quarta-feira, 30 de março de 2011
Mais vale tarde... 9 - A missão civilizadora
(...) Os trabalhos forçados, conhecidos como sistema de contratos, são uma das mais ferozes instituições da nossa época [1934]. Aqueles pretos, muito longe da sua terra, trabalham debaixo de sanções penais (…). Se tentam fugir e são apanhados, sofrem os mais cruéis castigos corporais. O extinto Sir Arthur Conan Doyle deixou o mundo atónito com as suas revelações sobre o tratamento a que eram submetidos os naturais do Congo Belga. Mas a indignação mundial aplacou-se bem depressa. Hoje em dia, a aterrorização do indígena é geral, desde a África do Sul até ao Sudão, e do Rio do Ouro à Etiópia. (…) Os fastos coloniais da Itália, na Líbia, constituem talvez o episódio mais doloroso na história da colonização africana. Ali, segundo as estatísticas oficiais publicadas pela Liga das Nações, os turcos deixaram uma população de dois milhões e seiscentas mil pessoas, ao cederem o território à Itália. Após quinze anos de administração italiana, dois milhões de naturais tinha perecido ou emigrado, dos quais um milhão e meio sob o reinado do famoso Graziani. (…) O vice-rei Graziani, convém dizê-lo de passagem, não havia esquecido de todo os seus antigos súbditos da Líbia, quando foi conquistar a Abissínia Meridional. Em benefício da sua infantaria eritreia, que fez toda a campanha e cujas baixas nunca eram mencionadas em Roma, importou centenas de rapazes e raparigas líbios, para serem prostituídos pelos soldados. A moderna psicanálise permite-nos compreender, em certa medida, as perigosas consequências do instinto de domínio. O europeu degenera facilmente nos países tropicais. É incontestável que entre os milhares de jovens europeus que partem todos os anos para servirem como administradores, agrónomos, organizadores e feitores, se encontra uma pequena minoria de idealistas, que prestam real auxílio à população nativa. Mas poucos são capazes de subtrair-se à influência desmoralizadora do meio em que se acham. Raros resistem à terrível tentação dos poderes quase ilimitados de que o homem branco desfruta ali. (…) Observadores conscienciosos do sistema colonial africano, tais como André Gide, Roland Holst, Albert Londres e Andrée Viollis, anotaram o facto de que uma alta percentagem dos guardas de plantações perdem o seu equilíbrio mental. Sob a influência da solidão, do tédio, do álcool, de condições sexuais e sociais anormais, eles transformam-se em psicopatas. O mesmo se dá com as tropas. Toda essa gente tem propensão para vingar-se dos seus padecimentos mentais em pobres criaturas indefesas. (…) Todos os administradores que conheci se sentiam alvo de um ódio mudo, mas ódio nunca apaziguado. O homem branco, ao destruir o sossego mental do indígena, matou o seu próprio. Ambos são acossados pelo medo. As qualidades intrínsecas de ambos são aniquiladas, pois o natural vai perdendo rapidamente a sua alegria de viver. A nossa expedição foi à África recolher danças e canções, porque os indígenas dançam e cantam cada vez menos. (…) Por toda a parte as tribos se vão tornando mais bestiais e a opressão mais cruel. A cobiça está transformando um continente inteiro num mundo de sangue e de lágrimas. (...)
quarta-feira, 23 de março de 2011
Ética e moralidade
Capucho, um entre os muitos barões da São Caetano à Lapa, deixou há dias dito ter chegado o momento de a ética e a moralidade voltarem à política. (Na mira, tinha ele a queda do governo).
De facto, nunca de lá deviam ter saído, se alguma vez lá estiveram. Mas o que é surpreendente é uma tal declaração sair assim descarada da boca dum cavaquista.
Chefiado, muitos anos, por uma trôpega figura de conspirador desleal, toda ela feita de inépcia, hipocrisia, calculismo e demagogia, o PSD nunca teve para oferecer a este povo naufragado a mais ligeira ideia do que fosse a transformação urgente e a inadiável modernidade. Educação, saúde, justiça, economia, administração, futuro... tudo se resumiu sempre a sofreguidão pelo poder.
Por isso, o legado mais visível que o cavaquismo deixou foi a choldra que pulula por aí: de barões oportunistas, de videirinhos, de falsários, de escroques e de gangsters.
O governo do PS, que também não tem a caderneta limpa, acaba de cair. No delicado contexto em que o país se encontra, só se pode dar razão ao Unamuno: Portugal é um estranho país de suicidas.
De facto, nunca de lá deviam ter saído, se alguma vez lá estiveram. Mas o que é surpreendente é uma tal declaração sair assim descarada da boca dum cavaquista.
Chefiado, muitos anos, por uma trôpega figura de conspirador desleal, toda ela feita de inépcia, hipocrisia, calculismo e demagogia, o PSD nunca teve para oferecer a este povo naufragado a mais ligeira ideia do que fosse a transformação urgente e a inadiável modernidade. Educação, saúde, justiça, economia, administração, futuro... tudo se resumiu sempre a sofreguidão pelo poder.
Por isso, o legado mais visível que o cavaquismo deixou foi a choldra que pulula por aí: de barões oportunistas, de videirinhos, de falsários, de escroques e de gangsters.
O governo do PS, que também não tem a caderneta limpa, acaba de cair. No delicado contexto em que o país se encontra, só se pode dar razão ao Unamuno: Portugal é um estranho país de suicidas.
quinta-feira, 17 de março de 2011
Mais vale tarde... 7 - Léon Blum e o Front Populaire
(...)
Léon Blum entrou para as fileiras socialistas já tarde na vida. Nada, na sua mocidade e primeira madureza, parecia predestinado ao papel que foi chamado a desempenhar mais tarde. Vinha daquele meio de estetas desprendidos e snobs literários, cujo pontífice era Marcel Proust. Mas os safanões do affaire Dreyfus fizeram-no despertar, como aos seus confrades Romain Rolland e Paul Painlevé. Teve a revelação uma noite em que passava pelos pardieiros do Faubourg St. Martin (ainda hoje uma zona empestada) e viu a sórdida miséria em que vivia a massa do povo. (…)
Polemista brilhante, de inatacável integridade intelectual, (…) Léon Blum não era um chefe. Pelo espaço de alguns meses, as massas do povo francês acharam-se de tal modo dispostas que o teriam seguido cegamente. A sua confiança em Léon Blum era absoluta, pateticamente absoluta. E todavia, quem quer que houvesse observado de perto a conduta de Léon Blum nos grandes meetings e demonstrações políticas, teria notado o mal-estar que lhe sobrevinha em presença do povo. Em público, Blum revelava uma timidez quase feminina. Enfrentar uma daquelas enormes multidões na Place de la République ou no Vélodrome d’Hiver, era-lhe evidentemente um suplício. Quando via erguer-se para ele meio milhão de punhos cerrados, fazendo a saudação antifascista, ficava tão perturbado e trémulo como o mulheril André Gide. Nunca teve a coragem de corresponder à saudação, erguendo também o punho. (…)
Nunca encontrei um homem que fosse tão profundamente sensível aos pesares dos outros, e ao mesmo tempo tão despido de ambição pessoal. Falava no povo e na sua causa com uma ternura quase evangélica, e até quando a sua voz se fazia dura, como deve ser por vezes a voz dum profeta, era aquela a dureza do coração amante. (…) Era um organizador teórico, e não um construtor. (…)
Quando teve de encarar as responsabilidades do governo, Léon Blum começou a tremer e encheu-se de hesitações. (…) Foi a sua irresolução que fez apagar-se essa luz. Naquela ocasião em que o sistema capitalista havia demonstrado a sua impotência em prover às necessidades materiais do homem, naquela ocasião em que o socialismo teria vogado de vento em popa, Léon Blum pôs na defensiva o movimento socialista na França. Não que duvidasse do povo, mas tinha medo da vida. A realidade era dura e severa: os seus colegas socialistas de ministério haviam trocado simplesmente o ideal por um par de calças listadas e o título de Monsieur le Ministre. (…)
Ele hesitava porque, conhecendo a fraqueza da classe operária francesa, e vendo a atitude assumida pela burguesia internacional ante a questão espanhola, previa uma luta mais dolorosa , mais horrível ainda do que aquela que assolava a península ibérica. Tinha medo de enfrentar a derrota. “Devemos defender a democracia pura e simples”, acrescentou, como se a democracia que nós temos fosse uma democracia de verdade, e como se se pudesse estabelecer sem lutas a verdadeira democracia.(…)
Léon Blum entrou para as fileiras socialistas já tarde na vida. Nada, na sua mocidade e primeira madureza, parecia predestinado ao papel que foi chamado a desempenhar mais tarde. Vinha daquele meio de estetas desprendidos e snobs literários, cujo pontífice era Marcel Proust. Mas os safanões do affaire Dreyfus fizeram-no despertar, como aos seus confrades Romain Rolland e Paul Painlevé. Teve a revelação uma noite em que passava pelos pardieiros do Faubourg St. Martin (ainda hoje uma zona empestada) e viu a sórdida miséria em que vivia a massa do povo. (…)
Polemista brilhante, de inatacável integridade intelectual, (…) Léon Blum não era um chefe. Pelo espaço de alguns meses, as massas do povo francês acharam-se de tal modo dispostas que o teriam seguido cegamente. A sua confiança em Léon Blum era absoluta, pateticamente absoluta. E todavia, quem quer que houvesse observado de perto a conduta de Léon Blum nos grandes meetings e demonstrações políticas, teria notado o mal-estar que lhe sobrevinha em presença do povo. Em público, Blum revelava uma timidez quase feminina. Enfrentar uma daquelas enormes multidões na Place de la République ou no Vélodrome d’Hiver, era-lhe evidentemente um suplício. Quando via erguer-se para ele meio milhão de punhos cerrados, fazendo a saudação antifascista, ficava tão perturbado e trémulo como o mulheril André Gide. Nunca teve a coragem de corresponder à saudação, erguendo também o punho. (…)
Nunca encontrei um homem que fosse tão profundamente sensível aos pesares dos outros, e ao mesmo tempo tão despido de ambição pessoal. Falava no povo e na sua causa com uma ternura quase evangélica, e até quando a sua voz se fazia dura, como deve ser por vezes a voz dum profeta, era aquela a dureza do coração amante. (…) Era um organizador teórico, e não um construtor. (…)
Quando teve de encarar as responsabilidades do governo, Léon Blum começou a tremer e encheu-se de hesitações. (…) Foi a sua irresolução que fez apagar-se essa luz. Naquela ocasião em que o sistema capitalista havia demonstrado a sua impotência em prover às necessidades materiais do homem, naquela ocasião em que o socialismo teria vogado de vento em popa, Léon Blum pôs na defensiva o movimento socialista na França. Não que duvidasse do povo, mas tinha medo da vida. A realidade era dura e severa: os seus colegas socialistas de ministério haviam trocado simplesmente o ideal por um par de calças listadas e o título de Monsieur le Ministre. (…)
Ele hesitava porque, conhecendo a fraqueza da classe operária francesa, e vendo a atitude assumida pela burguesia internacional ante a questão espanhola, previa uma luta mais dolorosa , mais horrível ainda do que aquela que assolava a península ibérica. Tinha medo de enfrentar a derrota. “Devemos defender a democracia pura e simples”, acrescentou, como se a democracia que nós temos fosse uma democracia de verdade, e como se se pudesse estabelecer sem lutas a verdadeira democracia.(…)
Tabuada
Aos portugueses está chegado o momento de contar outra vez os patacos.
