.
Igual como em Trancoso, a câmara é do mesmo partido há trinta anos, desde que há eleições. E se o concelho albergar por junto uns seis mil habitantes, não chega na sede a residir um terço. Recentemente fizeram dela cidade. E o viajante pôs-se à procura das razões, que são duras de encontrar. As uvas dos pequenos vinhateiros encontram escoamento na adega cooperativa, que as vai pagando aos sócios quando pode, enquanto se aguentar. E a outra adega, há poucos anos aberta por empresários paisanos, tem hoje as portas fechadas. Foi tudo parar ao tribunal, entre rumores de trapaças e pipas de vinho fabricado a martelo.
Mas quem procura sempre acha, se não for prego é uma tacha. Andando e andando, depois de passar uma rotunda complicada, foi o viajante parar a um arrabalde, onde a câmara local tem devotado o melhor dos orçamentos ao serviço dos munícipes escassos. O complexo das piscinas mete respeito e enxerga-se à distância, com os seus relvados, e sebes, e instalações imponentes a dominar o conjunto. Entre o seu muro e uma estrada periférica, há-de haver um dia um parque de campismo, e outro parque de desportos radicais. Mas isso vai sabê-lo o viajante quando entrar no complexo. Espreitando pelo muro, vislumbram-se dois campos de ténis gémeos, com bancadas à inglesa, e um complicado circuito de mini-golfe, deserto como os irmãos. Desconhece o viajante em que fadigas se perde a juventude da Meda, tão solitária se encontra esta piscina de dimensões olímpicas, e o natatório infantil logo abaixo, na encosta. O viajante rodeia a vedação e chega finalmente à entrada do complexo, onde estão expostos os horários de abertura. Devido à falta de utentes, segundo diz esta nota, forçoso foi encerrar a piscina descoberta, antes do fim da estação. E a piscina de interior, que é aquecida para os rigores do clima, também se encontra fechada, por causa duma avaria maçadora. Aos utentes pede-se compreensão.
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sábado, 5 de setembro de 2009
A roda dos expostos
Nada se faria no país sem os fundos europeus. E uma tal realidade não é surpresa maior, se Portugal entrou na Europa na condição de pedinte, para não dizer de náufrago aflito.
Os portugueses não mostram disposição para tomar consciência desse facto e inscrevê-lo no bestunto. O geral dos cidadãos por desinteresse ligeiro, e as elites que os dirigem por atávica falta de vergonha. Mas isso é outra questão que também não surpreende.
Já a filosofia da governação, particularmente ao nível autárquico, além de provocar surpresas, mete medo. A megalomania fantasista e a competição febril ganharam foros de escola. Com raríssima excepção, todo o programa do bom autarca, e tudo quanto pensa do futuro, resume-se a dois pontos: esgotar a capacidade de endividamento e apresentar obra feita nas próximas eleições.
Foi assim que em vinte anos o país apareceu semeado de complexos desportivos que ninguém frequenta, de pavilhões multi-usos que não têm utilidade, de centros culturais que armazenam o vazio, de complexos de piscinas cobertas e descobertas, com saunas e banhos turcos, fugazmente visitadas por excursões escolares. Infelizmente já não falta muito tempo para que tais estruturas comecem a fechar. A um lado por lhes faltar utilidade. E a outro por serem incomportáveis os custos de manutenção.
O município de Almeida parecia uma excepção. Terra pequena, discreta, uma página da história que um dia chegou ali, e ali ficou. Há dias inauguraram as termas da Fonte Santa, que antes faziam milagres num pré-fabricado de madeira. São agora um complexo futurista, que põe em respeito as encostas do Côa. E oxalá não percam a virtude, porque o furo de captação já vai nos 800 metros de profundidade. O caudal é limitado, e chega à superfície a temperatura insuficiente.
O pior, porém, é que já está programado um hotel de 4 estrelas, para albergar os aquistas. Há um ano esteve para fechar a pousada do Pestana, por falta de clientela. Se vier o novo hotel, bem pode Almeida reabrir a roda dos expostos. Para lá entregar à caridade, um dia destes, o orçamento da câmara.
Vinte Cinco Dabrile
Aconteceu ontem algo de surpreendente. A propósito dum qualquer bem precioso, o Presidente Cavaco mencionou a data em que o conquistámos, com um sobressalto na maçã de Adão.
Bem sei que o fez num quadro de insânia generalizada. Mas infringiu aquele mandamento que nos proíbe invocar o nome de Deus em vão.
Portugalmente (53)
(...)
É desse rei lavrador que nos fala esta capela, mesmo à beira da estrada. E do casamento que aqui veio fazer com uma princesa de Aragão, há uns setecentos anos. Largos dias duraram os esponsais e as festanças, folgou o povo e mais que ele os esposados. E a exaltação chegou ao viajante, que guarda por este rei afeições incomuns. Atarda-se por ali no beija-mão, em volta da capela, não lhe perdem pela demora as louçanias.
