Vai-te vai-te nevoeiro
lá p´rá serra de Guilheiro
que lá está o teu companheiro
com uma cadelinha cega
quem a cegou?
foi o fogo que aqui passou
que é do fogo?
anda nas moitas
que é das moitas?
roeram-nas as cabras
que é das cabras?
´tão a dar leite
que é do leite?
beberam-no as velhas
que é das velhas?
´tão a escramear lã
que é da lã?
espalharam-na as pitas
que é das pitas?
´tão a dar ovos
que é dos ovos?
beberam-nos os colergos
que é dos colergos?
´tão a dizer missa p´ra mim cagalhão p´ra ti!!!
sábado, 7 de dezembro de 2019
terça-feira, 26 de novembro de 2019
Em três actos
1 - Acabado o quinto ano ano liceal, em tempos pré-históricos, matriculei-me em Letras no sexto. E lá estive uma semana. Depois passei para Ciências, e fui encontrar os meus novos colegas no laboratório de Física. Foi depois disso que as coisas descambaram.
2 - O exército é o espelho da nação, era isto o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom como os melhores.
Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, e para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem, entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra. Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver. E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas.Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida custa a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores.
3 - Eram sete horas, Gaspar dormia um sono pesado, os dias eram frenéticos como só sabe quem os viveu e ainda não se esqueceu deles, e as noites pequenas para leituras, dos clássicos para aprender de cor a revolução, e dos jornais da tarde para saber o que a revolução fazia acontecer e que descaminhos tomava. Andavam loucos os cavalos da revolução, e a voz que apareceu ao telefone e arrancou Gaspar ao sono dizia justamente que havia estranhos cavalos à solta nos verdes prados da revolução, o melhor era pôr-se em campo. A mesma voz, a voz que apareceu ao telefone era a mesma voz que hoje de manhã lhe entregou o passaporte falso, quando passou a chamar-se Gaspar. (...)
Havia tropas amigas na rua, nos últimos dias era duma evidência transparente que ficaria sem cabeça quem a expusesse, e por isso Gaspar não compreende, sabe só que as tropas nunca se movimentam sem ordens, não sabe ainda que nunca saberá donde tais ordens vieram. Vai para uma base militar onde encontra confinada num salão toda a oficialidade, pastoreada pela tropa alevantada enquanto joga às damas, enquanto dá umas tacadas no bilhar, enquanto a meia voz comenta o insólito, quem sabe se inesperado, súbito lance. Gaspar ensaia uma explicação do que está a acontecer, tenta mostrar os limites da sublevação, procura legitimar-lhe os objectivos. Ainda não sabe que a razão não desempenha aqui qualquer papel, outros são os motivos que levam os homens a ver, não o que está, mas o que querem ver, numa revolução. E é ele próprio quem vê, pela primeira vez, o ódio nos olhos dos camaradas de ontem, que lhe chamam traidor e não entendem, alguns cospem-lhe aos pés e não entendem que se possa desejar outra coisa, que se pretenda substituir a definitiva rigidez de cadáver dos códigos deontológicos pelo calor suado e desprezível do povo, não entendem que se possa trocar esta vazia, mas certa, segurança, pela duvidosa aventura de indefinidas utopias, por sonhos incertos de transformar o mundo. (...)
Os viajantes chegam à fronteira quando a noite caía. E só João interrompeu o mutismo geral para recolher os passaportes, saiu devagar da viatura e dirigiu-se à casa dos guardas. O silêncio tornou-se mais espesso e constrangido, e Gaspar não pôde evitar um sobressalto no peito, fruto só da pouca habituação a estes andamentos, um carabineiro veio espreitar os passageiros que vêm em turismo, debruçou-se para a minúscula janela, cotejou as caras com os retratos e mandou avançar.
Nada é mais contraditório do que os homens. Passámos a fronteira de França,e sendo isto motivo de particular alívio e geral distensão, a tristeza nos peitos é maior. Estes viajantes deixaram de ter razões de insegurança, ninguém aqui virá saber quem são e ao que vêm, indagar dos falsos passaportes, esmiuçar-lhe um dente irregular no selo branco. Há longos anos tem sido esta terra um local de refúgio de portugueses, dos clandestinos da fome, dos refractários duma comprida guerra, não vai deixar de sê-lo agora para os que doutra guerra escapam. E no entanto cresce a melancolia nestes olhos, passámos a vida a pensar que a liberdade é tudo e enganámo-nos, estamos finalmente soltos e preferíamos não estar, temos o mundo todo à mão e o nosso a ficar-nos para trás, cada vez mais distante.
João é que não esconde o seu contentamento. Procura um restaurante aprimorado, esmera a selecção das vitualhas, pede para nós um beaujolais. O jantar é um consolo para o corpo, a gentileza da França faz o resto. Leva-nos ao comboio, falamos de João que fortemente nos envolve nos braços compridos, antes de dobrar ao fundo a esquina da calçada, uma chuva angustiada cai.
Na vida é como no cinema, conclui Gaspar, preso ainda no relance final do carro branco, insistentemente chove quando alguém se vai embora para sempre.Nos filmes entendemos porquê, na vida não.
2 - O exército é o espelho da nação, era isto o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom como os melhores.
Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, e para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem, entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra. Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver. E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas.Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida custa a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores.
3 - Eram sete horas, Gaspar dormia um sono pesado, os dias eram frenéticos como só sabe quem os viveu e ainda não se esqueceu deles, e as noites pequenas para leituras, dos clássicos para aprender de cor a revolução, e dos jornais da tarde para saber o que a revolução fazia acontecer e que descaminhos tomava. Andavam loucos os cavalos da revolução, e a voz que apareceu ao telefone e arrancou Gaspar ao sono dizia justamente que havia estranhos cavalos à solta nos verdes prados da revolução, o melhor era pôr-se em campo. A mesma voz, a voz que apareceu ao telefone era a mesma voz que hoje de manhã lhe entregou o passaporte falso, quando passou a chamar-se Gaspar. (...)
Havia tropas amigas na rua, nos últimos dias era duma evidência transparente que ficaria sem cabeça quem a expusesse, e por isso Gaspar não compreende, sabe só que as tropas nunca se movimentam sem ordens, não sabe ainda que nunca saberá donde tais ordens vieram. Vai para uma base militar onde encontra confinada num salão toda a oficialidade, pastoreada pela tropa alevantada enquanto joga às damas, enquanto dá umas tacadas no bilhar, enquanto a meia voz comenta o insólito, quem sabe se inesperado, súbito lance. Gaspar ensaia uma explicação do que está a acontecer, tenta mostrar os limites da sublevação, procura legitimar-lhe os objectivos. Ainda não sabe que a razão não desempenha aqui qualquer papel, outros são os motivos que levam os homens a ver, não o que está, mas o que querem ver, numa revolução. E é ele próprio quem vê, pela primeira vez, o ódio nos olhos dos camaradas de ontem, que lhe chamam traidor e não entendem, alguns cospem-lhe aos pés e não entendem que se possa desejar outra coisa, que se pretenda substituir a definitiva rigidez de cadáver dos códigos deontológicos pelo calor suado e desprezível do povo, não entendem que se possa trocar esta vazia, mas certa, segurança, pela duvidosa aventura de indefinidas utopias, por sonhos incertos de transformar o mundo. (...)
Os viajantes chegam à fronteira quando a noite caía. E só João interrompeu o mutismo geral para recolher os passaportes, saiu devagar da viatura e dirigiu-se à casa dos guardas. O silêncio tornou-se mais espesso e constrangido, e Gaspar não pôde evitar um sobressalto no peito, fruto só da pouca habituação a estes andamentos, um carabineiro veio espreitar os passageiros que vêm em turismo, debruçou-se para a minúscula janela, cotejou as caras com os retratos e mandou avançar.
Nada é mais contraditório do que os homens. Passámos a fronteira de França,e sendo isto motivo de particular alívio e geral distensão, a tristeza nos peitos é maior. Estes viajantes deixaram de ter razões de insegurança, ninguém aqui virá saber quem são e ao que vêm, indagar dos falsos passaportes, esmiuçar-lhe um dente irregular no selo branco. Há longos anos tem sido esta terra um local de refúgio de portugueses, dos clandestinos da fome, dos refractários duma comprida guerra, não vai deixar de sê-lo agora para os que doutra guerra escapam. E no entanto cresce a melancolia nestes olhos, passámos a vida a pensar que a liberdade é tudo e enganámo-nos, estamos finalmente soltos e preferíamos não estar, temos o mundo todo à mão e o nosso a ficar-nos para trás, cada vez mais distante.
João é que não esconde o seu contentamento. Procura um restaurante aprimorado, esmera a selecção das vitualhas, pede para nós um beaujolais. O jantar é um consolo para o corpo, a gentileza da França faz o resto. Leva-nos ao comboio, falamos de João que fortemente nos envolve nos braços compridos, antes de dobrar ao fundo a esquina da calçada, uma chuva angustiada cai.
Na vida é como no cinema, conclui Gaspar, preso ainda no relance final do carro branco, insistentemente chove quando alguém se vai embora para sempre.Nos filmes entendemos porquê, na vida não.
quinta-feira, 21 de novembro de 2019
Olhai as aves do céu
O bartolomeu não sabe explicar
por que tomou a decisão de subir ao chiado, naquele dia à tarde. Certo está
apenas de já não guardar esperanças no peito, à medida que ia subindo a rua
nova do almada. Dormia há três meses nas arcadas do ministério das finanças,
encostado a um pilar que os pombos ainda respeitavam. Esmolava no sul e sueste,
quotidianamente posto em risco pelas avalanches de pernas que desaguavam de
Cacilhas, e aventurava-se a um almoço na económica dos anjos, quando s forças
lhe deixavam subir a avenida, o que era raro. Nesse dia trepou ao chiado como
quem vai de férias.
Olhai as aves do céu, que não
semeiam nem colhem! Soletrou o cartaz pendurado ao cimo das escadas da igreja
dos mártires, que no íntimo sentiu como sua, porém sem cogitar o milagre que
ali estava à espera. Atravessou o guarda-vento, tacteou ao longo da parede e
lançou os dedos à pia da água benta, num gesto que desenterrou duma memória
antiga. E foi quando a mão direita lhe transitava, canhestra, entre o pai e o
espírito santo, que os olhos se afizeram à obscuridade e decifraram o peixe
picotado no lioz da coluna, mesmo por cima do tanque.
Pouco dado a leituras
cabalísticas, o bartolomeu ficou surpreendido. Mas logo saltou da surpresa para
o espanto, quando viu o peixe desprender-se da pedra e mergulhar na água benta,
num encarpado perfeito.
Arqueou as sobrancelhas, roçou um
punho nos olhos, não queria acreditar. Procurou assento num dos bancos
corridos, e ali ficou, de queixo nas mãos, enquanto a fresca atmosfera da nave
central lhe assentava lentamente na cumeada dos ombros. À saída foi espreitar a
concha da água benta. O pequeno dorso do peixe evolucionava lá dentro, a
lavrar, cuidadoso, as lodagens do fundo.
Oito dias depois regressou à
igreja, e lá encontrou o vulto escuro a remexer as águas. Mas o que via agora
eram dois palmos de lombada sólida e carnuda, de barbatana inchada, abrindo as
guelras ávidas ao maná da água benta. Logo ali capturou o robalo a mãos ambas,
fê-lo desaparecer no bolso e foi tratar do jantar.
No dia seguinte foi à igreja de
são roque e saiu-lhe uma carpa enorme. Na sé teve direito a salmão. Nos
jerónimos ia-se empanturrando de besugos, de linguados, de azevias. O
bartolomeu tem o futuro assegurado. Levará muitos anos a percorrer as pias de
água benta de lisboa. Depois há-de vir o porto, santarém, a idolátrica braga… E
o bartolomeu olhará, sem cobiça, os pássaros do céu, enquanto for correndo as
capelas do minho, à espera duma lampreia.
terça-feira, 19 de novembro de 2019
segunda-feira, 18 de novembro de 2019
Copianço
Na última segunda-feira fui a uma primeira consulta de ORL onde uma jovem médica me observou com o desvelo e a delicadeza que está longe de imaginar quem lê jornais, vê televisão, ouve rádio ou frequenta redes sociais, sem conhecer o SNS.
