sábado, 5 de setembro de 2009

Portugalmente (53)

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É desse rei lavrador que nos fala esta capela, mesmo à beira da estrada. E do casamento que aqui veio fazer com uma princesa de Aragão, há uns setecentos anos. Largos dias duraram os esponsais e as festanças, folgou o povo e mais que ele os esposados. E a exaltação chegou ao viajante, que guarda por este rei afeições incomuns. Atarda-se por ali no beija-mão, em volta da capela, não lhe perdem pela demora as louçanias.
Que na mão duns paisagistas caiu recentemente este Largo das Portas. Atenta às coisas do progresso e com fundos à discrição, tratou a câmara de o requalificar, que já era muito velho. Mandou vir um arquitecto renomado, e a simples assinatura deixaria um qualquer embasbacado, se não fizessem pior os honorários. Logo ele chegou ao fim da tarde, num dia desgraçado de Janeiro. Enristou a gola do casaco, deu uma volta pelo largo a patear no chão para afugentar o frio, e encarregou-se da tarefa. Mandou riscar uma avenida que fosse dar às Portas, como a que já existia. Semeou no largo uns motivos minimais tirados do compêndio, umas pedras tumulares a simular uns bancos, uns pinos de granito a lembrar aos locais os torneios da malha, um pequeno jogo de água para alegrar o conjunto. E ordenou que o restante fosse coberto a pedra, irregular e tosca, displicente e pós-moderna, como as partes contratantes.
Assim deslavado e descomposto, o resultado é o que se vê. A avenida não bate certa com a entrada das muralhas, que era vesgo o desenhista. O taxista, que hoje mesmo falou com o viajante das charadas do Bandarra, já uma vez tropeçou no empedrado e estatelou-se no chão. Num certo inverno patinou uma criatura nos gelos do bassin, levaram-na a curar os hematomas. E um bom cristão conheceu este viajante, que traz dezoito pontos de hospital a enfeitar-lhe a queixada. Caiu da bicicleta de montanha, ao atravessar o Largo.
Nem a dona Isabel de Aragão ia aceitar o casamento, se visse o largo assim. E agora compreende este viajante o susto dum velho mestre, que há muitos anos foi arribar à estalagem da Azambuja. Não lhe cai da mão a pena, ao viajante, que a não usa. Do espanto em que se vê, cai-lhe outra coisa no chão.
Nem Trancoso, nem el-rei, nem o Largo, que é dos dois, mereciam esta desfeita. Nem a função se vislumbra, nem a forma se tolera, nem se pode justificar o desperdício. O Largo era o centro da vila, era o centro da comarca, e agora já ninguém sabe o que é. Num café onde foi matar a sede, puxou o viajante da conversa, quis sondar opiniões. Tropeçou em indiferenças vagas, em fatalismos antigos, em ombros que se encolheram.
- A gente aveza-se a tudo! Até à canga do arado, quando a havia!
O viajante regressou ao Largo. Já sumidas pelas casas que as vinham parasitando, pareceu-lhe mesmo que as Portas se encolheram mais um pouco. Será ele o embaraço, há-de ser da humilhação. Que neste Largo das Portas, ficam as Portas a mais.
É um viajante atordoado que vai procurar asilo à oficina do turismo, ali ao lado. Logo lhe dão, às mancheias, boletins e desdobráveis, a informá-lo das estratégias de desenvolvimento com vista à superação dos handicaps da interioridade e à melhoria da qualidade de vida dos munícipes, e dos trabalhos de revalorização do património histórico, e de requalificação do património arquitectónico, e de restruturação dos espaços do campo, e de consolidação e reorganização dos eventos da feira, e de agilização do tráfego através da implementação de rotundas que se hão-de rasgar na rede viária, e de reposicionamento da cidade na escala que lhe cabe no tecido regional. Neste gentio calão da propaganda, logo é dado a saber ao viajante que o pavilhão multi-usos tem pavimento amovível, conforme a natureza dos eventos. Que já deu acolhimento a um congresso de avós, a um estágio de selecção de desportos de interior, a um jogo de apuramento de nível internacional, e que há-de albergar as actividades económicas e artesanais da feira que aí vem. Ainda não se refez o viajante do grande susto em que vinha, e já lhe desaba em cima a confirmação das profecias do taxista, sobre o museu do Bandarra a falar do 5º Império, e sobre um outro museu, o do design do tempo, seja lá isso o que for. Vai custar milhão e meio e desdobra-se em dois pisos, um deles transparente, onde se há-de instalar um jardim interior. O outro albergará encontros de Arte e Ciência, que se vão realizar anualmente. Um deles tem lugar dentro de dias. E assim a arte e a ciência, e mais a arquitectura vanguardista, hão-de chegar a Trancoso, assentes em volutas arrojadas a representar o tempo.
O viajante ficou aturdido, quase a pontos de esquecer o fito que aqui o trouxe, marcar uma visita aos auroques do baixo Côa. Salvou-o a hospedeira do turismo, incansável a explicar-lhe tudo isto. Tão justificada fica do encontro e da ocupação que teve, que ela própria lhe faz a marcação. Assim tratado como um rei, já o viajante se sente às portas do 5º Império. Mas a hospedeira fez o que tinha a fazer e nem sabe o que isso é.
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