Neste interim de folia, muitos nunca deixaram de o fazer; alguns não chegaram a aprender a tabuada, outros vieram a esquecer-se dela; e uns poucos, espertalhões, descobriram as malas-artes de a enganar.
É flagrante, a persistente malvadez da história. Porque muda um pormenor e se repete, logrando sempre levar-nos ao engano.
Neste interim de folia, muitos nunca deixaram de o fazer; alguns não chegaram a aprender a tabuada, outros vieram a esquecer-se dela; e uns poucos, espertalhões, descobriram as malas-artes de a enganar.
É flagrante, a persistente malvadez da história. Porque muda um pormenor e se repete, logrando sempre levar-nos ao engano.
quarta-feira, 16 de março de 2011
Mais vale tarde... 6 - Duce! Duce! Duce!
(...)
Todos os actos de Mussolini são resultado dos frios cálculos de um oportunista. Estes cálculos aplainam o caminho de projectos que parecem fantasticamente atrevidos, pois é um egoísta totalitário, que identifica o universo com a sua própria pessoa. A este respeito difere fundamentalmente de Hitler, que é perfeitamente sincero na sua convicção de agir com justiça. Mussolini não se ocupa com questões de bem e de mal, moralidade e imoralidade, lealdade e traição. O mesmo homem que escarnece das pluto-democracias empobreceu a Itália a tal ponto que as condições sociais das massas são ali tão lamentáveis como as dos camponeses franceses nas vésperas de 1789.
Ele não conhece clemência nem compaixão. Governa-se pelo orgulho. A sua folha corrida é uma série ininterrupta de traições – traição aos socialistas, aos agrários, à burguesia, aos anti-clericais… e a lista ainda não está completa, como há-de sabê-lo Hitler na hora decisiva. Filho de pais proletários pobríssimos, vendeu-se aos interesses financeiros, e com cínico estudo utilizou o seu renome de campeão dos humildes para amarrá-los de mãos e pés ao serviço do estado plutocrático que governa. Gloriando-se dos seus laços de afinidade com os humanistas do Renascimento, produziu uma estagnação cultural sem precedentes na vida de um dos povos mais bem dotados da Europa, além de militarizar todos os aspectos da sua vida, ao mesmo tempo que inaugurava uma economia nacional de bancarrota. Aceitou sem escrúpulos tudo o que contribuía para o engrandecimento do seu poder pessoal. Esmaga com fria impiedade tudo quanto se lhe opõe. Os seus companheiros de fascismo são sacrificados, sem um momento de hesitação, todas as vezes que a sua popularidade faz periclitar a posição sem par do chefe, e persegue os seus inimigos com ferocidade bestial, como bem demonstram os casos de Matteotti e dos irmãos Roselli. (…)
Mussolini era ainda considerado um anti-clerical inflamado e um republicano convicto, ao tempo da famosa Marcha sobre Roma. Isto não obstou a que o rei Vítor Manuel o nomeasse primeiro-ministro. Monsignor von Gerlach contou-me, em confidência, que a noite seguinte à chegada do Duce a Roma foi a primeira vez, em muitos meses, que o Santo Padre dormiu em paz. Digam o que disserem dos membros da Cúria, ninguém contestará a sua profunda intuição dos caracteres humanos. Eles leram na alma de Benito, à primeira vista, e souberam avaliá-lo melhor do que Badoglio, que lhe chamou “um agitador trabalhista de boca suja”, e se ofereceu para esmagar, no espaço de uma hora, o movimento fascista, “varrendo da história” o Duce e as suas coortes com uma carga de metralha.
E de facto, poucos meses depois da Marcha sobre Roma, o inimigo dos padres, que tinha escrito, na idade de 27 anos, um panfleto em que “provava” a inexistência de Deus, regularizou a sua união com Donna Rachele e mandou baptizar os seus filhos pelo clero, ordenando a reposição do crucifixo em todas as aulas do Reino da Itália, fez-se fotografar no acto de rezar ante o túmulo do Soldado Desconhecido, começou a beijar relíquias de santos como qualquer camponês siciliano, e passou a ser mencionado regularmente nos sermões do clero romano como um homem de Deus.
Uma portentosa conversão!
(...)
Todos os actos de Mussolini são resultado dos frios cálculos de um oportunista. Estes cálculos aplainam o caminho de projectos que parecem fantasticamente atrevidos, pois é um egoísta totalitário, que identifica o universo com a sua própria pessoa. A este respeito difere fundamentalmente de Hitler, que é perfeitamente sincero na sua convicção de agir com justiça. Mussolini não se ocupa com questões de bem e de mal, moralidade e imoralidade, lealdade e traição. O mesmo homem que escarnece das pluto-democracias empobreceu a Itália a tal ponto que as condições sociais das massas são ali tão lamentáveis como as dos camponeses franceses nas vésperas de 1789.
Ele não conhece clemência nem compaixão. Governa-se pelo orgulho. A sua folha corrida é uma série ininterrupta de traições – traição aos socialistas, aos agrários, à burguesia, aos anti-clericais… e a lista ainda não está completa, como há-de sabê-lo Hitler na hora decisiva. Filho de pais proletários pobríssimos, vendeu-se aos interesses financeiros, e com cínico estudo utilizou o seu renome de campeão dos humildes para amarrá-los de mãos e pés ao serviço do estado plutocrático que governa. Gloriando-se dos seus laços de afinidade com os humanistas do Renascimento, produziu uma estagnação cultural sem precedentes na vida de um dos povos mais bem dotados da Europa, além de militarizar todos os aspectos da sua vida, ao mesmo tempo que inaugurava uma economia nacional de bancarrota. Aceitou sem escrúpulos tudo o que contribuía para o engrandecimento do seu poder pessoal. Esmaga com fria impiedade tudo quanto se lhe opõe. Os seus companheiros de fascismo são sacrificados, sem um momento de hesitação, todas as vezes que a sua popularidade faz periclitar a posição sem par do chefe, e persegue os seus inimigos com ferocidade bestial, como bem demonstram os casos de Matteotti e dos irmãos Roselli. (…)
Mussolini era ainda considerado um anti-clerical inflamado e um republicano convicto, ao tempo da famosa Marcha sobre Roma. Isto não obstou a que o rei Vítor Manuel o nomeasse primeiro-ministro. Monsignor von Gerlach contou-me, em confidência, que a noite seguinte à chegada do Duce a Roma foi a primeira vez, em muitos meses, que o Santo Padre dormiu em paz. Digam o que disserem dos membros da Cúria, ninguém contestará a sua profunda intuição dos caracteres humanos. Eles leram na alma de Benito, à primeira vista, e souberam avaliá-lo melhor do que Badoglio, que lhe chamou “um agitador trabalhista de boca suja”, e se ofereceu para esmagar, no espaço de uma hora, o movimento fascista, “varrendo da história” o Duce e as suas coortes com uma carga de metralha.
E de facto, poucos meses depois da Marcha sobre Roma, o inimigo dos padres, que tinha escrito, na idade de 27 anos, um panfleto em que “provava” a inexistência de Deus, regularizou a sua união com Donna Rachele e mandou baptizar os seus filhos pelo clero, ordenando a reposição do crucifixo em todas as aulas do Reino da Itália, fez-se fotografar no acto de rezar ante o túmulo do Soldado Desconhecido, começou a beijar relíquias de santos como qualquer camponês siciliano, e passou a ser mencionado regularmente nos sermões do clero romano como um homem de Deus.
Uma portentosa conversão!
(...)
Mais vale tarde... 5 - Der Führer
(...)
Eu fora encarregado de acompanhar a excursão de propaganda do Führer na Renânia, e seguia-o diariamente por toda a parte, em companhia de cinquenta ou sessenta jornalistas nacionais e estrangeiros (…). Certa manhã deixámos Elberfeld-Barmen, pouco depois do almoço, com o carro de Hitler à frente, a caminho de Bonn. Chegámos lá pelas seis e meia da tarde. O Führer e o seu séquito foram jantar ao hotel. Depois de comer alguma coisa entrei no salão em que ele devia pronunciar um discurso naquela noite. Estava apinhado de gente. (…)
Na plataforma, uma banda tocava “Der Gute Kamerad”, “Heil dir in Siegerkranz”, e outras canções patrióticas. Volvidos cerca de três quartos de hora, um nazi de cabeça calva subiu à tribuna e, depois de acenar pedindo silêncio, anunciou que o Führer estava sendo detido por uma tempestade que rebentara sobre o Reno. Pediu à multidão que tivesse um pouco de paciência, e a banda, entre o entusiasmo geral, atacou “Die Wacht am Rhein”.
Decorrida mais meia hora, como o Führer não desse sinal de si, o mesmo homem voltou à tribuna e gritou que, a despeito de haver a tempestade redobrado de violência, Hitler acabava de telefonar de uma aldeia do vale renano, dizendo que chegaria em menos de meia hora. “Er kommt durch den Sturm”. Ele vem no meio da tempestade! Ele nunca nos desapontará!
A banda tornou a tocar “Der gute Kamerad” e a multidão pôs-se em pé. Quando ela se achava em estado de expectativa febril, o Führer, que todo o tempo estivera sentado sossegadamente no café em frente, entrou, metido no seu impermeável pardo. Vinha encharcado e enlameado dos pés à cabeça. A multidão delirante aclamou o Führer, impassível durante cinco minutos, estrugindo em Sieg-Heils. Um homem de meia-idade, que estava sentado na fila da frente, perto da mesa da imprensa, enxugou as lágrimas dos olhos e comentou para mim: “Alles tut er für das deutsche Volk!” Ele faz tudo pelo povo alemão!
Na verdade, era aí que residia o segredo: não em Hitler, mas no povo alemão. Este povo, sordidamente humilhado, sem esperanças, reduzido à fome e à miséria, cuja mocidade sentia a decepção e a inutilidade da sua existência, estava pronto para tudo, para todos os expedientes, por mais absurdos e insensatos, desde que se pudesse libertar da escravidão imposta em Versalhes. O povo alemão tinha perdido a fé no jogo parlamentar e nos métodos empregados pelos diplomatas para aliviar o fardo de Versalhes, quando surgiu Hitler, comportando-se “como um homem de perna de pau, que estivesse com um ataque epiléptico em cima dum telhado de zinco”. (…)
No decurso daquela conversação na Casa Parda de Munique, o Führer revelou o seu intuito de rearmar o Reich, destruindo a União Soviética, “sob os aplausos de todo o mundo civilizado”, e de reduzir os judeus à condição de indesejáveis em toda a parte. “Eu prometo tornar a vida impossível para os judeus na Alemanha, e não descansar enquanto não houver anulado a influência dos judeus em toda a Europa – e no mundo. Sim, juro que há-de vir o dia em que os Estados Unidos verão os plutocratas judeus de mão estendida à porta das igrejas cristãs, pedindo esmola. Eles foram a desgraça da Alemanha. Hão-de pagar bem caro os seus crimes!”
(...)