Aliás, é esta a regra de várias consultas a que recorro e que me levam a suspeitar que os médicos e enfermeiros elegeram, como bastonários, os porta-vozes de Cavaco e Passos Coelho, para a saúde, com forte vocação sindical.
Perante a forma como sou tratado e os recursos usados para um idoso sénior, que ora me define, tenho a impressão de que o acesso aos meios de comunicação é a prerrogativa de militantes dos partidos que votaram contra a criação do SNS, cada vez mais exigentes e desejosos de satisfazerem o sector privado e a rede hospitalar das Misericórdias.
Volto à médica especialista em ORL. Marcou-me nova consulta e um audiograma que a antecederá, e preveniu-me de que a idade e a perda natural da acuidade auditiva podiam levar a ter de (me) aparelhar.
Felizmente não se apercebeu de um leve e irreprimível sorriso que esbocei. Num ápice, a previsão de ‘me aparelhar’ devolveu-me à infância onde o avô materno me dizia para aparelhar a burra e levá-la ao Espadanal onde a avó já teria mondado as ervas daninhas antes de iniciar a rega com a escassa água que não escolhia raízes.
Às vezes punha-lhe as cangalhas para trazer quatro cântaros de água porque as fontes da aldeia estavam secas.
E lá ia eu à corte, orgulhoso da tarefa, a enfiar o cabresto à burra, a pôr-lhe a albarda, a apertar-lhe a cilha e a atirar os alforges para cima da albarda, para trazer legumes e algumas batatas que se arrancassem durante a rega. Depois era correr, montado na burra que não se ressentia do peso-pluma do corpo do garoto, passando a trote à Fonte do Vale e acabando a galope duas centenas de metros depois junto à portaleira da horta.
Quando chegava, era um divertimento desaparelhar o animal, colocar-lhe a belfa, ajeitá-la ao cambão e vendá-la antes de a pôr a rodá-lo, enquanto a água do poço esvaziava no vaivém dos copos da nora, a correr pela regueira nas leiras de feijões, cebolas, tomates, alfaces e batatas para onde a avó sucessivamente a encaminhava.
Há quase sete décadas era eu que aparelhava uma burra, com a alegria de desempenhar a tarefa, agora é a jovem clínica que admite aparelhar-(me) as orelhas, para melhorar a acuidade auditiva que o endurecimento da membrana do tímpano embotou.
Ouvi. Sem zurrar. É preferível o aparelho auditivo ao cabresto, mas há de custar mais a suportar do que os atafais à burra, que se deslocava pacientemente, ligada pelo rabeiro à mão que a conduzia.
Aliás, é esta a regra de várias consultas a que recorro e que me levam a suspeitar que os médicos e enfermeiros elegeram, como bastonários, os porta-vozes de Cavaco e Passos Coelho, para a saúde, com forte vocação sindical.
Perante a forma como sou tratado e os recursos usados para um idoso sénior, que ora me define, tenho a impressão de que o acesso aos meios de comunicação é a prerrogativa de militantes dos partidos que votaram contra a criação do SNS, cada vez mais exigentes e desejosos de satisfazerem o sector privado e a rede hospitalar das Misericórdias.
Volto à médica especialista em ORL. Marcou-me nova consulta e um audiograma que a antecederá, e preveniu-me de que a idade e a perda natural da acuidade auditiva podiam levar a ter de (me) aparelhar.
Felizmente não se apercebeu de um leve e irreprimível sorriso que esbocei. Num ápice, a previsão de ‘me aparelhar’ devolveu-me à infância onde o avô materno me dizia para aparelhar a burra e levá-la ao Espadanal onde a avó já teria mondado as ervas daninhas antes de iniciar a rega com a escassa água que não escolhia raízes.
Às vezes punha-lhe as cangalhas para trazer quatro cântaros de água porque as fontes da aldeia estavam secas.
E lá ia eu à corte, orgulhoso da tarefa, a enfiar o cabresto à burra, a pôr-lhe a albarda, a apertar-lhe a cilha e a atirar os alforges para cima da albarda, para trazer legumes e algumas batatas que se arrancassem durante a rega. Depois era correr, montado na burra que não se ressentia do peso-pluma do corpo do garoto, passando a trote à Fonte do Vale e acabando a galope duas centenas de metros depois junto à portaleira da horta.
Quando chegava, era um divertimento desaparelhar o animal, colocar-lhe a belfa, ajeitá-la ao cambão e vendá-la antes de a pôr a rodá-lo, enquanto a água do poço esvaziava no vaivém dos copos da nora, a correr pela regueira nas leiras de feijões, cebolas, tomates, alfaces e batatas para onde a avó sucessivamente a encaminhava.
Há quase sete décadas era eu que aparelhava uma burra, com a alegria de desempenhar a tarefa, agora é a jovem clínica que admite aparelhar-(me) as orelhas, para melhorar a acuidade auditiva que o endurecimento da membrana do tímpano embotou.
Ouvi. Sem zurrar. É preferível o aparelho auditivo ao cabresto, mas há de custar mais a suportar do que os atafais à burra, que se deslocava pacientemente, ligada pelo rabeiro à mão que a conduzia.
(Do Ponte Europa do Carlos Esperança)
domingo, 17 de novembro de 2019
Do impensável
Tinha vida, o burgo, antigamente. Tinha gente, não era como hoje. O mesmo Inverno era a sério.
Havia a Folha de Trancoso, um jornalinho mensal que relatava as notícias da região. E ao fundo da avenida havia a livraria do Fernando Caramelo.
Comprei lá a Ponte Sobre o Drina e a Vigésima Quinta Hora, do romeno Virgil Gheorghiu que já ninguém conhece. Tudo isso, hoje, é impensável.
Havia a Folha de Trancoso, um jornalinho mensal que relatava as notícias da região. E ao fundo da avenida havia a livraria do Fernando Caramelo.
Comprei lá a Ponte Sobre o Drina e a Vigésima Quinta Hora, do romeno Virgil Gheorghiu que já ninguém conhece. Tudo isso, hoje, é impensável.
terça-feira, 12 de novembro de 2019
Casos bicudos
" (...) O viajante só discorda de Adalberto porque sabe, desta história, mais do que ele. Ouviu dizer que nos paços do almirante, em Verões antigos, tinham lugar encontros de coração. Mas as damas vinham duas e o Salazar era um só. A paixão dele era uma castelã, de sangue azul e modos adocicados, diplomática e discreta. O nome dela era uma cordilheira, só ele enchia a página inteira dos assentos. Mas o enlevo que mostrava ao sacripanta era apenas circunstância.
Já a outra era azougada, uma amazona. Desfolhava-se por ele e não controlava os impulsos do corpo, que era tão vasto quanto impaciente. Dizia ela que a vida são dois dias e lá teria razão. Porém ele fazia-se de sonso e não lhe dava saída, que lhe metia medo a mulheraça. E fazia-lhe lembrar a Carlota Joaquina.
Quantas vezes casos bicudos da história, como este do Salazar, encontram explicação assim ao virar da esquina! Isto vai ruminando o viajante, que foi procurar uns paços de almirante e já os encontrou. Abatidos, decadentes, a caminhar para a ruína, tão transitórios como as glórias do mundo. Foi isto um gemido de amazona, ou alguma porta que rangeu?!
Quem em tempos conheceu bem estas escadarias foi Francisca, das Moitas de São Martinho, se nelas derramou as lágrimas melhores. Tinha três filhos mas só lhe sobraram dois, que o terceiro levaram-no umas febres num sertão de África para onde foi à ventura. Um dia o mais novato andava nuns lameiros, a gadanhar o feno ali às Águas-Vivas. E láa entrou em despiques com um farsola, por causa duma gaiata. O resto foi o vinho que o fez. Veio para casa mais cedo, foi buscar a caçadeira, e pôs-se à espera que o carro dos bois parasse no meio do povo. Não era o mesmo farsola que vinha a cavalo nele, mas ele nem reparou. E vindimou-lhe o pai sem o saber, amaldiçoada hora!
A mãe Francisca ateve-se ao almirante, pois a quem... A justiça era tão longe, a vida era tão madrasta, o seu homem emigrara sem lhe mandar um tostão... Andou que tempos a caminhar para aqui, por esses montes abaixo. Num taleiguito à cabeça trazia o melhor que tinha, que era nada. Mas abrigava no peito uma esperança, nem sabia, de merecer uma atenção do almirante. O filho apanhou a pena máxima, nunca mais se endireitou. E um dia a velha Francisca, perdida aquela ilusão, tomou-se do desalento e lá se deixou morrer. (...)"
Já a outra era azougada, uma amazona. Desfolhava-se por ele e não controlava os impulsos do corpo, que era tão vasto quanto impaciente. Dizia ela que a vida são dois dias e lá teria razão. Porém ele fazia-se de sonso e não lhe dava saída, que lhe metia medo a mulheraça. E fazia-lhe lembrar a Carlota Joaquina.
Quantas vezes casos bicudos da história, como este do Salazar, encontram explicação assim ao virar da esquina! Isto vai ruminando o viajante, que foi procurar uns paços de almirante e já os encontrou. Abatidos, decadentes, a caminhar para a ruína, tão transitórios como as glórias do mundo. Foi isto um gemido de amazona, ou alguma porta que rangeu?!
Quem em tempos conheceu bem estas escadarias foi Francisca, das Moitas de São Martinho, se nelas derramou as lágrimas melhores. Tinha três filhos mas só lhe sobraram dois, que o terceiro levaram-no umas febres num sertão de África para onde foi à ventura. Um dia o mais novato andava nuns lameiros, a gadanhar o feno ali às Águas-Vivas. E láa entrou em despiques com um farsola, por causa duma gaiata. O resto foi o vinho que o fez. Veio para casa mais cedo, foi buscar a caçadeira, e pôs-se à espera que o carro dos bois parasse no meio do povo. Não era o mesmo farsola que vinha a cavalo nele, mas ele nem reparou. E vindimou-lhe o pai sem o saber, amaldiçoada hora!
A mãe Francisca ateve-se ao almirante, pois a quem... A justiça era tão longe, a vida era tão madrasta, o seu homem emigrara sem lhe mandar um tostão... Andou que tempos a caminhar para aqui, por esses montes abaixo. Num taleiguito à cabeça trazia o melhor que tinha, que era nada. Mas abrigava no peito uma esperança, nem sabia, de merecer uma atenção do almirante. O filho apanhou a pena máxima, nunca mais se endireitou. E um dia a velha Francisca, perdida aquela ilusão, tomou-se do desalento e lá se deixou morrer. (...)"
domingo, 10 de novembro de 2019
Enigmas
Ao fim da tarde foi ver a moleirinha, andava ela na horta. E ajudou-a até que a mãe a chamou, estava a morrer o dia.
- Quando hei-de cá tornar, a ver-te?
- Tornarás quando os pegos estiverem floridos, quando os moirões estiverem caídos, e os mortos enterrando os vivos, então cá tornarás!
O rapaz subiu a encosta, regressou inquieto ao povo. E não sabendo decifrar o enigma, não voltou. Só voltaram a ver-se anos depois, na romaria da Senhora da Saúde, era ela mulher feita, já viúva.
- Nunca mais voltaste!...
- Ainda hoje não sei o teu enigma, agora mo dirás!
- Os pegos estão floridos nas noites em que as estrelas se miram nos paúis. Os moirões estão caídos quando os pais já dormem. E os mortos enterram os vivos quando as cinzas cobrem, na lareira, o lume vivo.