Que na mão duns paisagistas caiu recentemente este Largo das Portas. Atenta às coisas do progresso e com fundos à discrição, tratou a câmara de o requalificar, que já era muito velho. Mandou vir um arquitecto renomado, e a simples assinatura deixaria um qualquer embasbacado, se não fizessem pior os honorários. Logo ele chegou ao fim da tarde, num dia desgraçado de Janeiro. Enristou a gola do casaco, deu uma volta pelo largo a patear no chão para afugentar o frio, e encarregou-se da tarefa. Mandou riscar uma avenida que fosse dar às Portas, como a que já existia. Semeou no largo uns motivos minimais tirados do compêndio, umas pedras tumulares a simular uns bancos, uns pinos de granito a lembrar aos locais os torneios da malha, um pequeno jogo de água para alegrar o conjunto. E ordenou que o restante fosse coberto a pedra, irregular e tosca, displicente e pós-moderna, como as partes contratantes.
Assim deslavado e descomposto, o resultado é o que se vê. A avenida não bate certa com a entrada das muralhas, que era vesgo o desenhista. O taxista, que hoje mesmo falou com o viajante das charadas do Bandarra, já uma vez tropeçou no empedrado e estatelou-se no chão. Num certo inverno patinou uma criatura nos gelos do bassin, levaram-na a curar os hematomas. E um bom cristão conheceu este viajante, que traz dezoito pontos de hospital a enfeitar-lhe a queixada. Caiu da bicicleta de montanha, ao atravessar o Largo.
Nem a dona Isabel de Aragão ia aceitar o casamento, se visse o largo assim. E agora compreende este viajante o susto dum velho mestre, que há muitos anos foi arribar à estalagem da Azambuja. Não lhe cai da mão a pena, ao viajante, que a não usa. Do espanto em que se vê, cai-lhe outra coisa no chão.
Nem Trancoso, nem el-rei, nem o Largo, que é dos dois, mereciam esta desfeita. Nem a função se vislumbra, nem a forma se tolera, nem se pode justificar o desperdício. O Largo era o centro da vila, era o centro da comarca, e agora já ninguém sabe o que é. Num café onde foi matar a sede, puxou o viajante da conversa, quis sondar opiniões. Tropeçou em indiferenças vagas, em fatalismos antigos, em ombros que se encolheram.
- A gente aveza-se a tudo! Até à canga do arado, quando a havia!
O viajante regressou ao Largo. Já sumidas pelas casas que as vinham parasitando, pareceu-lhe mesmo que as Portas se encolheram mais um pouco. Será ele o embaraço, há-de ser da humilhação. Que neste Largo das Portas, ficam as Portas a mais.
É um viajante atordoado que vai procurar asilo à oficina do turismo, ali ao lado. Logo lhe dão, às mancheias, boletins e desdobráveis, a informá-lo das estratégias de desenvolvimento com vista à superação dos handicaps da interioridade e à melhoria da qualidade de vida dos munícipes, e dos trabalhos de revalorização do património histórico, e de requalificação do património arquitectónico, e de restruturação dos espaços do campo, e de consolidação e reorganização dos eventos da feira, e de agilização do tráfego através da implementação de rotundas que se hão-de rasgar na rede viária, e de reposicionamento da cidade na escala que lhe cabe no tecido regional. Neste gentio calão da propaganda, logo é dado a saber ao viajante que o pavilhão multi-usos tem pavimento amovível, conforme a natureza dos eventos. Que já deu acolhimento a um congresso de avós, a um estágio de selecção de desportos de interior, a um jogo de apuramento de nível internacional, e que há-de albergar as actividades económicas e artesanais da feira que aí vem. Ainda não se refez o viajante do grande susto em que vinha, e já lhe desaba em cima a confirmação das profecias do taxista, sobre o museu do Bandarra a falar do 5º Império, e sobre um outro museu, o do design do tempo, seja lá isso o que for. Vai custar milhão e meio e desdobra-se em dois pisos, um deles transparente, onde se há-de instalar um jardim interior. O outro albergará encontros de Arte e Ciência, que se vão realizar anualmente. Um deles tem lugar dentro de dias. E assim a arte e a ciência, e mais a arquitectura vanguardista, hão-de chegar a Trancoso, assentes em volutas arrojadas a representar o tempo.
O viajante ficou aturdido, quase a pontos de esquecer o fito que aqui o trouxe, marcar uma visita aos auroques do baixo Côa. Salvou-o a hospedeira do turismo, incansável a explicar-lhe tudo isto. Tão justificada fica do encontro e da ocupação que teve, que ela própria lhe faz a marcação. Assim tratado como um rei, já o viajante se sente às portas do 5º Império. Mas a hospedeira fez o que tinha a fazer e nem sabe o que isso é.
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É desse rei lavrador que nos fala esta capela, mesmo à beira da estrada. E do casamento que aqui veio fazer com uma princesa de Aragão, há uns setecentos anos. Largos dias duraram os esponsais e as festanças, folgou o povo e mais que ele os esposados. E a exaltação chegou ao viajante, que guarda por este rei afeições incomuns. Atarda-se por ali no beija-mão, em volta da capela, não lhe perdem pela demora as louçanias.