Eu fora encarregado de acompanhar a excursão de propaganda do Führer na Renânia, e seguia-o diariamente por toda a parte, em companhia de cinquenta ou sessenta jornalistas nacionais e estrangeiros (…). Certa manhã deixámos Elberfeld-Barmen, pouco depois do almoço, com o carro de Hitler à frente, a caminho de Bonn. Chegámos lá pelas seis e meia da tarde. O Führer e o seu séquito foram jantar ao hotel. Depois de comer alguma coisa entrei no salão em que ele devia pronunciar um discurso naquela noite. Estava apinhado de gente. (…)
Na plataforma, uma banda tocava “Der Gute Kamerad”, “Heil dir in Siegerkranz”, e outras canções patrióticas. Volvidos cerca de três quartos de hora, um nazi de cabeça calva subiu à tribuna e, depois de acenar pedindo silêncio, anunciou que o Führer estava sendo detido por uma tempestade que rebentara sobre o Reno. Pediu à multidão que tivesse um pouco de paciência, e a banda, entre o entusiasmo geral, atacou “Die Wacht am Rhein”.
Decorrida mais meia hora, como o Führer não desse sinal de si, o mesmo homem voltou à tribuna e gritou que, a despeito de haver a tempestade redobrado de violência, Hitler acabava de telefonar de uma aldeia do vale renano, dizendo que chegaria em menos de meia hora. “Er kommt durch den Sturm”. Ele vem no meio da tempestade! Ele nunca nos desapontará!
A banda tornou a tocar “Der gute Kamerad” e a multidão pôs-se em pé. Quando ela se achava em estado de expectativa febril, o Führer, que todo o tempo estivera sentado sossegadamente no café em frente, entrou, metido no seu impermeável pardo. Vinha encharcado e enlameado dos pés à cabeça. A multidão delirante aclamou o Führer, impassível durante cinco minutos, estrugindo em Sieg-Heils. Um homem de meia-idade, que estava sentado na fila da frente, perto da mesa da imprensa, enxugou as lágrimas dos olhos e comentou para mim: “Alles tut er für das deutsche Volk!” Ele faz tudo pelo povo alemão!
Na verdade, era aí que residia o segredo: não em Hitler, mas no povo alemão. Este povo, sordidamente humilhado, sem esperanças, reduzido à fome e à miséria, cuja mocidade sentia a decepção e a inutilidade da sua existência, estava pronto para tudo, para todos os expedientes, por mais absurdos e insensatos, desde que se pudesse libertar da escravidão imposta em Versalhes. O povo alemão tinha perdido a fé no jogo parlamentar e nos métodos empregados pelos diplomatas para aliviar o fardo de Versalhes, quando surgiu Hitler, comportando-se “como um homem de perna de pau, que estivesse com um ataque epiléptico em cima dum telhado de zinco”. (…)
No decurso daquela conversação na Casa Parda de Munique, o Führer revelou o seu intuito de rearmar o Reich, destruindo a União Soviética, “sob os aplausos de todo o mundo civilizado”, e de reduzir os judeus à condição de indesejáveis em toda a parte. “Eu prometo tornar a vida impossível para os judeus na Alemanha, e não descansar enquanto não houver anulado a influência dos judeus em toda a Europa – e no mundo. Sim, juro que há-de vir o dia em que os Estados Unidos verão os plutocratas judeus de mão estendida à porta das igrejas cristãs, pedindo esmola. Eles foram a desgraça da Alemanha. Hão-de pagar bem caro os seus crimes!”
(...)
Portugalmente - 83
(...)
Confundido e perplexo quis retirar-se dali. E foi ainda um Camilo complacente que o salvou do embaraço e encurtou a retirada. De ânimo assim enfraquecido, ainda subiu as ladeiras de Castelo Rodrigo, onde foi ouvir dizer que o assanhado povo deixou nesta ruína o palácio do Cristóvão de Moura, quando os Filipes se foram. O viajante discorda, mas não faz alegações. Já sabe o que a casa gasta, já se cansou de ouvir lendas, já lhe sobra o cepticismo. E por fim foi um paisano, arrimado a uma cerveja, que o trouxe à realidade com a história do Colmeal.
Abrigada numa dobra da Marofa, num ângulo de ribeiros que se despenham na encosta, a aldeia do Colmeal foi durante séculos um feudo dos Cabrais. Os donos foram-se ao mar, mas as cabras do brasão lá ficaram até hoje, pintalgadas num frontão.
Vieram depois morgados e burgueses, que ficaram gerações. E em 1957, ao fim de grandes enredos que ninguém sabe explicar, tudo acabou na ruína, a mando dum tribunal. Para cumprir as ordens dadas foi a aldeia posta em guerra, e os servos dela corridos à sabrada por um esquadrão de cavalos. Desde então ficou deserto o Colmeal, é um salto daqui lá, pela escamungada fora na direcção de Pinhel.
O viajante não foi ver com os próprios olhos. Nem o tempo lho consente, nem há-de ser de fiar uma estrada a que puseram tal nome. Mas rendeu-se às evidências, disse adeus ao velho burgo e tornou, conformado, à sua rota. O que ontem se passou no Colmeal, por sentença dum poder, foi uma pequena imagem do que ao país aconteceu há séculos, a mando duma elite aventureira e cúpida. E é uma versão modernizada que lhe está a suceder nos dias de hoje, às mãos duma casta renovada.
A fronteira já vem perto, brilham ao longe as luzes dum povoado. E o viajante, que parece despertar de algum encantamento, encosta à berma o cansado companheiro. A noite já desfez na escuridão os vultos das azinheiras que dormitam na paisagem. Mas num remoto lugar os guarda ele, que agora cruzou a estrada e avança, resoluto, a corta-mato. Salta paredes que tem por familiares, forceja trilhos que lhe não guardam segredos, tropeça nos aramados da pecuária extensiva mas não pára. Amacia na passagem os braços duma giesteira que lhe ficou na memória, dir-se-ia atrás dum passador e vai sozinho. Já galgou a ribeira dos Tourões, sobe a encosta a ladear fraguedos, detém-se um pouco debaixo deste carvalho como quem fareja a brisa, e meia hora de caminho andado chega ao marco fronteiriço da Alta Rasa. Por trás da serra da Gata rompe uma lua vermelha, de barro da Andaluzia. Ao fundo passam faróis de automóveis apressados, na carreteira espanhola. E o viajante vê neles a minúscula viatura que um dia nela passou e o levou para muito longe.
Agora de longe veio, à procura dum país, sem o achar. Que Portugal nasceu do capricho dum príncipe. E dele nem os portugueses fizeram um país, distraídos a vadiar por sertões a cavalo no vento, nem encontraram, no vasto mundo inteiro, quem por eles o fizesse.
Ficaram com a paisagem, que povoaram de desespero. E acolheram-se a esta loucura mansa, trágica e dócil, que ilude a realidade. Precariamente sobrevivem nela.
A vida toda será uma viagem, e a história dela a soma de mil partidas. Se delas houve que não tiveram chegada, nenhuma será sem fim. A deste viajante acaba aqui.
Confundido e perplexo quis retirar-se dali. E foi ainda um Camilo complacente que o salvou do embaraço e encurtou a retirada. De ânimo assim enfraquecido, ainda subiu as ladeiras de Castelo Rodrigo, onde foi ouvir dizer que o assanhado povo deixou nesta ruína o palácio do Cristóvão de Moura, quando os Filipes se foram. O viajante discorda, mas não faz alegações. Já sabe o que a casa gasta, já se cansou de ouvir lendas, já lhe sobra o cepticismo. E por fim foi um paisano, arrimado a uma cerveja, que o trouxe à realidade com a história do Colmeal.
Abrigada numa dobra da Marofa, num ângulo de ribeiros que se despenham na encosta, a aldeia do Colmeal foi durante séculos um feudo dos Cabrais. Os donos foram-se ao mar, mas as cabras do brasão lá ficaram até hoje, pintalgadas num frontão.
Vieram depois morgados e burgueses, que ficaram gerações. E em 1957, ao fim de grandes enredos que ninguém sabe explicar, tudo acabou na ruína, a mando dum tribunal. Para cumprir as ordens dadas foi a aldeia posta em guerra, e os servos dela corridos à sabrada por um esquadrão de cavalos. Desde então ficou deserto o Colmeal, é um salto daqui lá, pela escamungada fora na direcção de Pinhel.
O viajante não foi ver com os próprios olhos. Nem o tempo lho consente, nem há-de ser de fiar uma estrada a que puseram tal nome. Mas rendeu-se às evidências, disse adeus ao velho burgo e tornou, conformado, à sua rota. O que ontem se passou no Colmeal, por sentença dum poder, foi uma pequena imagem do que ao país aconteceu há séculos, a mando duma elite aventureira e cúpida. E é uma versão modernizada que lhe está a suceder nos dias de hoje, às mãos duma casta renovada.
A fronteira já vem perto, brilham ao longe as luzes dum povoado. E o viajante, que parece despertar de algum encantamento, encosta à berma o cansado companheiro. A noite já desfez na escuridão os vultos das azinheiras que dormitam na paisagem. Mas num remoto lugar os guarda ele, que agora cruzou a estrada e avança, resoluto, a corta-mato. Salta paredes que tem por familiares, forceja trilhos que lhe não guardam segredos, tropeça nos aramados da pecuária extensiva mas não pára. Amacia na passagem os braços duma giesteira que lhe ficou na memória, dir-se-ia atrás dum passador e vai sozinho. Já galgou a ribeira dos Tourões, sobe a encosta a ladear fraguedos, detém-se um pouco debaixo deste carvalho como quem fareja a brisa, e meia hora de caminho andado chega ao marco fronteiriço da Alta Rasa. Por trás da serra da Gata rompe uma lua vermelha, de barro da Andaluzia. Ao fundo passam faróis de automóveis apressados, na carreteira espanhola. E o viajante vê neles a minúscula viatura que um dia nela passou e o levou para muito longe.
Agora de longe veio, à procura dum país, sem o achar. Que Portugal nasceu do capricho dum príncipe. E dele nem os portugueses fizeram um país, distraídos a vadiar por sertões a cavalo no vento, nem encontraram, no vasto mundo inteiro, quem por eles o fizesse.
Ficaram com a paisagem, que povoaram de desespero. E acolheram-se a esta loucura mansa, trágica e dócil, que ilude a realidade. Precariamente sobrevivem nela.
A vida toda será uma viagem, e a história dela a soma de mil partidas. Se delas houve que não tiveram chegada, nenhuma será sem fim. A deste viajante acaba aqui.
terça-feira, 15 de março de 2011
Este tempo e tempo este
«Importa que os jovens deste tempo se empenhem em missões e causas essenciais ao futuro do país com a mesma coragem, o mesmo desprendimento e a mesma determinação com que os jovens de há 50 anos assumiram a sua participação na guerra do Ultramar.»
Cavaco Silva
Que sorte espera, ou que destino merece ter um país, que acaba de colocar no topo da pirâmide uma besta deste calibre?!
Cavaco Silva
Que sorte espera, ou que destino merece ter um país, que acaba de colocar no topo da pirâmide uma besta deste calibre?!
Mais vale tarde... 4 - Os mercadores de canhões
(...)
Enquanto os olhos do mundo se fixavam em Genebra onde prosseguiam os debates intermináveis, poucos percebiam que, de 1925 em diante, os delegados da indústria pesada francesa e alemã se encontravam regularmente, ora em Paris, ora em Berlim. Tanto a indústria alemã como a francesa sofriam grandes prejuízos em consequência da suspensão dos contratos de armamento, e em desespero buscavam meios de dar novo impulso aos negócios.