Em todas as vidas há encruzilhadas, que às vezes são fatais.
- Quando hei-de cá tornar, a ver-te?
- Tornarás quando os pegos estiverem floridos, quando os moirões estiverem caídos, e os mortos enterrando os vivos, então cá tornarás!
O rapaz subiu a encosta, regressou inquieto ao povo. E não sabendo decifrar o enigma, não voltou. Só voltaram a ver-se anos depois, na romaria da Senhora da Saúde, era ela mulher feita, já viúva.
- Nunca mais voltaste!...
- Ainda hoje não sei o teu enigma, agora mo dirás!
- Os pegos estão floridos nas noites em que as estrelas se miram nos paúis. Os moirões estão caídos quando os pais já dormem. E os mortos enterram os vivos quando as cinzas cobrem, na lareira, o lume vivo.
Em todas as vidas há encruzilhadas, que às vezes são fatais.
sábado, 2 de novembro de 2019
Mercado
Hoje não há literatura, nem há os críticos dela. O que há por aí é o mercado e os seus divulgadores.
E o leitor está condenado a arruinar orçamentos, trazendo para casa romances que não lê, ou começa e não acaba. Prémios disto, e daquilo, e daqueloutro. Que o mercado negoceia como rabanetes.
De forma que me pus a andar para trás, a retomar coisas velhas que vale a pena reler. Como esta página de Os Cus de Judas.
"- Uma doença, doutor - insistia o tenente - anemia, leucemia, reumatismo, cancro, bócio, uma doençazeca, uma doença de merda que me passe à reserva: o que fazemos nós aqui? Você já se perguntou o que fazemos aqui? Pensa que alguém nos agradece? Ainda por cima, imagine o meu azar, recebi ontem carta da minha mulher a participar-me que a criada se despediu, foi-se embora, pirou-se: não estava lá o rapaz para pôr o selo na pequena e o resultado viu-se. Vá por mim, doutor, sopeira em que o patrão não se ponha nunca chega a criar amor à casa. Tinha-lhe comprado meias de renda pretas e cuecas vermelhas, as cores da Artilharia, a minha mulher saía cedo para o emprego, ela trazia-me o pequeno-almoço à cama com as meias e as cuecas, boa como o milho, levantava o lençol, olhava e dizia Ai senhor tenente que hoje está tão grande. Ó doutor, só queria que provasse aquela competência. E os modos? E a delicadeza? Nunca lhe ouvi nenhum palavrão, era sempre o coiso. O seu coiso isto, o seu coiso aquilo, dê-me o seu coiso, senhor tenente, gosto tanto do seu coiso, meta o seu coiso na minha coisinha. Que é que me responde a isto, hã?
De olhos fechados, com a voz enorme do tenente a rebolar pelo quarto, eu pensava: há onze meses que não vejo cortinas, nem tapetes, nem cálices, nem alcatrão, e era como se essas quatro ausências constituíssem a base elementar de qualquer espécie de felicidade, há onze meses que só vejo morte e angústia e sofrimento e coragem e medo, há onze meses que me masturbo todas as noites, como um puto, a tecer variações adolescentes em torno das mamas das fotografias do cubículo das transmissões, há onze meses que não sei o que é um corpo ao pé do meu corpo e o sossego de poder dormir sem ansiedade, tenho uma filha que não conheço, uma mulher que é um grito de amor sufocado num aerograma, amigos cujas feições começo inevitavelmente a esquecer, uma casa mobilada sem dinheiro que não visitei nunca, tenho vinte e tal anos, estou a meio da minha vida e tudo me parece suspenso à minha volta como as criaturas de gestos congelados que posavam para os retratos antigos.
- Amanhã sigo de bimotor para Luanda. Quer que dê uma trancada na sopeira por si?"
E o leitor está condenado a arruinar orçamentos, trazendo para casa romances que não lê, ou começa e não acaba. Prémios disto, e daquilo, e daqueloutro. Que o mercado negoceia como rabanetes.
De forma que me pus a andar para trás, a retomar coisas velhas que vale a pena reler. Como esta página de Os Cus de Judas.
"- Uma doença, doutor - insistia o tenente - anemia, leucemia, reumatismo, cancro, bócio, uma doençazeca, uma doença de merda que me passe à reserva: o que fazemos nós aqui? Você já se perguntou o que fazemos aqui? Pensa que alguém nos agradece? Ainda por cima, imagine o meu azar, recebi ontem carta da minha mulher a participar-me que a criada se despediu, foi-se embora, pirou-se: não estava lá o rapaz para pôr o selo na pequena e o resultado viu-se. Vá por mim, doutor, sopeira em que o patrão não se ponha nunca chega a criar amor à casa. Tinha-lhe comprado meias de renda pretas e cuecas vermelhas, as cores da Artilharia, a minha mulher saía cedo para o emprego, ela trazia-me o pequeno-almoço à cama com as meias e as cuecas, boa como o milho, levantava o lençol, olhava e dizia Ai senhor tenente que hoje está tão grande. Ó doutor, só queria que provasse aquela competência. E os modos? E a delicadeza? Nunca lhe ouvi nenhum palavrão, era sempre o coiso. O seu coiso isto, o seu coiso aquilo, dê-me o seu coiso, senhor tenente, gosto tanto do seu coiso, meta o seu coiso na minha coisinha. Que é que me responde a isto, hã?
De olhos fechados, com a voz enorme do tenente a rebolar pelo quarto, eu pensava: há onze meses que não vejo cortinas, nem tapetes, nem cálices, nem alcatrão, e era como se essas quatro ausências constituíssem a base elementar de qualquer espécie de felicidade, há onze meses que só vejo morte e angústia e sofrimento e coragem e medo, há onze meses que me masturbo todas as noites, como um puto, a tecer variações adolescentes em torno das mamas das fotografias do cubículo das transmissões, há onze meses que não sei o que é um corpo ao pé do meu corpo e o sossego de poder dormir sem ansiedade, tenho uma filha que não conheço, uma mulher que é um grito de amor sufocado num aerograma, amigos cujas feições começo inevitavelmente a esquecer, uma casa mobilada sem dinheiro que não visitei nunca, tenho vinte e tal anos, estou a meio da minha vida e tudo me parece suspenso à minha volta como as criaturas de gestos congelados que posavam para os retratos antigos.
- Amanhã sigo de bimotor para Luanda. Quer que dê uma trancada na sopeira por si?"
quarta-feira, 30 de outubro de 2019
Alta
Então apanhei um dia uma carga de paludismo, que voltara à cidade. Não sei se doido, não sei se cerebral, conforme lhe chamaram. Eu não sei. Era um febrão que eu nunca tinha sentido. E lá fui parar ao hospital, às mãos dum médico que me arrecadou nos cuidados intensivos durante uma semana. O corpo desfazia-se-me em água e acabou por arribar. Mas ainda tinha à espera uns dias de quarentena numa enfermaria. Não levei muito tempo a reconhecê-la. Era a mesma antiga enfermaria onde eu passara dois meses a refazer os destroços dum desastre aparatoso, uns trinta anos atrás, nas aventuras da guerra. Na cama junto à janela batia o sol, cicatrizavam as feridas que a viseira partida me deixara nos olhos, vinham às vezes visitas de donzelas condoídas. Um enfermeiro solícito empurrava-me a comida para a fornalha dos queixais que recusavam abrir, nunca mais esqueci um tal cuidado.
Mas desta vez o rancho era intragável. Uns caldos indecifráveis, umas aguadas mistelas sem sabor, não havia maneira de as tragar. Ao meu lado estadiava o mais-velho Faustino, que era uma figura sossegada, o que o forçava ali não cheguei a sabê-lo. E todos os dias chegava a família ao meio-dia, a trazer o almoço ao patriarca. Juntavam-se em volta dele a acompanhar o repasto, às vezes funge, um frango à cafreal… E eu ficava-me a olhá-los, silencioso.
Um dia o negro Faustino olhou para mim muito sério, e decretou perante o adjunto: - A partir de hoje passas a comer comigo o almoço que eu tiver! Não podes dizer que não!
Nem chegou a uma semana, tive alta do hospital.
Mas desta vez o rancho era intragável. Uns caldos indecifráveis, umas aguadas mistelas sem sabor, não havia maneira de as tragar. Ao meu lado estadiava o mais-velho Faustino, que era uma figura sossegada, o que o forçava ali não cheguei a sabê-lo. E todos os dias chegava a família ao meio-dia, a trazer o almoço ao patriarca. Juntavam-se em volta dele a acompanhar o repasto, às vezes funge, um frango à cafreal… E eu ficava-me a olhá-los, silencioso.
Um dia o negro Faustino olhou para mim muito sério, e decretou perante o adjunto: - A partir de hoje passas a comer comigo o almoço que eu tiver! Não podes dizer que não!
Nem chegou a uma semana, tive alta do hospital.
terça-feira, 29 de outubro de 2019
Gosto
Dos regatinhos que descem a encosta, acordando as pedras do seu húmido sono;
das árvores que vão perdendo as folhas, depois dum Verão inteiro a darem fruto e sombra;
dos animais sem caprichos nem excessos, que seguem o instinto e a função;
das encostas dos montes adormecendo em paz, à espera da neve que há-de vir.
das árvores que vão perdendo as folhas, depois dum Verão inteiro a darem fruto e sombra;
dos animais sem caprichos nem excessos, que seguem o instinto e a função;
das encostas dos montes adormecendo em paz, à espera da neve que há-de vir.
sábado, 26 de outubro de 2019
Dona Elvira
Todos os dias, quer chovesse quer nevasse, lá ia ela. Atravessava a ponte de pau do ribeiro, subia a ladeira da Sobreposta e ia dar escola a Casteição. Ao fim do dia fazia tudo ao contrário.
O homem dela era o Guinemer, um fura-bolos herege que ninguém sabia onde encontrara o nome. Mantinha ali no adro uma taberna, que então o povo era muito. E um dia sonhou que a era dos moleiros ia chegar ao fim, muito antes de alguém pensar numa barragem.
Construiu uma moagem além ao fundo do povo, debaixo duns castanheiros. E o motor lá ribombava todo o santo dia, fazendo rodar as mós.
Anos mais tarde a vida deu outra volta. O Guinemer resolveu partir para a África e levou a dona Elvira. Verdade ou mentira, diz o povo que ele um dia acabou debaixo dum tractor, que um preto fez empinar e cambulhou. Dela nunca mais ninguém falou.
O homem dela era o Guinemer, um fura-bolos herege que ninguém sabia onde encontrara o nome. Mantinha ali no adro uma taberna, que então o povo era muito. E um dia sonhou que a era dos moleiros ia chegar ao fim, muito antes de alguém pensar numa barragem.
Construiu uma moagem além ao fundo do povo, debaixo duns castanheiros. E o motor lá ribombava todo o santo dia, fazendo rodar as mós.
Anos mais tarde a vida deu outra volta. O Guinemer resolveu partir para a África e levou a dona Elvira. Verdade ou mentira, diz o povo que ele um dia acabou debaixo dum tractor, que um preto fez empinar e cambulhou. Dela nunca mais ninguém falou.
terça-feira, 22 de outubro de 2019
Algo vai muito mal...
... e não é no reino da Dinamarca! É antes na escola portuguesa.
Um professor não permite o uso de telelés na aula. Mas os meninos têm sete cada um, que um só não chega para ficarem online.
Um menino rapa do telelé, o profe pede-lho, ele recusa. Um gesto brusco do mestre leva o menino a bater com a cabeça na mesa.
A PSP é chamada à escola, o profe é suspenso e vai parar à esquadra, onde ficou uma tarde. Acabou por ficar detido e o tribunal é o passo seguinte.
Onde é que nós todos queremos chegar por este caminho?!!!
Um professor não permite o uso de telelés na aula. Mas os meninos têm sete cada um, que um só não chega para ficarem online.
