terça-feira, 29 de junho de 2010

Farroncas novas e velhas

Os espanhóis deram aos Navegadores uma lição de como se navega, de como a sério se toca na chicha.
Isso traz-me à lembrança Aljubarrota. Não fosse ele a táctica que os ingleses trouxeram, e era uma vez uma Guerra da Independência.
Salvam-se dois condestáveis, Eduardo e Coentrão. Tudo o resto são farroncas costumeiras.

domingo, 27 de junho de 2010

O consumidor avatar

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

A APODEMO, Associação de Empresas de Estudos de Mercado (que me orgulho de ter ajudado a criar, há vários anos), elegeu como lema inspirador do seu recente congresso anual “O Consumidor Avatar”. E não poderia ter sido mais oportuna esta escolha, considerando os tempos difusos que se vivem, em que não se descortina bem a fronteira entre a fantasia e a realidade.
Um “avatar” é uma espécie de “outro eu”, ou um “eu virtual”, que se move num mundo regido por leis distintas das do mundo real, que tem outras leis da física, da economia, da forma de estar na sociedade. Ora, nesse mundo, os produtos que se fabricam, que se vendem e se consomem, são “produtos avatares”. Os quais defino como “marcas sem produto” (já explicarei melhor), por oposição às “commodities”, que são produtos sem marca. Nesse mundo virtual, os consumidores são “consumidores avatares”, e, como tal, só consomem "produtos avatares".
Para melhor esclarecer o conceito de “produto avatar”, vejamos um exemplo: a Coca Cola é uma bebida gasosa refrescante, que tem as propriedades e as funções de outras bebidas similares como a limonada, a “gasosa” ou o velho “pirolito”. Só que na realidade as coisas não são bem assim. A marca “Coca Cola” acrescenta à bebida outros ingredientes para além da água, do xarope, do açúcar e do anidrido carbónico; acrescenta-lhe uma dose de “festa”, um pouco de “alegre disposição”, uma pitada de “ambiente jovem”, completados com um “jingle musicado” e umas gotas de cheiro a “american way of life”. Tudo isto, bem misturado e nas doses certas, constitui uma mistura explosiva e irresistível, sobretudo para os mais jovens.
Ora, se retirarmos à Coca Cola a água, o açúcar, o xarope e o anidrido carbónico, o que fica dentro da embalagem é uma “Coca Cola avatar”. É isso mesmo, o leitor já percebeu que aquilo que fica na garrafa é uma marca sem produto. E só um “consumidor avatar” é que poderá consumir essa Coca Cola.
Terá sido esse “consumidor” que os técnicos de marketing, de publicidade e de estudos de mercado foram analisar à lupa, no seu Congresso Anual. E foram armados das ferramentas adequadas para o efeito, tais como estudos aprofundados, focus grupos, técnicas projectivas, técnicas de observação etnográficas, semióticas, etc... E mesmo técnicas de neuromarketing, porque o “consumidor avatar”, na escolha dos seus consumos, utiliza inúmeros feixes de neurónios, os quais, para esse fim, trabalham de forma holística e interactiva, em alta velocidade de processamento.
Eu não estive no congresso da APODEMO. E começo a suspeitar que o “mundo avatar” é uma fraude, uma crença e uma mentira que nos querem impingir. No íntimo do meu pensamento, já tive a ousadia de me inclinar a negar a sua existência. Bem sei que isto é um sacrilégio, e que posso vir a sofrer as penas do inferno, por este “pecado de pensamento”.
Mas só “por pensamentos” serei pecador. Uma vez que, na realidade das palavras e das obras, continuo, por dever de ofício, a ser sacerdote e praticante assíduo desses cultos.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Obama e a energia