Isto não se podia fazer sem uma colaboração íntima. Em Maio de 1925 Arnold Rechberg, consultor dos trusts de Hugenberg e Thyssen para as relações públicas, veio a Paris propor o equipamento, pela França, de um exército alemão de 800.000 homens, que devia marchar sobre a Rússia e destruir o regime bolchevista. O marechal Foch e o presidente Poincaré receberam o emissário alemão em companhia dos senhores Robert Pinaud e Charles Laurent, directores do Comité des Forges, o trust francês do aço. Aprovaram o plano, que fora meditado pelo general von Hoffman.
Ao cabo de vários dias de negociações, François Coty anunciou triunfante no seu jornal Figaro, que Poincaré tinha aprovado um plano para estabelecer o condomínio franco-alemão sobre o vasto mercado russo. Não dizia, entretanto, que em face disto seria ridículo continuar a falar em desarmamento em Genebra. Foch aprovou, por seu turno, e Tardieu mandou Paul Reynaud a Berlim, para combinar os últimos pormenores. O plano foi inutilizado, disse depois Herr Rechberg, por Lloyd George, que temia a extensão da influência francesa na Europa. Mas já se havia estabelecido o contacto entre os fabricantes de canhões franceses e alemães. Nunca mais ele foi rompido. A indústria metalúrgica francesa consentiu no rearmamento da Alemanha já em 1925, como único meio de estimular o mercado interno francês. (...)
Paul Faure, deputado pelo distrito de Le Creusot, revelou no parlamento francês que Schneider-Creusot, o gigantesco trust francês de canhões, administrado pelos primos De Wendel, um dos quais era membro da Câmara francesa e o outro do Reichstag alemão, estava fornecendo fundos ao nascente partido nazi de Adolfo Hitler, e que Skoda, o trust checoslovaco de armamento, supria a Alemanha de artilharia, pólvora e cartuchos a crédito.
(...)
Enquanto os olhos do mundo se fixavam em Genebra onde prosseguiam os debates intermináveis, poucos percebiam que, de 1925 em diante, os delegados da indústria pesada francesa e alemã se encontravam regularmente, ora em Paris, ora em Berlim. Tanto a indústria alemã como a francesa sofriam grandes prejuízos em consequência da suspensão dos contratos de armamento, e em desespero buscavam meios de dar novo impulso aos negócios.
Isto não se podia fazer sem uma colaboração íntima. Em Maio de 1925 Arnold Rechberg, consultor dos trusts de Hugenberg e Thyssen para as relações públicas, veio a Paris propor o equipamento, pela França, de um exército alemão de 800.000 homens, que devia marchar sobre a Rússia e destruir o regime bolchevista. O marechal Foch e o presidente Poincaré receberam o emissário alemão em companhia dos senhores Robert Pinaud e Charles Laurent, directores do Comité des Forges, o trust francês do aço. Aprovaram o plano, que fora meditado pelo general von Hoffman.
Ao cabo de vários dias de negociações, François Coty anunciou triunfante no seu jornal Figaro, que Poincaré tinha aprovado um plano para estabelecer o condomínio franco-alemão sobre o vasto mercado russo. Não dizia, entretanto, que em face disto seria ridículo continuar a falar em desarmamento em Genebra. Foch aprovou, por seu turno, e Tardieu mandou Paul Reynaud a Berlim, para combinar os últimos pormenores. O plano foi inutilizado, disse depois Herr Rechberg, por Lloyd George, que temia a extensão da influência francesa na Europa. Mas já se havia estabelecido o contacto entre os fabricantes de canhões franceses e alemães. Nunca mais ele foi rompido. A indústria metalúrgica francesa consentiu no rearmamento da Alemanha já em 1925, como único meio de estimular o mercado interno francês. (...)
Paul Faure, deputado pelo distrito de Le Creusot, revelou no parlamento francês que Schneider-Creusot, o gigantesco trust francês de canhões, administrado pelos primos De Wendel, um dos quais era membro da Câmara francesa e o outro do Reichstag alemão, estava fornecendo fundos ao nascente partido nazi de Adolfo Hitler, e que Skoda, o trust checoslovaco de armamento, supria a Alemanha de artilharia, pólvora e cartuchos a crédito.
(...)
segunda-feira, 14 de março de 2011
Ecos da Sonora - XXXIII
Desço, a arrastar os pés, as escadas da Sonora, o peito a descomprimir. Deste empenho de tornar visíveis, a quem de olhos não dispõe, os muitos mundos que as palavras criam, ou escondem, ou denunciam, estendidas no papel.
E ao contrário de outros conhecidos, parecem-me os outeiros de S. Lázaro bem mais fáceis de subir que de descer.
São divagações, as minhas, que outro bem diferente é o segredo. Pois levo daqui, se parto, muito mais do que deixei.
E ao contrário de outros conhecidos, parecem-me os outeiros de S. Lázaro bem mais fáceis de subir que de descer.
São divagações, as minhas, que outro bem diferente é o segredo. Pois levo daqui, se parto, muito mais do que deixei.
Ora aí está
Um exemplo flagrante e acabado do vezo singular de certos bastardos patriotas, para observar problemas sérios com o olho do cu. Ou, vá lá, com o olho errado. Pode ver-se aqui, em comentários.
[negritos cá da casa]
Era no tempo em que, no palácio das Necessidades, ainda havia ocasião para longas conversas.
Um jovem diplomata, em diálogo com um colega mais velho, revelava o seu inconformismo. A situação económica do país era complexa, os índices nacionais de crescimento e bem-estar, se bem que em progressão, revelavam uma distância, ainda significativa, face aos dos nossos parceiros. Olhando retrospectivamente, tudo parecia indicar que uma qualquer “sina” nos condenava a esta permanente “décalage”. E, contudo, olhando para o nosso passado, Portugal “partira” bem:
- Francamente, senhor embaixador, devo confessar que não percebo o que correu mal na nossa história. Como é possível que nós, um povo que descende das gerações de portugueses que “deram novos mundos ao mundo”, que criaram o Brasil, que viajaram pela África e pela Índia, que foram até ao Japão e a lugares bem mais longínquos, que deixaram uma língua e traços de cultura que ainda hoje sobrevivem e são lembrados com admiração, como é possível que hoje sejamos o mais pobre país da Europa ocidental.
O embaixador sorriu, benévolo e sábio, ao responder ao seu jovem colaborador:
- Meu caro, você está muito enganado. Nós não descendemos dessa gente aventureira, que teve a audácia e a coragem de partir pelo mundo, nas caravelas, que fez uma obra notável, de rasgo e ambição.
- Não descendemos? – reagiu, perplexo, o jovem diplomata – Então de quem descendemos nós?
- Nós descendemos dos que ficaram por aqui…
[negritos cá da casa]
Era no tempo em que, no palácio das Necessidades, ainda havia ocasião para longas conversas.
Um jovem diplomata, em diálogo com um colega mais velho, revelava o seu inconformismo. A situação económica do país era complexa, os índices nacionais de crescimento e bem-estar, se bem que em progressão, revelavam uma distância, ainda significativa, face aos dos nossos parceiros. Olhando retrospectivamente, tudo parecia indicar que uma qualquer “sina” nos condenava a esta permanente “décalage”. E, contudo, olhando para o nosso passado, Portugal “partira” bem:
- Francamente, senhor embaixador, devo confessar que não percebo o que correu mal na nossa história. Como é possível que nós, um povo que descende das gerações de portugueses que “deram novos mundos ao mundo”, que criaram o Brasil, que viajaram pela África e pela Índia, que foram até ao Japão e a lugares bem mais longínquos, que deixaram uma língua e traços de cultura que ainda hoje sobrevivem e são lembrados com admiração, como é possível que hoje sejamos o mais pobre país da Europa ocidental.
O embaixador sorriu, benévolo e sábio, ao responder ao seu jovem colaborador:
- Meu caro, você está muito enganado. Nós não descendemos dessa gente aventureira, que teve a audácia e a coragem de partir pelo mundo, nas caravelas, que fez uma obra notável, de rasgo e ambição.
- Não descendemos? – reagiu, perplexo, o jovem diplomata – Então de quem descendemos nós?
- Nós descendemos dos que ficaram por aqui…
domingo, 13 de março de 2011
A bem dizer...
A bem dizer, o sempre temido, porque sempre iminente naufrágio desta barca adornada que é a nação portuguesa tem raízes antigas. Vem desde o século XV, quando um restrito grupo de rapazes notáveis, centrados na corte e alienados do interesse geral, encontrou artes de fazer valer as temerárias e fatídicas opções da expansão para o Norte de África. Firmadas as pazes da Independência contra Castela, a tomada de Ceuta (1415), o desastre de Tânger (1437), e os avanços do Africano para Alcácer-Ceguer (1458) e Arzila (1471) foram os primeiros e hesitantes passos duma construção imperial improvisada sobre as dunas, que havia de agrilhoar o país ao capricho das marés da história durante séculos. Pelo meio não faltaram episódios de fogo e ranger de dentes, nem fomes, frustrações e bancarrotas. E tudo acabou em algazarra, em 1975, quando o país de marinheiros voltou à barra do Tejo, naufragado e exangue, com a alma cheia de remendos.
Não era sem motivos que o país assim voltava, mais pobre e mais desgarrado do que partira. Porque a edificação e manutenção do império lhe condicionou e tolheu sempre toda a organização e progresso da política, da economia e da sociedade. A própria existência de Portugal como estado independente ficou associada à manutenção do império e das colónias.
Durante séculos, houve uma permanente sangria de portugueses para o império: militares, funcionários, comerciantes, missionários, aventureiros, emigrantes, exilados, degredados, prostitutas, órfãos... Muitos deles jamais regressaram a Portugal, que nos inícios da aventura pouco mais teria que um milhão de habitantes.
Esta hemorragia humana é uma das grandes causas do atraso do país. Já que, do mesmo passo que o despovoava, adiava e desobrigava a solução dos seus reais problemas, uma vez que todas as prioridades eram outras. E assim os portugueses partiam para fugir à pobreza agravando a própria pobreza, porque perdiam energias e motivos de renovação.
As actividades de além-mar (mormente a sempre escamoteada prática da escravatura) deixaram persistentes marcas na mentalidade dos portugueses: levaram-nos a desvalorizar e menosprezar o trabalho; condicionaram-nos para o lucro imediato e a especulação; empurraram-nos para áreas e tarefas de trabalho pouco qualificado; e sobretudo permitiram-lhes descuidar, se não desconhecer totalmente, os métodos de melhorar a organização da sociedade, a eficiência do trabalho e os problemas da economia.
As elites dirigentes (a nobreza e os altos funcionários) viviam dos rendimentos gerados pelas possessões, ligados ao tráfico, ao comércio e à exportação da população. Esse estado de coisas alimentou-lhes uma mentalidade parasitária e bastarda, que as alienou dos demais estratos populacionais. Não eram as elites que estavam ao serviço do país, bem ao contrário, era o país que estava ao dispor delas.
Um tal quadro impediu e logrou o desenvolvimento duma cultura de cidadania e de responsabilidade cívica, sem a qual não há um país moderno, nem uma sociedade desenvolvida. E ainda hoje não foi ultrapassado. Segundo a regra geral, políticos, gestores, administradores, funcionários, empresários, intelectuais… têm mais como objectivo o tranquilo usufruto da nação, do que o bem e o progresso do povo e do país.
