Cansada das cidades de betão e das insalubridades da vida, a multidão voltou ao portão do paraíso, a suspirar por delícias perdidas. Mas o rijo coração do criador manteve-se empedernido, não se deixou comover. A menos que lhe fosse devolvida a maçã original.
segunda-feira, 30 de março de 2009
domingo, 29 de março de 2009
sexta-feira, 27 de março de 2009
Vidas vãs - 7
(...)
Tudo isto me contou o meu sócio, em breve assim o poderei chamar, num dia em que lhe pedi que me arredondasse uma carta para a mulher, quando lhe mandei um bilhete de tostão, sem saber se alguma vez chegaria ao destino. Tudo isto e mais me contou o meu sócio, antes de me falar das revoltas de seles, de ambuílas e de sumbes a que ele próprio sobreviveu, sempre a reclamarem a impossível devolução das terras ocupadas pelas fazendas de café dos brancos, antes de me falar da morte da mulher levada pela biliosa sem que parisse filhos, esta terra é um cemitério de brancos, dizia ele, varados pelas azagaias dos pretos que descem a galopar dos morros ou sucumbindo a tremer aos febrões da malária que enxameia dos pântanos às primeiras chuvadas, é esse o mais certo destino que temos, não fossem os cardumes de filhos mulatos que por aí ficam a escorregar nas encostas, e nem se dava conta de que um homem tinha passado pela vida. Verdade ou mentira, dizia-se que ele deixava a sua conta, sem que tivesse apadrinhado algum.
Um dia morreu, tão surpreendido que me deixou nas mãos a gerência do estabelecimento, e o que logo às minhas crenças pareceu difícil viria em breve a revelar-se impossível. A rotina das horas a cumprir, a diária mesquinhez gananciosa que este ofício me pede, o sorriso de falsa humildade perdido com cada freguês, não é isso que me está na cabeça, e são estas contas muito mais do que eu posso fazer. Ninguém mudará o seu destino, e a condição com que nascemos com ela havemos de morrer, talvez por isso o mundo seja o que se vê, acaso estarão bem escritos os já falados livros da criação.
As contas da loja em breve hão-de ameaçar ruína, e um dia, para surpresa minha e puro capricho deste imprevisível mundo, chegará à baía de Benguela e descerá o portaló dum cansado vapor o meu filho mais velho, que fados o terão trazido até aqui, para me voltar a ver, disse ele, e procurar vida, será ele a solução para este meu caso, isto hei-de pensá-lo eu, com dois dias de escola que terá. Afinal sempre chegou ao destino o tostão malfadado, e mais pequeno é o mundo do que o tanto que parece. Assim ele virá e em breve há-de sucumbir aos febrões da malária que sobre dos pântanos, de olhos muito abertos numa surpresa infinda, bem verdade é ser esta terra um cemitério de brancos. Em seguida fecharei para sempre as portas do estanco, hei-de varrer da memória as paisagens e caminhos que os olhos me guardaram até hoje, hei-de esquecer-me de que alguma vez existi e me cansei de fazer ao mundo perguntas sem resposta. Juntarei as duas pretas que se ocupam da lavra de mandioca nesta cubata do bairro da Peça de Benguela, e talvez as névoas do maruvo me deixem ver ainda os cardumes de mulatos a miar morro abaixo, arrastando na poeira brinquedos feitos à mão, a caminho das margens da baía. O sol afogar-se-á todos os dias no mar, a deslado do morro do Sombrero, tingindo o céu do rubro das acácias. E talvez eu me dissolva nas memórias do mundo, se algum neto se não puser um dia a escrevinhar a minha história vã.
Tudo isto me contou o meu sócio, em breve assim o poderei chamar, num dia em que lhe pedi que me arredondasse uma carta para a mulher, quando lhe mandei um bilhete de tostão, sem saber se alguma vez chegaria ao destino. Tudo isto e mais me contou o meu sócio, antes de me falar das revoltas de seles, de ambuílas e de sumbes a que ele próprio sobreviveu, sempre a reclamarem a impossível devolução das terras ocupadas pelas fazendas de café dos brancos, antes de me falar da morte da mulher levada pela biliosa sem que parisse filhos, esta terra é um cemitério de brancos, dizia ele, varados pelas azagaias dos pretos que descem a galopar dos morros ou sucumbindo a tremer aos febrões da malária que enxameia dos pântanos às primeiras chuvadas, é esse o mais certo destino que temos, não fossem os cardumes de filhos mulatos que por aí ficam a escorregar nas encostas, e nem se dava conta de que um homem tinha passado pela vida. Verdade ou mentira, dizia-se que ele deixava a sua conta, sem que tivesse apadrinhado algum.
Um dia morreu, tão surpreendido que me deixou nas mãos a gerência do estabelecimento, e o que logo às minhas crenças pareceu difícil viria em breve a revelar-se impossível. A rotina das horas a cumprir, a diária mesquinhez gananciosa que este ofício me pede, o sorriso de falsa humildade perdido com cada freguês, não é isso que me está na cabeça, e são estas contas muito mais do que eu posso fazer. Ninguém mudará o seu destino, e a condição com que nascemos com ela havemos de morrer, talvez por isso o mundo seja o que se vê, acaso estarão bem escritos os já falados livros da criação.
As contas da loja em breve hão-de ameaçar ruína, e um dia, para surpresa minha e puro capricho deste imprevisível mundo, chegará à baía de Benguela e descerá o portaló dum cansado vapor o meu filho mais velho, que fados o terão trazido até aqui, para me voltar a ver, disse ele, e procurar vida, será ele a solução para este meu caso, isto hei-de pensá-lo eu, com dois dias de escola que terá. Afinal sempre chegou ao destino o tostão malfadado, e mais pequeno é o mundo do que o tanto que parece. Assim ele virá e em breve há-de sucumbir aos febrões da malária que sobre dos pântanos, de olhos muito abertos numa surpresa infinda, bem verdade é ser esta terra um cemitério de brancos. Em seguida fecharei para sempre as portas do estanco, hei-de varrer da memória as paisagens e caminhos que os olhos me guardaram até hoje, hei-de esquecer-me de que alguma vez existi e me cansei de fazer ao mundo perguntas sem resposta. Juntarei as duas pretas que se ocupam da lavra de mandioca nesta cubata do bairro da Peça de Benguela, e talvez as névoas do maruvo me deixem ver ainda os cardumes de mulatos a miar morro abaixo, arrastando na poeira brinquedos feitos à mão, a caminho das margens da baía. O sol afogar-se-á todos os dias no mar, a deslado do morro do Sombrero, tingindo o céu do rubro das acácias. E talvez eu me dissolva nas memórias do mundo, se algum neto se não puser um dia a escrevinhar a minha história vã.
quinta-feira, 26 de março de 2009
Contemporaneidade precoce
A menina Kalashnikova é australiana. Tem dois anos e é pintora, da escola contemporânea.
Porém os críticos não estão pelos ajustes. Suspeitam de que há ali uma fraude qualquer, por uma questão de idade. E, quanto a fraudes, ninguém lhes faz, a eles, o ninho atrás da orelha.
As diversões que a criancinha pinta não são muito diferentes das macacadas dos colegas adultos, que os críticos avalizam, quando lhes pagam bem. E talvez sejam um dia arte contemporânea, se a menina ainda as pintar, quando tiver trinta anos.
Porém os críticos não estão pelos ajustes. Suspeitam de que há ali uma fraude qualquer, por uma questão de idade. E, quanto a fraudes, ninguém lhes faz, a eles, o ninho atrás da orelha.
As diversões que a criancinha pinta não são muito diferentes das macacadas dos colegas adultos, que os críticos avalizam, quando lhes pagam bem. E talvez sejam um dia arte contemporânea, se a menina ainda as pintar, quando tiver trinta anos.
Equívocos
É estreita, muitas vezes, a fronteira que separa a persistência da obstinação, o arrojo da temeridade, a firmeza da teimosia. Talvez por isso não faltam, nos anais dos pais da pátria, equívocos semelhantes. Sirva-nos o exemplo do império, cuja coerência veio da Praia das Lágrimas e só estancou no naufrágio colectivo.
Nos dias que vão correndo, e deixando aqui de lado o caso do aeroporto, será a persistência no TGV interno algo mais do que magnânima cegueira? Que sentido tem o fulgor da grande vitesse, alargada ao Minho e à Galiza, quando o pobre do Alfa pendular não dispõe sequer duma via em condições, para mostrar a excelência das suas qualidades? Que motivos e ganhos haverá, para ir além da ligação a Badajoz?
Bem sabemos que houve um tempo em que tudo eram grandezas, só têgêvês eram cinco, dos que paravam em todas! Mas isso eram burros de cigano, que vão à feira engraxados de fresco, para esconder as mataduras!
Nos dias que vão correndo, e deixando aqui de lado o caso do aeroporto, será a persistência no TGV interno algo mais do que magnânima cegueira? Que sentido tem o fulgor da grande vitesse, alargada ao Minho e à Galiza, quando o pobre do Alfa pendular não dispõe sequer duma via em condições, para mostrar a excelência das suas qualidades? Que motivos e ganhos haverá, para ir além da ligação a Badajoz?
Bem sabemos que houve um tempo em que tudo eram grandezas, só têgêvês eram cinco, dos que paravam em todas! Mas isso eram burros de cigano, que vão à feira engraxados de fresco, para esconder as mataduras!
quarta-feira, 25 de março de 2009
Vidas vãs - 6
(...)
*
Trouxe-nos o velho vapor até Benguela, neste fim das Áfricas. Trazia o ventre a abarrotar de pipas de vinho e rolos de riscado, de missangas de vidro e quinquilharias de feira, que deixavam a luzir os olhos infantis dos negros, descobri isso mais tarde. Mas primeiro ocupámo-nos da estiva, era uma azáfama na casa da alfândega, os comerciantes da cidade, com um barco de longe em longe, andavam sempre falhos de mercadorias. Soltavam pedidos para um lado e disparavam ordens para outro, e eu desde cedo percebi ser este estranho mundo mais fácil de entender do que o velho mundo que deixara. Aqui havia sempre alguém em quem mandar, o ponto estava em ter a pele branca e escorrido o cabelo, isso bastava para ter sempre razão e sempre ter poder. De repente senti que mudara a minha condição no mundo, tão imprevista e surpreendente mudança assim inesperadamente acontecendo, éramos ontem capacho do mundo inteiro, de mão estendida como ínfimos párias da criação, hoje abrimos os olhos espantados perante esta multidão que está aí suspensa dum capricho nosso, não há como servirmo-nos, assim fui eu vendo fazer. Na verdade as leis do mundo continuavam iguais, mesmo se outra coisa parece ele sempre gira para regalo de meia dúzia e grande escarmento do resto, apenas mudara nele o meu lugar. E a euforia que isso me trouxe depressa tomou conta de mim como uma embriaguez. Mais longe fiquei do antigo passado, e mais esquecido da pequenez de tudo o que deixara. Pensei que era este um bom lugar para um homem refazer a vida, dei-me por ausente na hora da partida do barco e ninguém esperou por mim.
Pouco passou e já eu trabalhava na loja dum velho colono a precisar de ajuda e de reforma. Os brancos eram poucos nesta imensidão, e havia entre eles uma desconhecida cumplicidade. Com ela procuravam tapar os olhos do medo que sempre traziam às costas, se alguma vez o confessavam, sob esta capa de arrogância agreste e gananciosa.
Ele comprara em tempos a baiuca a um português degredado, que um vapor aí desembarcou. O dito fura-bolos em breve se meteu no negócio das caravanas, era o tempo em que elas traziam do sertão, ao lombo de centenas de pretos, carregamentos de cera e de borracha, de peles e marfins, e esvaziavam no regresso as prateleiras de bugigangas das lojas. Assim arrebanhou escravos para as roças de São Tomé quando os negreiros já tinham acabado, aguentou as revoltas antigas de bailundos e cuamatos, largou as barulhentas caravanas liquidadas pelo comboio inglês que trepara entretanto ao planalto, e acabou por fundar o estanco neste bairro da Peça de Benguela.
(...)
*
Trouxe-nos o velho vapor até Benguela, neste fim das Áfricas. Trazia o ventre a abarrotar de pipas de vinho e rolos de riscado, de missangas de vidro e quinquilharias de feira, que deixavam a luzir os olhos infantis dos negros, descobri isso mais tarde. Mas primeiro ocupámo-nos da estiva, era uma azáfama na casa da alfândega, os comerciantes da cidade, com um barco de longe em longe, andavam sempre falhos de mercadorias. Soltavam pedidos para um lado e disparavam ordens para outro, e eu desde cedo percebi ser este estranho mundo mais fácil de entender do que o velho mundo que deixara. Aqui havia sempre alguém em quem mandar, o ponto estava em ter a pele branca e escorrido o cabelo, isso bastava para ter sempre razão e sempre ter poder. De repente senti que mudara a minha condição no mundo, tão imprevista e surpreendente mudança assim inesperadamente acontecendo, éramos ontem capacho do mundo inteiro, de mão estendida como ínfimos párias da criação, hoje abrimos os olhos espantados perante esta multidão que está aí suspensa dum capricho nosso, não há como servirmo-nos, assim fui eu vendo fazer. Na verdade as leis do mundo continuavam iguais, mesmo se outra coisa parece ele sempre gira para regalo de meia dúzia e grande escarmento do resto, apenas mudara nele o meu lugar. E a euforia que isso me trouxe depressa tomou conta de mim como uma embriaguez. Mais longe fiquei do antigo passado, e mais esquecido da pequenez de tudo o que deixara. Pensei que era este um bom lugar para um homem refazer a vida, dei-me por ausente na hora da partida do barco e ninguém esperou por mim.
Pouco passou e já eu trabalhava na loja dum velho colono a precisar de ajuda e de reforma. Os brancos eram poucos nesta imensidão, e havia entre eles uma desconhecida cumplicidade. Com ela procuravam tapar os olhos do medo que sempre traziam às costas, se alguma vez o confessavam, sob esta capa de arrogância agreste e gananciosa.