Um menino rapa do telelé, o profe pede-lho, ele recusa. Um gesto brusco do mestre leva o menino a bater com a cabeça na mesa.
A PSP é chamada à escola, o profe é suspenso e vai parar à esquadra, onde ficou uma tarde. Acabou por ficar detido e o tribunal é o passo seguinte.
Onde é que nós todos queremos chegar por este caminho?!!!
segunda-feira, 21 de outubro de 2019
Cumeeiras da vida
O infante crescia-lhe enfezadito, a barriguita inchada. Só ele. Os outros cresciam à lei da natureza mas eram escorreitos.
O doutor fez-lhe o diagnóstico e apontou a solução. Aplicando correntes galvânicas salvava-lhe o garoto. Mas na vila só à noite havia corrente eléctrica.
Lá vai esta mater dolorosa, ao lusco-fusco, a cavalo na marquesa, o cachopito nos braços, embrulhado no xaile. Quando volta é alta noite, está frio, mas ela vem contente.
O pai ficou em casa, de perna estendida e pés à lareira. De consciência tranquila, como os parvos.
O doutor fez-lhe o diagnóstico e apontou a solução. Aplicando correntes galvânicas salvava-lhe o garoto. Mas na vila só à noite havia corrente eléctrica.
Lá vai esta mater dolorosa, ao lusco-fusco, a cavalo na marquesa, o cachopito nos braços, embrulhado no xaile. Quando volta é alta noite, está frio, mas ela vem contente.
O pai ficou em casa, de perna estendida e pés à lareira. De consciência tranquila, como os parvos.
domingo, 20 de outubro de 2019
Da Raça
(Quartel de Malapísia, Norte de Moçambique)
Este é o tempo dos reencontros de sobreviventes da loucura colonial. São cada vez menos os que vêm, e mais acabados chegam. Mas vêm.
O 10 de Junho transformara-se no dia da raça. Em frente da tribuna, de costas para o Tejo, entidades medalhadas penduravam cruzes de guerra no peito de viúvas e de mães cansadas, enquanto as trombetas atroavam as pombas do Terreiro do Paço.
Fui ver o episódio 9 do Joaquim Furtado, sobre a guerra das colónias. No fim, uma jovem viúva que não se esquece facilmente deixa cair duas lágrimas cara abaixo, enquanto alguém lhe espeta no peito uma medalha.
Anjos da guarda
Olho para trás e custa-me a acreditar. Foi aqui nesta ruela, numa casinha que já não é igual, que a minha vida civil começou. Há tantos anos que já nem parecem meus.
A minha avó Adelaide viveu aqui comigo, enquanto precisei dela, e o seu papel era apoiar-me em casa
Na cozinha ardia uma fogueira, com lenha que vinha da aldeia ao lombo da marquesa. Hoje adivinho que o meu anjo da guarda apenas acendia o lume quando eu chegava. Nessa altura nem pensava nisso, mas hoje comovo-me infinitamente.
É o que fazem os paraísos perdidos, quando acabam. E a vida acaba com eles,a bem dizer.
A minha avó Adelaide viveu aqui comigo, enquanto precisei dela, e o seu papel era apoiar-me em casa
Na cozinha ardia uma fogueira, com lenha que vinha da aldeia ao lombo da marquesa. Hoje adivinho que o meu anjo da guarda apenas acendia o lume quando eu chegava. Nessa altura nem pensava nisso, mas hoje comovo-me infinitamente.
É o que fazem os paraísos perdidos, quando acabam. E a vida acaba com eles,a bem dizer.
sábado, 19 de outubro de 2019
No Verão
O do rabo longo
O abelharuco, que tem o rabo longo, passa o tempo a estudar o relvado, saltitando entre a faia e a figueira. Não são, a bem dizer, os figos que o motivam, mas os grilos. Quando algum se arrisca no carreiro mergulha em cima dele. Crucifica-o no bico, vai sentar-se num galho e come-o. Passou a manhã nisto.Afora isso abriga-se na sombra e alarga as penas à brisa, a refrescar-se. Só volta ao chão se um grilo se aventura.
Mas mal a gralha, que tem a fala dura, espanejou as asas e desce do carvalho, logo o abelharuco desampara o relvado. Esquece grilo e tudo.
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
Abraços de urso
As eleições provocaram estrupido e rasgar de vestes, tristezas muitas, pois natural. E depois vêm as réplicas.
Já o Relvas, de memória má, tinha aproveitado para latir. Mas o que se não imaginava era que, lá dos fundos ensombrados da quinta da Coelha, viesse ainda uma voz cavernícola, de múmia manhosa, a chamar à peluda a cainçada.
Ainda por cima dando como exemplo o exemplo triste duma extinta ministra das finanças, esse espantalho que o vento já varreu.
Cães a ladrar, enfim...
https://www.youtube.com/watch?v=8rTq_AEdCo8
Já o Relvas, de memória má, tinha aproveitado para latir. Mas o que se não imaginava era que, lá dos fundos ensombrados da quinta da Coelha, viesse ainda uma voz cavernícola, de múmia manhosa, a chamar à peluda a cainçada.
Ainda por cima dando como exemplo o exemplo triste duma extinta ministra das finanças, esse espantalho que o vento já varreu.
Cães a ladrar, enfim...
https://www.youtube.com/watch?v=8rTq_AEdCo8
terça-feira, 8 de outubro de 2019
Menina e Rubinho
Esta menina, com doze anos e três irmãos mais novos, desce pela mão da mãe o portaló dum vapor colonial, na Rocha do Conde de Óbidos. Nasceu e fez-se o que é numa província ultramarina, onde o Verão e a liberdade eram eternos. Hoje acaba de chegar a um país vago e tristonho, num dia de inverno frio, e há-de apanhar um comboio ronceiro, com bancos de madeira, que vai partir para o Norte.
Quando ela chegar ao Porto, estão a dar-se em casa de Rubinho os últimos retoques na árvore de Natal, cuja montagem dura há uma semana.
Daqui a um tempo, quando Rubinho for a férias na Granja, esta menina vai chegar no comboio todas as manhãs, e venderá saquinhas de pipocas pela praia fora, para ajudar a mãe a manter a família. Anos mais tarde, quando Rubinho andar entretido a descobrir a vida no peito acolchoado duma senhora inglesa, há-de afagar a menina as frieiras dos dedos, por causa da água gelada do tanque onde lava a roupa das camas dos hóspedes, para ajudar a mãe a manter a família.
Quando Rubinho for para a universidade, onde estão à espera dele os mestres que lhe hão-de explicar o pensamento dos filósofos, irá esta menina à escola técnica nocturna, porque as horas do dia são para ajudar a mãe a manter a família.
Um dia havemos nós de ler as memórias de Rubinho, e adentrar-nos com ele nos meandros do surrealismo. O que nos valia a pena era aprender a sustentar uma família. Mas o mundo é o que é, se não for antes o que fazem dele.
Quando ela chegar ao Porto, estão a dar-se em casa de Rubinho os últimos retoques na árvore de Natal, cuja montagem dura há uma semana.
Daqui a um tempo, quando Rubinho for a férias na Granja, esta menina vai chegar no comboio todas as manhãs, e venderá saquinhas de pipocas pela praia fora, para ajudar a mãe a manter a família. Anos mais tarde, quando Rubinho andar entretido a descobrir a vida no peito acolchoado duma senhora inglesa, há-de afagar a menina as frieiras dos dedos, por causa da água gelada do tanque onde lava a roupa das camas dos hóspedes, para ajudar a mãe a manter a família.
Quando Rubinho for para a universidade, onde estão à espera dele os mestres que lhe hão-de explicar o pensamento dos filósofos, irá esta menina à escola técnica nocturna, porque as horas do dia são para ajudar a mãe a manter a família.
Um dia havemos nós de ler as memórias de Rubinho, e adentrar-nos com ele nos meandros do surrealismo. O que nos valia a pena era aprender a sustentar uma família. Mas o mundo é o que é, se não for antes o que fazem dele.
domingo, 29 de setembro de 2019
domingo, 22 de setembro de 2019
Ao sol
Nessa altura viviam em Berlim dez mil chilenos refugiados, mas só conheci dois deles. Eram irmãos, e estávamos os três ao sol dum jardim, muito perto do Berliner Ensemble e do Brecht. Um deles sugeriu ir nessa noite ao teatro, mas achei a proposta impertinente. Como é que se pode acompanhar a intriga, não sabendo da língua uma palavra?!
Eu não conhecia a língua, menos ainda o que um palco nos pode mostrar sem ela. E levaria muitos anos a aprendê-lo. Mais do que eles podiam gastar à minha espera. Dei ao mais novo umas botas que me ficavam escassas, e nunca mais nos tornámos a ver.
Eu não conhecia a língua, menos ainda o que um palco nos pode mostrar sem ela. E levaria muitos anos a aprendê-lo. Mais do que eles podiam gastar à minha espera. Dei ao mais novo umas botas que me ficavam escassas, e nunca mais nos tornámos a ver.
sábado, 21 de setembro de 2019
Até pr´ó ano!!!
Foi então que a comadrona, a mais sabida nestes calendários, decretou que era tempo de partir.
Lá vai ela!
As outras foram atrás.
Lá vai ela!
As outras foram atrás.
quarta-feira, 18 de setembro de 2019
Lembranças
Estavas tão tétrica
Tão meditabunda
Que eu medi-te a bunda
Com uma fita métrica.
(de autor não lembrado)
Tão meditabunda
Que eu medi-te a bunda
Com uma fita métrica.
(de autor não lembrado)
segunda-feira, 16 de setembro de 2019
Bilitrona
Na altura eu era novato mas lembro-me muito bem. Quando terminei o curso num novo avião, em Monte Real, o comandante informou-me: - Vais ser mobilizado para a Guiné!
Confesso que os joelhos me tremeram. Mas os outros companheiros eram mais novos que eu, que já tinha feito uma comissão. E era preciso render um capitão que já levava uns meses de mata-bicho.
O que por lá se passou é hoje história, salvo um pormenor que o tempo não levou. Em Lisboa não havia coca-cola, que o botas a proibia. Mas em Bissau, logo à saída da base, um cartaz descomunal anunciava: TUDO VAI MELHOR COM COCA-COLA GRANDE!
Que merda é esta?! - rosnaram os meus botões. Viu-se depois, mas era tarde demais.
Confesso que os joelhos me tremeram. Mas os outros companheiros eram mais novos que eu, que já tinha feito uma comissão. E era preciso render um capitão que já levava uns meses de mata-bicho.
O que por lá se passou é hoje história, salvo um pormenor que o tempo não levou. Em Lisboa não havia coca-cola, que o botas a proibia. Mas em Bissau, logo à saída da base, um cartaz descomunal anunciava: TUDO VAI MELHOR COM COCA-COLA GRANDE!
Que merda é esta?! - rosnaram os meus botões. Viu-se depois, mas era tarde demais.
quarta-feira, 11 de setembro de 2019
Andarilho
E o viajante já está de partida quando chega Felisberto, a cavalo numa espécie de lambreta, barulhenta e minúscula.
- Há-de-me ver isto, mestre Fernando! Vejo-me grego para a pôr a trabalhar, passa a vida a tossir!
O nome de Felisberto não lhe diz com a fachada. É um homem seco, nervoso, tem um ar atormentado, e a cortesia dos gestos não disfarça o sobressalto íntimo em que parece tropeçar. O mestre promete que ainda hoje tira as tosses à lambreta. E o viajante, é ao que anda, vai conversar com Felisberto para a sombra do castanheiro.
O homem não esconde a vontade de falar das suas vidas, pouco terá ocasião de o fazer. Ora o viajante, médico não sendo, sabe da própria experiência o poder milagroso das palavras, mormente se outro remédio não houver. Há anos está Felisberto reformado da polícia, e agora vive aqui na aldeia. Sempre é ambiente mais favorável ao seu génio sobressaltado.