O fim do império veio pôr em causa os mecanismos desta mentalidade secular, que vivia da exploração das colónias e da população exportável. Os portugueses viraram-se finalmente para si próprios e para a Europa. Mas as entorses permaneceram activas na consciência, na mentalidade parasitária, no desprezo pelo trabalho e pela inovação dos métodos.
A entrada na Europa foi uma faca de vários gumes, com efeitos contraditórios múltiplos: a exigência duma transformação profunda, que não se logra numa geração; a síndrome sebastianista duma nova e exótica árvore das patacas, que nos há-de resolver os problemas; o deslumbramento sempre fatal dos novos-ricos; o desvio e o malogro dos fundos europeus; a competição desarmada com os outros parceiros, incompatível com estruturas e mentalidades passadas; a incompetência, o laxismo e a venalidade das elites instaladas, confrontados com a exigência e a responsabilidade indispensáveis.
Pelas elites históricas, ela já era encarada como simples objecto de exploração. Nos tempos de hoje, e perante uma situação de crise internacional múltipla e grave, a uma crescente fatia da população do país acaba por restar apenas a descoberta de novos caminhos de emigração.
Não era sem motivos que o país assim voltava, mais pobre e mais desgarrado do que partira. Porque a edificação e manutenção do império lhe condicionou e tolheu sempre toda a organização e progresso da política, da economia e da sociedade. A própria existência de Portugal como estado independente ficou associada à manutenção do império e das colónias.
Durante séculos, houve uma permanente sangria de portugueses para o império: militares, funcionários, comerciantes, missionários, aventureiros, emigrantes, exilados, degredados, prostitutas, órfãos... Muitos deles jamais regressaram a Portugal, que nos inícios da aventura pouco mais teria que um milhão de habitantes.
Esta hemorragia humana é uma das grandes causas do atraso do país. Já que, do mesmo passo que o despovoava, adiava e desobrigava a solução dos seus reais problemas, uma vez que todas as prioridades eram outras. E assim os portugueses partiam para fugir à pobreza agravando a própria pobreza, porque perdiam energias e motivos de renovação.
As actividades de além-mar (mormente a sempre escamoteada prática da escravatura) deixaram persistentes marcas na mentalidade dos portugueses: levaram-nos a desvalorizar e menosprezar o trabalho; condicionaram-nos para o lucro imediato e a especulação; empurraram-nos para áreas e tarefas de trabalho pouco qualificado; e sobretudo permitiram-lhes descuidar, se não desconhecer totalmente, os métodos de melhorar a organização da sociedade, a eficiência do trabalho e os problemas da economia.
As elites dirigentes (a nobreza e os altos funcionários) viviam dos rendimentos gerados pelas possessões, ligados ao tráfico, ao comércio e à exportação da população. Esse estado de coisas alimentou-lhes uma mentalidade parasitária e bastarda, que as alienou dos demais estratos populacionais. Não eram as elites que estavam ao serviço do país, bem ao contrário, era o país que estava ao dispor delas.
Um tal quadro impediu e logrou o desenvolvimento duma cultura de cidadania e de responsabilidade cívica, sem a qual não há um país moderno, nem uma sociedade desenvolvida. E ainda hoje não foi ultrapassado. Segundo a regra geral, políticos, gestores, administradores, funcionários, empresários, intelectuais… têm mais como objectivo o tranquilo usufruto da nação, do que o bem e o progresso do povo e do país.
O fim do império veio pôr em causa os mecanismos desta mentalidade secular, que vivia da exploração das colónias e da população exportável. Os portugueses viraram-se finalmente para si próprios e para a Europa. Mas as entorses permaneceram activas na consciência, na mentalidade parasitária, no desprezo pelo trabalho e pela inovação dos métodos.
A entrada na Europa foi uma faca de vários gumes, com efeitos contraditórios múltiplos: a exigência duma transformação profunda, que não se logra numa geração; a síndrome sebastianista duma nova e exótica árvore das patacas, que nos há-de resolver os problemas; o deslumbramento sempre fatal dos novos-ricos; o desvio e o malogro dos fundos europeus; a competição desarmada com os outros parceiros, incompatível com estruturas e mentalidades passadas; a incompetência, o laxismo e a venalidade das elites instaladas, confrontados com a exigência e a responsabilidade indispensáveis.
Pelas elites históricas, ela já era encarada como simples objecto de exploração. Nos tempos de hoje, e perante uma situação de crise internacional múltipla e grave, a uma crescente fatia da população do país acaba por restar apenas a descoberta de novos caminhos de emigração.
sábado, 12 de março de 2011
Mais vale tarde... 3 - La belle époque
(...)
Em 1924 o Evening World, a conselho de Arthur Krock, nomeou-me seu correspondente-viajante na Europa, com sede em Paris. (...)
As exigências do meu trabalho levavam-me para rumos bem diferentes: para o meio de intelectuais fatigados, cuja força criadora se mirrara num simples desejo de entreter e agradar; homens e mulheres que viam na poesia, no amor, no sacrifício e até na dor humana tão-somente motivos para silogismo e jogos de espírito. Eram eles os artistas que tinham nascido bem-fadados, que não criavam nada, e contudo davam a nota nas rodas cosmopolitas de arte e literatura; autores de bon ton e de bonne compagnie que escolhiam bem as suas palavras, untavam-nas bem, para que elas entrassem por um ouvido e saíssem pelo outro sem atritos, sem tocar em nada à passagem: críticos cuja ocupação principal era manejar a escova de polir; os petits précieux de Molière, excentricamente trajados, de maneiras impecáveis, que compunham doutrinações para os jornais sólidos e bem pensantes, financiados pelos trusts das munições e pelos reis do aço; poetas que pontificavam e super-realizavam, supra-inspirados, servindo as suas reticências ternamente admiráveis todas as vezes que olfacteavam Coty a dez mil francos a onça; mulheres que pagavam a aristocratas decaídos para irem visitar em sua companhia os bas-fonds de Montmartre e verem um proxeneta deitar-se com a sua amante dentro de um ataúde, ou um gigolô negro sodomizar uma mulher branca; (...) financeiros que exploravam plantações de borracha no Senegal, canaviais na Cochinchina, bananais na Guiné, minas de ouro no Camerum e cinemas em Marselha e Buenos Aires.
Toda essa gente refinada andava constantemente em busca de novas sensações, novos arrebiques, novas emoções, novos frissons em arte, amor e literatura. Quanto às emoções autênticas, à angústia real e à genuína alegria da vida, evitavam-nas, como se evita o contacto duma corrente eléctrica. Queriam a arte sintética, confundiam publicidade com fama, e imaginavam que podiam comprar a paz de espírito como se compra um par de chinelos num bazar. (...)
Uma das minhas incumbências era a de investigar os mistérios do Bosque de Bolonha, os deleites dos bares de Montmartre, e as alegrias dos cabarets do alto da colina, onde dezenas de milhares de americanos esbanjavam milhões de francos em prazeres duvidosos. Estávamos no meio daquele afluxo anual de turistas, que atingiu o auge no verão de 1929 e nunca mais se repetiu. Eles desciam sobre Paris como uma nuvem de mosquitos, machos e fêmeas, magros e rechonchudos, homens de óculos, mulheres de saias curtas, brancos e pretos, ricos e pobres. (...) A lotação das Folies Bergères era vendida com uma semana de antecedência, as mondaines dançantes achavam-se todas tomadas às seis da tarde. A América queria dançar! (...)
O Moulin Rouge reviveu as saturnais de Calígula; rapariguinhas trajadas com o boné do Exército de Salvação e um par de meias de seda vendiam cigarros; Cleópatra, na indumentária de Santa Godiva , cavalgava as espáduas dum núbio cor de ébano; Messalina, a imperatriz nua, com os longos cabelos soltos, coroada de folhas douradas de carvalho, exibia-se no coche imperial puxado por sessenta escravozinhos pintados e empoados como meninas, a quem outros escravos de pele acobreada vergastavam com correias dilacerantes. (...)
À porta, grão-duques arruinados, com a estrela de S. Miguel pregada às suas blusas de chauffeur, oficiais do tzar, generais cossacos de bigodes encerados, destroços do grande dilúvio, esperavam os americanos para conduzi-los aos seus hotéis. (...) Seis comboios repletos de passageiros baldeados dos transatlânticos chegavam ao meio dia à gare St. Lazare: Vive l'Amérique! Vive l'amour! Vive le dollar! - o bezerro de ouro com a cabeça de George Washington encaixada no pescoço!
(...)
Em 1924 o Evening World, a conselho de Arthur Krock, nomeou-me seu correspondente-viajante na Europa, com sede em Paris. (...)
As exigências do meu trabalho levavam-me para rumos bem diferentes: para o meio de intelectuais fatigados, cuja força criadora se mirrara num simples desejo de entreter e agradar; homens e mulheres que viam na poesia, no amor, no sacrifício e até na dor humana tão-somente motivos para silogismo e jogos de espírito. Eram eles os artistas que tinham nascido bem-fadados, que não criavam nada, e contudo davam a nota nas rodas cosmopolitas de arte e literatura; autores de bon ton e de bonne compagnie que escolhiam bem as suas palavras, untavam-nas bem, para que elas entrassem por um ouvido e saíssem pelo outro sem atritos, sem tocar em nada à passagem: críticos cuja ocupação principal era manejar a escova de polir; os petits précieux de Molière, excentricamente trajados, de maneiras impecáveis, que compunham doutrinações para os jornais sólidos e bem pensantes, financiados pelos trusts das munições e pelos reis do aço; poetas que pontificavam e super-realizavam, supra-inspirados, servindo as suas reticências ternamente admiráveis todas as vezes que olfacteavam Coty a dez mil francos a onça; mulheres que pagavam a aristocratas decaídos para irem visitar em sua companhia os bas-fonds de Montmartre e verem um proxeneta deitar-se com a sua amante dentro de um ataúde, ou um gigolô negro sodomizar uma mulher branca; (...) financeiros que exploravam plantações de borracha no Senegal, canaviais na Cochinchina, bananais na Guiné, minas de ouro no Camerum e cinemas em Marselha e Buenos Aires.
Toda essa gente refinada andava constantemente em busca de novas sensações, novos arrebiques, novas emoções, novos frissons em arte, amor e literatura. Quanto às emoções autênticas, à angústia real e à genuína alegria da vida, evitavam-nas, como se evita o contacto duma corrente eléctrica. Queriam a arte sintética, confundiam publicidade com fama, e imaginavam que podiam comprar a paz de espírito como se compra um par de chinelos num bazar. (...)
Uma das minhas incumbências era a de investigar os mistérios do Bosque de Bolonha, os deleites dos bares de Montmartre, e as alegrias dos cabarets do alto da colina, onde dezenas de milhares de americanos esbanjavam milhões de francos em prazeres duvidosos. Estávamos no meio daquele afluxo anual de turistas, que atingiu o auge no verão de 1929 e nunca mais se repetiu. Eles desciam sobre Paris como uma nuvem de mosquitos, machos e fêmeas, magros e rechonchudos, homens de óculos, mulheres de saias curtas, brancos e pretos, ricos e pobres. (...) A lotação das Folies Bergères era vendida com uma semana de antecedência, as mondaines dançantes achavam-se todas tomadas às seis da tarde. A América queria dançar! (...)