Ele comprara em tempos a baiuca a um português degredado, que um vapor aí desembarcou. O dito fura-bolos em breve se meteu no negócio das caravanas, era o tempo em que elas traziam do sertão, ao lombo de centenas de pretos, carregamentos de cera e de borracha, de peles e marfins, e esvaziavam no regresso as prateleiras de bugigangas das lojas. Assim arrebanhou escravos para as roças de São Tomé quando os negreiros já tinham acabado, aguentou as revoltas antigas de bailundos e cuamatos, largou as barulhentas caravanas liquidadas pelo comboio inglês que trepara entretanto ao planalto, e acabou por fundar o estanco neste bairro da Peça de Benguela.
(...)
Sovinice
O judeu é poupadinho há séculos, o que será um bem. Há mesmo quem lhe chame avarento há milénios, não sei se com razão. Mas uma certa escumalha sionista, dita representante da civilização ocidental, leva longe demais o vezo da sovinice, na guerra sem fim da Palestina. Ou andará, quem sabe, a poupar munições para estoirar os miolos, e assim fugir a despesas com a corda da forca!
terça-feira, 24 de março de 2009
Vidas vãs - 5
(...)
Passava as noites numa tarimba encostada ao fundo do vasto barracão, separada dos escritórios do patrão por uns tabiques de madeira, e a minha responsabilidade era manter o sossego das instalações e guardar as mercadorias. Eu aligeirava, claro, a minha tarefa, a um lado por me furtar a vigílias incómodas e dispensáveis, e a outro por haver sempre aberto um pipo, quando não um tonel, remédio santo em se tratando de arredondar a noite.
De dia era a vida mais agitada, havia sempre trasfegas a fazer e pipos a que limpar o sarro, os outros camaradas todos chamavam barris àquelas formas finas e bicudas, de longas aduelas estreitas, que os arreeiros recolhiam nas tascas e levavam de volta, estando cheias. E não acabava o dia enquanto houvesse uma carroça à espera de aviamento, atrás do olhar tristonho e paciente das mulas, que ouviam, resignadas, as boas e as más palavras dos patrões, muitas vezes esquecidos de lhes chegar o penso a jeito. Homens e bichos são afinal iguais por todo o lado, e estes já nem se assustam com o vozear do comboio a entrar na cidade, parece um animal aflito, estará apenas cansado, ou é o maquinista a anunciar que vai chegando ao fim a semana de ausência, alguém o ouvirá, quem sabe, além na encosta do bairro.
A mim, este pensamento só me traz desassossego. Nunca mais soube do que se passa em casa, onde também ninguém sabe de mim. Não tenho letras que cheguem para compor uma carta, e mais fraca é ainda a vontade que tenho de o fazer, tem a vida coisas assim, não sabe um homem se há-de arrepender-se dum gesto que ontem tomou, ou se há-de ficar contente por não ter hoje que viver de chapéu na mão.
O pago não era por aí além, ia-se nas despesas de alimentar o corpo e as outras dispensavam-se, o destino se ocuparia de calar a voz de algum filho que pedisse pão. Mas outro destino foi o que trouxe a praga da peste pneumónica que chegou à cidade, a princípio as pessoas falavam do caso como se estivesse longe e não fosse nada com elas, ali no armazém alguns até faziam graça da desgraça, beba-lhe um homem duas boas litradas por dia e não há moléstia que resista, eles lá sabiam. Mais tarde começaram a cair conhecidos, um parente, um vizinho coberto de bubões, as pessoas defumavam-se em casa com arruda e águas-bentas e evitavam os adjuntos. Mas isso já eu o não presenciei, que um dia vieram do rio uns marujos, traziam atrás uma corja de arreeiros a carregar uma partida de vinho que tinham que levar para a África. Fui com eles até ao cais, e vi pela primeira vez um barco de perto. Era um ferrabrás de metal e ferrugem, de tintas gastas e aspecto desleixado, trazia às costas uma alta chaminé escura que fumegava constantemente, fazia-me lembrar as máquinas que puxavam os comboios pela linha fora, sempre a vomitar vapor e fumarada, matraqueando nos carris. Estava preso ao cais por cordas mais grossas que os meus braços, e baloiçava ao sabor das águas como um velho animal cansado das viagens e indiferente ao mundo.
Creio que foi o cheiro daquilo tudo que me embruxou, se antes não era já o meu destino. Os marinheiros deixaram-me subir a bordo e por lá andei, e tudo aquilo era tão estranho, tão diferente do que eu conhecia, o mundo deve ser muito maior do que um homem imagina, se será melhor do que o pouco que a gente conhece. Tais eram os meus julgamentos, e foram eles que me levaram a pedir ao patrão que me desse trabalho no barco e me deixasse ir com eles para a África.
*
(...)
Passava as noites numa tarimba encostada ao fundo do vasto barracão, separada dos escritórios do patrão por uns tabiques de madeira, e a minha responsabilidade era manter o sossego das instalações e guardar as mercadorias. Eu aligeirava, claro, a minha tarefa, a um lado por me furtar a vigílias incómodas e dispensáveis, e a outro por haver sempre aberto um pipo, quando não um tonel, remédio santo em se tratando de arredondar a noite.
De dia era a vida mais agitada, havia sempre trasfegas a fazer e pipos a que limpar o sarro, os outros camaradas todos chamavam barris àquelas formas finas e bicudas, de longas aduelas estreitas, que os arreeiros recolhiam nas tascas e levavam de volta, estando cheias. E não acabava o dia enquanto houvesse uma carroça à espera de aviamento, atrás do olhar tristonho e paciente das mulas, que ouviam, resignadas, as boas e as más palavras dos patrões, muitas vezes esquecidos de lhes chegar o penso a jeito. Homens e bichos são afinal iguais por todo o lado, e estes já nem se assustam com o vozear do comboio a entrar na cidade, parece um animal aflito, estará apenas cansado, ou é o maquinista a anunciar que vai chegando ao fim a semana de ausência, alguém o ouvirá, quem sabe, além na encosta do bairro.
A mim, este pensamento só me traz desassossego. Nunca mais soube do que se passa em casa, onde também ninguém sabe de mim. Não tenho letras que cheguem para compor uma carta, e mais fraca é ainda a vontade que tenho de o fazer, tem a vida coisas assim, não sabe um homem se há-de arrepender-se dum gesto que ontem tomou, ou se há-de ficar contente por não ter hoje que viver de chapéu na mão.
O pago não era por aí além, ia-se nas despesas de alimentar o corpo e as outras dispensavam-se, o destino se ocuparia de calar a voz de algum filho que pedisse pão. Mas outro destino foi o que trouxe a praga da peste pneumónica que chegou à cidade, a princípio as pessoas falavam do caso como se estivesse longe e não fosse nada com elas, ali no armazém alguns até faziam graça da desgraça, beba-lhe um homem duas boas litradas por dia e não há moléstia que resista, eles lá sabiam. Mais tarde começaram a cair conhecidos, um parente, um vizinho coberto de bubões, as pessoas defumavam-se em casa com arruda e águas-bentas e evitavam os adjuntos. Mas isso já eu o não presenciei, que um dia vieram do rio uns marujos, traziam atrás uma corja de arreeiros a carregar uma partida de vinho que tinham que levar para a África. Fui com eles até ao cais, e vi pela primeira vez um barco de perto. Era um ferrabrás de metal e ferrugem, de tintas gastas e aspecto desleixado, trazia às costas uma alta chaminé escura que fumegava constantemente, fazia-me lembrar as máquinas que puxavam os comboios pela linha fora, sempre a vomitar vapor e fumarada, matraqueando nos carris. Estava preso ao cais por cordas mais grossas que os meus braços, e baloiçava ao sabor das águas como um velho animal cansado das viagens e indiferente ao mundo.
Creio que foi o cheiro daquilo tudo que me embruxou, se antes não era já o meu destino. Os marinheiros deixaram-me subir a bordo e por lá andei, e tudo aquilo era tão estranho, tão diferente do que eu conhecia, o mundo deve ser muito maior do que um homem imagina, se será melhor do que o pouco que a gente conhece. Tais eram os meus julgamentos, e foram eles que me levaram a pedir ao patrão que me desse trabalho no barco e me deixasse ir com eles para a África.
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(...)
segunda-feira, 23 de março de 2009
Vidas vãs - 4
(...)
*
Depois de muito peregrinar e muita fome engolida, dei comigo um dia a trabalhar num armazém de vinhos do Beato, à entrada de quem vai para Lisboa. Às vezes parecia-me que nada tinha sentido, e que o mundo era uma grande romaria sem ordem nem destino, onde erravam ao acaso os vagabundos como eu, para quem não havia lugar certo. Mas eu já tinha aprendido a grande escola de não fazer perguntas ao mundo, farto de saber que ele não tinha respostas para me dar. Calava-me a assistia a tudo com indiferença, ao esbracejar dos homens e aos afagos da chuva quando vinha, aos incómodos tanto como aos prazeres de cada dia. Trazia comigo a grande ciência do silêncio, e esta muito maior de saber que o mundo, tal como é, gira para regalo de meia dúzia e grande escarmento do resto, como se tudo já estivesse escrito nos livros da criação, que nenhum homem pode mudar. Muito menos eu, que não tenho merecimentos nenhuns. Por isso me calava e virava costas.
E foi assim. Um dia apanhei o comboio para Lisboa e desci na estação de Braço de Prata. A bem dizer a cidade metia-me medo, mais pelo que imaginava do que por aquilo que dela conhecia, que era coisa nenhuma. Um homem passa a vida a ouvir falar dos males e perigos do mundo por aí além, e nunca fica a saber a verdade nem as intenções de quem fala. Cheguei aqui de saco sacudido, sem porta onde bater, de modo que me arreceei e fiquei por ali. Pus-me a andar ao longo da linha, havia umas casitas baixas encostadas em fila, como irmãs gémeas, era primavera e ainda me lembro da roupa que pendia ao sol nos quintais minúsculos, mal cabia neles um pé de alface e duas couves. Mas foi o drapejar da roupa branca que me pesou na alma e me fez afastar dali.
Ao cabo de algum tempo dei com um homem a gadanhar na horta umas ervas bravias, a linha do comboio a um lado e o largo rio a outro, e era tanta a água que assim devia ser o mar. Disse-me que era para os coelhos que tinha lá em casa, e tendo achado estranha a minha fala perguntou-me ao que andava, coisa a que eu não soube responder. Pedi-lhe emprestada a gadanha, e foi no decorrer do trabalho que ele repartiu comigo a merenda, e ficou a saber que vida era a minha. E no dia seguinte encaminhou-me para o armazém de vinhos onde fiquei.
(...)
*
Depois de muito peregrinar e muita fome engolida, dei comigo um dia a trabalhar num armazém de vinhos do Beato, à entrada de quem vai para Lisboa. Às vezes parecia-me que nada tinha sentido, e que o mundo era uma grande romaria sem ordem nem destino, onde erravam ao acaso os vagabundos como eu, para quem não havia lugar certo. Mas eu já tinha aprendido a grande escola de não fazer perguntas ao mundo, farto de saber que ele não tinha respostas para me dar. Calava-me a assistia a tudo com indiferença, ao esbracejar dos homens e aos afagos da chuva quando vinha, aos incómodos tanto como aos prazeres de cada dia. Trazia comigo a grande ciência do silêncio, e esta muito maior de saber que o mundo, tal como é, gira para regalo de meia dúzia e grande escarmento do resto, como se tudo já estivesse escrito nos livros da criação, que nenhum homem pode mudar. Muito menos eu, que não tenho merecimentos nenhuns. Por isso me calava e virava costas.
E foi assim. Um dia apanhei o comboio para Lisboa e desci na estação de Braço de Prata. A bem dizer a cidade metia-me medo, mais pelo que imaginava do que por aquilo que dela conhecia, que era coisa nenhuma. Um homem passa a vida a ouvir falar dos males e perigos do mundo por aí além, e nunca fica a saber a verdade nem as intenções de quem fala. Cheguei aqui de saco sacudido, sem porta onde bater, de modo que me arreceei e fiquei por ali. Pus-me a andar ao longo da linha, havia umas casitas baixas encostadas em fila, como irmãs gémeas, era primavera e ainda me lembro da roupa que pendia ao sol nos quintais minúsculos, mal cabia neles um pé de alface e duas couves. Mas foi o drapejar da roupa branca que me pesou na alma e me fez afastar dali.
Ao cabo de algum tempo dei com um homem a gadanhar na horta umas ervas bravias, a linha do comboio a um lado e o largo rio a outro, e era tanta a água que assim devia ser o mar. Disse-me que era para os coelhos que tinha lá em casa, e tendo achado estranha a minha fala perguntou-me ao que andava, coisa a que eu não soube responder. Pedi-lhe emprestada a gadanha, e foi no decorrer do trabalho que ele repartiu comigo a merenda, e ficou a saber que vida era a minha. E no dia seguinte encaminhou-me para o armazém de vinhos onde fiquei.
(...)
Dar à peanha
Um dia pôs-se a tocar o relógio do equinócio e acordou-o. E quando se lhe varreram da cabeça as neblinas sonâmbulas, abriu lentamente os olhos. Em breve se deu conta do vazio que lhe mordia no estômago.
Saiu da toca e passou a manhã refastelado, a ouvir os barulhos da charneca, a saborear no lombo o conforto das escamas, aquecidas pelo sol. E foi depois à caça da bicharada, que andava por ali desprevenida, com uma sofreguidão que há muito não sentia.
Foi assim o primeiro dia, um dia bem regalado. Mas agora tem a vida toda por fazer, e pouco tempo para ela. Há que dar à peanha e lá vai ele. Antes que voltem outra vez os incêndios da charneca, que o obrigaram a meter-se no buraco antes do tempo, no fim do verão que passou.
Saiu da toca e passou a manhã refastelado, a ouvir os barulhos da charneca, a saborear no lombo o conforto das escamas, aquecidas pelo sol. E foi depois à caça da bicharada, que andava por ali desprevenida, com uma sofreguidão que há muito não sentia.
Foi assim o primeiro dia, um dia bem regalado. Mas agora tem a vida toda por fazer, e pouco tempo para ela. Há que dar à peanha e lá vai ele. Antes que voltem outra vez os incêndios da charneca, que o obrigaram a meter-se no buraco antes do tempo, no fim do verão que passou.
sexta-feira, 20 de março de 2009
Vidas vãs - 3
(...)