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

O discurso que Obama proferiu na Sala Oval, no passado dia 15 de Junho, a propósito do desastre ambiental da BP no Golfo do México, faz lembrar discursos de Carter em 1977. Foram eles proferidos entre os dois primeiros choques petrolíferos, numa época em que, tal como hoje, as questões de energia estavam na ordem do dia.
James Carter estava plenamente consciente da frágil situação energética americana, alertou para ela, quis resolvê-la. Mas não teve sucesso, e acabou por nem sequer ser eleito para um segundo mandato.
Reagan, que veio a seguir, beneficiou duma conjuntura bastante favorável a partir de 1980, o que veio aliviar a difícil situação energética do mundo. Foi o caso da redução do consumo de petróleo, do início da entrada em funcionamento de inúmeras centrais nucleares, e do contributo de novas bacias petrolíferas, no Mar do Norte, no Alasca e no Golfo do México. E não se pode esquecer que foi a partir de 1980 que o gás natural veio ocupar o lugar do petróleo nas centrais termo-eléctricas. Tudo isto contribuiu para fazer baixar fortemente o preço do crude nos 25 anos seguintes, e criar a ilusão de que tudo tinha voltado ao “normal”.
Obama está hoje confrontado com uma situação semelhante à da época de Carter, e vem repetir o mesmo tipo de discurso. Mas agora num contexto que se apresenta com perspectivas bastante menos promissoras. Já não existem as alternativas surgidas em 1977, o nuclear já não se mostra esperançoso, a produção de crude estagnou, e não existem novas áreas a explorar para compensar as quebras de produção. A "solução" que agora se apresenta é a revolução "verde", apoiada no desenvolvimento das energias renováveis, as quais têm perspectivas, custos e eficácia ainda mal conhecidos.
No seu discurso, Obama lembra a actual situação energética da América e o paradoxo que ela representa. Diz ele: ”O petróleo é um recurso finito; consumimos, no nosso país, mais de 20% do petróleo extraído a nível mundial e temos menos de 2% das reservas”. E põe, de forma desassombrada, o dedo na ferida : “Durante décadas percebemos que os dias do petróleo fácil e barato estavam contados, e falámos da urgente necessidade de escapar à nossa dependência dos combustíveis fósseis. Mas falhámos nesse propósito, e não fomos capazes de actuar com a urgência que se impunha. E não foi apenas pela acção dos "lobbies" petrolíferos, mas foi também pela nossa falta de coragem política e pela falta de franqueza em enfrentar o problema”.
Obama ainda acrescenta que “chegou a hora de fazer a transição para uma era de energia limpa. Sabemos que isso tem custos, mas que temos de enfrentá-los agora”. Mas parece desorientado sobre as acções a tomar, parece não saber o que fazer e espera por soluções: ”Existem muitas ideias, e espero ver pô-las em prática para resolver o problema. O que não podemos é ficar parados”. Faz um apelo à fé na América: “Se nós fomos capazes de produzir tanques e aviões na Segunda Grande Guerra, e colocámos um homem na Lua, teremos de ser capazes de enfrentar e resolver também o presente desafio”. E conclui invocando a Deus: “Esta não é, certamente, a última crise que América terá de enfrentar. Rezo por dias melhores”.
Desde que Dick Cheney, confrontado com a necessidade de alterar os hábitos americanos de consumo, exprimiu a opinião de que o “american way of life” é inegociável, a sociedade americana parece ter entrado numa espiral de cegueira colectiva, da qual só sairá perante algum choque imprevisível e certamente muito doloroso. Os ventos não correm de feição para a manutenção do “american way of life” E, tal como Carter, também Obama corre o risco de não vir a ser eleito para o segundo mandato.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Nocturno

No lusco-fusco eléctrico do bairro, na cerração do terraço, sinto passarem vultos de gaivotas a vaguear na neblina. Mal-contentes com os destroços da maré, aventuram-se à cidade.
As gaivotas que voam no escuro hão-de ser pássaros cegos. Se vissem bem, só voariam de dia.

O mestre morreu...

... e isso é por força destino natural, uma vez feito o que havia a fazer. O mestre fê-lo, em modo mais-que-perfeito.
Com o Levantado do Chão, em 1980, deu-nos a ler uma linguagem nova. E uma outra maneira de contar que os ouvidos já nos tinham esquecido, e da qual só restam reminiscências na oralidade popular mais funda. Com o Memorial do Convento, em 1982, passou literariamente a coisa a limpo, e entrou para a santíssima trindade da pátria literatura.
Já tinha passado a Viagem a Portugal, bem menos saudada do que merecia. E depois, com O Ano da Morte de Ricardo Reis, O Evangelho segundo Jesus Cristo e o Ensaio sobre a Cegueira, pôs a ler-nos a Europa inteira, cheia de inveja de nós. Aconteceu-nos três vezes, ao longo da longa história.
Quanto ao resto, e respeitando os juízos divergentes, é mais efeito de inércias de mercado do que objecto relevante.
Em todo o caso, merecê-lo, agora, é connosco, fazendo o que nos compete. Mas não abundam as tradições positivas, e o que mais nos sobeja é o mau exemplo. A cabeça da República e a coroa da Monarquia nada prometem de bom. São as mesmas tradições da velha pátria galdéria, que o mestre desprezava e metem dó.