- Tudo isto são nervos! - resume Felisberto, que pouco mais sabe explanar dos seus padecimentos. Embora saiba muito bem que tudo ficou assim desde as guerras de Angola. Um dia, em 70, acabado de chegar a Luanda, meteram-no com mais dois colegas num avião que os deixou em Serpa Pinto. De lá seguiu numa coluna militar para o Baixo Longa, e depois para o Cuíto. Atravessaram o Kuando-Kubango e ao cado de dois dias chegaram a Mavinga. Luanda ficara a dois mil quilómetros, e isso pouco era, compara do com a distância a que deixara a mulher e um filho, em Alcabideche, do outro lado do mar via-se a Trafaria.
Mas o guarda Felisberto não se quedou por aqui, o seu destino final era mais longe. E ainda faltava outro tanto de viagem até ao posto policial e fiscal do Rivungo, na fronteira da Zâmbia. Era lá que o império precisava dele, para enquadrar as milícias dos quimbos, e para controlar as populações de que o império era feito.
O viajante não entende muito bem o que isto quer dizer, não sabe como se enquadram milícias, nem imagina como é que estes três homens vão controlar as populações dum império. As palavras são de Felisberto, o viajante limita-se a ouvi-las eaguardá-las na memória.
Ali viviam os três guardas num barracão de adobe e telhado de zinco, perdidos num mar de capim, quando iam ao rio espreitar os jacarés levavam em bandoleira a Mauser de repetição, que era tudo o que tinham por companhia. De horas em quando vinha uma coluna e deixava latas de salsichas, uns fardos de arroz e sacos de farinha, de que eles faziam pão numa fornalha de barro.
Felisberto não era nada feliz naquele mar de areias verdes onde a vista se perdia, mas aguentou sete meses. Até que o apanhou um ataque fatal de paludismo, mesmo ruim, e uma paralisia facial que o deixou de cara à banda. O viajante não compreende como é que o paludismo e a paralisia se juntaram assim, mas Felisberto também não sabe explicar.
Lá foi um dia evacuado para Serpa Pinto, numa passarola de quatro asas que aterrou na picada. Dali apanhou uma camioneta para Nova Lisboa, e depois outra para Luanda, onde acabou por chegar ao fim duma eternidade e com menos de cinquenta quilos de peso. Ficou mais perto do filho e da mulher, mas ainda havia de tardar em vê-los, que lhe faltava um ano e tal de comissão na 7ª esquadra de Luanda. Gastou-o ele entre idas ao médico e transportes de presos para a Damba, um presídio de pretos lá nos confins do norte. E foi assim que Felisberto conheceu meio mundo, e viu coisas com que nunca sonhou, e se fartou de viajar à custa do império.
Quando voltou foi parar à Quinta do Pisão, a um centro de apoio social da Misericórdia de Cascais. Ficou por lá uns anos,em serviços de enfermaria, e só não aguentou mais porque já nada era igual. Nem a vida com a mulher e o filho voltaram a ser a mesma coisa.
Ao viajante,que se limita a observar enquanto vai ouvindo, Felisberto faz lembrar um barco que perdeu o lastro. Sendo dum país de marinheiros, cabia-lhe andar assim por mares e sertões, isso o viajante não discute. Mas a um marujo assim não convirá expôr-se a virações, nem aventurar-se em águas fundas. Bem a propósito, o viajante quer saber o que ele pensa da barragem que ali fizeram em frente.
- São uns ladrões que só pensam no dia de hoje! E o futuro ninguém o sabe! Se um dia o povo precisar de matar a fome outra vez, o melhor é afogar-se!
Nalgum lugar encontrou Felisberto esta sabedoria. O viajante não está seguro de que tenha sido nos caminhos do império, onde deixou ficar o lastro.
- Há-de-me ver isto, mestre Fernando! Vejo-me grego para a pôr a trabalhar, passa a vida a tossir!
O nome de Felisberto não lhe diz com a fachada. É um homem seco, nervoso, tem um ar atormentado, e a cortesia dos gestos não disfarça o sobressalto íntimo em que parece tropeçar. O mestre promete que ainda hoje tira as tosses à lambreta. E o viajante, é ao que anda, vai conversar com Felisberto para a sombra do castanheiro.
O homem não esconde a vontade de falar das suas vidas, pouco terá ocasião de o fazer. Ora o viajante, médico não sendo, sabe da própria experiência o poder milagroso das palavras, mormente se outro remédio não houver. Há anos está Felisberto reformado da polícia, e agora vive aqui na aldeia. Sempre é ambiente mais favorável ao seu génio sobressaltado.
- Tudo isto são nervos! - resume Felisberto, que pouco mais sabe explanar dos seus padecimentos. Embora saiba muito bem que tudo ficou assim desde as guerras de Angola. Um dia, em 70, acabado de chegar a Luanda, meteram-no com mais dois colegas num avião que os deixou em Serpa Pinto. De lá seguiu numa coluna militar para o Baixo Longa, e depois para o Cuíto. Atravessaram o Kuando-Kubango e ao cado de dois dias chegaram a Mavinga. Luanda ficara a dois mil quilómetros, e isso pouco era, compara do com a distância a que deixara a mulher e um filho, em Alcabideche, do outro lado do mar via-se a Trafaria.
Mas o guarda Felisberto não se quedou por aqui, o seu destino final era mais longe. E ainda faltava outro tanto de viagem até ao posto policial e fiscal do Rivungo, na fronteira da Zâmbia. Era lá que o império precisava dele, para enquadrar as milícias dos quimbos, e para controlar as populações de que o império era feito.
O viajante não entende muito bem o que isto quer dizer, não sabe como se enquadram milícias, nem imagina como é que estes três homens vão controlar as populações dum império. As palavras são de Felisberto, o viajante limita-se a ouvi-las eaguardá-las na memória.
Ali viviam os três guardas num barracão de adobe e telhado de zinco, perdidos num mar de capim, quando iam ao rio espreitar os jacarés levavam em bandoleira a Mauser de repetição, que era tudo o que tinham por companhia. De horas em quando vinha uma coluna e deixava latas de salsichas, uns fardos de arroz e sacos de farinha, de que eles faziam pão numa fornalha de barro.
Felisberto não era nada feliz naquele mar de areias verdes onde a vista se perdia, mas aguentou sete meses. Até que o apanhou um ataque fatal de paludismo, mesmo ruim, e uma paralisia facial que o deixou de cara à banda. O viajante não compreende como é que o paludismo e a paralisia se juntaram assim, mas Felisberto também não sabe explicar.
Lá foi um dia evacuado para Serpa Pinto, numa passarola de quatro asas que aterrou na picada. Dali apanhou uma camioneta para Nova Lisboa, e depois outra para Luanda, onde acabou por chegar ao fim duma eternidade e com menos de cinquenta quilos de peso. Ficou mais perto do filho e da mulher, mas ainda havia de tardar em vê-los, que lhe faltava um ano e tal de comissão na 7ª esquadra de Luanda. Gastou-o ele entre idas ao médico e transportes de presos para a Damba, um presídio de pretos lá nos confins do norte. E foi assim que Felisberto conheceu meio mundo, e viu coisas com que nunca sonhou, e se fartou de viajar à custa do império.
Quando voltou foi parar à Quinta do Pisão, a um centro de apoio social da Misericórdia de Cascais. Ficou por lá uns anos,em serviços de enfermaria, e só não aguentou mais porque já nada era igual. Nem a vida com a mulher e o filho voltaram a ser a mesma coisa.
Ao viajante,que se limita a observar enquanto vai ouvindo, Felisberto faz lembrar um barco que perdeu o lastro. Sendo dum país de marinheiros, cabia-lhe andar assim por mares e sertões, isso o viajante não discute. Mas a um marujo assim não convirá expôr-se a virações, nem aventurar-se em águas fundas. Bem a propósito, o viajante quer saber o que ele pensa da barragem que ali fizeram em frente.
- São uns ladrões que só pensam no dia de hoje! E o futuro ninguém o sabe! Se um dia o povo precisar de matar a fome outra vez, o melhor é afogar-se!
Nalgum lugar encontrou Felisberto esta sabedoria. O viajante não está seguro de que tenha sido nos caminhos do império, onde deixou ficar o lastro.
terça-feira, 10 de setembro de 2019
Cristo moleiro
Era uma vez uma velha moleira que tinha cinco filhos. E enquanto a ribeirinha corria, cantando a mó alveira, lá iam eles entregar aos fregueses as fanegas de farinha.
Uma tarde passou por lá um santeiro, um pobre homem que talhava santos em pau de amieiro. Era só esse o trabalho que fazia.
A moleira deu-lhe um caldo, e encomendou-lhe um cristo para cada filho. O santeiro esmerou-se nos trabalhos de formão. E dumas tábuas de caixas de sabão arquitectou as cruzes.
Rodaram tempos, a moleirinha morreu, e os filhos seguiram o seu caminho. Cada um com seu cristo na bagagem. E tudo estaria bem se não fosse o caruncho, porque todos acabaram carcomidos. Só um é que escapou em cima duma mesa, num quarto escuro dum moinho que ficara ao abandono.
Um dia passou por lá um cristão que o salvou e lhe deu nome. Vive agora ao calor da chaminé.
segunda-feira, 9 de setembro de 2019
Prestação de contas
De repente vêem-se quinar amigos, e os que ficam são tão longe que as distâncias se tornam intransponíveis. O mundo tornou-se grande, as imagens do passado baralham-se na tela, adiam-se tarefas, desmarcam-se obrigações. E o equilíbrio exige-nos o apoio dum bastão...
É altura de fazer as contas e pensar numa autobiografia!
É altura de fazer as contas e pensar numa autobiografia!
sábado, 7 de setembro de 2019
Ontem
Chegou a hora de o Ciro se ir embora. Era maiato e tinha uma alma grande. Um adeus comovido e até logo.
sexta-feira, 6 de setembro de 2019
quinta-feira, 5 de setembro de 2019
Cão que ladra
O rapaz trabalha ali na oficina dos pneus, e tem as mãos e os braços negros até aos cotovelos. É um trabalhador exemplar. Faz estalar a pistola do ar comprimido para sacar as porcas, e anda numa roda viva entre o desmonta-jantes e o calibrador. Volta a montar as rodas nas polies, calibra o aperto dos parafusos, e por fim baixa o elevador eléctrico. Leva o carro a alinhar a direcção e logo parte para outro que o espera na box ao lado. Passa nisto o dia todo.
De vez em quando saem-lhe da garganta uns latidos agudos que os clientes já conhecem, parecem dum cachorro aflito. Mas ninguém pergunta nada nem fica sobressaltado. É assim desde que começou a trabalhar, e já toda a gente sabe donde isto lhe vem.
Tem estas reacções desde criança. As desavenças em casa, a gritaria entre os pais, o que viu e o que terá ouvido, ninguém o sabe mas todos imaginam. A aflição insegura levou-o a agir assim, a soltar estes latidos de terror.
Ora toda a gente sabe que um cão que tanto ladra não vai agora morder.
De vez em quando saem-lhe da garganta uns latidos agudos que os clientes já conhecem, parecem dum cachorro aflito. Mas ninguém pergunta nada nem fica sobressaltado. É assim desde que começou a trabalhar, e já toda a gente sabe donde isto lhe vem.
Tem estas reacções desde criança. As desavenças em casa, a gritaria entre os pais, o que viu e o que terá ouvido, ninguém o sabe mas todos imaginam. A aflição insegura levou-o a agir assim, a soltar estes latidos de terror.
Ora toda a gente sabe que um cão que tanto ladra não vai agora morder.
Trovas antigas
Quatro castanhas assadas
Quatro pingos de aguardente
Quatro beijos duma moça
Fazem um homem contente!