Para aqui vivemos, esquecidos do mundo, como esses que há tempos chegaram aí ao povo, uns que foram levados para a guerra da Flandres. Escorreitos eram eles na hora da partida e assim vêm devolvidos como refugo, sem tino nenhum, transtornadas as cabeças dos gases das granadas, e arrombados os peitos do lamaçal gelado das trincheiras. Passam os dias cismáticos ao sol, quem saberá dizer em que paisagens se lhes perdem os olhos, para eles está a vida feita, se não ficou antes toda por fazer, acaso será esta, entre todas, a melhor solução, alhear-se de tudo.
O terceiro filho vem aí, para que estranhas guerras virá ele fadado, mas antes que chegue vamos nós ao mercado do Rabaçal e lá havemos de aprender, ou alguém nos ensinará, como se fazem os negócios, como se compra a este para vender àquele e guardar algum lucro, sempre será vida melhor, um porco ou uma cabrita nova, uma vitela se Deus quer, lá fumaremos um cigarro em sociedade para botar figura, e quando pudermos pagaremos uma rodada ao adjunto em volta, que sempre há-de ser a vida de negócio mais folgada do que esta que fazemos, e aprenderemos o ligeiro jogo das palavras que enganam a miséria alheia, ingénua seja ela, com essa podemos nós melhor que com a nossa própria. E em chegando a ocasião beberemos demais, e arrastaremos as noites por estúrdias e estancos, que um homem é do mundo e só à mulher competirá enrolar no avental as lágrimas da noite, no silêncio do lume que resiste, ou no choro dum filho inquieto, feita fora ela doutra coisa que não da costela do homem original.
E, quando chegar o terceiro filho, havemos de lhe contar ao serão a história do outro, que histórias são essas que estás sempre a tirar da cabeça, homem não sei se de Deus ou do diabo. Um dia, era ao serão, estava o outro em casa, e os filhos queixavam-se do escasso pão. E vai ele, que bom seria, mulher, termos nós dinheiro para comprar uma cabra, havíamos de levá-la à vez a pastar por esses caminhos, para ela encher a barriga de botões de silvas bravas, quando o sol, na primavera, constrói jardins nas paredes. E quando a noite chegasse, e a cabra voltasse a casa, íamos colher-lhe o leite, e as noites seriam longas, e a família cresceria, já viste mais alegria. Mas eu não gosto de leite, tornou o filho mais novo. Quando o Outono chegar, e as silvas ficarem duras, subo ao freixo do valado, e do mais viçoso ramo, se há-de fartar nosso gado, disse o outro, confiado. Mas eu não gosto de leite, insistiu o desgraçado. Numa breve conclusão, perdeu o outro a cabeça e ali mesmo obrigou o filho biqueiro a engolir duas grandes malgas de leite quente na companhia dos irmãos, que assim dormiram toda a santa noite, de barriguinha calada, o que seria do povo sem este grande engenho milagreiro.
Mas nós não temos dinheiro, nem cabra havemos de ter. E assim irás tu, mulher, quando o Outono vier, apanhar as castanhas ao baldio de Casteição, nunca tivemos um lugar nosso onde plantar um castanheiro, que este baldio só é nosso por ser de todos, acaso devia ser assim o mundo inteiro. E levarás um filho na barriga, e outro nos braços, e um terceiro na mão, para que o ramo vá completo e composto, e para que os anjos todos das varandas do céu exultem ao ver-te assim seguir engalanada, estrada fora, por ti não se acabará o rebanho dos cordeiros de Deus. E quando voltares a casa não me encontrarás, porque eu enrolei o fato do nosso casamento numa trouxa e fui por esse mundo, não me perguntes porquê, se o não souberes, nem queiras saber por onde, que eu também o não sei.
*
(...)
Para aqui vivemos, esquecidos do mundo, como esses que há tempos chegaram aí ao povo, uns que foram levados para a guerra da Flandres. Escorreitos eram eles na hora da partida e assim vêm devolvidos como refugo, sem tino nenhum, transtornadas as cabeças dos gases das granadas, e arrombados os peitos do lamaçal gelado das trincheiras. Passam os dias cismáticos ao sol, quem saberá dizer em que paisagens se lhes perdem os olhos, para eles está a vida feita, se não ficou antes toda por fazer, acaso será esta, entre todas, a melhor solução, alhear-se de tudo.
O terceiro filho vem aí, para que estranhas guerras virá ele fadado, mas antes que chegue vamos nós ao mercado do Rabaçal e lá havemos de aprender, ou alguém nos ensinará, como se fazem os negócios, como se compra a este para vender àquele e guardar algum lucro, sempre será vida melhor, um porco ou uma cabrita nova, uma vitela se Deus quer, lá fumaremos um cigarro em sociedade para botar figura, e quando pudermos pagaremos uma rodada ao adjunto em volta, que sempre há-de ser a vida de negócio mais folgada do que esta que fazemos, e aprenderemos o ligeiro jogo das palavras que enganam a miséria alheia, ingénua seja ela, com essa podemos nós melhor que com a nossa própria. E em chegando a ocasião beberemos demais, e arrastaremos as noites por estúrdias e estancos, que um homem é do mundo e só à mulher competirá enrolar no avental as lágrimas da noite, no silêncio do lume que resiste, ou no choro dum filho inquieto, feita fora ela doutra coisa que não da costela do homem original.
E, quando chegar o terceiro filho, havemos de lhe contar ao serão a história do outro, que histórias são essas que estás sempre a tirar da cabeça, homem não sei se de Deus ou do diabo. Um dia, era ao serão, estava o outro em casa, e os filhos queixavam-se do escasso pão. E vai ele, que bom seria, mulher, termos nós dinheiro para comprar uma cabra, havíamos de levá-la à vez a pastar por esses caminhos, para ela encher a barriga de botões de silvas bravas, quando o sol, na primavera, constrói jardins nas paredes. E quando a noite chegasse, e a cabra voltasse a casa, íamos colher-lhe o leite, e as noites seriam longas, e a família cresceria, já viste mais alegria. Mas eu não gosto de leite, tornou o filho mais novo. Quando o Outono chegar, e as silvas ficarem duras, subo ao freixo do valado, e do mais viçoso ramo, se há-de fartar nosso gado, disse o outro, confiado. Mas eu não gosto de leite, insistiu o desgraçado. Numa breve conclusão, perdeu o outro a cabeça e ali mesmo obrigou o filho biqueiro a engolir duas grandes malgas de leite quente na companhia dos irmãos, que assim dormiram toda a santa noite, de barriguinha calada, o que seria do povo sem este grande engenho milagreiro.
Mas nós não temos dinheiro, nem cabra havemos de ter. E assim irás tu, mulher, quando o Outono vier, apanhar as castanhas ao baldio de Casteição, nunca tivemos um lugar nosso onde plantar um castanheiro, que este baldio só é nosso por ser de todos, acaso devia ser assim o mundo inteiro. E levarás um filho na barriga, e outro nos braços, e um terceiro na mão, para que o ramo vá completo e composto, e para que os anjos todos das varandas do céu exultem ao ver-te assim seguir engalanada, estrada fora, por ti não se acabará o rebanho dos cordeiros de Deus. E quando voltares a casa não me encontrarás, porque eu enrolei o fato do nosso casamento numa trouxa e fui por esse mundo, não me perguntes porquê, se o não souberes, nem queiras saber por onde, que eu também o não sei.
*
(...)
Vidas vãs - 2
(...)
Não temos uma terra nossa, e por isso passámos o inverno nos olivais da terra quente, saíamos de casa ainda a manhã vinha em Castela, levávamos uma côdea na bolsa e ao romper da alva estávamos lá para pegar ao trabalho, enterrados os dedos na geada da manhã onde a azeitona se sumia, tiritávamos de frio como fantasmas assustados por entre as oliveiras perdidas na névoa, passa um homem um dia inteiro nas vinhas de Vila Garcia a podar as videiras, a atar-lhes os braços, a descavar-lhes o tronco retorcido, a ampará-las como se fossem filhas nossas, e vai-se a ver o caso não no são, que outros lhes hão-de provar o fino mosto, fica-te lá tu com os dez reis do teu salário. Com tanto nos ficamos nós, e tão pouco nos pesa no caminho de casa onde chegaremos alta noite, tempo de dormir que amanhã havemos de partir de novo, antes que nos luza o buraco. E tu ficarás, mulher, assentada ao tear, e os vizinhos hão-de ouvir o teu matraquear na teia de estopas, que nos há-de afugentar de casa as precisões.
O segundo filho já nasceu, não que tenhamos nós ajardinado um propício lugar para nele vir ao mundo, é isto um modo de dizer que tão grande foi o nosso desejo de o fazer como a vontade dele em ter nascido, nestas coisas cada um faz o que lhe compete sem se ater a perguntas que ninguém lançou, porque nasceste tu, porque morreu aquele, o destino é que manda, e quem sobre ele está ainda nada disse nem mandou dizer.
Não temos uma terra nossa, arrendada que fosse, e quando chegar o verão havemos de partir de novo, para os trigais do Mogadoiro, e por lá nos quedaremos um mês enquanto a seara resistir, e tu ficarás, mulher, nas suaves colinas de Foz-Côa, e hás-de ferir as mãos encordoadas na apanha das garrobas, e beberás a água dos charcos, e apanharás sezões. E dali havemos de partir para os fenos da serra, e até que os braços nos caiam e o peito se recuse ao peso da gadanha, havemos de levar até ao fim a empreitada, se nos sobrará o génio para receber o salário que nos compete.
A nós competia-nos agora ter uma terra nossa, pois o terceiro filho vem a caminho e não se calam as precisões dos dois cadetes, vive a gente para aqui sem haver entre nós e os bichos fundamental diferença, tão vasto é o mundo e tão madrasta a terra que não há no coração dela lugar para os filhos próprios, enteados seremos nós sem disso nos darmos conta, acaso a miséria duns servirá neste mundo para engordar a barriga doutros, aí está um caso que talvez fosse bom esclarecer, e em que barrigas caberá toda a penúria que passamos, e os ingénuos sonhos que desde o nascer nos rebentam na arca do peito e nela morrem sem cumprimento, melhor fora não termos nós cabeça para pensar nem alma para sentir as faltas, acaso é essa a última coisa que não nos tiraram ainda, quem sabe se por já não lhes caber na barriga, ou se por aumentar assim o nosso desconforto e menosprezo. É esta vida um vale de lágrimas, a tanto se resume o que sempre nos quiseram ensinar, e se desde o princípio do mundo assim tem sido, muitas barrigas se fartaram já do nosso mau viver, do nosso medo pânico da fome e da opressão aflita em que nascemos e morremos.
(...)
Não temos uma terra nossa, e por isso passámos o inverno nos olivais da terra quente, saíamos de casa ainda a manhã vinha em Castela, levávamos uma côdea na bolsa e ao romper da alva estávamos lá para pegar ao trabalho, enterrados os dedos na geada da manhã onde a azeitona se sumia, tiritávamos de frio como fantasmas assustados por entre as oliveiras perdidas na névoa, passa um homem um dia inteiro nas vinhas de Vila Garcia a podar as videiras, a atar-lhes os braços, a descavar-lhes o tronco retorcido, a ampará-las como se fossem filhas nossas, e vai-se a ver o caso não no são, que outros lhes hão-de provar o fino mosto, fica-te lá tu com os dez reis do teu salário. Com tanto nos ficamos nós, e tão pouco nos pesa no caminho de casa onde chegaremos alta noite, tempo de dormir que amanhã havemos de partir de novo, antes que nos luza o buraco. E tu ficarás, mulher, assentada ao tear, e os vizinhos hão-de ouvir o teu matraquear na teia de estopas, que nos há-de afugentar de casa as precisões.
O segundo filho já nasceu, não que tenhamos nós ajardinado um propício lugar para nele vir ao mundo, é isto um modo de dizer que tão grande foi o nosso desejo de o fazer como a vontade dele em ter nascido, nestas coisas cada um faz o que lhe compete sem se ater a perguntas que ninguém lançou, porque nasceste tu, porque morreu aquele, o destino é que manda, e quem sobre ele está ainda nada disse nem mandou dizer.
Não temos uma terra nossa, arrendada que fosse, e quando chegar o verão havemos de partir de novo, para os trigais do Mogadoiro, e por lá nos quedaremos um mês enquanto a seara resistir, e tu ficarás, mulher, nas suaves colinas de Foz-Côa, e hás-de ferir as mãos encordoadas na apanha das garrobas, e beberás a água dos charcos, e apanharás sezões. E dali havemos de partir para os fenos da serra, e até que os braços nos caiam e o peito se recuse ao peso da gadanha, havemos de levar até ao fim a empreitada, se nos sobrará o génio para receber o salário que nos compete.
A nós competia-nos agora ter uma terra nossa, pois o terceiro filho vem a caminho e não se calam as precisões dos dois cadetes, vive a gente para aqui sem haver entre nós e os bichos fundamental diferença, tão vasto é o mundo e tão madrasta a terra que não há no coração dela lugar para os filhos próprios, enteados seremos nós sem disso nos darmos conta, acaso a miséria duns servirá neste mundo para engordar a barriga doutros, aí está um caso que talvez fosse bom esclarecer, e em que barrigas caberá toda a penúria que passamos, e os ingénuos sonhos que desde o nascer nos rebentam na arca do peito e nela morrem sem cumprimento, melhor fora não termos nós cabeça para pensar nem alma para sentir as faltas, acaso é essa a última coisa que não nos tiraram ainda, quem sabe se por já não lhes caber na barriga, ou se por aumentar assim o nosso desconforto e menosprezo. É esta vida um vale de lágrimas, a tanto se resume o que sempre nos quiseram ensinar, e se desde o princípio do mundo assim tem sido, muitas barrigas se fartaram já do nosso mau viver, do nosso medo pânico da fome e da opressão aflita em que nascemos e morremos.
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Abraços de urso - 2
Pudesse G. W. Bush, himself, mostrar o seu apoio à recandidatura de Barroso! Nem ele deixaria de o fazer, nem o mundo ficava surpreendido!