O Moulin Rouge reviveu as saturnais de Calígula; rapariguinhas trajadas com o boné do Exército de Salvação e um par de meias de seda vendiam cigarros; Cleópatra, na indumentária de Santa Godiva , cavalgava as espáduas dum núbio cor de ébano; Messalina, a imperatriz nua, com os longos cabelos soltos, coroada de folhas douradas de carvalho, exibia-se no coche imperial puxado por sessenta escravozinhos pintados e empoados como meninas, a quem outros escravos de pele acobreada vergastavam com correias dilacerantes. (...)
À porta, grão-duques arruinados, com a estrela de S. Miguel pregada às suas blusas de chauffeur, oficiais do tzar, generais cossacos de bigodes encerados, destroços do grande dilúvio, esperavam os americanos para conduzi-los aos seus hotéis. (...) Seis comboios repletos de passageiros baldeados dos transatlânticos chegavam ao meio dia à gare St. Lazare: Vive l'Amérique! Vive l'amour! Vive le dollar! - o bezerro de ouro com a cabeça de George Washington encaixada no pescoço!
(...)
Portugalmente - 82
(...)
Duma curva, lá ao fundo, vem crescendo um barco de turistas, a serpentear no rio. Vagaroso e cheio de majestade, imerso na magia da paisagem, faz lembrar ao viajante um cisne misterioso, deslizando ao rés da água.
Bem a propósito, quem sabe se consciente, Camilo quer levar o viajante a ver a quinta da Leda, na contra-face do rude monte Calabre, que abriga a estação de Almendra. Lá no cimo já reinou uma cidade goda, que sucumbiu há mil anos às avançadas dos mouros, dela sobrevive apenas uma memória rara. Mas nem o castigo deste sol recomenda a trabalheira, nem a rapidez do tempo lho permite. O que mais vem a calhar é uma visita ao morgadinho de Algodres, que em breve terá cem anos e há-de apreciar a companhia. É ele uma figura de pasmar. E o viajante, erradamente supondo que nada tem a temer, é disso que anda à procura e deixa-se levar.
O morgadinho mora na casa grande de Algodres, que há gerações foi o berço das famílias mais abastadas da área. Na juventude, em Coimbra, fez-se bacharel de leis, seguindo a tradição dos ascendentes varões. E quando voltou à terra logo submeteu o coração duma princesa, que mais tarde acabou freira num recatado convento. O que era prisão para ela, foi para ele a liberdade.
Esposadinha de fresco, a prometer primaveras, andava por essa altura a donzela mais vistosa do lugar. Mas como já se tem visto, nem sempre os dotes da natureza trazem bem-aventurança. Mormente a esta mulher, a mais velha de onze irmãos. A mãe morrera de parto, perdeu o pai aos dez anos. Tão cedo mãe de família, a rapariga casou mal fizera os dezasseis. Mas o facto não tolheu o morgadinho, que um belo dia se dispôs a requestá-la. E ela, com um tal fardo sobre os ombros, pôs-se a avaliar-lhe o peso. Agradava-lhe viver na casa grande, deu em aceder à corte. O marido claudicou, abandonou a contenda, fez a trouxa para o Brasil.
Hoje é ela a mulher do morgadinho. Durante muito tempo não passou de concubina, reduzida à condição de serviçal. Até que um dia lhe exigiu o casamento, que o morgadinho já não pôde recusar. Um tal enredo engendrara à sua volta um geral desprazimento, que a passos largos se tornou num ódio surdo. E embora ninguém esperasse tão grande longevidade, ele resistiu ao linguajar do populacho e negou as previsões.
Era uma grande cabeça, todo a gente o boquejava, e o diploma que trouxe de Coimbra lá estava para o comprovar. Mas enquanto homem de leis, nunca dedicou às ditas um avo dos seus labores. Quando a revolução chegou pôs muita coisa a tremer. E logo os mandantes dos partidos quiseram cativar o morgadinho para o governo distrital. O homem não aceitou. Mais tarde foi convidado para o ministério da Justiça, mas outra vez declinou.
O viajante fica sem saber se mais o rói o espanto, se a incredulidade. E a surpresa vai ainda nos começos, agora que o castelão recebe os visitantes ao cimo da escadaria, mais ágil e desenvolto do que os anos prometiam. A mulher, muito mais nova, os olhos emaciados por uma solidão azeda, está de guarda na cozinha, a um trem de caçarolas e alfaias da culinária que enchem paredes inteiras. Na saleta, ali ao lado, vem guardando o morgadinho uma colecção completa de diários do governo, do primeiro ao mais recente. Este foi o diploma de bacharel de leis do bisavô, em pergaminho genuíno, ao tempo que isso lá vai. Agora aqui o diploma de bacharel de leis do meu avô, que dispensou o cabrito original. E ali está encaixilhado o meu diploma de bacharel de leis, neste papiro de luxo.
Nas salas do rés-do-chão é pouco o espaço inteiro para acomodar um bricabraque indizível, empilhado a trouxe-mouxe: lugres à vela e caravelas de chifre; santantoninhos e cartapácios antigos; pedras de lousa e soldadinhos de chumbo; galhardetes militares e ceifeiras de além-tejo; cães de loiça e corujas empalhadas; bonecas de trapo e ursinhos de peluche; landscapes inglesas e mal-me-queres bordados; quadros de caça e águias embalsamadas; naturezas-mortas e trabucos de pederneira; pais-natais de grandes barbas e pagelas de santinhos; pisa-papéis e cassetes antigas; rádios de pilhas e discos de fadistas; compêndios escolares e breviários pios; moinhos de café e balanças romanas; canapés de palhinha e edições de bolso; flores de papel e canetas de aparo; cadeiras de barbeiro e bustos de Beethoven; estatuetas macondes e máscaras da Lunda; calculadoras de bolso e paisagens de leões; faisões de plástico e gravuras de filósofos; dossiês incompletos e moedas comemorativas; relógios de corda e elefantes de marfim; charretes de latão e presépios de oratório; bonecas sevilhanas e leques de bambu; colecções numismáticas e garrafas de cinzano; miniaturas de licores e sifões de água tónica; porta-plumas e mata-borrões; canhões antigos e duendes nórdicos; dobadoiras e papagaios de papel; carros de bois e galos de Barcelos; caixas de música e bebés chorões; furgonetas de metal e cofres de segredo; higrómetros de parede e ventoinhas eléctricas; pandeiretas, catapultas e corta-papéis; pescadores da Nazaré e almofarizes de lata; cinzeiros de estanho e lavradeiras do Minho; lampiões de petróleo e botas espanholas; signos do zodíaco e colecções de chocalhos; bilhas de Nisa, canecas alemãs, molheiras de Sacavém, barros de Bisalhães, barretes de campino, um don Quixote amarelo… e pendurados do tecto um nunca mais acabar de vinte mil porta-chaves, o mais notável dos quais é uma piranha do Brasil envernizada.
No final o morgadinho conduziu os visitantes aos fundos do logradouro, para lhes mostrar, orgulhoso, a sua forja. E em boa hora o fez, pois lá dentro se decifra o que não tem explicação. A forja do morgadinho é o mundo inteiro do ferro, um vastíssimo arsenal das armas de Vulcano: tornos, tenazes, bigornas, compassos, medidores, fornalhas, martelos, maçaricos, soldadores, pias de têmpera… Foi aqui que o morgadinho gastou o melhor que tinha. E o viajante viu nele o símbolo mais-que-perfeito dum país trágico e incerto, que não soube o que fazer aos talentos da parábola.
(...)
Duma curva, lá ao fundo, vem crescendo um barco de turistas, a serpentear no rio. Vagaroso e cheio de majestade, imerso na magia da paisagem, faz lembrar ao viajante um cisne misterioso, deslizando ao rés da água.
Bem a propósito, quem sabe se consciente, Camilo quer levar o viajante a ver a quinta da Leda, na contra-face do rude monte Calabre, que abriga a estação de Almendra. Lá no cimo já reinou uma cidade goda, que sucumbiu há mil anos às avançadas dos mouros, dela sobrevive apenas uma memória rara. Mas nem o castigo deste sol recomenda a trabalheira, nem a rapidez do tempo lho permite. O que mais vem a calhar é uma visita ao morgadinho de Algodres, que em breve terá cem anos e há-de apreciar a companhia. É ele uma figura de pasmar. E o viajante, erradamente supondo que nada tem a temer, é disso que anda à procura e deixa-se levar.
O morgadinho mora na casa grande de Algodres, que há gerações foi o berço das famílias mais abastadas da área. Na juventude, em Coimbra, fez-se bacharel de leis, seguindo a tradição dos ascendentes varões. E quando voltou à terra logo submeteu o coração duma princesa, que mais tarde acabou freira num recatado convento. O que era prisão para ela, foi para ele a liberdade.
Esposadinha de fresco, a prometer primaveras, andava por essa altura a donzela mais vistosa do lugar. Mas como já se tem visto, nem sempre os dotes da natureza trazem bem-aventurança. Mormente a esta mulher, a mais velha de onze irmãos. A mãe morrera de parto, perdeu o pai aos dez anos. Tão cedo mãe de família, a rapariga casou mal fizera os dezasseis. Mas o facto não tolheu o morgadinho, que um belo dia se dispôs a requestá-la. E ela, com um tal fardo sobre os ombros, pôs-se a avaliar-lhe o peso. Agradava-lhe viver na casa grande, deu em aceder à corte. O marido claudicou, abandonou a contenda, fez a trouxa para o Brasil.
Hoje é ela a mulher do morgadinho. Durante muito tempo não passou de concubina, reduzida à condição de serviçal. Até que um dia lhe exigiu o casamento, que o morgadinho já não pôde recusar. Um tal enredo engendrara à sua volta um geral desprazimento, que a passos largos se tornou num ódio surdo. E embora ninguém esperasse tão grande longevidade, ele resistiu ao linguajar do populacho e negou as previsões.
Era uma grande cabeça, todo a gente o boquejava, e o diploma que trouxe de Coimbra lá estava para o comprovar. Mas enquanto homem de leis, nunca dedicou às ditas um avo dos seus labores. Quando a revolução chegou pôs muita coisa a tremer. E logo os mandantes dos partidos quiseram cativar o morgadinho para o governo distrital. O homem não aceitou. Mais tarde foi convidado para o ministério da Justiça, mas outra vez declinou.
O viajante fica sem saber se mais o rói o espanto, se a incredulidade. E a surpresa vai ainda nos começos, agora que o castelão recebe os visitantes ao cimo da escadaria, mais ágil e desenvolto do que os anos prometiam. A mulher, muito mais nova, os olhos emaciados por uma solidão azeda, está de guarda na cozinha, a um trem de caçarolas e alfaias da culinária que enchem paredes inteiras. Na saleta, ali ao lado, vem guardando o morgadinho uma colecção completa de diários do governo, do primeiro ao mais recente. Este foi o diploma de bacharel de leis do bisavô, em pergaminho genuíno, ao tempo que isso lá vai. Agora aqui o diploma de bacharel de leis do meu avô, que dispensou o cabrito original. E ali está encaixilhado o meu diploma de bacharel de leis, neste papiro de luxo.