Quatro pingos de aguardente
Quatro beijos duma moça
Fazem um homem contente!
quarta-feira, 4 de setembro de 2019
domingo, 1 de setembro de 2019
Ganhos e perdas
Há águas boas, todos o sabemos. O que se perde, e é mau, é quanto ficou nelas: vidas, canseiras, imagens, sonhos. Mundos perdidos definitivamente.
sábado, 31 de agosto de 2019
Que é que é?
No meio das fake news da comunicação, da obsolescência programada das máquinas, da ruideira da net, da barafunda das redes sociais, da ruína precoce das embraiagens mecânicas, dos Trumps e Bolsonaros da política, dos cursos de Medicina da Católica "chumbados" pela Ordem dos Médicos... já não sei bem o que é. Vai deitado e vem de pé?
sexta-feira, 30 de agosto de 2019
Vergonhas
Foi há muitos anos e acabei por me curar, mas vivi tempos com rosetas na cara. Afinal o meu país era de marinheiros, afinal tinha uma árvore genealógica feita de egrégios avós, não tinha jeito nenhum ter assim medo do mar.
Na altura era eu nosso cadete, seja lá isso o que for era o que me chamavam. Novato pois. E uma parte das férias do Verão era passada em Aveiro, a conhecer uma aeronave primitiva que os inventores já tinham esquecido. Num domingo, sem mais nada que fazer, fui até à praia.
Fiquei entusiasmado perante a rebentação. E em pelota aqui vou eu!
O mar agarrou em mim, deu-me sete voltas enroladas em areia, e, quando eu já não sabia de que terra era, vomitou-me cá para fora.
Olha se o magano decidia puxar-me lá para longe, onde não havia pé? A história trágico-marítima ganhava um novo capítulo!
Na altura era eu nosso cadete, seja lá isso o que for era o que me chamavam. Novato pois. E uma parte das férias do Verão era passada em Aveiro, a conhecer uma aeronave primitiva que os inventores já tinham esquecido. Num domingo, sem mais nada que fazer, fui até à praia.
Fiquei entusiasmado perante a rebentação. E em pelota aqui vou eu!
O mar agarrou em mim, deu-me sete voltas enroladas em areia, e, quando eu já não sabia de que terra era, vomitou-me cá para fora.
Olha se o magano decidia puxar-me lá para longe, onde não havia pé? A história trágico-marítima ganhava um novo capítulo!
domingo, 25 de agosto de 2019
Gato por lebre
Há muitos anos, no fim da guerra de Espanha, não restava em Castela uma galinha. Anarquistas, comunistas e franquistas tinham-nas passado ao estreito, que todos tinham para isso um bom motivo.
De forma que os castelhanos, montados em jericos, vinham pelas aldeias da raia a comprar ovos. Só regressavam com a carga já composta.
Havia ali no meio do povo uma taberna onde a estalajadeira lhes servia comida. E um dia fez um guisado de coelho.
Os comensais puseram-se a dizer que era romízio, a rir. E bem podia ser. Mas afinal, muito embora a patroa jurasse a pés juntos que era lebre, os castelhanos lá despacharam o gato. O pobre bicho assim mudou de nome, e soube-lhes que nem ginjas.
De forma que os castelhanos, montados em jericos, vinham pelas aldeias da raia a comprar ovos. Só regressavam com a carga já composta.
Havia ali no meio do povo uma taberna onde a estalajadeira lhes servia comida. E um dia fez um guisado de coelho.
Os comensais puseram-se a dizer que era romízio, a rir. E bem podia ser. Mas afinal, muito embora a patroa jurasse a pés juntos que era lebre, os castelhanos lá despacharam o gato. O pobre bicho assim mudou de nome, e soube-lhes que nem ginjas.
sábado, 24 de agosto de 2019
Partir as trombas
A malta do Bloco é uma tropa simpática, bem falante, cheia de intenções de que se não duvida. Mas falta-lhe tarimba de poder.
Não tem medalhas autárquicas nem sindicais, e outros aconchegos que dão jeito. E os seus antepassados são o que se pode chamar uma tropa fandanga.
Ora se é verdade que de ruim ninho sai o bom passarinho, também o é que se deve ajustar a passada à dimensão do pé.
Só para evitar partir as trombas.
Não tem medalhas autárquicas nem sindicais, e outros aconchegos que dão jeito. E os seus antepassados são o que se pode chamar uma tropa fandanga.
Ora se é verdade que de ruim ninho sai o bom passarinho, também o é que se deve ajustar a passada à dimensão do pé.
Só para evitar partir as trombas.
sexta-feira, 23 de agosto de 2019
Nome de cão
A senhora é poetisa e professora, poetas americanos são com ela. De horas em quando escreve o seu poema, depois começa a cortar nele até chegar ao osso. É então que o dá por pronto.
A voz dela é suave e é humilde e temerosa. Responde ao jornalista que a entrevista no rádio, sobre uma americana.
- Poeta ou poetisa?
- Digo poeta mas não sei ao certo!
Eu acho que poeta é o nome certo da minha cadela. Não faz versos, dá ao rabo, e passa a hora do calor de olhos fechados e focinho estendido sobre as patas.
A voz dela é suave e é humilde e temerosa. Responde ao jornalista que a entrevista no rádio, sobre uma americana.
- Poeta ou poetisa?
- Digo poeta mas não sei ao certo!
Eu acho que poeta é o nome certo da minha cadela. Não faz versos, dá ao rabo, e passa a hora do calor de olhos fechados e focinho estendido sobre as patas.
quinta-feira, 22 de agosto de 2019
Feira finda
Há um sobressalto na paisagem. Do céu fugiu a cor. A brisa bate à porta. Vem entrando Saturno, o melancólico.
sábado, 17 de agosto de 2019
Gateira
A primeira coisa que os gatos me fazem, sempre que apanham na horta uma lagartixa, é cortar-lhe o rabo. Depois trazem a bicha para o alpendre, como se fosse uma prenda, e divertem-se com ela enquanto lhes agrada.
A porta não tem gateira, coisa antiga. E ele há noites, quando eles andam à sirga e tardam, em que eu me deito com a porta aberta.
Hoje encontrei no quarto um par de lagartixas. Sem rabo, paradiças, meias tontas.
Pu-las na rua e dei-me por contente. O que é que eu vou fazer se um dia me trazem pr´aqui um jacaré, digamos um hipopótamo, daqueles que deve haver lá em baixo na represa. O melhor será fechar a porta!
A porta não tem gateira, coisa antiga. E ele há noites, quando eles andam à sirga e tardam, em que eu me deito com a porta aberta.
Hoje encontrei no quarto um par de lagartixas. Sem rabo, paradiças, meias tontas.
Pu-las na rua e dei-me por contente. O que é que eu vou fazer se um dia me trazem pr´aqui um jacaré, digamos um hipopótamo, daqueles que deve haver lá em baixo na represa. O melhor será fechar a porta!
terça-feira, 13 de agosto de 2019
Patuscos suicidas
O raposito era novo, fazia pouco vulto ali passado a ferro no meio da estrada. Não teve sorte, o coitado, um patusco qualquer vinha com pressa e deixou-o a sangrar ali na curva.
As estradas andam cheias destes patuscos suicidas. Pelam-se por bombas alemãs, de que fazem armas de arremesso, mas qualquer lata lhes serve. Sejam ligeiras, médias ou pesadas, lá vão eles prego à tábua como se não houvesse amanhã, sempre colados ao rabo do patusco da frente, seja verão ou inverno, dia ou noite, de farolada acesa.
Só param quando fazem carambolas, de três, de cinco, de mais, o recorde recente é de cinco camiões dos que mal cabem na via. Às vezes, pobres patuscos, por falta de óleo as latas pegam fogo, no tabuleiro da ponte, no túnel do grilo, no do marão.
Muitas vezes encontram-se na morgue, e todos juntos festejam.
As estradas andam cheias destes patuscos suicidas. Pelam-se por bombas alemãs, de que fazem armas de arremesso, mas qualquer lata lhes serve. Sejam ligeiras, médias ou pesadas, lá vão eles prego à tábua como se não houvesse amanhã, sempre colados ao rabo do patusco da frente, seja verão ou inverno, dia ou noite, de farolada acesa.
Só param quando fazem carambolas, de três, de cinco, de mais, o recorde recente é de cinco camiões dos que mal cabem na via. Às vezes, pobres patuscos, por falta de óleo as latas pegam fogo, no tabuleiro da ponte, no túnel do grilo, no do marão.
Muitas vezes encontram-se na morgue, e todos juntos festejam.
segunda-feira, 5 de agosto de 2019
Posfácio
No longínquo Natal de 1977 foi-me oferecida em Berlim esta novela do biólogo canadiano Fred Bodsworth. Num país que já não existe, de uma editora que há muito deixou de haver. Ora não havendo entre nós nenhuma tradução, nada como fazer uma pirata.
É a narrativa romanceada da migração do último maçarico-esquimó, que acabou dizimado a tiro nas planícies do midwest americano.
Sendo um voador poderosíssimo, nunca criou medo dos homens nem se defendia deles. A sua velocidade de partida permitia-lhe escapar em segurança. E por isso acabou dizimado, provavelmente extinto,nos finais do séc. XIX. Se algum exemplar sobreviveu, foi em tão pequeno número que não garante a reprodução.
Migrante de Ártico a Antártico, era fidelíssimo à fêmea. Nidificava a norte do Ártico, descia para sul ao longo da costa leste da América, em voos ininterruptos de sessenta horas sobre o mar, até ao vale do Orinoco. Dali descia ao sul da Patagónia. E iniciava o regresso pelo interior das Pampas, cruzava os Andes até ao Pacífico e subia o midwest americano à medida que a Primavera o chamava. O seu objectivo era chegar à reserva, onde construía o ninho sempre no mesmo lugar. Os filhos adultos seguiam o mesmo destino, de acordo com as leis da Natureza.
É a narrativa romanceada da migração do último maçarico-esquimó, que acabou dizimado a tiro nas planícies do midwest americano.
Sendo um voador poderosíssimo, nunca criou medo dos homens nem se defendia deles. A sua velocidade de partida permitia-lhe escapar em segurança. E por isso acabou dizimado, provavelmente extinto,nos finais do séc. XIX. Se algum exemplar sobreviveu, foi em tão pequeno número que não garante a reprodução.
Migrante de Ártico a Antártico, era fidelíssimo à fêmea. Nidificava a norte do Ártico, descia para sul ao longo da costa leste da América, em voos ininterruptos de sessenta horas sobre o mar, até ao vale do Orinoco. Dali descia ao sul da Patagónia. E iniciava o regresso pelo interior das Pampas, cruzava os Andes até ao Pacífico e subia o midwest americano à medida que a Primavera o chamava. O seu objectivo era chegar à reserva, onde construía o ninho sempre no mesmo lugar. Os filhos adultos seguiam o mesmo destino, de acordo com as leis da Natureza.
domingo, 4 de agosto de 2019
O último maçarico-esquimó 28
Maio ia a meio. A ondulante planície canadiana, lavrada
de fresco, fumegava ao sol. Os maçaricos seguiam de perto a máquina enorme, que
ribombava como a rebentação do mar. As minhocas eram gordas, e, antes de eles
as engolirem, ficavam alguns segundos ao sol, revolvendo-se em contracções
convulsas. Na tundra começava a derreter a neve. Nos ovários da fêmea, o
primeiro de quatro ovos estava pronto a ser fecundado.
O macho
elevou-se no ar, o seu canto forte soou impetuoso. Pairava lá no alto, sobre o
terreno escuro da planície, onde uma faixa acabava de ser lavrada. O bramido da
máquina parou de súbito, e o maçarico mal se deu conta disso. Tinha todos os
sentidos concentrados na fêmea, que lá em baixo tremia de excitação, acocorada
no solo escuro. O homem estava imóvel em cima do tractor, a cabeça deitada para
trás. Olhava para cima, e com a mão protegia os olhos do intenso brilho do sol.