Vidas vãs - 1
Em Abril, quando chegava a Páscoa, floriam os lilases na Casa Grande. E era um aroma a espalhar-se por hortas e caminhos, cobrindo o povo da Cruz de Pedra ao terreiro da fonte, como espuma dum vinho novo, do largo da capela até ao Soito Longe. O sol varria do céu os restos do inverno, o casario emergia da bruma cinzenta e deixavam de fumegar os telhados vãos, de telha mourisca irregular, por onde escapavam as fumaradas do tempo frio. O lar eram duas pedras encostadas à parede, ardia o lume cercado das duas panelas de ferro onde fervilhavam as couves, e ardiam também os olhos, que um chupão era luxo de casa rica. Um tabique de madeira isolava o escuro quarto interior, onde a cama de ferro, coberta de mantas de burel, ocupava o maior espaço, havia pagelas de santinhos espetadas em pregos, onde esquecidas devoções criavam bolor, e um retrato de mocidade antiga envelhecia na escuridão, que só a vaga luz da candeia de petróleo às vezes perturbava.
Para lá da parede ouvia-se, ao correr das noites, o remoer de queixais da mula trilhando o feno ressequido, as mais das vezes era palha centeia o que lhe sobejava, e também para ela o aroma dos lilases da Casa Grande trazia promessas de erva renovada à beira dos caminhos, quando não a fartura duma tarde inteira num lameiro fresco.
Nesse tempo era o povo um formigueiro de gente, e minguadas as terras para acudir a tantas bocas. Das fragas do Chão de Poio até à rua das Lorgas não havia buraco vazio. Casavam-se os homens e as mulheres, o sangue a ferver-lhes nas veias e a cabeça a sonhar sonhos impossíveis, empenhavam o cordão, se a rapariga o herdara, para dar um jeito ao palhal, para correr o telhado e limpar as toscas traves da fuligem de séculos, onde viveram bichos podemos bem agora ter nós a primazia, sempre é alguma coisa, neste canto fazemos a cozinha, o quarto ali ao fundo retirado, à entrada fica a sala, com umas ripas de madeira tudo se compõe, aqui fica a arca da roupa, ali a cama onde nos havemos de deitar, outros se acharão pior.
Depois vinha o primeiro filho, eu se pudesse ter uma terra nossa, arrendada que fosse, havíamos de conseguir que nos abalassem de casa as precisões, o mês de Maio tão bonito e a pilha das batatas a minguar na loja, mulher, as fanegas do pão vazias, as árvores tão floridas e nada que penda da figueira para consolar o estômago, quando chegará Setembro.
Ainda agora vai Abril a meio, tiram-se os estrumes dos cortelhos e amontoam-se na rua antes de os levar para engordar as terras, salgadas terras estas que só a poder de suor consentem um renovo, é um fedor fermentado durante o inverno inteiro, não chega o aroma dos lilases da Casa Grande, doce como as vertigens dum vinho novo, para desempestar esta aragem.
Não temos uma terra nossa, arrendada que fosse. As courelas do Alagão, as corgas do Ribeiro de Pau, uma horta qualquer à beira dum valado, ninguém sabe hoje dar razão do caminho que levaram, nem como foram assim parar às mãos que delas tomaram posse, doutores que vivem longe, nas vilas e cidades deste mundo, tão alheios e distraídos delas que nem os nomes lhes conhecem, nem que limites têm, nem os caminhos que a elas levam. Se vivessem do aconchego das mãos dos donos, já todas as terras tinham morrido de abandono. E no entanto não se revoltam, nem elas nem quem por elas sofre, nem quem com elas sonha, se será assim já desde o tempo da lei das doze tábuas, como haveremos de viver com esta lei, não sei.
(...)
Para lá da parede ouvia-se, ao correr das noites, o remoer de queixais da mula trilhando o feno ressequido, as mais das vezes era palha centeia o que lhe sobejava, e também para ela o aroma dos lilases da Casa Grande trazia promessas de erva renovada à beira dos caminhos, quando não a fartura duma tarde inteira num lameiro fresco.
Nesse tempo era o povo um formigueiro de gente, e minguadas as terras para acudir a tantas bocas. Das fragas do Chão de Poio até à rua das Lorgas não havia buraco vazio. Casavam-se os homens e as mulheres, o sangue a ferver-lhes nas veias e a cabeça a sonhar sonhos impossíveis, empenhavam o cordão, se a rapariga o herdara, para dar um jeito ao palhal, para correr o telhado e limpar as toscas traves da fuligem de séculos, onde viveram bichos podemos bem agora ter nós a primazia, sempre é alguma coisa, neste canto fazemos a cozinha, o quarto ali ao fundo retirado, à entrada fica a sala, com umas ripas de madeira tudo se compõe, aqui fica a arca da roupa, ali a cama onde nos havemos de deitar, outros se acharão pior.
Depois vinha o primeiro filho, eu se pudesse ter uma terra nossa, arrendada que fosse, havíamos de conseguir que nos abalassem de casa as precisões, o mês de Maio tão bonito e a pilha das batatas a minguar na loja, mulher, as fanegas do pão vazias, as árvores tão floridas e nada que penda da figueira para consolar o estômago, quando chegará Setembro.
Ainda agora vai Abril a meio, tiram-se os estrumes dos cortelhos e amontoam-se na rua antes de os levar para engordar as terras, salgadas terras estas que só a poder de suor consentem um renovo, é um fedor fermentado durante o inverno inteiro, não chega o aroma dos lilases da Casa Grande, doce como as vertigens dum vinho novo, para desempestar esta aragem.
Não temos uma terra nossa, arrendada que fosse. As courelas do Alagão, as corgas do Ribeiro de Pau, uma horta qualquer à beira dum valado, ninguém sabe hoje dar razão do caminho que levaram, nem como foram assim parar às mãos que delas tomaram posse, doutores que vivem longe, nas vilas e cidades deste mundo, tão alheios e distraídos delas que nem os nomes lhes conhecem, nem que limites têm, nem os caminhos que a elas levam. Se vivessem do aconchego das mãos dos donos, já todas as terras tinham morrido de abandono. E no entanto não se revoltam, nem elas nem quem por elas sofre, nem quem com elas sonha, se será assim já desde o tempo da lei das doze tábuas, como haveremos de viver com esta lei, não sei.
(...)
quarta-feira, 18 de março de 2009
Portugalmente (32)
(...)
Mas não há nenhum mal que sempre dure, nem bem que se não acabe. E o viajante já está de partida quando chega Felisberto, a cavalo numa espécie de lambreta, barulhenta e minúscula.
- Há-de-me ver isto, mestre Fernando! Vejo-me grego para a pôr a trabalhar, passa a vida a tossir!
O nome de Felisberto não lhe condiz com a fachada. É um homem seco, nervoso, tem um ar atormentado, e a cortesia dos gestos não disfarça o sobressalto íntimo em que parece tropeçar. O mestre promete que ainda hoje tira a tosse à lambreta. E o viajante, é ao que anda, vai conversar com Felisberto para a sombra do castanheiro.
O homem não esconde a vontade de falar das suas vidas, pouco terá ocasião de o fazer. Ora o viajante, médico não sendo, sabe da própria experiência o poder milagroso das palavras, mormente se outro remédio não houver. Há anos está Felisberto reformado da polícia, e agora vive aqui na aldeia. Sempre é ambiente mais favorável ao seu génio sobressaltado.
- Tudo isto são nervos! - resume Felisberto, que pouco mais sabe explanar dos seus padecimentos. Embora saiba muito bem que tudo ficou assim desde as guerras de Angola. Um dia, em 70, acabado de chegar a Luanda, meteram-no com mais dois colegas num avião que os deixou em Serpa Pinto. De lá seguiu numa coluna militar para o Baixo-Longa, e depois para o Cuíto. Atravessaram o Kuando-Kubando e ao cabo de dois dias chegaram a Mavinga. Luanda ficara a dois mil quilómetros, e isso pouco era, comparado com a distância a que deixara a mulher e um filho, em Alcabideche, do outro lado do mar via-se a Trafaria. Mas o guarda Felisberto não se quedou por aqui, o seu destino final era mais longe. E ainda faltava outro tanto de viagem, até ao posto policial e fiscal do Rivungo, na fronteira da Zâmbia. Era lá que o império precisava dele, para enquadrar as milícias dos quimbos, e para controlar as populações de que o império era feito.
O viajante não entende muito bem o que isto quer dizer, não sabe como se enquadram milícias, nem imagina como é que estes três homens vão controlar as populações dum império. As palavras são de Felisberto, o viajante limita-se a ouvi-las e a guardá-las na memória.
Ali viviam os três guardas num barracão de adobe e telhado de zinco, perdidos num mar de capim, quando iam ao rio espreitar os jacarés levavam em bandoleira a Mauser de repetição, que era tudo o que tinham por companhia. De horas em quando vinha uma coluna e deixava latas de salsichas, uns fardos de arroz e sacos de farinha, de que eles faziam pão numa fornalha de barro.
Felisberto não era nada feliz naquele mar de areias verdes onde a vista se perdia, mas aguentou sete meses. Até que o apanhou um ataque fatal de paludismo, mesmo ruim, e uma paralisia facial que o deixou de cara à banda. O viajante não compreende como é que o paludismo e a paralisia se juntaram assim, mas Felisberto também não sabe explicar. Lá foi um dia evacuado para Serpa Pinto, numa passarola de quatro asas que aterrou na picada. Dali apanhou uma camioneta para Nova Lisboa, e depois outra para Luanda, onde acabou por chegar ao fim duma eternidade e com menos de cinquenta quilos de peso. Ficou assim mais perto do filho e da mulher, mas ainda havia de tardar em vê-los, que lhe faltava um ano e tal de comissão, na 7ª esquadra de Luanda. Gastou-o ele entre idas ao médico e transportes de presos para a Damba, um presídio de pretos lá nos confins do Norte. E foi assim que Felisberto conheceu meio mundo, e viu coisas com que nunca sonhou, e se fartou de viajar à custa do império. Quando voltou foi parar à Quinta do Pisão, a um centro de apoio social da Misericórdia de Cascais. Ficou por lá uns anos, em serviços de enfermaria, e só não aguentou mais porque já nada era igual. Nem a vida com a mulher e o filho voltaram a ser a mesma coisa.
Ao viajante, que se limita a observar enquanto vai ouvindo, Felisberto faz lembrar um barco que perdeu o lastro. Sendo dum país de marinheiros, cabia-lhe andar assim por mares e sertões, isso o viajante não discute. Mas a um marujo assim não convirá expor-se a virações, nem aventurar-se em águas fundas. Bem a propósito, o viajante quer saber o que ele pensa da barragem que ali fizeram em frente.
- São uns ladrões que só pensam no dia de hoje! E o futuro ninguém o sabe! Se um dia o povo precisar de matar a fome outra vez, o melhor é afogar-se!
Nalgum lugar encontrou Felisberto esta sabedoria. O viajante não está seguro de que tenha sido nos caminhos do império, onde deixou ficar o lastro.
(...)
Mas não há nenhum mal que sempre dure, nem bem que se não acabe. E o viajante já está de partida quando chega Felisberto, a cavalo numa espécie de lambreta, barulhenta e minúscula.
- Há-de-me ver isto, mestre Fernando! Vejo-me grego para a pôr a trabalhar, passa a vida a tossir!
O nome de Felisberto não lhe condiz com a fachada. É um homem seco, nervoso, tem um ar atormentado, e a cortesia dos gestos não disfarça o sobressalto íntimo em que parece tropeçar. O mestre promete que ainda hoje tira a tosse à lambreta. E o viajante, é ao que anda, vai conversar com Felisberto para a sombra do castanheiro.
O homem não esconde a vontade de falar das suas vidas, pouco terá ocasião de o fazer. Ora o viajante, médico não sendo, sabe da própria experiência o poder milagroso das palavras, mormente se outro remédio não houver. Há anos está Felisberto reformado da polícia, e agora vive aqui na aldeia. Sempre é ambiente mais favorável ao seu génio sobressaltado.
- Tudo isto são nervos! - resume Felisberto, que pouco mais sabe explanar dos seus padecimentos. Embora saiba muito bem que tudo ficou assim desde as guerras de Angola. Um dia, em 70, acabado de chegar a Luanda, meteram-no com mais dois colegas num avião que os deixou em Serpa Pinto. De lá seguiu numa coluna militar para o Baixo-Longa, e depois para o Cuíto. Atravessaram o Kuando-Kubando e ao cabo de dois dias chegaram a Mavinga. Luanda ficara a dois mil quilómetros, e isso pouco era, comparado com a distância a que deixara a mulher e um filho, em Alcabideche, do outro lado do mar via-se a Trafaria. Mas o guarda Felisberto não se quedou por aqui, o seu destino final era mais longe. E ainda faltava outro tanto de viagem, até ao posto policial e fiscal do Rivungo, na fronteira da Zâmbia. Era lá que o império precisava dele, para enquadrar as milícias dos quimbos, e para controlar as populações de que o império era feito.
O viajante não entende muito bem o que isto quer dizer, não sabe como se enquadram milícias, nem imagina como é que estes três homens vão controlar as populações dum império. As palavras são de Felisberto, o viajante limita-se a ouvi-las e a guardá-las na memória.
Ali viviam os três guardas num barracão de adobe e telhado de zinco, perdidos num mar de capim, quando iam ao rio espreitar os jacarés levavam em bandoleira a Mauser de repetição, que era tudo o que tinham por companhia. De horas em quando vinha uma coluna e deixava latas de salsichas, uns fardos de arroz e sacos de farinha, de que eles faziam pão numa fornalha de barro.
Felisberto não era nada feliz naquele mar de areias verdes onde a vista se perdia, mas aguentou sete meses. Até que o apanhou um ataque fatal de paludismo, mesmo ruim, e uma paralisia facial que o deixou de cara à banda. O viajante não compreende como é que o paludismo e a paralisia se juntaram assim, mas Felisberto também não sabe explicar. Lá foi um dia evacuado para Serpa Pinto, numa passarola de quatro asas que aterrou na picada. Dali apanhou uma camioneta para Nova Lisboa, e depois outra para Luanda, onde acabou por chegar ao fim duma eternidade e com menos de cinquenta quilos de peso. Ficou assim mais perto do filho e da mulher, mas ainda havia de tardar em vê-los, que lhe faltava um ano e tal de comissão, na 7ª esquadra de Luanda. Gastou-o ele entre idas ao médico e transportes de presos para a Damba, um presídio de pretos lá nos confins do Norte. E foi assim que Felisberto conheceu meio mundo, e viu coisas com que nunca sonhou, e se fartou de viajar à custa do império. Quando voltou foi parar à Quinta do Pisão, a um centro de apoio social da Misericórdia de Cascais. Ficou por lá uns anos, em serviços de enfermaria, e só não aguentou mais porque já nada era igual. Nem a vida com a mulher e o filho voltaram a ser a mesma coisa.