Nas salas do rés-do-chão é pouco o espaço inteiro para acomodar um bricabraque indizível, empilhado a trouxe-mouxe: lugres à vela e caravelas de chifre; santantoninhos e cartapácios antigos; pedras de lousa e soldadinhos de chumbo; galhardetes militares e ceifeiras de além-tejo; cães de loiça e corujas empalhadas; bonecas de trapo e ursinhos de peluche; landscapes inglesas e mal-me-queres bordados; quadros de caça e águias embalsamadas; naturezas-mortas e trabucos de pederneira; pais-natais de grandes barbas e pagelas de santinhos; pisa-papéis e cassetes antigas; rádios de pilhas e discos de fadistas; compêndios escolares e breviários pios; moinhos de café e balanças romanas; canapés de palhinha e edições de bolso; flores de papel e canetas de aparo; cadeiras de barbeiro e bustos de Beethoven; estatuetas macondes e máscaras da Lunda; calculadoras de bolso e paisagens de leões; faisões de plástico e gravuras de filósofos; dossiês incompletos e moedas comemorativas; relógios de corda e elefantes de marfim; charretes de latão e presépios de oratório; bonecas sevilhanas e leques de bambu; colecções numismáticas e garrafas de cinzano; miniaturas de licores e sifões de água tónica; porta-plumas e mata-borrões; canhões antigos e duendes nórdicos; dobadoiras e papagaios de papel; carros de bois e galos de Barcelos; caixas de música e bebés chorões; furgonetas de metal e cofres de segredo; higrómetros de parede e ventoinhas eléctricas; pandeiretas, catapultas e corta-papéis; pescadores da Nazaré e almofarizes de lata; cinzeiros de estanho e lavradeiras do Minho; lampiões de petróleo e botas espanholas; signos do zodíaco e colecções de chocalhos; bilhas de Nisa, canecas alemãs, molheiras de Sacavém, barros de Bisalhães, barretes de campino, um don Quixote amarelo… e pendurados do tecto um nunca mais acabar de vinte mil porta-chaves, o mais notável dos quais é uma piranha do Brasil envernizada.
No final o morgadinho conduziu os visitantes aos fundos do logradouro, para lhes mostrar, orgulhoso, a sua forja. E em boa hora o fez, pois lá dentro se decifra o que não tem explicação. A forja do morgadinho é o mundo inteiro do ferro, um vastíssimo arsenal das armas de Vulcano: tornos, tenazes, bigornas, compassos, medidores, fornalhas, martelos, maçaricos, soldadores, pias de têmpera… Foi aqui que o morgadinho gastou o melhor que tinha. E o viajante viu nele o símbolo mais-que-perfeito dum país trágico e incerto, que não soube o que fazer aos talentos da parábola.
(...)
sexta-feira, 11 de março de 2011
Mais vale tarde... 2 - O grande logro
(...)
A Alemanha baseara todos os seus cálculos numa guerra fulminante e numa vitória rápida. Ao princípio, a sua provisão de material bélico mal bastava para sustentá-la durante um ano de campanha, nas duas frentes. Os aliados, por conseguinte, poderiam ter obrigado o Kaiser a capitular antes dos fins de 1915, estabelecendo o bloqueio económico. Mas isto importava abrir mão dos mais gordos proventos da guerra: os que trazia o comércio de contrabando.
Durante os três primeiros anos da guerra, o Reich recebeu sem cessar fornecimentos através da Holanda, Suíça e dos países escandinavos, em especial de algodão, sem o qual não poderia lutar um só dia mais. Isto prolongou-se até surgir o protesto indignado dos Estados Unidos: a Inglaterra, o maior inimigo da Alemanha, estava-lhes roubando o mercado europeu.
O capitalismo alemão tão pouco se havia esquecido do seu bolso: até ao começo de 1917, as fundições Krupp de Essen enviavam mensalmente 250.000 toneladas de aço ao Comité des Forges da França, através da Suíça.
Além do pagamento em ouro, uma das cláusulas dessa transacção era que os aviadores franceses deviam abster-se de bombardear as minas, os altos fornos e as fábricas de preparação metalúrgica do distrito de Longwy, ocupado pelos alemães desde o começo da guerra. Carregamentos de níquel vindos da Caledónia com destino à Alemanha, apreendidos por destroyers franceses no alto mar, e trazidos para os portos de Brest e Cherburgo, foram mandados restituir pelo governo francês e alcançaram Bremen, sem mais incidentes. Representantes do trust de indústrias químicas alemãs, das fábricas de cobre suíças, de Vickers, Krupp, Schneider-Creusot e do Comité des Forges reuniram-se em Viena, no momento em que os exércitos se engalfinhavam numa luta de morte na lama da Flandres. O seu propósito único era o de inventar meios e modos de fazer com que a guerra seguisse lucrativamente o seu curso.
On croyait mourir pour la patrie, on mourait pour les industriels - disse Anatole France ao ter conhecimento da resposta do senador Béranger, aos que indagavam dele por que razão o distrito metalúrgico de Longwy não fora retomado logo no início da guerra, achando-se desprotegido pelos alemães, e com os franceses a dois passos dali. A causa de não se ter envidado nenhuma tentativa para recapturar Thionville era que isto levaria a guerra prematuramente a termo. Pois a ocupação de Thionville, declarava o senador, teria reduzido os alemães a sete milhões de toneladas de aço pobre por ano. Toda a produção ficaria paralisada. A captura de Thionville faria com que a guerra terminasse imediatamente. E era isto que se queria impedir a todo o custo.
O general Sarrail, comandante das forças da Lorena, maquinou, em 1915, um plano estratégico para conquistar, ou então destruir o distrito de Briey, onde a Alemanha explorava os altos fornos tomados ao Comité des Forges. Quando o comandantre supremo, Joffre, teve notícia da projectada ofensiva, Sarrail foi chamado a Paris, avistou-se com Poincaré, presidente da República, e o plano foi arquivado.
Graças ao minério francês, (...) pôde a Alemanha, durante quatro anos, inundar o oriente e ocidente, por terra e por mar, com rios de aço. Em troca dos magnetos para motores de aviões, enviados pela Alemanha, a França mandava bauxite, ingrediente indispensável na manufactura de alumínio para zepelins. O terrível arame farpado que os ingleses estenderam em Ypres e no Somme, e que foi uma armadilha mortal para a Guarda Prussiana, era fabricado pelos Drahtwerke de Opel e Cia, e chegava à Inglaterra pelo caminho da Holanda. A Austrália embarcava sebo para a Alemanha via Noruega e Dinamarca; os estabelecimentos do Estreito, copra; Ceilão, chá; o país de Gales, coque e carvão, alcatrão, amoníaco e glicerina, tudo em navios ingleses. (...)
A entrada dos Estados Unidos na guerra tornava certa a vitória final no front. Surgira no horizonte um outro perigo, que ganhava contornos cada vez mais precisos: o novo adiamento da paz ameaçava provocar uma revolução social. Só quando as classes superiores reconheceram a iminência dum desastre irreparável para a clique governante de banqueiros e mercadores da morte, foi que se instituiu um comando supremo único para todos os fronts, e, a instâncias dos Estados Unidos, se começou a aplicar a sério o bloqueio económico. A Alemanha percebeu imediatamente que tinha chegado o seu fim. Lançou mais uma última ofensiva desesperada, e acabou por ceder. (...)
Foi então que se assinou o Armistício!
A Alemanha baseara todos os seus cálculos numa guerra fulminante e numa vitória rápida. Ao princípio, a sua provisão de material bélico mal bastava para sustentá-la durante um ano de campanha, nas duas frentes. Os aliados, por conseguinte, poderiam ter obrigado o Kaiser a capitular antes dos fins de 1915, estabelecendo o bloqueio económico. Mas isto importava abrir mão dos mais gordos proventos da guerra: os que trazia o comércio de contrabando.
Durante os três primeiros anos da guerra, o Reich recebeu sem cessar fornecimentos através da Holanda, Suíça e dos países escandinavos, em especial de algodão, sem o qual não poderia lutar um só dia mais. Isto prolongou-se até surgir o protesto indignado dos Estados Unidos: a Inglaterra, o maior inimigo da Alemanha, estava-lhes roubando o mercado europeu.
O capitalismo alemão tão pouco se havia esquecido do seu bolso: até ao começo de 1917, as fundições Krupp de Essen enviavam mensalmente 250.000 toneladas de aço ao Comité des Forges da França, através da Suíça.
Além do pagamento em ouro, uma das cláusulas dessa transacção era que os aviadores franceses deviam abster-se de bombardear as minas, os altos fornos e as fábricas de preparação metalúrgica do distrito de Longwy, ocupado pelos alemães desde o começo da guerra. Carregamentos de níquel vindos da Caledónia com destino à Alemanha, apreendidos por destroyers franceses no alto mar, e trazidos para os portos de Brest e Cherburgo, foram mandados restituir pelo governo francês e alcançaram Bremen, sem mais incidentes. Representantes do trust de indústrias químicas alemãs, das fábricas de cobre suíças, de Vickers, Krupp, Schneider-Creusot e do Comité des Forges reuniram-se em Viena, no momento em que os exércitos se engalfinhavam numa luta de morte na lama da Flandres. O seu propósito único era o de inventar meios e modos de fazer com que a guerra seguisse lucrativamente o seu curso.
On croyait mourir pour la patrie, on mourait pour les industriels - disse Anatole France ao ter conhecimento da resposta do senador Béranger, aos que indagavam dele por que razão o distrito metalúrgico de Longwy não fora retomado logo no início da guerra, achando-se desprotegido pelos alemães, e com os franceses a dois passos dali. A causa de não se ter envidado nenhuma tentativa para recapturar Thionville era que isto levaria a guerra prematuramente a termo. Pois a ocupação de Thionville, declarava o senador, teria reduzido os alemães a sete milhões de toneladas de aço pobre por ano. Toda a produção ficaria paralisada. A captura de Thionville faria com que a guerra terminasse imediatamente. E era isto que se queria impedir a todo o custo.
O general Sarrail, comandante das forças da Lorena, maquinou, em 1915, um plano estratégico para conquistar, ou então destruir o distrito de Briey, onde a Alemanha explorava os altos fornos tomados ao Comité des Forges. Quando o comandantre supremo, Joffre, teve notícia da projectada ofensiva, Sarrail foi chamado a Paris, avistou-se com Poincaré, presidente da República, e o plano foi arquivado.
Graças ao minério francês, (...) pôde a Alemanha, durante quatro anos, inundar o oriente e ocidente, por terra e por mar, com rios de aço. Em troca dos magnetos para motores de aviões, enviados pela Alemanha, a França mandava bauxite, ingrediente indispensável na manufactura de alumínio para zepelins. O terrível arame farpado que os ingleses estenderam em Ypres e no Somme, e que foi uma armadilha mortal para a Guarda Prussiana, era fabricado pelos Drahtwerke de Opel e Cia, e chegava à Inglaterra pelo caminho da Holanda. A Austrália embarcava sebo para a Alemanha via Noruega e Dinamarca; os estabelecimentos do Estreito, copra; Ceilão, chá; o país de Gales, coque e carvão, alcatrão, amoníaco e glicerina, tudo em navios ingleses. (...)