O desastre do golfo do México


Com vénia do dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

O desastre que, no golfo do México, originou a explosão da plataforma petrolífera "Deepwater Horizon", e danificou as tubagens de recolha, está a provocar o derramamento no mar de milhões de litros de crude por dia. Pelo seu impacto e gravidade, esta catástrofe ambiental já foi comparada ao acidente de Chernobyl, na Ucrânia, e mesmo ao 11 de Setembro. Os americanos estão atónitos, e alguns parecem mesmo aterrorizados com a situação que se vive. Sobretudo com a incapacidade que a BP está a demonstrar em lidar com a situação.
A mancha de crude já avançou para os "sapais" da costa, e ameaça destruir esses frágeis ecossistemas que são fontes de vida e onde se reproduzem muitas espécies marinhas. Muitos já duvidam da capacidade da BP para controlar o derrame, fala-se mesmo que ele poderá continuar até o petróleo subjacente se esgotar naturalmente. Poderá ser necessária a intervenção da US Navy, e há até quem advogue que se faça explodir uma bomba atómica de profundidade para selar o “buraco” por onde sai o petróleo.
Os custos deste desastre são incalculáveis. Há dias Matt Simmons, conhecido especialista em petróleo, declarou que esta situação, a não ser rapidamente resolvida, pode levar a BP à falência, tais são os custos e os processos judicias (mais de 6000!) que terá de suportar. Tais declarações provocaram, de imediato, um rombo de mais de 10% nas acções da companhia.
Este catastrófico acidente vem colocar interrogações sobre a segurança da exploração de petróleo em jazidas submarinas, sobretudo em águas profundas. O presidente Obama já adiou por seis meses a concessão de licenças para novas perfurações ao largo da costa americana do golfo do México. Desde há alguns anos que a exploração de petróleo em águas profundas tem vindo a aumentar, e representa já uma boa parte da actual produção de petróleo. As zonas onde existem estas explorações são o Golfo do México, a costa africana (Angola, Golfo da Guiné) e as promissoras bacias do litoral brasileiro ao largo de Santos. Admite-se que existam outras zonas com elevado potencial, como é o caso das zonas polares a norte do Alasca e da Sibéria, do “offshore” do Canadá e da Gronelândia.
Num mundo marcado pela crise e pela incerteza, este caso ensombra ainda mais o panorama da retoma da economia. E vem alertar para os problemas ambientais ligados à extracção de crude e de carvão. Casos menos mediáticos, mas tanto ou mais gravosos do que este, (como sejam o da exploração das areias betuminosas da província de Alberta no Canadá, ou a contaminação aquática na Nigéria), poderão a partir de agora ser trazidos para a ribalta, na sequência do que se passou no golfo do México.
Quando se trabalha na fronteira dos limites da complexidade os riscos aumentam, aparecendo com maior frequência as ocorrências anómalas e de consequências devastadoras, os chamados “cisnes negros”. É como se existisse uma válvula de escape do planeta, que funciona quando deixamos de ser capazes de controlar os riscos. A lembrar-nos, constantemente, que se não actuarmos na defesa do ambiente, a natureza actuará por nós…

Caminhada do Solstício

Os caminheiros vieram do Norte e aqui deram início à Caminhada do Solstício em Riba-Côa, iniciativa conjunta da Associação Rio Vivo e da ASTA (Associação Socio-Terapêutica de Almeida).
Esta primeira caminhada teve lugar em S. Pedro do Rio Seco, uma aldeia que, tendo gerado homens do pensamento, não preza menos a acção.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Almoço grátis

Houve um tempo em que a viagem, de Riba-Côa às chaminés de Leça, demorava uma semana. Hoje bastam duas horas. Foi isso que eu gastei um dia destes, entalado entre três carrões escuros, A25 adiante.
Ora agora passo eu, ora agora passas tu, pois que Viseu já passou, sempre a abrir até ao Caramulo em aguerrida folia, é um gosto andar assim. Além disso as portagens são SCUT, diz um ministro e crêem os viajantes, por causa da interioridade, por causa das regiões deprimidas, por causa dos níveis de rendimento, por causa da falta de alternativas, por variados equívocos. E aguentei-me no balanço, até que apareceu Albergaria e me salvou.
Eu entrei nas portagens da A1, eles seguiram em frente. - Vão torrar para a Costa Nova, os maganões! - pensei cá com os meus botões. E sosseguei.
Na portagem dos Carvalhos paguei 3 marcos e quinze, desviei para o IP1 e lá fui na direcção do Freixo. Porém, a páginas tantas, surgem duma betesga os três carrões, que não foram afinal torrar-se para a Costa Nova. E dei comigo outra vez ensanduichado.
- Otário! - gritou-me um deles, e seguiu, que eu já não estava para festas. Mas ficou-me a injúria no ouvido, e mais tarde investiguei.
Três minutos além de Albergaria, os três carrões entraram na A49, que vai para o Porto ao lado da A1. Além de Espinho desviaram para a A51, que ruma a leste e os deixou no IP1. E assim nos voltámos a encontrar. Percorreu a quadrilha 250 quilómetros de SCUT, sem pagar um metro de portagem. Paguei eu, pela minha ignorância.
Foi bem feito! Quem me manda a mim desconhecer que em Portugal os almoços são de borla, e o governo é que os paga?! Que os alemães fabricam carrões escuros, e se esfalfam a trabalhar para nós?!