Ao viajante, que se limita a observar enquanto vai ouvindo, Felisberto faz lembrar um barco que perdeu o lastro. Sendo dum país de marinheiros, cabia-lhe andar assim por mares e sertões, isso o viajante não discute. Mas a um marujo assim não convirá expor-se a virações, nem aventurar-se em águas fundas. Bem a propósito, o viajante quer saber o que ele pensa da barragem que ali fizeram em frente.
- São uns ladrões que só pensam no dia de hoje! E o futuro ninguém o sabe! Se um dia o povo precisar de matar a fome outra vez, o melhor é afogar-se!
Nalgum lugar encontrou Felisberto esta sabedoria. O viajante não está seguro de que tenha sido nos caminhos do império, onde deixou ficar o lastro.
(...)
Melancolia
Há em Portugal maior número de seguranças privados, do que agentes da autoridade.
Assim de cor, tão parecido apenas o Iraque, onde a América tem ao seu serviço muito mais mercenários que soldados. Só ugandeses são uns vinte mil, a quinhentos dólares por cabeça.
Esta parecença convida à melancolia, mas podia ser pior. Talvez não seja a mesma a ordem de batalha.
Assim de cor, tão parecido apenas o Iraque, onde a América tem ao seu serviço muito mais mercenários que soldados. Só ugandeses são uns vinte mil, a quinhentos dólares por cabeça.
Esta parecença convida à melancolia, mas podia ser pior. Talvez não seja a mesma a ordem de batalha.
A uns literatos que eu cá sei
A Fernando Pessoa
Depois de ler o seu drama estático "O Marinheiro" em "Orpheu I"
Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro,
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz uma das veladoras
Com langorosa magia:
De eterno e belo há apenas o sonho.
Porque estamos nós falando ainda?
Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras...
Álvaro de Campos
Depois de ler o seu drama estático "O Marinheiro" em "Orpheu I"
Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro,
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz uma das veladoras
Com langorosa magia:
De eterno e belo há apenas o sonho.
Porque estamos nós falando ainda?
Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras...
Álvaro de Campos
Fadários
Em S. Bento os deputados exultam, porque o beato Nuno foi canonizado.
O Presidente da República acena aos portugueses com o exemplo de Nuno Álvares, que até chegou a santo.
O Primeiro-Ministro acusa os sindicatos de práticas de arruaça, a mando de alguns partidos que devoram criancinhas.
E um dia destes dirá o cardeal, que a crise já estava escrita numas Trovas do Bandarra.
O povo emigra outra vez e lá vai a pé a Fátima, o papo cheio de mitos e crendices.
O Presidente da República acena aos portugueses com o exemplo de Nuno Álvares, que até chegou a santo.
O Primeiro-Ministro acusa os sindicatos de práticas de arruaça, a mando de alguns partidos que devoram criancinhas.
E um dia destes dirá o cardeal, que a crise já estava escrita numas Trovas do Bandarra.
O povo emigra outra vez e lá vai a pé a Fátima, o papo cheio de mitos e crendices.
terça-feira, 17 de março de 2009
Lamentações
Manuela Ferreira Leite, que é chefe da oposição, lá vai pastoreando o seu PSD. E lamenta que ninguém dê atenção às suas propostas para vencer a crise. Aos seus esforços, o governo faz orelhas moucas, quer ela significar.
Labora esta senhora em grande equívoco. É que o país já sabe, há muito tempo, que o PSD é insubstituível, quando se trata de engendrar uma crise. É mesmo a peça fundamental da crise que o país vive. Não serve para combatê-la ou enfrentá-la.
Finja a senhora de Santa da Ladeira, ou de Virgem de Fátima em cima duma azinheira! Logo verá que o país lhe dá ouvidos, fiado num bom milagre!
Labora esta senhora em grande equívoco. É que o país já sabe, há muito tempo, que o PSD é insubstituível, quando se trata de engendrar uma crise. É mesmo a peça fundamental da crise que o país vive. Não serve para combatê-la ou enfrentá-la.
Finja a senhora de Santa da Ladeira, ou de Virgem de Fátima em cima duma azinheira! Logo verá que o país lhe dá ouvidos, fiado num bom milagre!
domingo, 15 de março de 2009
A ilustre opinião pública
Chamava-se Jessica Lynch, estou ainda a ver-lhe as imagens esverdeadas, de câmara nocturna. Um pelotão de Rambos foi resgatá-la ao hospital, em Nassiriya, numa noite de há anos. Traziam-na numa maca, ao longo dum corredor, cercada pelos narizes inquietos das espingardas automáticas.
Era ela um soldado da América, dos muitos que foram a libertar o povo iraquiano. Quando lhe deitou a mão, a soldadesca inimiga tinha-a espancado, e maltratado, e torturado, e apunhalado. Mas agora estava a salvo. A terra natal rejubilou, e recebeu-a com hinos e flores.
Contou-o mais tarde a BBC: a jovem Jessica achava-se ferida, quando foi aprisionada pela tropa iraquiana; levada para o hospital, beneficiou da melhor cama disponível; e no meio da babilónia geral, ainda lhe foram feitas duas transfusões de sangue.
Tudo o resto foi encenação, de câmaras apontadas. Para fácil digestão da opinião pública.
Era ela um soldado da América, dos muitos que foram a libertar o povo iraquiano. Quando lhe deitou a mão, a soldadesca inimiga tinha-a espancado, e maltratado, e torturado, e apunhalado. Mas agora estava a salvo. A terra natal rejubilou, e recebeu-a com hinos e flores.
Contou-o mais tarde a BBC: a jovem Jessica achava-se ferida, quando foi aprisionada pela tropa iraquiana; levada para o hospital, beneficiou da melhor cama disponível; e no meio da babilónia geral, ainda lhe foram feitas duas transfusões de sangue.
Tudo o resto foi encenação, de câmaras apontadas. Para fácil digestão da opinião pública.
sexta-feira, 13 de março de 2009
Portugalmente (31)
(...)
O viajante fecha o rádio. Com tais tribulações passou agora mesmo por um anjo guardador, que estava ali sentado num marco da estrada, e nem deu conta dele. No meio da destruição geral, há-de ser obra do anjinho este milagre, um pinheiral que resistiu aqui, no início da subida, tão inteiro e natural como os seus irmãos do paraíso, antes do pecado original. Oxalá se mantenha o velador, de asa viva e olho atento, oxalá não venham a distraí-lo mais estranhos viajantes. A nós compete-nos seguir, pois já nos deram os olhos no espelho da barragem, ali à mão direita. Já chegámos ao largo onde a estrada se bifurca, o Terrenho está na nossa frente.
Diversamente de outros mais falados, este largo nunca foi o centro de mundo nenhum. Bem ao contrário, foi sempre um sítio distante, um triângulo de roseiras bravas, cercado de castanheiros. Mais tarde as casas foram-se aproximando, um dia vieram ter com ele, e hoje a aldeia começa mesmo aqui, nesta oficina de automóveis.
O viajante estaciona o carro no terreiro. A tarde vai ainda a meio e ele vem cheio de sol, por isso fica uns bons minutos regalado, à fresca dum castanheiro. O dono da oficina está debruçado nas entranhas dum carro velho, distraído com um enigma de fios. E este falso cliente evitaria interrompê-lo, se não fosse justamente de conversa que ele vem à procura.
- A trabalhar assim, mestre?! Apetecia era um banho fresco, lá em baixo!
A represa foi obra da senhora câmara e dos fundos da Europa. Uns espanhóis vieram aí fazê-la, a ver se matam de uma vez a sede à vila. Aqui há décadas, quando construíram a barragem de Ranhados, lá para as terras do demo, a senhora câmara desdenhou associar-se à obra, que já tinha água mais que suficiente. Realmente já tinha sugado as nascentes todas da serra, umas atrás das outras, foi ele a do Prazo, e a do Santo Menino, e a do Tornadoiro, já tinha deixado secas todas as levadas que desciam a encosta, e durante séculos regaram hortas e chãs, e todos os quintais da aldeia. Mas a vila foi crescendo e nenhuma água lhe foi suficiente. Só faltava levar a ribeira para completar a obra, e foi o que fizeram agora.
O mestre vai alternando as tiradas da conversa com os gestos do seu trabalho. Melhor para o viajante, que assim aprecia uns, enquanto vai ouvindo as outras. Antigamente, quando a riqueza estava toda na terra, não havia aldeia com a força desta, em todo o concelho. Não falando, claro está, da terra quente, para lá daqueles montes, onde se colhe o vinho e o azeite, que são o maior calor da vida. Afora isso, havia aqui águas à fartura e largueza de campos, que davam tudo o que lhes era natural. Saíam do Terrenho as melhores castanhas do mundo, ouviu muitas vezes este mestre a quem percebia do assunto.
Não quer isto dizer que não houvesse fome, isso houve sempre no mundo. A gentinha era muita e as terras também, mas todas tinham dono. Um dia, em sessenta, começou a debandada para a França e nunca mais parou. E tudo isto ficou ao desamparo. Sem os braços antigos a trabalhar por uma côdea, a gente abastada foi viver para a cidade, perdeu interesse nas terras e vendeu-as por bom preço aos emigrantes. Ainda por cima a troco de moeda forte, que não queriam receber escudos. Mas isto, vendo o mundo em ponto grande ou em ponto pequeno, quem paga as sobras de uns são sempre as faltas dos outros, como é sabido.
Mais tarde veio a agricultura da Europa, e essa acabou com tudo. E esta aldeia, mais que todas, vai morrendo lentamente, sem gente, nem préstimo, nem vida. Até os castanheiros foram desaparecendo, a doença derrotou aí gigantes que podiam contar a nossa história toda.
Já se viu que ao mestre não agrada a barragem, porém toda a moeda tem as caras e as coroas. Ela engoliu as melhores terras, é verdade, e a aldeia perdeu o que lhe deu o ser. Mas os donos não saberiam hoje o que fazer com elas, se ainda as tivessem na mão. As coisas estão de tal maneira que não vale a pena mortificar o corpo. Ao menos receberam as indemnizações, sempre hão-de ter alguma serventia.
Por sobre ser um cidadão atento às coisas da vida, este mestre é um artista. Trazem-lhe carros velhos, tão velhos que já nem existem, e saem-lhe da mão como no dia em que a fábrica os deitou cá para fora. Este, por exemplo, é tão antigo que partes dele são de madeira. Fizeram-no os ingleses e um dia chegou aqui numa lástima, foi um amador que o trouxe da América. Qualquer dia sai daqui como novo.
O viajante, que é desprovido do mais elementar jeito de mãos, observa fascinado estes labores, os cuidados do gesto, os vagares todos duma minúcia lenta. Muitas peças são feitas à mão, já nada disto existe no mercado. Mas este mestre gosta do que faz. É um homem sereno e vive em paz com a vida, apesar da barragem que lhe fizeram à porta. Nem mesmo lhe falta um filho disposto a aprender estas artes mecânicas e a dar continuidade à ciência do pai. Se não tivesse à espera o resto da jornada, quem ficava aqui até à noite era este viajante. Não é todos os dias que assim se vai ao deserto encontrar um oásis.
(...)
O viajante fecha o rádio. Com tais tribulações passou agora mesmo por um anjo guardador, que estava ali sentado num marco da estrada, e nem deu conta dele. No meio da destruição geral, há-de ser obra do anjinho este milagre, um pinheiral que resistiu aqui, no início da subida, tão inteiro e natural como os seus irmãos do paraíso, antes do pecado original. Oxalá se mantenha o velador, de asa viva e olho atento, oxalá não venham a distraí-lo mais estranhos viajantes. A nós compete-nos seguir, pois já nos deram os olhos no espelho da barragem, ali à mão direita. Já chegámos ao largo onde a estrada se bifurca, o Terrenho está na nossa frente.
Diversamente de outros mais falados, este largo nunca foi o centro de mundo nenhum. Bem ao contrário, foi sempre um sítio distante, um triângulo de roseiras bravas, cercado de castanheiros. Mais tarde as casas foram-se aproximando, um dia vieram ter com ele, e hoje a aldeia começa mesmo aqui, nesta oficina de automóveis.
O viajante estaciona o carro no terreiro. A tarde vai ainda a meio e ele vem cheio de sol, por isso fica uns bons minutos regalado, à fresca dum castanheiro. O dono da oficina está debruçado nas entranhas dum carro velho, distraído com um enigma de fios. E este falso cliente evitaria interrompê-lo, se não fosse justamente de conversa que ele vem à procura.
- A trabalhar assim, mestre?! Apetecia era um banho fresco, lá em baixo!
A represa foi obra da senhora câmara e dos fundos da Europa. Uns espanhóis vieram aí fazê-la, a ver se matam de uma vez a sede à vila. Aqui há décadas, quando construíram a barragem de Ranhados, lá para as terras do demo, a senhora câmara desdenhou associar-se à obra, que já tinha água mais que suficiente. Realmente já tinha sugado as nascentes todas da serra, umas atrás das outras, foi ele a do Prazo, e a do Santo Menino, e a do Tornadoiro, já tinha deixado secas todas as levadas que desciam a encosta, e durante séculos regaram hortas e chãs, e todos os quintais da aldeia. Mas a vila foi crescendo e nenhuma água lhe foi suficiente. Só faltava levar a ribeira para completar a obra, e foi o que fizeram agora.
O mestre vai alternando as tiradas da conversa com os gestos do seu trabalho. Melhor para o viajante, que assim aprecia uns, enquanto vai ouvindo as outras. Antigamente, quando a riqueza estava toda na terra, não havia aldeia com a força desta, em todo o concelho. Não falando, claro está, da terra quente, para lá daqueles montes, onde se colhe o vinho e o azeite, que são o maior calor da vida. Afora isso, havia aqui águas à fartura e largueza de campos, que davam tudo o que lhes era natural. Saíam do Terrenho as melhores castanhas do mundo, ouviu muitas vezes este mestre a quem percebia do assunto.
