sábado, 19 de setembro de 2009

Portugalmente (58)

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Já lá vai, estrada fora, de regresso a Trancoso. Ao viajante apenas lhe compete olhar e ver, conforme já deixou dito. Porém às vezes cede-lhe a vontade a maus estados de alma, como agora. Tem anotado como a vida nestas terras, se mesquinha já era antes de entrar o país na Europa, não tem feito senão tornar-se mais escassa e deprimida. E o viajante vai a matutar nesta alegre compita de autarcas fantasistas, que rivalizam apenas em vaidades, e em erguer castelos de ilusões. Tudo o que pensam do futuro do país resume-se a mostrar obra, seja ela qual for, para cativar os votos em tempo de eleições. E aos eleitores parecem agradar tamanhos desconchavos, que apenas lhes garantem no futuro uma pobreza cada vez maior. Sendo os impostos cobrados na capital, lá lhes parece que saem de bolso alheio. E tanto melhor será um presidente, quanto mais dinheiro conseguir gastar.
Portugal já conheceu, ao longo da sua história, momentos de desvario. Foi ele o caso da Índia, quando uma casta de visionários trocou, a seu favor, a boa capa por um mau capelo. Lá foram à ventura o povo e o país, atraídos pelo cheiro da canela, pelo fogo-fátuo de epopeias miríficas. A catástrofe dos dois não tardou a chegar.
Depois veio o ouro brasileiro, eram naus a abarrotar. Mas o país e o povo, se já eram indigentes, na miséria continuaram. Nem um nem outro foram chamados ao banquete. Que a riqueza era do rei e dumas dúzias de comparsas, pagou facturas inglesas, comprou as graças de Roma.
Hoje, porém, chegada assim de improviso esta enxurrada dos fundos, vive o país em liberdade e o povo pode escolher. O resultado é o que se vê e atemoriza o viajante. Porque a democracia assim é uma mentira, cativa de caciques megalómanos que um povo triste eterniza no poder. Se for verdade que no pouco se vê o muito, como pensa o viajante, só Deus sabe o que andará por aí. Mas esta irrealidade extravagante apenas repete a história.
O burgo de Trancoso não sai mal deste confronto com os vizinhos. E na reforma administrativa que um pouco de realismo ditaria aos governantes, seria esta a cabeça dum município único, caso houvesse algum dia em Portugal políticos realistas. Enquanto sim e não, com a tarde a meio e o bom tempo a convidá-lo, o viajante meteu-se aos caminhos do concelho, para o conhecer por inteiro. Bastas vezes voltou a ver o que já tinha visto, pedras e giestas, e uns raros pinheirais de que o fogo se esqueceu. Uma ruralidade pobre e deprimida, traída pelos absurdos da economia moderna, pela ditadura dos números, sem armas nem forças para resistir ao abandono. Mas ficaram nos olhos do viajante os castanheiros da Broca, e os soitos dos Tamanhos, do Frechão e das Courelas, os de Souto Maior cujo nome não engana, e os da Aldeia de Santo Inácio que um dia se chamou Porcas, e os da Castanheira onde vive Manuel Cabreiro, e os do Terrenho que já tinha visitado, e os de Mendo Gordo, que ainda tem, sem o saber, uma estrada medieva, e os da Torre, a da casa das fidalgas, e os de Guilheiro onde não tinha chegado, e os de Sebadelhe onde voltou a passar. Se as castanhas do concelho não forem as melhores do mundo, como já se ouviu dizer, são pelo menos o único brasão que tem valor no mercado. E bem andaria a câmara da vila, seguindo o exemplo do edil António Bravo, que há cem anos fez plantar o parque municipal. Um presidente que o fosse de verdade mandava todos os dias o seu primeiro assessor correr por essas aldeias, a saber de cada um se já plantara na horta o castanheiro do dia. E se ao aldeão faltasse um pé de viveiro, logo lhe oferecia dois. Se ele já não tivesse forças para enxadar uma cova, mandava pôr em acção a máquina escavadora.
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