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Os caminhos da Europa

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

Por causa desta crise maldita, a velha Europa, berço e matriz da civilização global, vive momentos conturbados e está numa encruzilhada. De repente, os estados deram-se conta de que os “deficits” e a dívida estão a corroer as economias, e que é urgente tomar medidas. A União Europeia, que parecia uma sólida construção, mostra algumas brechas e ameaça desmoronar-se. O Euro já não é a “cola” forte que se julgava ser para cimentar a União. E até já se questiona a sobrevivência do “estado social”, essa conquista do pós-guerra julgada “irreversível”, e que é o mais forte estabilizador das democracias.
Estão a esgotar-se os recursos energéticos e minerais da Europa: na Inglaterra e na Alemanha já não se extrai carvão das minas; na França a energia eléctrica é produzida em centrais nucleares; mas a França não tem urânio, e tem de importar todo o que necessita para alimentar as suas centrais.
O petróleo do mar do Norte (que muito contribuiu para resolver a crise associada ao choque petrolífero de 1980) está num processo de lento mas inexorável esgotamento, a tal ponto que a Inglaterra, de país exportador, passou a importador, desde 2006. O mesmo se passa na Noruega que, por causa do petróleo, não quis pertencer à UE, e que tem visto decrescer a sua produção e exportação de gás natural e de petróleo.
O gás natural (que aquece as casas do europeus no Inverno, e alimenta muitas das suas centrais eléctricas) é outro dos grandes problemas na Europa. Talvez mesmo o maior, sob o ponto de vista energético. A produção interna europeia de gás natural está a diminuir continuamente, e dentro de 10 anos a dependência externa será superior a 60%. A forma mais conveniente e mais barata de importar o gás natural é por “pipeline”. E, nesse aspecto, a Europa está actualmente dependente da Rússia e do Norte de África. Espreita para as grandes reservas da Ásia Central, do Irão e do Qatar, e planeia construir, através da Turquia, um gasoduto para lá chegar, o Nabuco. Com isto vai-se aproximando do "vespeiro", e ameaça entrar nas coutadas energéticas dos EUA, da China e do Japão, com consequências ainda imprevisíveis.
A dependência energética da Europa é, a prazo, o seu principal problema. Sem energia, ou com energia cara, não há crescimento económico. Ora o nosso actual modelo económico baseia-se num sistema de crédito, alimentado, e só possível, pelo crescimento da economia. É isso que permite (tem permitido, até agora) criar dívida de forma continuada. E surge a clássica pergunta do ovo e da galinha: é a falta de crescimento que provoca a falta de crédito, ou é a falta de crédito que provoca a falta de crescimento? Porque é que não há crescimento? - perguntará alguém. São os recursos, menino! - responderia o Eça. É que a história do ovo e da galinha está mal contada, galinha e ovo não chegam para gerar o "pinto". Faz falta o galo, que todos excluem da adivinha.
Ora, no caso da Europa, o galo é a energia. A Alemanha, "oficina" e motor económico da Europa, e um dos maiores credores dos próprios países europeus em dificuldades, sente-se ameaçada pela concorrência tecnológica da China, da Índia, e até do Brasil. E vê com preocupação a crise dos vizinhos que vão deixar de comprar-lhe os BMW´s.
Enfim, só problemas, e poucas soluções à vista. É minha convicção que, a médio/longo prazo, a Europa e a Rússia vão ter de entender-se. É um casamento de mútua conveniência, uma vez que se trata de países cultural e historicamente próximos e com economias complementares. Para a Rússia é a forma de contrabalançar o crescente poderio da China. Para a Europa é uma forma de resolver o problema energético e, ao mesmo tempo, abrir um vasto mercado e um vasto território aos seus produtos e à sua tecnologia. Os Estados Unidos verão nisto uma traição ao espírito da Nato, e não irão apadrinhar este eventual enlace. A Inglaterra vacilará, e a tensão poderá regressar ao Velho Continente.