Não quer isto dizer que não houvesse fome, isso houve sempre no mundo. A gentinha era muita e as terras também, mas todas tinham dono. Um dia, em sessenta, começou a debandada para a França e nunca mais parou. E tudo isto ficou ao desamparo. Sem os braços antigos a trabalhar por uma côdea, a gente abastada foi viver para a cidade, perdeu interesse nas terras e vendeu-as por bom preço aos emigrantes. Ainda por cima a troco de moeda forte, que não queriam receber escudos. Mas isto, vendo o mundo em ponto grande ou em ponto pequeno, quem paga as sobras de uns são sempre as faltas dos outros, como é sabido.
Mais tarde veio a agricultura da Europa, e essa acabou com tudo. E esta aldeia, mais que todas, vai morrendo lentamente, sem gente, nem préstimo, nem vida. Até os castanheiros foram desaparecendo, a doença derrotou aí gigantes que podiam contar a nossa história toda.
Já se viu que ao mestre não agrada a barragem, porém toda a moeda tem as caras e as coroas. Ela engoliu as melhores terras, é verdade, e a aldeia perdeu o que lhe deu o ser. Mas os donos não saberiam hoje o que fazer com elas, se ainda as tivessem na mão. As coisas estão de tal maneira que não vale a pena mortificar o corpo. Ao menos receberam as indemnizações, sempre hão-de ter alguma serventia.
Por sobre ser um cidadão atento às coisas da vida, este mestre é um artista. Trazem-lhe carros velhos, tão velhos que já nem existem, e saem-lhe da mão como no dia em que a fábrica os deitou cá para fora. Este, por exemplo, é tão antigo que partes dele são de madeira. Fizeram-no os ingleses e um dia chegou aqui numa lástima, foi um amador que o trouxe da América. Qualquer dia sai daqui como novo.
O viajante, que é desprovido do mais elementar jeito de mãos, observa fascinado estes labores, os cuidados do gesto, os vagares todos duma minúcia lenta. Muitas peças são feitas à mão, já nada disto existe no mercado. Mas este mestre gosta do que faz. É um homem sereno e vive em paz com a vida, apesar da barragem que lhe fizeram à porta. Nem mesmo lhe falta um filho disposto a aprender estas artes mecânicas e a dar continuidade à ciência do pai. Se não tivesse à espera o resto da jornada, quem ficava aqui até à noite era este viajante. Não é todos os dias que assim se vai ao deserto encontrar um oásis.
(...)
quarta-feira, 11 de março de 2009
Automóveis eléctricos
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO-Portugal
Contrariamente ao que sucedeu na informática ou nas telecomunicações, a tecnologia dos transportes e o motor de combustão interna pouco evoluíram nos últimos 100 anos. Mas podemos estar a viver no limiar de uma grande transformação: o surgimento do veículo eléctrico rodoviário, como forma massiva de transporte de passageiros, para substituir o automóvel a gasóleo ou gasolina.
Neste momento parecem estar finalmente criadas as condições técnicas e políticas, sem dúvida originadas pela degradação económica que se vive a nível global, para que se dê esse salto tecnológico. As modernas baterias de iões de lítio, com a elevada capacidade de armazenar 100 KWh por cada quilograma de massa da bateria e com um impressionante número de 7000 ciclos de carga, poderão ter uma vida útil de mais de 200.000 km. O veículo eléctrico ainda estará longe do desempenho dos actuais, mas parece que se vai no bom caminho. As vantagens são a maior eficiência energética, menos poluição e manutenção mais barata.
O passo seguinte será assegurar uma boa rede de abastecimento dos veículos, incluindo cargas rápidas (apenas alguns minutos) em estações de alta voltagem, e garantir uma produção eléctrica ajustada à nova realidade.
Um carro compacto propulsionado por um motor eléctrico consumirá uns 200 watts-hora de energia por quilómetro. Contas feitas, os cerca de 5 milhões de veículos ligeiros de passageiros do nosso parque automóvel, circulando em média 12.000 km por ano, consumirão cerca de 12 Terawatts-hora de energia eléctrica, que é um quarto da que se consome em cada ano actualmente em Portugal.
Não considerando as perdas resultantes da sua integração na rede e no transporte, esta energia não andará longe daquilo que pode ser a produção de uma central nuclear de 1,5 Gigawatts de potência. Ou, em alternativa, a que produzem 5.000 turbinas eólicas de potência média de 1 Megawatt e um factor de rendimento de 30%.
Na situação actual, o consumo dos automóveis ligeiros de passageiros do nosso parque é assegurado pela refinação de uns 100.000 barris de petróleo por dia, cuja combustão lança para a atmosfera mais de 30 mil toneladas de CO2.
A electricidade não é uma energia primária, pois não existe na natureza. Tem de ser produzida. Ela é, contudo, a forma mais conveniente de agregar e distribuir todas as outras formas de energia. Para satisfazer a procura em cada minuto do dia, a gestão da produção tem que ser feita de forma centralizada: por exemplo, fechar as turbinas hidráulicas quando sopra o vento, ou abri-las em dias de calmaria.
Por isso a rede eléctrica será certamente o principal suporte da energia no futuro. Muitas serão as energias primárias a contribuir para aquilo que já se designa como smart-grid: barragens, centrais térmicas a carvão, a gás ou biomassa, turbinas eólicas, painéis solares, ou até, quem sabe, uma central nuclear localizada algures em Espanha.
Perante as várias alternativas, há que escolher as formas mais adequadas: mais baratas, menos poluentes, mais seguras e mais complementares em termos de intermitência. Isto é, que melhor se complementem aquando da interrupção conveniente das outras formas de produção. A energia eólica tem ganho uma grande importância e tem vindo a afirmar-se como uma solução viável e cada vez mais adoptada. Presta-se bem a ser combinada com a produção hidráulica, e isso é uma vantagem para Portugal.
Mas, perante as fragilidades que se podem antever para o gás natural, assaz exemplificadas com o recente (e ainda actual) diferendo entre a Rússia e a Ucrânia, o carvão e o nuclear continuarão a ser a base da produção de electricidade, e a opção entre as duas terá que ser discutida, mais tarde ou mais cedo. E quanto mais cedo melhor.
A actual civilização está num importante e complexo ponto de viragem, de que a presente crise económica e financeira é apenas um sinal. Estamos no zénite da era fóssil, e o mundo começa a sentir a urgência de se preparar para sobreviver ao esgotamento, a breve prazo, dos recursos energéticos que moldaram a nossa maneira de viver nos últimos 150 anos.
Uma política de desenvolvimento económico, e até a própria solução para a saída da crise, não podem alhear-se desta realidade. Também no que toca aos grandes projectos de investimento parece ter chegado o momento das opções: esses projectos baseados em apostas no turismo e na construção civil estão pensados para a economia do carbono. E poderão não ser os mais indicados para o Portugal da era pós-carbono. Existem alternativas que devem ser ponderadas.
Presidente da Marktest e membro da ASPO-Portugal
Contrariamente ao que sucedeu na informática ou nas telecomunicações, a tecnologia dos transportes e o motor de combustão interna pouco evoluíram nos últimos 100 anos. Mas podemos estar a viver no limiar de uma grande transformação: o surgimento do veículo eléctrico rodoviário, como forma massiva de transporte de passageiros, para substituir o automóvel a gasóleo ou gasolina.
Neste momento parecem estar finalmente criadas as condições técnicas e políticas, sem dúvida originadas pela degradação económica que se vive a nível global, para que se dê esse salto tecnológico. As modernas baterias de iões de lítio, com a elevada capacidade de armazenar 100 KWh por cada quilograma de massa da bateria e com um impressionante número de 7000 ciclos de carga, poderão ter uma vida útil de mais de 200.000 km. O veículo eléctrico ainda estará longe do desempenho dos actuais, mas parece que se vai no bom caminho. As vantagens são a maior eficiência energética, menos poluição e manutenção mais barata.
O passo seguinte será assegurar uma boa rede de abastecimento dos veículos, incluindo cargas rápidas (apenas alguns minutos) em estações de alta voltagem, e garantir uma produção eléctrica ajustada à nova realidade.
Um carro compacto propulsionado por um motor eléctrico consumirá uns 200 watts-hora de energia por quilómetro. Contas feitas, os cerca de 5 milhões de veículos ligeiros de passageiros do nosso parque automóvel, circulando em média 12.000 km por ano, consumirão cerca de 12 Terawatts-hora de energia eléctrica, que é um quarto da que se consome em cada ano actualmente em Portugal.
Não considerando as perdas resultantes da sua integração na rede e no transporte, esta energia não andará longe daquilo que pode ser a produção de uma central nuclear de 1,5 Gigawatts de potência. Ou, em alternativa, a que produzem 5.000 turbinas eólicas de potência média de 1 Megawatt e um factor de rendimento de 30%.
Na situação actual, o consumo dos automóveis ligeiros de passageiros do nosso parque é assegurado pela refinação de uns 100.000 barris de petróleo por dia, cuja combustão lança para a atmosfera mais de 30 mil toneladas de CO2.
A electricidade não é uma energia primária, pois não existe na natureza. Tem de ser produzida. Ela é, contudo, a forma mais conveniente de agregar e distribuir todas as outras formas de energia. Para satisfazer a procura em cada minuto do dia, a gestão da produção tem que ser feita de forma centralizada: por exemplo, fechar as turbinas hidráulicas quando sopra o vento, ou abri-las em dias de calmaria.
Por isso a rede eléctrica será certamente o principal suporte da energia no futuro. Muitas serão as energias primárias a contribuir para aquilo que já se designa como smart-grid: barragens, centrais térmicas a carvão, a gás ou biomassa, turbinas eólicas, painéis solares, ou até, quem sabe, uma central nuclear localizada algures em Espanha.
Perante as várias alternativas, há que escolher as formas mais adequadas: mais baratas, menos poluentes, mais seguras e mais complementares em termos de intermitência. Isto é, que melhor se complementem aquando da interrupção conveniente das outras formas de produção. A energia eólica tem ganho uma grande importância e tem vindo a afirmar-se como uma solução viável e cada vez mais adoptada. Presta-se bem a ser combinada com a produção hidráulica, e isso é uma vantagem para Portugal.
Mas, perante as fragilidades que se podem antever para o gás natural, assaz exemplificadas com o recente (e ainda actual) diferendo entre a Rússia e a Ucrânia, o carvão e o nuclear continuarão a ser a base da produção de electricidade, e a opção entre as duas terá que ser discutida, mais tarde ou mais cedo. E quanto mais cedo melhor.
A actual civilização está num importante e complexo ponto de viragem, de que a presente crise económica e financeira é apenas um sinal. Estamos no zénite da era fóssil, e o mundo começa a sentir a urgência de se preparar para sobreviver ao esgotamento, a breve prazo, dos recursos energéticos que moldaram a nossa maneira de viver nos últimos 150 anos.
Uma política de desenvolvimento económico, e até a própria solução para a saída da crise, não podem alhear-se desta realidade. Também no que toca aos grandes projectos de investimento parece ter chegado o momento das opções: esses projectos baseados em apostas no turismo e na construção civil estão pensados para a economia do carbono. E poderão não ser os mais indicados para o Portugal da era pós-carbono. Existem alternativas que devem ser ponderadas.
domingo, 8 de março de 2009
sábado, 7 de março de 2009
Portugalmente (30)
(...)
À saída o calor abrandou e a jornada continua à espera. Mas o viajante não irá daqui sem ver a obra dos pedreiros. Fica ali perto sobre uma colina, a derramar-se para a estrada. É obra de um só piso, vasta como os sonhos do dono. E o viajante, escarmentado com as fealdades que tem visto, muito se regozija com o novo padrão deste arquitecto. Há demasias no jogo das colunas, e a singelez dos capitéis não esconde alguma pretensão. Mas há nele um pudor de volumes, e um desusado equilíbrio de formas, que mantêm algum respeito pela paisagem e não ferem o olhar. É uma alteração de paradigma. E ao lembrar-se do que deixou lá para trás, o viajante faz votos de que o novo figurino acabe por vingar.
A estrada que espera o viajante vai seguindo para norte, e percorrê-la é mergulhar num áspero reino de fraguedos. A ribeirinha Teja começa aqui a tomar corpo, a desbravar caminho na direcção do Douro, aonde chegará depois do despenhadeiro do Vesúvio e muitos sobressaltos. Assustado com tamanhos penhascos, que de ambos os lados ameaçam cair-lhe em cima, o viajante aproveita a companhia duns freixos ribeirinhos, que seguem a linha de água. Poucos mais verdes há na paisagem.
Porém o viajante gosta destes caminhos. E ao ver as estradinhas cuidadas e escorreitas, nestas aldeias por onde tem andado, não consegue fugir à cínica suspeita. Ou o país mudou muito, o que seria um bem, ou anda alguém por aqui a exceder-se nos gastos, e as faltas vão aparecer no balanço das contas. Duas coisas a história nos diria, se lhas fôssemos perguntar. À uma é que toda a vida foi escasso o orçamento, e as faltas nele um lugar comum. E às duas é que em tempo nenhum tiveram iguais direitos os portugueses todos, seja nas vacas gordas, seja nas mais esbeltas. Um dia alguém comparou Portugal a uma aranha, e com razão o fez, que todo ele não é mais que barriga, centrada na capital. Para gosto e consolo de alguns filhos, sobrou sempre o desamparo de enteados. Mormente destes que por aqui vivem, a si abandonados em tais ermos, como temos observado. Hoje em dia muito se vai ouvindo que o país é democrático e moderno, que transpira progressos e já pertence ao clube dos ricos da Europa. A ver vamos, como diz o cego. Este viajante, cego não sendo, não é o que tem visto.
Para escapar a tão duvidosos pensamentos, o viajante liga o rádio do carro, à procura de alguma distracção. E em boa hora o faz, que não faltam no rádio insólitas novidades. Como esta que nos traz um fulano de Alcochete, ao fazer um apelo entusiasmado aos amantes do todo-o-terreno. Bem-vindos são, de qualquer lugar do mundo, desde que tomem lugar na fila que se vai organizar na estrada do Porto Alto, no próximo domingo. Com tão interessante iniciativa, há-de formar-se a mais longa fila de jipes de que há notícia, para entrar no Livro Guinness de Recordes.
Até aqui tudo vai bem, pensa o viajante, que não vê razões para estabelecer limites à excentricidade e à loucura mansa. Mas tudo muda de figura quando o jornalista quer saber qual é o interesse da iniciativa.
- É colocar Alcochete no mapa! É fazer a nossa terra conhecida e pôr as pessoas a falar dela!