Que na mão duns paisagistas caiu recentemente este Largo das Portas. Atenta às coisas do progresso e com fundos à discrição, tratou a câmara de o requalificar, que já era muito velho. Mandou vir um arquitecto renomado, e a simples assinatura deixaria um qualquer embasbacado, se não fizessem pior os honorários. Logo ele chegou ao fim da tarde, num dia desgraçado de Janeiro. Enristou a gola do casaco, deu uma volta pelo largo a patear no chão para afugentar o frio, e encarregou-se da tarefa. Mandou riscar uma avenida que fosse dar às Portas, como a que já existia. Semeou no largo uns motivos minimais tirados do compêndio, umas pedras tumulares a simular uns bancos, uns pinos de granito a lembrar aos locais os torneios da malha, um pequeno jogo de água para alegrar o conjunto. E ordenou que o restante fosse coberto a pedra, irregular e tosca, displicente e pós-moderna, como as partes contratantes.
Assim deslavado e descomposto, o resultado é o que se vê. A avenida não bate certa com a entrada das muralhas, que era vesgo o desenhista. O taxista, que hoje mesmo falou com o viajante das charadas do Bandarra, já uma vez tropeçou no empedrado e estatelou-se no chão. Num certo inverno patinou uma criatura nos gelos do bassin, levaram-na a curar os hematomas. E um bom cristão conheceu este viajante, que traz dezoito pontos de hospital a enfeitar-lhe a queixada. Caiu da bicicleta de montanha, ao atravessar o Largo.
Nem a dona Isabel de Aragão ia aceitar o casamento, se visse o largo assim. E agora compreende este viajante o susto dum velho mestre, que há muitos anos foi arribar à estalagem da Azambuja. Não lhe cai da mão a pena, ao viajante, que a não usa. Do espanto em que se vê, cai-lhe outra coisa no chão.
Nem Trancoso, nem el-rei, nem o Largo, que é dos dois, mereciam esta desfeita. Nem a função se vislumbra, nem a forma se tolera, nem se pode justificar o desperdício. O Largo era o centro da vila, era o centro da comarca, e agora já ninguém sabe o que é. Num café onde foi matar a sede, puxou o viajante da conversa, quis sondar opiniões. Tropeçou em indiferenças vagas, em fatalismos antigos, em ombros que se encolheram.
- A gente aveza-se a tudo! Até à canga do arado, quando a havia!
O viajante regressou ao Largo. Já sumidas pelas casas que as vinham parasitando, pareceu-lhe mesmo que as Portas se encolheram mais um pouco. Será ele o embaraço, há-de ser da humilhação. Que neste Largo das Portas, ficam as Portas a mais.
É um viajante atordoado que vai procurar asilo à oficina do turismo, ali ao lado. Logo lhe dão, às mancheias, boletins e desdobráveis, a informá-lo das estratégias de desenvolvimento com vista à superação dos handicaps da interioridade e à melhoria da qualidade de vida dos munícipes, e dos trabalhos de revalorização do património histórico, e de requalificação do património arquitectónico, e de restruturação dos espaços do campo, e de consolidação e reorganização dos eventos da feira, e de agilização do tráfego através da implementação de rotundas que se hão-de rasgar na rede viária, e de reposicionamento da cidade na escala que lhe cabe no tecido regional. Neste gentio calão da propaganda, logo é dado a saber ao viajante que o pavilhão multi-usos tem pavimento amovível, conforme a natureza dos eventos. Que já deu acolhimento a um congresso de avós, a um estágio de selecção de desportos de interior, a um jogo de apuramento de nível internacional, e que há-de albergar as actividades económicas e artesanais da feira que aí vem. Ainda não se refez o viajante do grande susto em que vinha, e já lhe desaba em cima a confirmação das profecias do taxista, sobre o museu do Bandarra a falar do 5º Império, e sobre um outro museu, o do design do tempo, seja lá isso o que for. Vai custar milhão e meio e desdobra-se em dois pisos, um deles transparente, onde se há-de instalar um jardim interior. O outro albergará encontros de Arte e Ciência, que se vão realizar anualmente. Um deles tem lugar dentro de dias. E assim a arte e a ciência, e mais a arquitectura vanguardista, hão-de chegar a Trancoso, assentes em volutas arrojadas a representar o tempo.
O viajante ficou aturdido, quase a pontos de esquecer o fito que aqui o trouxe, marcar uma visita aos auroques do baixo Côa. Salvou-o a hospedeira do turismo, incansável a explicar-lhe tudo isto. Tão justificada fica do encontro e da ocupação que teve, que ela própria lhe faz a marcação. Assim tratado como um rei, já o viajante se sente às portas do 5º Império. Mas a hospedeira fez o que tinha a fazer e nem sabe o que isso é.
(...)
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