O maçarico deixou-se cair, a fêmea soltou um grito estridente. Ele apanhou do
chão uma minhoca e avançou para ela. De pescoço estendido, batia fortemente as
asas, ao mesmo tempo que viu o homem saltar do tractor e correr para a estaca
duma sebe, onde tinha pendurado o casaco. Em circunstâncias normais, mesmo os
próprios maçaricos teriam então fugido assustados. Porém, tendo-se deixado
alimentar, a fêmea continuava ainda a bater as asas, numa agitação apaixonada.
Ela rendia-se à cópula, e, no êxtase do acasalamento, ambos ficaram cegos perante
o que se passava em redor.
Um
estampido ecoou no céu claro, e o seu trovejar parecia vir de todos os lados. A
terra espirrou em volta das aves, crepitante como pedras de granizo.
O macho
fugiu, mantendo-se rente ao solo. Assim podia fugir mais depressa, pois em
subida seria menor a velocidade. Até que se deu conta de que a fêmea não estava
junto dele. Voltou atrás, com gritos roucos e penetrantes de aflição. O corpo
castanho dela estava ainda inclinado no solo. O macho pairava sobre ela e
gritava como louco.
Então um
segundo trovão ribombou sobre eles. Uma pancada violenta e invisível atingiu-o
e arrancou-lhe duas rémiges de uma das asas. Rodopiou no ar e abateu-se ao lado
da fêmea, completamente surdo. Estava espantado, confuso, perante um inimigo
que atacava sem que ele pudesse vê-lo. Novamente levantou voo. Depois venceu o
medo e voltou para junto da fêmea. Ela estava de pé e gritava, rouca de medo.
Batia as asas em vão, até que, lentamente, conseguiu levantar voo. Penosamente
ganhou velocidade e altitude. O macho aproximou-se, voando rente a ela.
Ele
gritava alto, mas ela emudecera. Voaram durante alguns minutos, até deixarem
para trás o campo com o terrível trovão no céu quente. Mas a fêmea era lenta,
cada vez se atrasava mais. O macho veio até ela, incitou-a a voar, e colocou-se
de novo à frente.
O voo
dela era cada vez mais lento e desajeitado. Deixou de controlar uma asa e isso
desequilibrou-a. A plumagem macia do peito tornou-se-lhe escura e húmida. Ela
chamou de novo por ele, e não eram gritos de medo, mas gorjeios doces de
ternura.
De
súbito despenhou-se no solo. As asas batiam ainda, parecia o vibrar excitado do
acasalamento, e o seu corpo rodopiou, até se imobilizar no chão húmido.
O macho
gritou, ela devia segui-lo. Ele ainda tinha medo do chão firme. Mas a fêmea não
se mexia e ele manteve-se a circular. Ela devia ter ouvido a sua censura, porém
não respondeu.
Longo
tempo depois venceu o medo e poisou a seu lado. Protector, limpou-lhe as penas
com o bico. A noite chegou e a tundra atraía-o, chamava-o, pois era tempo de
fazer o ninho. Levantou voo várias vezes, chamou-a, voltou atrás, e ela não o
seguiu. Finalmente adormeceu encostado a ela.
De manhã
elevou-se no céu acinzentado. Dilatou os pulmões e fez ecoar o seu canto
nupcial. Cortejou-a. Quis dar-lhe comida, ela não a aceitou. E a tundra chamava
imperiosamente. Ele levantou de novo, chamou-a mais uma vez. Depois ganhou
altitude e afastou-se. O sol nascente brilhava rosado na sua plumagem e ele
dirigiu-se para o Norte. Silencioso e sozinho.
Na
tundra, os charcos de água derretida, os montes de cascalho e os pequenos
prados na curva do rio não tinham mudado. O longo voo tinha esgotado o
maçarico. Mas, quando uma tarambola-dourada se aproximou demasiado da sua
reserva, avançou para ela e atacou. O verão polar era curto. Ele tinha que
manter a reserva pronta para a fêmea. O instinto dizia-lhe que ela em breve
iria chegar.
O CORREDOR DA MORTE
L.
L. Snyder
As aves
do Árctico Canadiano
Imprensa
da Universidade de Toronto
em
colaboração com o Museu Real
de
Zoologia e Paleontologia do Ontário
1955
Maçarico-esquimó,
Numenius borealis.
Presumivelmente
extinto... Visto pela última vez perto de Galveston (Texas), a 29 de Abril de 1945. Antigamente muito
disseminado...
sexta-feira, 2 de agosto de 2019
O último maçarico-esquimó 27
11
Nas
pradarias do Nebraska e do Dakota chegara o tempo das sementeiras. Monstros de
aço, barulhentos como a rebentação do mar, andavam por aqui e por ali, sobre a
lavrada, e faziam longos sulcos regulares. A maior parte das narcejas evitava
as ruidosas máquinas e os homens que as conduziam. Pilritos-das-praias e
pernas-amarelas interrompiam a busca de alimento e ficavam alerta, quando o
lavrador estava ainda a cem metros de distância. À aproximação da máquina
levantavam voo, gritavam estridentemente e fugiam. E só voltavam a poisar
quando ela estivesse lá longe, a quilómetro e meio de distância. Mas os
maçaricos-esquimós não manifestavam qualquer receio. Ao longo da história do
seu desenvolvimento, a espécie aprendera que não tinha necessidade de reacções
complexas de medo. Possuía asas fortes e voo rápido. Os maçaricos podiam
simplesmente ignorar um perigo ameaçador, pois escapavam com facilidade a uma
raposa ou a uma ave de rapina, no último momento. Por esse motivo desaparecera
a reacção de medo, como acontece a cada capacidade e a cada instinto que ficam
sem utilização. Os pilritos confiavam numa apertada vigilância, e os maçaricos
na força das suas asas.
Por isso
seguiam de perto as ribombantes máquinas. Ao lavrar, elas punham a descoberto o
rico alimento que constituíam as minhocas brancas e as lagartas.
Ao longo
deste tempo, as gónadas tinham aumentado a secreção, de acordo com o ritmo
fisiológico anual. O seu desenvolvimento estava exactamente adaptado à
velocidade de deslocamento da Primavera para Norte. Tanto os seus corpos como a
tundra deviam estar simultaneamente preparados para a construção do ninho e a
postura dos ovos. A Primavera era cada vez mais perceptível, aproximava-se do
seu ponto alto, e com isso também as emoções das aves eram cada vez mais
impetuosas. Com as altas temperaturas do corpo e os rápidos processos
metabólicos, elas vivem, aliás, mais depressa e mais intensamente do que todas
as outras criaturas. E, do mesmo modo, quando a época de acasalamento se aproxima,
fazem a corte e amam com ardor e paixão mais agitados.
Agora o
macho extravasava muitas vezes por dia os seus sentimentos, mostrava o seu amor
à fêmea. A sua corte era agora muito mais impetuosa do que antes. Atirava-se de
súbito para o ar, agitava as asas e cantava a sua clara e vibrante canção
nupcial. Esta era mais melodiosa e doce do que em qualquer outra época do ano.
Alguns segundos após, batia violentamente as asas e subia quase na vertical,
arrastando as longas pernas, até atingir umas centenas de metros sobre a
pradaria. Aí batia as asas e cantava de novo, para que a fêmea ouvisse,
enquanto ela gorjeava e saltitava, excitada. Depois deixava-se cair de encontro
a ela, recuperava baixo, subia de novo, e poisava finalmente a alguns metros de
distância.
Ele
arfava de excitação, cantava alto, respirava profundamente fazendo inchar o
pescoço e o peito, tufava a plumagem e estendia as asas, gracioso, sobre o
dorso, até a fêmea o convidar a aproximar-se. Ela saltitava, de asas frementes,
e fazia ecoar o penetrante apelo com que pedem alimento as crias que mal
começam a voar. Ele avançava para ela, cerimonioso, de novo batendo fortemente
as asas, quase parecia que andava pelo ar. Peito inchado contra peito inchado,
o macho estendia o pescoço e alisava-lhe ternamente as penas castanhas, com o
longo bico.
Isso
durava alguns segundos, depois o macho afastava-se. Procurava uma minhoca,
regressava junto da fêmea e colocava-lha suavemente no bico. Ela engolia-a. E
as penas do pescoço ficavam de novo lisas, as asas paravam de tremer, tudo
tinha passado. Até agora, este gesto de ser alimentado constituía o ponto alto
do seu amor. Os corpos não estavam ainda prontos para o acasalamento.
Depois
de cada uma destas manifestações amorosas, a tensão diminuía por algumas horas.
Tratava-se de um expediente, mas eles ficavam satisfeitos. A união dos corpos
só viria depois.
E
avançavam continuamente para Norte, vencendo umas centenas de quilómetros por
noite. O desenvolvimento sexual do macho decorria mais acelerado, ele estava já
pronto para o acasalamento. O seu desejo tornara-se indomável, e passava quase
todo o dia cortejando ardentemente a fêmea. Porém, de cada vez que lhe trazia
alimento, a excitação dela diminuía, e tudo ficava por ali.
(Cont.)
quinta-feira, 1 de agosto de 2019
O último maçarico-esquimó 26
No princípio de Abril de novo se apoderou deles a velha
inquietação. Faziam breves deslocações nocturnas, e lentamente iam acompanhando
a Primavera. Voavam de vez em quando várias horas, antes da pausa da alvorada,
por vezes ficavam vários dias no mesmo local. Esperavam até que a Primavera
avançasse, voavam depois um par de noites até a alcançarem, ultrapassavam-na e
esperavam outra vez por ela. O sinal de partida era-lhes dado pelas flores dos
salgueiros, nas margens dos riachos. Quando estas abriam e inundavam de pólen
as suaves brisas da noite, os maçaricos lançavam-se para o ar. Voavam até
chegarem a um local onde os rebentos dos salgueiros ainda estivessem fechados,
e onde a ervagem da pradaria tivesse ainda a cor castanha. Enquanto esperavam,
comiam com abundância, ovos de gafanhotos que os seus bicos sensíveis
detectavam no solo húmido. E, quando os rebentos dos salgueiros brotavam em
flor, continuavam a avançar para Norte.
A cada
semana a urgência era maior, pois a Primavera alastrava cada vez mais depressa,
pelas vastidões do Norte.
O CORREDOR DA MORTE
A torda-mergulheira
Publicação quadrienal sobre Ornitologia
Editada pela
Liga de Ornitólogos Americanos
Lancaster (Pensilvânia)
Comunicações
gerais. Híbridos naturais entre Dendroica coronata e D. Auduboni...
Colibri-de-bico-grosso (Eugenes fulgens) no Colorado... Maçarico-esquimó no
Texas. Em Março, perto de Galveston (Texas), foram avistados pelo autor e por
vários outros observadores dois maçaricos-esquimós, os quais, segundo todos os
indícios, estavam acasalados. Encontravam-se no meio de um grande bando de
várias espécies de narcejas, entre pilritos-dos-prados e das-praias, abibes,
galinholas, bem como garças e centenas de maçaricos-norte-americanos. Todas as
aves procuravam alimento num terreno paralelo à costa, composto de zonas
arenosas, charcos e pedaços de relva. A proximidade directa entre maçaricos-esquimós
e norte-americanos ofereceu uma bela oportunidade para comparações.
Eram
evidentes o menor tamanho do corpo e o bico mais curto dos maçaricos-esquimós.
À luz clara do sol da tarde, quando as aves se moviam, podiam reconhecer-se
claramente o grande recorte escuro das asas e a falta da risca ao meio da
cabeça. Durante uma hora revimos todos os sinais ornitológicos. Isso aconteceu
com ajuda de binóculos, a partir duma viatura estacionada a menos de cem metros
de distância... Como acontece muitas vezes junto da costa texana do golfo,
durante a época de migração da Primavera, uma trovoada na noite anterior, com
forte precipitação e ventanias de Sul, obrigou as aves a poisar aqui
temporariamente. - Sargento Joseph M. Heiser Junior...