A entrada dos Estados Unidos na guerra tornava certa a vitória final no front. Surgira no horizonte um outro perigo, que ganhava contornos cada vez mais precisos: o novo adiamento da paz ameaçava provocar uma revolução social. Só quando as classes superiores reconheceram a iminência dum desastre irreparável para a clique governante de banqueiros e mercadores da morte, foi que se instituiu um comando supremo único para todos os fronts, e, a instâncias dos Estados Unidos, se começou a aplicar a sério o bloqueio económico. A Alemanha percebeu imediatamente que tinha chegado o seu fim. Lançou mais uma última ofensiva desesperada, e acabou por ceder. (...)
Foi então que se assinou o Armistício!
Mais vale tarde... 1 - Primeira Grande Guerra
Pierre van Paassen (1895/1968) foi um jornalista holandês que acabou naturalizado americano. Estes Dias Tumultuosos, obra notável de pendor biográfico, veio à luz na América, em 1939. E teve edição portuguesa, em 1946, na Livros do Brasil.
Pelas suas páginas passam menos as peripécias pessoais, e mais os acidentes, os sucessos e as tragédias do seu tempo. Mutatis mutandis, a aragem que nelas corre faz lembrar os tempos de hoje, em que também chacais andam à solta, numa história mal contada. Talvez por isso, dou comigo a lamentar só conhecer este livro com cinquenta anos de atraso. Que me lembre, nunca me aconteceu.
Em 1917, milhões de corações fatigados remoçaram ao calor de uma nova esperança. A infinita paciência dos povos martirizados atingira o ponto de exaustão. (...) Para obstar à explosão, os governos calafetaram previamente todas as fendas e sentaram-se em cima da tampa. (...) Ganhava terreno a convicção de que os povos tinham sido vítimas de um logro colossal e sangrento. (...) Aumentava entre as massas a indignação ante os tesouros incalculáveis que eram esbanjados na loucura da guerra, ao passo que o apoio financeiro às medidas que visavam o melhoramento das suas condições sociais nunca se obtinha sem estrénuas lutas. (...)
Ainda se falava, na imprensa e nos escritórios de propaganda, em hunos trucidadores de crianças e senegaleses canibalescos, mas nas trincheiras já muita gente se havia curado da mistificação. Os quatro anos de guerra justa tinham acumulado mais ruínas e monstruosidades do que os senhores feudais e a Igreja reunidos, nos seus dez séculos de incontestável omnipotência. (...)
Os poilus franceses começaram a debater entre si a volta para os seus lares, antes que a guerre à outrance de Clémenceau atingisse a sua horrenda plenitude. Na primavera de 1918, André Maginot reconheceu, em sessão secreta da Câmara, que entre a cidade de Paris e a linha de combate só restava uma divisão em que o governo podia depositar absoluta confiança. A bandeira vermelha fora içada sobre a refinaria de açúcar, em ruínas, de Souchez. Um regimento alemão respondeu a isto entoando a Marselhesa, e atravessando a terra de ninguém para confraternizar com os inimigos. (...) Tornou-se necessário proibir às tropas britânicas toda a conversação com os prisioneiros alemães. A imprensa truncava as listas de baixas. (...)
Morriam ainda diariamente dezenas de milhares de homens. Mas nos castelos, longe da explosão das granadas (...) os generais e políticos aliados continuavam a contender entre si sobre pontos de precedência e prestígio. (...) O desacordo entre os homens dos galões de ouro ameaçava prolongar a guerra indefinidamente. (...) Rebentaram revoltas. (...) Os conselhos de guerra funcionavam noite e dia. Por um simples murmúrio de desagrado dizimava-se uma companhia inteira. Enviavam-se divisões propositadamente à linha de combate para serem chacinadas, esmagando-se assim o espírito de derrotismo. (...)
Os censores redobraram de esforços para obstar a que o povo conhecesse toda a extensão do horror. Nas grandes cidades, clamorosos cartazes advertiam toda a gente contra as intrigas sinistras dos pacifistas, dos agentes inimigos, do ouro estrangeiro, e também contra os emissários da extinta Internacional do Trabalho. Impunha-se silêncio às multidões. (...) Uma vez que, em tempos de guerra, uma mentira capaz de elevar o moral das tropas e da população civil vale mais que um milhão de verdades, organizaram-se as fábricas de mentiras. Elas levaram as universidades no arrastão. Sábios e intelectuais, escritores e homens de púlpito, todos aqueles que se desvaneciam de amar a verdade pela própria verdade, puseram-se a uivar em uníssono com a matilha. Os homens abriam mão das suas convicções tão facilmente como das suas vidas. (...)
Em Verdun, no Chemin des Dames, na Flandres, o holocausto a Moloch, a dança macabra atingia a sua obscena culminância. Os exércitos haviam recebido novas armas dos laboratórios. Fazia-se largo uso do gás asfixiante. Efectuavam-se novas experiências com bacilos morbígenos. Embora essa invenção diabólica não fosse utilizada em 1918, permanecerá para sempre o estigma infamante da geração pervertida e desumanizada que pensou a sério em empregá-la. (...) O monstro era insaciável. A Europa do cristianismo e do humanismo chafurdava num tremedal de sangue e servia de pasto aos piolhos.
Chegaram então da Itália notícias sobre a ocupação das fábricas. Surgiram as dissenções entre as equipagens dos submarinos e o comando naval alemão em Kiel. (...) Os alsacianos que serviam no exército alemão passaram-se em massa para a França. Os conscritos franceses iam buscar refúgio na Suíça e na Espanha. Os bósnios desertavam das duas águias dos Habsburgos para irem ter com os seus irmãos sérvios. Um exército checo vagueva sem rumo pelas planícies moscovitas. (...) Na França, as forças da Rússia Imperial que tinham sido transferidas de Odessa para levantar a moral dos aliados, e que se cobriram de glória em Verdun, negaram-se a lutar assim que a Rússia se retirou da guerra. Foram desarmadas e chacinadas, em número de dez mil, por ordem de Foch, a fim de preservar o exército francês do vírus revolucionário. (...)
Pelas suas páginas passam menos as peripécias pessoais, e mais os acidentes, os sucessos e as tragédias do seu tempo. Mutatis mutandis, a aragem que nelas corre faz lembrar os tempos de hoje, em que também chacais andam à solta, numa história mal contada. Talvez por isso, dou comigo a lamentar só conhecer este livro com cinquenta anos de atraso. Que me lembre, nunca me aconteceu.
Em 1917, milhões de corações fatigados remoçaram ao calor de uma nova esperança. A infinita paciência dos povos martirizados atingira o ponto de exaustão. (...) Para obstar à explosão, os governos calafetaram previamente todas as fendas e sentaram-se em cima da tampa. (...) Ganhava terreno a convicção de que os povos tinham sido vítimas de um logro colossal e sangrento. (...) Aumentava entre as massas a indignação ante os tesouros incalculáveis que eram esbanjados na loucura da guerra, ao passo que o apoio financeiro às medidas que visavam o melhoramento das suas condições sociais nunca se obtinha sem estrénuas lutas. (...)
Ainda se falava, na imprensa e nos escritórios de propaganda, em hunos trucidadores de crianças e senegaleses canibalescos, mas nas trincheiras já muita gente se havia curado da mistificação. Os quatro anos de guerra justa tinham acumulado mais ruínas e monstruosidades do que os senhores feudais e a Igreja reunidos, nos seus dez séculos de incontestável omnipotência. (...)
Os poilus franceses começaram a debater entre si a volta para os seus lares, antes que a guerre à outrance de Clémenceau atingisse a sua horrenda plenitude. Na primavera de 1918, André Maginot reconheceu, em sessão secreta da Câmara, que entre a cidade de Paris e a linha de combate só restava uma divisão em que o governo podia depositar absoluta confiança. A bandeira vermelha fora içada sobre a refinaria de açúcar, em ruínas, de Souchez. Um regimento alemão respondeu a isto entoando a Marselhesa, e atravessando a terra de ninguém para confraternizar com os inimigos. (...) Tornou-se necessário proibir às tropas britânicas toda a conversação com os prisioneiros alemães. A imprensa truncava as listas de baixas. (...)
Morriam ainda diariamente dezenas de milhares de homens. Mas nos castelos, longe da explosão das granadas (...) os generais e políticos aliados continuavam a contender entre si sobre pontos de precedência e prestígio. (...) O desacordo entre os homens dos galões de ouro ameaçava prolongar a guerra indefinidamente. (...) Rebentaram revoltas. (...) Os conselhos de guerra funcionavam noite e dia. Por um simples murmúrio de desagrado dizimava-se uma companhia inteira. Enviavam-se divisões propositadamente à linha de combate para serem chacinadas, esmagando-se assim o espírito de derrotismo. (...)
Os censores redobraram de esforços para obstar a que o povo conhecesse toda a extensão do horror. Nas grandes cidades, clamorosos cartazes advertiam toda a gente contra as intrigas sinistras dos pacifistas, dos agentes inimigos, do ouro estrangeiro, e também contra os emissários da extinta Internacional do Trabalho. Impunha-se silêncio às multidões. (...) Uma vez que, em tempos de guerra, uma mentira capaz de elevar o moral das tropas e da população civil vale mais que um milhão de verdades, organizaram-se as fábricas de mentiras. Elas levaram as universidades no arrastão. Sábios e intelectuais, escritores e homens de púlpito, todos aqueles que se desvaneciam de amar a verdade pela própria verdade, puseram-se a uivar em uníssono com a matilha. Os homens abriam mão das suas convicções tão facilmente como das suas vidas. (...)
Em Verdun, no Chemin des Dames, na Flandres, o holocausto a Moloch, a dança macabra atingia a sua obscena culminância. Os exércitos haviam recebido novas armas dos laboratórios. Fazia-se largo uso do gás asfixiante. Efectuavam-se novas experiências com bacilos morbígenos. Embora essa invenção diabólica não fosse utilizada em 1918, permanecerá para sempre o estigma infamante da geração pervertida e desumanizada que pensou a sério em empregá-la. (...) O monstro era insaciável. A Europa do cristianismo e do humanismo chafurdava num tremedal de sangue e servia de pasto aos piolhos.
Chegaram então da Itália notícias sobre a ocupação das fábricas. Surgiram as dissenções entre as equipagens dos submarinos e o comando naval alemão em Kiel. (...) Os alsacianos que serviam no exército alemão passaram-se em massa para a França. Os conscritos franceses iam buscar refúgio na Suíça e na Espanha. Os bósnios desertavam das duas águias dos Habsburgos para irem ter com os seus irmãos sérvios. Um exército checo vagueva sem rumo pelas planícies moscovitas. (...) Na França, as forças da Rússia Imperial que tinham sido transferidas de Odessa para levantar a moral dos aliados, e que se cobriram de glória em Verdun, negaram-se a lutar assim que a Rússia se retirou da guerra. Foram desarmadas e chacinadas, em número de dez mil, por ordem de Foch, a fim de preservar o exército francês do vírus revolucionário. (...)
quarta-feira, 9 de março de 2011
Mala-sorte
Escuta-se o discurso de tomada de posse do renovado Presidente, que é economista e já foi primeiro-ministro em tempos decisivos. E assistindo aos hossanas da canalha que o rodeia... acaba-se a lamentar a mala-sorte do padeiro. Que todos os dias se levanta às quatro da manhã, para cozer o pão a tanta cavalgadura.
terça-feira, 8 de março de 2011
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