O grito

Pelicano da Flórida. A mais-que-perfeita imagem da mãe Terra, caída nas unhas duma espécie predadora.

sábado, 12 de junho de 2010

Desassossego

Tarde foi. Mas no entanto, graças ao 25 de Abril e à integração na Europa, Portugal acabou por conhecer os 30 anos gloriosos, abreviados a quinze.
Os portugueses desforraram-se de séculos, viveram a liberdade, reivindicaram direitos, quezilaram sem censura, vestiram roupa lavada, foram às urnas de voto, ganharam dois pés de altura, rasgaram estradas novas, fizeram férias exóticas, encharcaram-se em consumo, hipotecaram-se ao banco, esqueceram a miséria, e puderam entrever o que era a cidadania.
Mas a pátria portuguesa é que não fora talhada, desde há muito, para ser mãe dos filhos todos. E a pouco se resumia a aritmética do pátrio sossego. Três quartos dos portugueses não passavam de enteados, com o único destino de resistir à miséria e fazer filhos. E desde os fumos da Índia, que haviam de enriquecer os negreiros do império, emigravam aos milhões: para o Brasil, para a América, para a Austrália e o Canadá, para o Congo ou a Argentina, para o Maranhão outra vez, para os subúrbios da Europa finalmente. Ou vegetavam na condição de servos, para que os poucos restantes fossem cidadãos inteiros.
Rodeadas de prebendas e de vícios, as elites novas, como as velhas, não sabiam, nem dava jeito sabê-lo, o que é uma sociedade democrática. Não conheciam, nem conviria aprendê-lo, o que é uma sociedade moderna. Não imaginavam, nem dava lucro pensá-lo, o que é uma sociedade produtiva. Nem dar-se ao trabalho de gerir uma sociedade complexa.
O resultado é um geral desassossego, mais que tudo para as elites. Se pudessem, já tinham ido bater ao portão do quartel do general de Braga. Não podendo, esperam que os enteados emigrem outra vez. A ver se a história se repete.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

O mundo de hoje imaginado há 100 anos

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

Há tempos, chamou-me a atenção um artigo escrito em 1900, que continha um conjunto de previsões, ou antevisões, para o ano 2000. Foi publicado no “The Ladies Home Journal”, uma revista americana, e ainda hoje a sua leitura faz as delícias de quem o lê. Uma outra publicação de 1910, neste caso uma sequência de "quadros", mostrando uma antevisão do ano 2000, pertencentes a uma colecção da Biblioteca Nacional de França, ajuda-nos a conhecer a percepção que os nossos avós tinham do futuro.
Confrontando a realidade dos nossos dias com as previsões ali apresentadas, chega a ser chocante a “ingenuidade” dos autores, tanto do artigo como dos "quadros". Mas vale a pena revisitar e reflectir sobre estas conjecturas, pois elas ajudam-nos a entender a mentalidade de quem as produziu, a compreender melhor o mundo que nos rodeia, e até a própria dinâmica da evolução das ideias ao longo dos tempos. Podemos até sentir-nos estimulados a fazer o exercício de tentar antever o mundo daqui a 100 anos.
É certo que, há um século atrás, o ano "2000" era uma data mítica, vista em simultâneo como fim de século e como fim de milénio. Isso, julgo eu, ajudava a inflamar as mentes. Por outro lado, o tempo futuro parece mais extenso do que o tempo passado. A nossa mente habitua-se a olhar para uma data futura como representando uma “distância” enorme, e que depois nos parece muito mais curta do que havíamos imaginado. Quando apareceu o “1984” de Orwell ou o “2001 Odisseia no Espaço” de Kubrick, parecia que o tempo que faltava havia de permitir realizar todos os sonhos. E, afinal, essas datas, vistas pelo "retrovisor" do tempo, estavam “logo ali”.
Nestas previsões de há 100 anos sobressai uma crença ilimitada na tecnologia. A electricidade é ali apresentada como uma coisa milagrosa. Fala-se ingenuamente de navios movidos a electricidade cruzando o oceano, como se a electricidade pudesse ser transportada a bordo de um navio. E, constatamos hoje, a incapacidade de, nesse tempo, se perceber aquilo que foram os verdadeiros grandes saltos tecnológicos: a televisão, a informática, a internet, e até o avião. O carvão era a forma energética que tinha revolucionado o mundo e tinha conduzido ao progresso. Mas já se apresentava como uma coisa do passado, algo sujo e desinteressante. E que, acreditava-se, a energia eléctrica iria tornar obsoleto. O petróleo era conhecido, mas o seu potencial estava por adivinhar. E o nuclear nem sequer era imaginado.
Em 1900, o mundo ainda estava extasiado com os ecos da Exposição Universal de Paris, e vivia-se uma revolução tecnológica. Parecia não haver limites para os sonhos do homem. Júlio Verne, melhor que ninguém, encarna esta visão nos seus livros. Entre nós, ficou-nos a “Cidade e a Serras” do nosso Eça, que confronta o “novo mundo”, isto é, a civilização, com o campo ou as serras. E que, ao arrepio da tendência dominante, toma partido pelo campo e desaprova as “modernices” de Jacinto, que morava nos Campos Elísios e já tinha elevador.
Não se falava de limites do crescimento, e questões como o esgotamento dos recursos, a poluição ou o aquecimento global nem sequer eram afloradas. Falava-se do progresso, dum Mundo super-organizado, mas não se antecipavam os custos da complexidade que isso iria provocar.
Apesar de tudo, nas previsões do "Ladies Home Journal" impressionam alguns acertos. Fala-se do telégrafo, do telefone universal, do envio de imagens a longa distância, e da perfeita reprodução fotográfica da cores da natureza. Até já se dizia que os homens do futuro iriam ser mais altos. Vê-se apenas o lado bom do homem, o optimismo prevalece. Mas é uma visão “ocidental”, onde não se vislumbra o acesso dos “bons indígenas” à emancipação e à igualdade.