O viajante fica impressionado com tanto amor à terra e tamanha fundura de pensamento, mas não augura nada de bom a esta necessidade de ouvir falar de si. Já conheceu muitas terras, algumas delas célebres. Mas não conheceu nenhuma que tenha chegado à glória, por razões tão compridas como uma fila de carros. Tomemos o caso de Guimarães, outro exemplo que agora mesmo nos salta do rádio. Nunca lhe escassearam fundamentos de celebridade, como é geralmente sabido. Porém, aos naturais, veio agora juntar-se um argumento novo e terminante. Foi ele o caso que trezentos alunos da cidade caíram de súbito doentes, todos ao mesmo tempo, em vésperas de exames. Valeu-lhes no aperto a providência médica, que logo forneceu atestados comprovativos. A três disciplinas por cabeça, basta fazer as contas, foram perto de mil as certidões, aqui d’el rei que a pneumónica assentou arraial nestas escolas. Falaram os jornais, o ministério acordou, lá acabou por mexer-se. Por isso vem a Lisboa esta manifestação de furibundos pais, que já tomaram conta desta rua, a exigir audiência com o ministro tão bravamente como estamos a ouvir. Que é lá isso de cortar aos nossos filhos a liberdade de ficarem doentes? Nem nos tempos do fascismo isto era assim!
Com tais heróis do mar fica pasmado o viajante, ou abismado, já duvidando do que está a ouvir, será tudo um delírio da sua cabeça, que apanhou muito sol. Acaba a ponderar que há uma nova razão para Guimarães merecer a fama que lhe assiste. Nenhum lugar no mundo anda mais precisado de vigilância médica, se não for antes o país inteiro a disputar-lhe a primazia.
(...)
À saída o calor abrandou e a jornada continua à espera. Mas o viajante não irá daqui sem ver a obra dos pedreiros. Fica ali perto sobre uma colina, a derramar-se para a estrada. É obra de um só piso, vasta como os sonhos do dono. E o viajante, escarmentado com as fealdades que tem visto, muito se regozija com o novo padrão deste arquitecto. Há demasias no jogo das colunas, e a singelez dos capitéis não esconde alguma pretensão. Mas há nele um pudor de volumes, e um desusado equilíbrio de formas, que mantêm algum respeito pela paisagem e não ferem o olhar. É uma alteração de paradigma. E ao lembrar-se do que deixou lá para trás, o viajante faz votos de que o novo figurino acabe por vingar.
A estrada que espera o viajante vai seguindo para norte, e percorrê-la é mergulhar num áspero reino de fraguedos. A ribeirinha Teja começa aqui a tomar corpo, a desbravar caminho na direcção do Douro, aonde chegará depois do despenhadeiro do Vesúvio e muitos sobressaltos. Assustado com tamanhos penhascos, que de ambos os lados ameaçam cair-lhe em cima, o viajante aproveita a companhia duns freixos ribeirinhos, que seguem a linha de água. Poucos mais verdes há na paisagem.
Porém o viajante gosta destes caminhos. E ao ver as estradinhas cuidadas e escorreitas, nestas aldeias por onde tem andado, não consegue fugir à cínica suspeita. Ou o país mudou muito, o que seria um bem, ou anda alguém por aqui a exceder-se nos gastos, e as faltas vão aparecer no balanço das contas. Duas coisas a história nos diria, se lhas fôssemos perguntar. À uma é que toda a vida foi escasso o orçamento, e as faltas nele um lugar comum. E às duas é que em tempo nenhum tiveram iguais direitos os portugueses todos, seja nas vacas gordas, seja nas mais esbeltas. Um dia alguém comparou Portugal a uma aranha, e com razão o fez, que todo ele não é mais que barriga, centrada na capital. Para gosto e consolo de alguns filhos, sobrou sempre o desamparo de enteados. Mormente destes que por aqui vivem, a si abandonados em tais ermos, como temos observado. Hoje em dia muito se vai ouvindo que o país é democrático e moderno, que transpira progressos e já pertence ao clube dos ricos da Europa. A ver vamos, como diz o cego. Este viajante, cego não sendo, não é o que tem visto.
Para escapar a tão duvidosos pensamentos, o viajante liga o rádio do carro, à procura de alguma distracção. E em boa hora o faz, que não faltam no rádio insólitas novidades. Como esta que nos traz um fulano de Alcochete, ao fazer um apelo entusiasmado aos amantes do todo-o-terreno. Bem-vindos são, de qualquer lugar do mundo, desde que tomem lugar na fila que se vai organizar na estrada do Porto Alto, no próximo domingo. Com tão interessante iniciativa, há-de formar-se a mais longa fila de jipes de que há notícia, para entrar no Livro Guinness de Recordes.
Até aqui tudo vai bem, pensa o viajante, que não vê razões para estabelecer limites à excentricidade e à loucura mansa. Mas tudo muda de figura quando o jornalista quer saber qual é o interesse da iniciativa.
- É colocar Alcochete no mapa! É fazer a nossa terra conhecida e pôr as pessoas a falar dela!
O viajante fica impressionado com tanto amor à terra e tamanha fundura de pensamento, mas não augura nada de bom a esta necessidade de ouvir falar de si. Já conheceu muitas terras, algumas delas célebres. Mas não conheceu nenhuma que tenha chegado à glória, por razões tão compridas como uma fila de carros. Tomemos o caso de Guimarães, outro exemplo que agora mesmo nos salta do rádio. Nunca lhe escassearam fundamentos de celebridade, como é geralmente sabido. Porém, aos naturais, veio agora juntar-se um argumento novo e terminante. Foi ele o caso que trezentos alunos da cidade caíram de súbito doentes, todos ao mesmo tempo, em vésperas de exames. Valeu-lhes no aperto a providência médica, que logo forneceu atestados comprovativos. A três disciplinas por cabeça, basta fazer as contas, foram perto de mil as certidões, aqui d’el rei que a pneumónica assentou arraial nestas escolas. Falaram os jornais, o ministério acordou, lá acabou por mexer-se. Por isso vem a Lisboa esta manifestação de furibundos pais, que já tomaram conta desta rua, a exigir audiência com o ministro tão bravamente como estamos a ouvir. Que é lá isso de cortar aos nossos filhos a liberdade de ficarem doentes? Nem nos tempos do fascismo isto era assim!
Com tais heróis do mar fica pasmado o viajante, ou abismado, já duvidando do que está a ouvir, será tudo um delírio da sua cabeça, que apanhou muito sol. Acaba a ponderar que há uma nova razão para Guimarães merecer a fama que lhe assiste. Nenhum lugar no mundo anda mais precisado de vigilância médica, se não for antes o país inteiro a disputar-lhe a primazia.
(...)
sexta-feira, 6 de março de 2009
quinta-feira, 5 de março de 2009
Portugalmente (29)
(...)
Se outros pesos não trouxesse, bastaria o peso deste sol para acabrunhar o viajante. O que lhe vale é que para baixo todos os santos ajudam, mormente em se tratando destas quebradas perdidas do Cadouço, por onde tem que regressar. Como é que pariu a terra tantas pedras, razão tinha a pergunta do Manuel cabreiro!
O viajante chega estafado ao carro e acelera estrada fora, de janelas abertas, nem se lembra mais da coluna de fumo que já encheu o céu. O que lhe dava jeito aqui era um rio de mel onde matar a sede. Mas algum porto de abrigo há-de encontrar.
Por sorte sua está perto a catraia de Castaíde, onde a taberna que abrigou antigos viandantes cedeu lugar a um café moderno. Cá fora há uns assadores de carvão, e a filha do estalajadeiro está a preparar o almoço duns pedreiros, que andam a fazer uma casa ali perto. O viajante ouve dizer que o fogo começou na Póvoa e já comeu metade da serra do Feital. Ouvem-se roncar uns aviões por trás dos cerros das Terras Grandes, andam a combater o incêndio mas o fumo já se espalhou no céu inteiro. E ele está tão descrente destes combates perdidos, e tão descoroçoado do calor, que nem quer ouvir falar do fogo. Mergulha na sombra do café, decidido a não voltar à rua enquanto o pior não passar. Matou a sede, aproveitou para almoçar, e só depois da partida dos barulhentos pedreiros é que voltou a si. O hospedeiro, um homem de bigodes e de poucas palavras, anda azafamado atrás do seu balcão. O viajante quer pagar a conta.
- Arderam quando, as Terras Grandes?
O homem dos bigodes encara o viajante e fica a concentrar-se na memória. Levanta a mão como quem vai responder, mas finalmente abre uma gaveta e pesca lá de dentro um livreco sebento. Desdobra nele uma página e estende-a à frente do viajante.
- Está tudo aqui! Você sabe ler?
O viajante, que esperava tudo menos esta resposta, fica encantado com a oferta e volta a sentar-se à mesa. O que tem à sua frente é uma crónica do incêndio, num velho almanaque regional.
“A primeira vez terá sido por culpa dum brasileiro, duma terra qualquer. Ninguém o conhecia, nem soube dar notícia dele, mas a voz correu à solta. O homem chegou aí comido de saudades, peregrinou por terras e caminhos, e acabou um dia a assar sardinhas à beira do giestal, ali nos outeiros da quinta do Forcas. Era o dia 20 de Setembro de 1982 e a tarde estava soalheira. Mas à hora a que o vento se levantou do sul e se pôs a trotar sobre o espinhaço dos montes, o inepto cozinheiro imaginou-se nas vastidões do Mato Grosso e perdeu a mão às labaredas, ateadas ali no meio da rodeira.
No que restou do dia, e durante a noite inteira, viveu-se uma hecatombe. Os montes estavam saturados de carga térmica, se não é mais adequado dizer que estavam cobertos de arbustos e ramagens, de troncos abatidos e matorral sequíssimo, o desleixo e o abandono já por então faziam norma. Ora tudo isso ardia como paus de fósforo, era o final do verão.
O fogo correu altíssimo pelos giestais das Poisadas e os matos de Castaíde, entrou a galopar nos morros da quinta dos Cavalos e nos pinheirais de Golfar, atacou, era já noite, os carvalhais do Zaragata e da quinta do Boco, sitiou bocas de minas e valadões do volfrâmio nos cerros do Montrangão, varreu restolhos velhos na Perqueixada e restos de matas no Vale Ferreiro, lambeu pela madrugada os junçais do Safrial e da Laja da Seara, abrasou num ai os pinheirais dos Crespos, galgou o ribeiro das Águas-Vivas e avançou para a Sobreposta, e só veio a morrer no final da manhã, aos pés do castro de Casteição, porque o malvado vento quis descansar.
Cegas de pânico, as lebres tropeçavam nos lagartos azuis que abriam bocas desesperadas e fugiam alucinados pelas rodeiras do Ribeiro de Pau. E os corvos, num voo sem norte, largavam pragas pelo céu negro, ao chocar em carvões incandescentes, por entre a poalha de fuligens que lhes queimava as asas e os forçava a cerrar os olhos. Os caminhos estavam cheios do silvar agudo das cobras, ouvia-se a lamúria dos ratos do campo que protestavam contra a insânia do mundo, e os vultos dos homens impotentes tossiam, de enxada ao ombro, afogados na fumarada, por entre o estralejar dos gafanhotos que rebentavam como panchões da China. Um grande calor fazia explodir as veias dos pinheiros, em torrentes de seiva que desciam a arder como cascatas de lava, e que ao chegar ao solo retrocediam rápidas, subindo pelos troncos, no ar escuro, como assombrações doutro mundo. Os uivos aflitos da carne da terra chegavam à estrada da Castanheira, e o ronco surdo das combustões desenfreadas enchia de pavor todo o vale. Acabaram em cinzas quinze quilómetros de matagal entre a ribeira Teja e a estrada da Meda, nunca assim se vira tão desenfreada a besta do apocalipse.
A réplica da hecatombe havia de chegar oito anos depois, em inverso sentido. Por razões tão criminosas como fúteis, um marginal paisano resolveu incendiar o pinhal dum vizinho, no sítio das Raposas, lá para a Castelhana, ao tempo não havia ainda o grande charco da barragem cobrindo as várzeas. Era meia-noite e o povo andava batendo os matos incendiados com giestas negrais e pazadas de areia, quando entrou a soprar um vento ligeiro que subia do Douro. O fogo aproveitou uns restos de seara para escapar ao castigo e galgar a ribeira, alimentou-se nos matos rasteiros que haviam tomado o lugar dos pinheirais antigos, e na tarde seguinte acabava a morrer nas colinas da quinta do Forcas, no mesmo exacto ponto em que o brasileiro andara certo dia assando as sardinhas. Desta vez havia de cruzar a estrada da Meda, e por lá andou vitimando as matas que do alto das Sete Pipas se debruçam para a terra quente e os lameiros que vertem para a corda do Senhor da Pedra. Veio até a chamuscar as barbas inquietas dos castanheiros de Souto Maior e da Aldeia de Santo Inácio.
Das sementes que tinham escapado ao incêndio primeiro, milhares de plantas haviam germinado, lutavam por viver entre tojos e matos, e eram a salvação do monte. Mas nem uma resistiu à renovada selvajaria. A paisagem mudou, e agora nem sete gerações bastarão para que volte nela a frescura das sombras antigas, as flautas de Pã do vento nas agulhas, o verde longínquo dos pinheirais da infância.
O mundo tornou-se outro, se não é o mesmo que morrendo vai. Pasmam, confusos, os aldeãos a quem se paga para deixarem abandonada a terra. Pasmam, desertos, os campos, saudosos do trilhar dos gados e do rude gesto bíblico dos homens. Talvez possam os deuses evitar, pasmando assim os homens, que outras bestas apocalípticas venham um dia destes por aí. Mas isso ninguém o pode garantir, passado que está o tempo dos milagres”.
O viajante fica impressionado com o relato, não esperava tanto quando fez a pergunta. Desfaz-se em agradecimentos ao estalajadeiro e decide refrescar-se com mais uma cerveja, enquanto saboreia uma nova leitura. O homem acaba a oferecer-lhe o almanaque. E quando o viajante se despede, parece até que vai reconciliado com o mundo.
(...)
Se outros pesos não trouxesse, bastaria o peso deste sol para acabrunhar o viajante. O que lhe vale é que para baixo todos os santos ajudam, mormente em se tratando destas quebradas perdidas do Cadouço, por onde tem que regressar. Como é que pariu a terra tantas pedras, razão tinha a pergunta do Manuel cabreiro!