E daqui a 100 anos, como será o Mundo? O homem está hoje menos optimista, vive mais angustiado. E já ninguém imagina o futuro como a “reconstrução” do Éden. Já não temos Júlio Verne, mas temos os livros e os filmes que nos falam do colapso (2012) e nos mostram as ruínas das grandes cidades depois de cataclismos, de pestes, do extermínio nuclear, de novas idades de gelo.
O mundo de hoje é um mundo pessimista em relação ao futuro. Infelizmente parecem sobrar razões para que o seja.

Abandono

Barack Obama declarou "abandonar" a luta contra o terrorismo, e já não era sem tempo. Invenção magistral da quadrilha de Bush, Dick Chenney e outros criminosos internacionais, o combate ao terrorismo global foi sempre mais ficção e menos realidade. Nunca passou de retórica para nos tapar os olhos. Enjeitá-la é um gesto de pudor elementar.

Insustentável

Não lhes bastando terem pela frente uma situação que arrisca o "insustentável", os portugueses têm atrás de si um insustentável presidente.

terça-feira, 8 de junho de 2010

A mobilidade

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

A minha avó paterna nasceu, cresceu e viveu numa remota aldeia da Beira Alta, e ali morreu com mais de 90 anos. A viagem mais longa que realizou – já no fim da vida – foi à cidade da Guarda, que dista cerca de 50 kms da aldeia natal. Por aqueles lugares, casos como este eram a norma desses tempos.
Num breve lapso de tempo de apenas duas gerações tudo mudou! Um dos aspectos que caracteriza o mundo global dos nossos dias, e o faz tão diferente do mundo da minha avó, é a grande mobilidade das pessoas. Mobilidade que hoje está associada, sobretudo, ao automóvel e ao avião. E, indirectamente, ao combustível que os faz mover: o petróleo.
A mobilidade transformou o nosso modo de viver. E modificou a própria paisagem, agora rasgada pelas grandes vias de comunicação, e balizada pelas luminárias das grandes cidades aeroportuárias. Fez nascer o turismo, o sector que mais gente emprega a nível mundial, deu vida aos subúrbios das grandes cidades, criou o "Centro Comercial”, secundarizou a vizinhança, e desfez a pequena comunidade. O automóvel e o transporte aéreo, juntamente com o desenvolvimento das telecomunicações, foram os principais factores responsáveis pela urbanização e pela globalização.
Criámos, entretanto, uma extrema dependência dessa mobilidade. Os jovens começam a ter o seu carro logo aos 18 anos; viagens que antes se faziam a pé fazem-se hoje de carro, às vezes até mesmo viagens incrivelmente curtas. As casas de férias, o trabalho longe da residência, só são possíveis com o automóvel. As próprias cidades estão desenhadas para o automóvel e não para as pessoas. Quase toda a actividade económica depende da mobilidade, e do transporte de mercadorias que ela permite.
Para os jovens de hoje, que não conheceram outros tempos, é muito dificil imaginar a vida sem automóvel e sem aviões. Mas a mobilidade, tal como a conhecemos, está ameaçada, e uma das consequências do "pico do petróleo" será a sua drástica redução. Não tenhamos ilusões: o automóvel eléctrico não será um sucedâneo do automóvel com motor de combustão interna, e não o vai substituir. Para o avião e para o camião de mercadorias não existem alternativas energéticas aos derivados do petróleo. A mobilidade no futuro será, pois, muito mais reduzida. E, por causa disso, o mundo do futuro será muito diferente do que hoje conhecemos, e convém que nos vamos preparando para isso.
A minha avó nunca viu o mar, e o mundo dela era mais pequeno do que o nosso. Mas talvez só na aparência isso assim fosse. Ela conhecia as ervas do campo, sabia entender os sinais que prenunciam a chuva ou o bom tempo, palmilhava os caminhos até gastar as solas dos sapatos, ou a madeira dos tamancos. Sabia cultivar a terra e tinha uma burra preta. Criava galinhas, e bebia o leite de uma cabra que ela cuidava e os netos pastoreavam. Secava as flores da macela, as flores do sabugueiro e as folhas da cidreira, e fazia com elas o chá que tomava para tratar das suas mazelas. A minha avó não sabia o que eram férias, nunca recebeu reforma, nunca usufruiu das benesses de um serviço de saúde.
Mas por muita nostalgia que eu sinta ao recordar o mundo da minha avó, sei que não iremos regressar a ele. O tempo não volta para trás, e o mundo do futuro não será um “regresso ao passado”. Temos de encontrar uma nova forma de prosperidade. O caminho para ela existe, e temos de acreditar que vale a pena fazê-lo.

Adagiário - 1

Do cerejo ao castanho, bem me avenho.
Já do castanho ao cerejo, mal me vejo!

Navegadores

Já lhes chamaram pior, verdade seja dita. Tugas foi um ultraje pós-moderno, uma supina tolice. Mas desta vez o professor esmerou-se, foi rever as epopeias nacionais, e chamou Navegadores Novos aos rapazes da equipa nacional. É mais um desconchavo patriota.
Oxalá eles alcancem o rio dos bons sinais, mas que não passem além. Se vão à Índia outra vez, lá fica o reino mais quinhentos anos com um pesadelo muito antigo às costas.

Velho do Restelo

É das figuras mais injuriadas e mais caluniadas do sótão da nossa história. E no entanto o poeta deixou dele uma visão positiva, sem auréolas pintadas nem coroas de louro falso.
Era um velho de aspeito venerando, tinha um saber real só de experiências feito, e tirou do experto peito anátemas de bom-senso: contra a glória de mandar e a vã cobiça, contra a temeridade que põe em risco a vida, contra as falsas promessas que o povo néscio enganam, contra a vaidade que enleva a fantasia, contra a crueza e feridade a que puseram nome esforço e valentia.
Estas sentenças tais o velho honrado/vociferando estava... E ficou vociferando, e vocifera ainda, enquanto partem as naus da nossa praia das lágrimas.
Tresleram-no desde logo os poderosos do reino, que das misérias alheias sempre encheram a barriga. Crismaram-no de timorato e de cobarde. O néscio povo seguiu-lhes o exemplo, e agora já é tarde para mudar.

Literatura

A distância entre o escritor e o escriba é a mesma que vai da arte ao passatempo, do texto literário à redacção avençada.
Só é literatura o que germina nas tripas e forceja por achar uma saída. A estreita porta que usa é a voz que lhe dá vazão, já lhe chamaram estilo e não se compra.
Do que ainda não foi dito, e do modo de o dizer, é que a literatura é feita. Tudo o mais são gestos de amanuense. São produtos de mercado, que um manufactor chinês produz muito mais barato.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Declaração de interesses

A sociedade que mais temo é a chinesa, a maoísta. É muito bem capaz de me condenar à morte, só para me extrair o fígado à socapa e traficá-lo.
A que tomo por mais falsa e deletéria é a sociedade americana. É tão pragmática e eficaz, que aliena o mundo inteiro na certeza de que a felicidade está numa coca-cola, numas botas de cow-boy, e num balde com três quilos de pipocas.
Aquela que menos prezo é a inglesa, de aristocratas falidos. Trocou uma história de realizações notáveis, uma tradição cultural que faz inveja, e uma indústria que já foi de ponta, pelas migalhas ilusórias dum banquete neoliberal.
E a que mais pena me dá é a portuguesa, onde o povo sobrevive por milagre. Anda há séculos a fingir que é, sem nunca ter existido.