O viajante chega estafado ao carro e acelera estrada fora, de janelas abertas, nem se lembra mais da coluna de fumo que já encheu o céu. O que lhe dava jeito aqui era um rio de mel onde matar a sede. Mas algum porto de abrigo há-de encontrar.
Por sorte sua está perto a catraia de Castaíde, onde a taberna que abrigou antigos viandantes cedeu lugar a um café moderno. Cá fora há uns assadores de carvão, e a filha do estalajadeiro está a preparar o almoço duns pedreiros, que andam a fazer uma casa ali perto. O viajante ouve dizer que o fogo começou na Póvoa e já comeu metade da serra do Feital. Ouvem-se roncar uns aviões por trás dos cerros das Terras Grandes, andam a combater o incêndio mas o fumo já se espalhou no céu inteiro. E ele está tão descrente destes combates perdidos, e tão descoroçoado do calor, que nem quer ouvir falar do fogo. Mergulha na sombra do café, decidido a não voltar à rua enquanto o pior não passar. Matou a sede, aproveitou para almoçar, e só depois da partida dos barulhentos pedreiros é que voltou a si. O hospedeiro, um homem de bigodes e de poucas palavras, anda azafamado atrás do seu balcão. O viajante quer pagar a conta.
- Arderam quando, as Terras Grandes?
O homem dos bigodes encara o viajante e fica a concentrar-se na memória. Levanta a mão como quem vai responder, mas finalmente abre uma gaveta e pesca lá de dentro um livreco sebento. Desdobra nele uma página e estende-a à frente do viajante.
- Está tudo aqui! Você sabe ler?
O viajante, que esperava tudo menos esta resposta, fica encantado com a oferta e volta a sentar-se à mesa. O que tem à sua frente é uma crónica do incêndio, num velho almanaque regional.
“A primeira vez terá sido por culpa dum brasileiro, duma terra qualquer. Ninguém o conhecia, nem soube dar notícia dele, mas a voz correu à solta. O homem chegou aí comido de saudades, peregrinou por terras e caminhos, e acabou um dia a assar sardinhas à beira do giestal, ali nos outeiros da quinta do Forcas. Era o dia 20 de Setembro de 1982 e a tarde estava soalheira. Mas à hora a que o vento se levantou do sul e se pôs a trotar sobre o espinhaço dos montes, o inepto cozinheiro imaginou-se nas vastidões do Mato Grosso e perdeu a mão às labaredas, ateadas ali no meio da rodeira.
No que restou do dia, e durante a noite inteira, viveu-se uma hecatombe. Os montes estavam saturados de carga térmica, se não é mais adequado dizer que estavam cobertos de arbustos e ramagens, de troncos abatidos e matorral sequíssimo, o desleixo e o abandono já por então faziam norma. Ora tudo isso ardia como paus de fósforo, era o final do verão.
O fogo correu altíssimo pelos giestais das Poisadas e os matos de Castaíde, entrou a galopar nos morros da quinta dos Cavalos e nos pinheirais de Golfar, atacou, era já noite, os carvalhais do Zaragata e da quinta do Boco, sitiou bocas de minas e valadões do volfrâmio nos cerros do Montrangão, varreu restolhos velhos na Perqueixada e restos de matas no Vale Ferreiro, lambeu pela madrugada os junçais do Safrial e da Laja da Seara, abrasou num ai os pinheirais dos Crespos, galgou o ribeiro das Águas-Vivas e avançou para a Sobreposta, e só veio a morrer no final da manhã, aos pés do castro de Casteição, porque o malvado vento quis descansar.
Cegas de pânico, as lebres tropeçavam nos lagartos azuis que abriam bocas desesperadas e fugiam alucinados pelas rodeiras do Ribeiro de Pau. E os corvos, num voo sem norte, largavam pragas pelo céu negro, ao chocar em carvões incandescentes, por entre a poalha de fuligens que lhes queimava as asas e os forçava a cerrar os olhos. Os caminhos estavam cheios do silvar agudo das cobras, ouvia-se a lamúria dos ratos do campo que protestavam contra a insânia do mundo, e os vultos dos homens impotentes tossiam, de enxada ao ombro, afogados na fumarada, por entre o estralejar dos gafanhotos que rebentavam como panchões da China. Um grande calor fazia explodir as veias dos pinheiros, em torrentes de seiva que desciam a arder como cascatas de lava, e que ao chegar ao solo retrocediam rápidas, subindo pelos troncos, no ar escuro, como assombrações doutro mundo. Os uivos aflitos da carne da terra chegavam à estrada da Castanheira, e o ronco surdo das combustões desenfreadas enchia de pavor todo o vale. Acabaram em cinzas quinze quilómetros de matagal entre a ribeira Teja e a estrada da Meda, nunca assim se vira tão desenfreada a besta do apocalipse.
A réplica da hecatombe havia de chegar oito anos depois, em inverso sentido. Por razões tão criminosas como fúteis, um marginal paisano resolveu incendiar o pinhal dum vizinho, no sítio das Raposas, lá para a Castelhana, ao tempo não havia ainda o grande charco da barragem cobrindo as várzeas. Era meia-noite e o povo andava batendo os matos incendiados com giestas negrais e pazadas de areia, quando entrou a soprar um vento ligeiro que subia do Douro. O fogo aproveitou uns restos de seara para escapar ao castigo e galgar a ribeira, alimentou-se nos matos rasteiros que haviam tomado o lugar dos pinheirais antigos, e na tarde seguinte acabava a morrer nas colinas da quinta do Forcas, no mesmo exacto ponto em que o brasileiro andara certo dia assando as sardinhas. Desta vez havia de cruzar a estrada da Meda, e por lá andou vitimando as matas que do alto das Sete Pipas se debruçam para a terra quente e os lameiros que vertem para a corda do Senhor da Pedra. Veio até a chamuscar as barbas inquietas dos castanheiros de Souto Maior e da Aldeia de Santo Inácio.
Das sementes que tinham escapado ao incêndio primeiro, milhares de plantas haviam germinado, lutavam por viver entre tojos e matos, e eram a salvação do monte. Mas nem uma resistiu à renovada selvajaria. A paisagem mudou, e agora nem sete gerações bastarão para que volte nela a frescura das sombras antigas, as flautas de Pã do vento nas agulhas, o verde longínquo dos pinheirais da infância.
O mundo tornou-se outro, se não é o mesmo que morrendo vai. Pasmam, confusos, os aldeãos a quem se paga para deixarem abandonada a terra. Pasmam, desertos, os campos, saudosos do trilhar dos gados e do rude gesto bíblico dos homens. Talvez possam os deuses evitar, pasmando assim os homens, que outras bestas apocalípticas venham um dia destes por aí. Mas isso ninguém o pode garantir, passado que está o tempo dos milagres”.
O viajante fica impressionado com o relato, não esperava tanto quando fez a pergunta. Desfaz-se em agradecimentos ao estalajadeiro e decide refrescar-se com mais uma cerveja, enquanto saboreia uma nova leitura. O homem acaba a oferecer-lhe o almanaque. E quando o viajante se despede, parece até que vai reconciliado com o mundo.
(...)
quarta-feira, 4 de março de 2009
Castelo melhor
Dona Rosária nasceu há muitos anos, viveu sempre e acaba de morrer em Castelo Melhor. E o tempo trouxe-lhe uns tiques de castelã, que ainda hoje manifesta no semblante.
Em tempos, quando era nova, chamaram-na para servir numa família do Porto, num castelo à beira-mar. Foi então que o Manuel se decidiu, e lhe propôs casamento. Rosária já não partiu. Castelo por castelo, decidiu-se pelo melhor.
A vida foi-lhe sempre um mau fadário: filharada, solidão, penúria, noites sofridas, obrigações, trabalheiras...
- Foi culpa dela! - arriscam, no velório, os apressados. E em muitos casos será. Mas neste particular, a maior culpa foi da toponímia.
Em tempos, quando era nova, chamaram-na para servir numa família do Porto, num castelo à beira-mar. Foi então que o Manuel se decidiu, e lhe propôs casamento. Rosária já não partiu. Castelo por castelo, decidiu-se pelo melhor.
A vida foi-lhe sempre um mau fadário: filharada, solidão, penúria, noites sofridas, obrigações, trabalheiras...
- Foi culpa dela! - arriscam, no velório, os apressados. E em muitos casos será. Mas neste particular, a maior culpa foi da toponímia.
terça-feira, 3 de março de 2009
O Amnésias
O padrinho Amnésias tem fachada de dois pôres, conforme as ocasiões. Quando a vida corre a gosto, põe o pôr de avô Cantigas. Dá um jeito no bigode e não há quem pegue nele. Priva com casas reais, vai ao golfe com a finança, emparelha com traficantes de armas, mata caça com cavalheiros de indústria, multiplica negócios, é um furor a produzir riquezas. Se o tempo vira de chuva, põe a caraça de Amnésias e não se lembra de nada.
Quando um dia o transformaram em ministro das polícias, o primeiro movimento foi telefonar ao pai. - Querido pai, já sou ministro! - Deu assim a novidade e confirmou a notícia, por temer que ninguém acreditasse. E o segundo foi mandar fazer uma estrada lá na terra, para cumprir a tradição e ter um lugar na história.
Acabou por entrar nela por causa duma batalha, a dos secos e molhados. Dum lado pôs os polícias que agitavam os crachás e queriam ter sindicato. Do outro pôs os restantes, armados de cassetetes, cães de guerra e canhões de água. Ou cães de água e canhoneiras de guerra, dá no mesmo! Foi uma verdadeira Aljubarrota, em que os santos e os heróis ganharam outra vez.
Mas foi ao ver os destroços que sobejaram no campo, que o Amnésias decantou a regra de ouro de um padrinho de sucesso. - Não confies à polícia pistolas sofisticadas, e muito menos viaturas eficazes! Um dia podem vir atrás de ti!
Suprema sabedoria, que nunca mais esqueceu.
Quando um dia o transformaram em ministro das polícias, o primeiro movimento foi telefonar ao pai. - Querido pai, já sou ministro! - Deu assim a novidade e confirmou a notícia, por temer que ninguém acreditasse. E o segundo foi mandar fazer uma estrada lá na terra, para cumprir a tradição e ter um lugar na história.
Acabou por entrar nela por causa duma batalha, a dos secos e molhados. Dum lado pôs os polícias que agitavam os crachás e queriam ter sindicato. Do outro pôs os restantes, armados de cassetetes, cães de guerra e canhões de água. Ou cães de água e canhoneiras de guerra, dá no mesmo! Foi uma verdadeira Aljubarrota, em que os santos e os heróis ganharam outra vez.
Mas foi ao ver os destroços que sobejaram no campo, que o Amnésias decantou a regra de ouro de um padrinho de sucesso. - Não confies à polícia pistolas sofisticadas, e muito menos viaturas eficazes! Um dia podem vir atrás de ti!
Suprema sabedoria, que nunca mais esqueceu.
segunda-feira, 2 de março de 2009
Dourar a pílula...
... é o que a tradição manda fazer, quando a dita é amargosa e o paciente se mostra relutante. Nos casos mais comuns, cuidados paliativos são um gesto caritativo.
Nisto, porém, a que se vai chamando a crise, o que seria caridade é um engano, se não é melhor dizer um logro e um embuste. E é-o por três motivos.
O primeiro, porque a situação de catástrofe geral em que o mundo se encontra, com a vida de todos nós à beira dum precipício incalculável, não resulta de qualquer imprevidência, de nenhuma distracção. E muito menos do acaso, da ordem natural das coisas, ou do azedume dum deus que acordou indisposto. Não são os recursos económicos do mundo inteiro que estão a ser sugados por um buraco negro. É uma quantidade colossal de riqueza que está a mudar de mãos. A catástrofe é assim porque alguém a engendrou, e a última década de criminosa governação americana não procurou outra coisa.
O segundo, porque esta gripe não vai lá com mezinhas nem papas de linhaça, pois não é duma crise que se trata. É todo o modo humano de organizar a vida, desde há mais de cem anos, que está a chegar ao fim: as energias fósseis ao preço da uva mijona, o desrespeito pelas normas da natureza, a distribuição a-racional dos recursos do planeta, a iniquidade imperial e nacionalista.
O terceiro, porque a ultrapassagem da crise não surgirá ao virar duma esquina, dentro de um par de meses ou quando mudar o ano, conforme nos prometem. Muito particularmente em Portugal, que só sairá da crise por arrastamento do que acontecer lá fora, haverá fogo e ranger de dentes para os próximos três a seis anos.
Isto se tudo correr pelo melhor! Porque a única moeda de troca do país é a penúria e o sofrimento. Conforme pensava, e melhor ainda punha em prática, um fantasma de Santa Comba Dão de que agora me lembrei.
Nisto, porém, a que se vai chamando a crise, o que seria caridade é um engano, se não é melhor dizer um logro e um embuste. E é-o por três motivos.
O primeiro, porque a situação de catástrofe geral em que o mundo se encontra, com a vida de todos nós à beira dum precipício incalculável, não resulta de qualquer imprevidência, de nenhuma distracção. E muito menos do acaso, da ordem natural das coisas, ou do azedume dum deus que acordou indisposto. Não são os recursos económicos do mundo inteiro que estão a ser sugados por um buraco negro. É uma quantidade colossal de riqueza que está a mudar de mãos. A catástrofe é assim porque alguém a engendrou, e a última década de criminosa governação americana não procurou outra coisa.
O segundo, porque esta gripe não vai lá com mezinhas nem papas de linhaça, pois não é duma crise que se trata. É todo o modo humano de organizar a vida, desde há mais de cem anos, que está a chegar ao fim: as energias fósseis ao preço da uva mijona, o desrespeito pelas normas da natureza, a distribuição a-racional dos recursos do planeta, a iniquidade imperial e nacionalista.
O terceiro, porque a ultrapassagem da crise não surgirá ao virar duma esquina, dentro de um par de meses ou quando mudar o ano, conforme nos prometem. Muito particularmente em Portugal, que só sairá da crise por arrastamento do que acontecer lá fora, haverá fogo e ranger de dentes para os próximos três a seis anos.
Isto se tudo correr pelo melhor! Porque a única moeda de troca do país é a penúria e o sofrimento. Conforme pensava, e melhor ainda punha em prática, um fantasma de Santa Comba Dão de que agora me lembrei.
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