São Roque


Há mais de cinquenta anos o Rasga foi ao São Roque com a mulher, ela cheia de fé, ele com muita sede, como sempre, até a cirrose o consumir. A feira e a romaria partilhavam a data e o espaço. Não sei das promessas dela, as mulheres lá tinham contratos com os santos, não era costume explicitá-los, ele tinha as mãos cheias de cravos, coisa de rapaz, julgava que era feitio. A mulher dissera-lhe que havia de ir ao São Roque, o Maravilhas curou-se, o ti Velho também, pelas outras aldeias ia a mesma devoção, os resultados eram de monta. O Rasga até tinha pensado no ferrador, não para ferrar o macho, ele queimava os cravos mas eram grandes as dores, ficavam as mãos com marcas piores que a cara do medo com as bexigas, e a febre, às vezes, levava a gente.
Já se acostumara, não valia a pena ralar-se, o pior era a mulher a azucrinar-lhe os ouvidos, tens de ir ao São Roque, se trabalhasses em vez de beberes havias de ver o incómodo, eu faço-te companhia, és um herege, uma oração, uma pequena esmola, dois cruzados, um quartinho no máximo, o São Roque não é interesseiro, vens de lá bom, levas a burra que já mal pega em erva, enjeita os nabos, não temos feno, há-de morrer-nos em casa, além do prejuízo vais ser tu a enterrá-la, podias vendê-la.
E lá foram os três, que a burra também contava, partiram quando a Lurdes e a Purificação já levavam uma légua de avanço, tinham bestas lestas e levantavam-se cedo, era mister que se antecipassem aos homens que quando chegavam logo queriam matar o bicho e os negócios não podiam fazer-se sem haver onde pagar o alboroque.
O Rasga, mal chegou, pediu três notas pela burra a um da Parada que lhe ofereceu duas, a mulher do da Parada ainda o puxou, homem para que queres a burra, o rachador do Monte meteu-se logo, isto não é assunto de mulheres, tinham que fazer negócio, tem que tirar alguma coisa, não tiro, dou-lhe mais uma nota de vinte, tiro-lhe essa nota, nem mais um tostão, e o do Monte a dizer racha-se, vários a apoiar, fica por duas notas e meia, o rachador a agarrar-lhes as mãos, estranha união, e a fazer com a sua um corte simbólico, deram as mãos estava feito o negócio, um tirou cinquenta o outro deu mais cinquenta, consumada a liturgia logo assomou meia nota de sinal, faltavam duas que apareceriam quando lhe entregasse o rabeiro, vai uma rodada, paga o vendedor que recebeu o dinheiro, primeiro um copo para o comprador e outro para o vendedor, o rachador a seguir, depois para todas as testemunhas, outra rodada paga o comprador, outra ainda, esta pago eu, diz um da Cerdeira, não quero mais diz o de Pailobo, morra quem se negue, praguejou um da Mesquitela, olha vem ali o Proença da Malta, grande negociante, como está, disseram todos, uma rodada, pago eu, diz o Proença, mas a minha primeiro, exigiu o da Cerdeira com agrado geral, e ali ficaram a seguir os negócios, os foguetes e a festa, e a tirar o chapéu e a agradecer ao Proença quando este foi dar a volta pelo sítio do gado onde já se encontrava o Serafim dos Gagos a disputar-lhe o vivo e a pôr a fasquia aos preços.
Findas a feira e a festa, esta terminou primeiro, um dos padres ainda tinha de levar o Viático a um moribundo de Pínzio, o Rasga e a mulher vinham consolados, ela com a missa e a procissão, ele com duas notas e meia no bolso e o bucho cheio de vinho, ela a pensar na vida e ele a cambalear.
Algum tempo depois, perguntei ao Rasga o que era feito dos cravos. Ficaram no São Roque, menino, ficaram no São Roque.

Foi na colectânea PEDRAS SOLTAS que o talento do Barroco Esperança me deu a conhecer pela primeira vez os milagres do São Roque, ali num cabeço à margem do rio Côa. E agora levou-me lá uma caminhada que desceu as enconstas de Mido, entre penedias e carrascos.
O São Roque ainda lá está, no cimo da colina, apagado pelo duplo viaduto duma autopista moderna. Mas já não é pretexto de negócios, nem alento de fés e devoções. Também já não faz milagres, mal o meu, não tive a sorte do Rasga. Vim de lá com um pé estraçalhado.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Flor de xadrez?

Schachbrettblume! Flor do tabuleiro de xadrez?! Flor de xadrez?!
Não sei. É pouco vista e belíssima, e lá sobrevive no seu canto, a mil metros de altitude. Valeu bem os 50 quilómetros de estrada de montanha, só para a ver.
Quem ma ensinou, pelo nome que a conheço, foi uma amiga alemã, aqui há 20 anos. Só podia ser a tetraneta de Link.