A
MIGRAÇÃO DA PRIMAVERA (RESUMO)
A
observação de um casal de maçaricos-esquimós na ilha de Galveston (Texas) foi
sem dúvida o resultado mais notável. Este é o primeiro registo aceitável desta
espécie, desde há vários anos. Ao longo dos últimos vinte anos, apenas aves
isoladas foram ocasionalmente avistadas. Tem grande significado o facto de se
tratar aqui, provavelmente, de aves acasaladas. Enquanto existir um casal,
mantém-se a esperança de que talvez a espécie se não extinga...
(Cont.)
quarta-feira, 31 de julho de 2019
O último maçarico-esquimó 25
10
Março
chegara. No Canadá, os piscos-de-peito-ruivo, as felosas-assobiadeiras e os
borrelhos-de-duas-coleiras faziam já os ninhos. E na costa do Yucatán reinava a
impaciência e a excitação migratória. Quando no Inverno acontecia o mesmo, isso
não perturbava as aves de arribação. Porém, mal se anunciava fisiologicamente,
o novo ciclo de reprodução apressava-as. Procuravam espaço, pois cada casal
queria preservar-se. As andorinhas e os andorinhões-das-chaminés, que se
alimentam em voo, viajavam de dia e seguiam calmamente a costa mexicana para Norte.
Mas a maior parte das aves juntava-se na península do Yucatán, e ali se
acumulavam, como um rio que tropeça num obstáculo. Esperavam e juntavam forças,
até que, numa noite de vento favorável, levantavam na escuridão do crepúsculo e
avançavam para o vasto golfo do México.
Após
dois ou três dias de calmaria, uma tarde o vento levantou-se e a impaciência
apoderou-se das aves. Os tordos e os estorninhos iniciavam pequenos voos ao rés
da água, experimentavam o vento e as asas e voltavam para trás. Para os maçaricos,
a etapa de oitocentos quilómetros sobre o golfo era para fazer numa noite. Mas
para as pequenas aves canoras, que voavam duas vezes mais devagar, esta era a
etapa mais difícil de toda a viagem. Por isso tinham que escolher o momento da
partida com especial cuidado. Durante a tarde, muitas já não regressavam dos
seus voos de ensaio. Elevavam-se no ar, pairavam sobre a rebentação e avançavam
para o mar alto, até serem apenas pequenos pontos negros, que desapareciam
finalmente no azul do céu. Ao pôr-do-sol reinava um estranho sossego na praia.
Só os maçaricos e um par de narcejas tinham ficado para trás.
Quando
por fim partiram estava escuro e nascia a lua nova. Nas outras travessias do
oceano, os maçaricos e as tarambolas-douradas tinham voado sozinhos. Mas agora
tinham companhia, uma vez que outras aves percorriam o mesmo caminho. Duas
horas depois, os maçaricos começaram a ultrapassar as aves mais pequenas, que
partiram mais cedo. A atmosfera vibrava com chamamentos e gorjeios, por todo o
lado faiscavam asas prateadas ao luar. Havia rotas mais fáceis, sobre o mar das
Caraíbas e o golfo do México. As aves podiam saltar de ilha em ilha, e ter
quase sempre terra firme à vista. Mas as ilhas eram minúsculas e ofereciam
pouco alimento. Por essa razão, a maior parte delas voava sobre a terra firme
centro-americana até ao Yucatán, e dali directamente sobre o golfo, sem
qualquer escala. Os maçaricos ultrapassaram os cucos, que nidificam na Nova
Inglaterra, depois os chascos e as pequenas felosas cujas reservas se encontram
nos escuros bosques de abetos do Norte, em seguida os tordos-americanos que se
dirigem ao Alaska, os estorninhos e as escrevedeiras que se espalham pelas
pradarias do centro do continente, e finalmente os tangarás-d’asa-negra, para
quem a viagem termina já nas costas da Louisiana. De entre as aves que naquela
tarde tinham deixado as praias do Yucatán, só havia uma espécie que os maçaricos
não ultrapassavam. Muitos colibris tinham partido também, esses pequenos anões tenazes
que não pesam mais que alguns gramas. Iam muito à frente, deixando todos os
outros atrás de si. As suas asas minúsculas faziam setenta batidas por segundo.
A maior parte das aves precisavam de vinte horas para chegar a terra firme
norte-americana. Os maçaricos precisavam de dez, e os colibris apenas de oito.
Quatro
ou cinco horas depois, os maçaricos tinham ultrapassado as aves mais pequenas e
voavam sozinhos. De repente o ar tornou-se mais frio e pesado. As asas obtinham
mais impulso, e o alísio de Leste rodou para Sul. Pequenos farrapos baixos
escureceram a lua, nuvens pesadas e negras começaram a acastelar-se, a noite
ficou escura e as águas do golfo despareceram na treva. O vento rodou para Leste,
mas logo virou de novo, soprando agora de Norte com fortes rajadas. Os maçaricos
rumaram para Oeste, para o manterem de lado. Então começou a chover
copiosamente, como uma parede de água erguida diante deles.
Passada a
primeira bátega, o vento e a chuva amainaram um pouco, mas o mau tempo
manteve-se durante cinco horas. Só ao nascer do sol é que atingiram céu calmo e
transparente. Normalmente continuariam a voar em frente, sobre os charcos e os
pântanos salgados da costa do Texas, para depois poisarem, um pouco mais além,
nas aluviões das pradarias. Mas o temporal tinha-os esgotado. As rémiges
encharcadas colavam-se umas às outras, e já não reagiam adequadamente aos
movimentos dos músculos. Mal alcançaram a costa, desceram em voo planado sobre
a praia.
Paralela
à costa, corria por baixo deles uma estreita ilha, com dunas de areia e manchas
de capim, ao longo de quilómetros. Durante um ou dois minutos os seus olhos
procuraram um lugar onde houvesse alimento. Na areia havia numerosos charcos de
água, provocados pela chuva da noite. Bandos de narcejas, obrigadas a poisar
pelo temporal, rodeavam estas poças, procurando comida ou alisando a plumagem.
Os maçaricos sobrevoaram vários bandos de tarambolas e galinholas sobre a duna.
Na sua frente havia charcos lamacentos, onde já se encontravam centenas de
maçaricos-norte-americanos, que gritaram na sua direcção. Os dois maçaricos
abriram as asas e poisaram no meio deles.
Mas só
ali ficaram durante o dia. Ao cair da noite partiram sozinhos, e duas horas
depois poisaram na pradaria enluarada, cento e cinquenta quilómetros para o
interior.
A sua
intranquilidade diminuiu, agora contentavam-se com a espera. O instinto
dizia-lhes que tinham ultrapassado todos os obstáculos. Os últimos cinco mil quilómetros
até ao Árctico passavam pelas grandes planícies dos Estados Unidos e do Canadá,
onde nem montes nem cordilheiras lhes dificultavam a rota, e onde havia
alimento até ao exagero. Em caso de necessidade, poderiam fazer esse trajecto
numa só semana, e por algum tempo sossegou-lhes o impulso migratório. Na melhor
das hipóteses, a tundra só estaria pronta para a nidificação dentro de dois
meses. Mas isso não o sabiam os maçaricos. Sabiam apenas que, neste começo da Primavera,
havia muitos insectos nas pradarias do Texas. E sentiam o desejo de ficar.
Esperaram
três semanas, durante as quais não avançaram mais de cento e cinquenta
quilómetros para o interior. Quase todas as noites ouviam passar lá por cima os
bandos das aves mais pequenas. Estas não nidificam no Árctico, mas em reservas
muito mais a Sul, onde era já Primavera. Quando chegasse o momento, os maçaricos
fariam numa noite o que a estas aves demorava três.
(Cont.)
terça-feira, 30 de julho de 2019
O último maçarico-esquimó 24
O sol caiu para Oeste. E ele estava de tal modo
enfraquecido que nem a mais tenaz força de vontade lhe permitia já bater as
asas, tão depressa como até aqui. Mas manteve-se à frente. As batidas
abrandaram, a velocidade diminuiu, e a fêmea notou-o. E foi então, depois de
vinte e quatro horas de silêncio, que ela começou a enviar-lhe suaves gorjeios
de ternura. Isso deu-lhe mais força do que o alimento ou o descanso. E ela
repetiu o gesto muitas vezes. O sol estava ainda acima do horizonte, o mar doirado
resplandecia como pedra preciosa, e as asas dele transportavam-nos,
incansáveis.
Estava o
sol a pôr-se quando algo azul-escuro, fino e vaporoso, apareceu no horizonte.
Durante alguns minutos pareceu-lhes uma nuvem. Depois ganhou consistência,
tornou-se uma faixa de costa, e finalmente surgiram lá atrás os contornos serreados
das montanhas da Guatemala e das Honduras. Os cumes vulcânicos longínquos
sobressaíam claramente. A mancha azul, junto ao mar, tornou-se verde, e onde
ela terminava apareceu a faixa branca da rebentação. Quando os maçaricos
atingiram a praia orlada de palmeiras, dispunham ainda de meia hora de
claridade e começaram logo a comer. Ao chegar a escuridão, já a tortura da fome
e do esgotamento diminuía.
Toda a
manhã seguinte trataram de se alimentar. Mas não havia muita comida, pois a
praia era estreita e fora varrida pela rebentação. Ao meio dia prosseguiram o
voo, apesar do enorme calor. Agora dirigiam-se terra adentro, pois era Verão na
América Central, e as altas pradarias fervilhavam de gafanhotos. Voavam sobre a
zona costeira, que subia lentamente até às montanhas. O solo vulcânico, escuro
e fértil, produzia frutos exuberantes, como cocos, bananas e cana sacarina. Uma
hora depois estavam a 1500 metros acima do nível do mar, e chegaram a uma zona
mais temperada, com ar frio e seco. Continuaram a subir, avançaram para as
montanhas e alcançaram um estreito vale que conduzia a um planalto elevado.
Voaram
durante quatro horas. Finalmente poisaram trezentos quilómetros terra adentro,
num planalto acidentado. Aqui juntaram-se pela primeira vez a outras aves de
arribação, que iam ao encontro da Primavera na América do Norte. Bandos
inteiros de tangarás, tordos e piscos procuravam alimento afanosamente, nos
vales arborizados. Tinham que armazenar energias para os longos voos nocturnos.
Nas altas pradarias, os maçaricos encontraram bandos de narcejas e de
estorninhos. Mas não se ouvia qualquer canto. Isso só aconteceria na reserva de
criação, e, para a maior parte deles, ela distava ainda mais de três mil
quilómetros.
Nas
encostas em declive havia gafanhotos por todo o lado, nelas pastavam grandes
rebanhos de carneiros. O capim estava tosado e rente, por isso era fácil
encontrar os insectos. Os maçaricos comeram até terem os papos e os estômagos
cheios. E ao escurecer milhares de aves partiam. Não podiam ver-se na
escuridão, salvo quando uma delas riscava o disco da lua, como um traço de
sombra. Mas ouviam-se constantemente os seus gritos ligeiros. Porém os maçaricos
não tinham pressa, pois no Árctico era ainda inverno, e aqui podiam acumular
gordura para o caminho até à reserva.
Esperaram
uma semana, comeram muito e voavam cada dia um pouco mais para Norte. Os seus
corpos ficaram outra vez nédios e redondos, e agora, de novo com forças, ardia
neles a febre do acasalamento. No princípio da semana atingiram a ponta da
península de Yucatán. Oitocentos quilómetros a Norte, do outro lado do golfo do
México, ficavam os pântanos da costa da Louisiana e do Texas, atrás dos quais
se estendiam, quase até ao Árctico, as pradarias sem fim
O CORREDOR DA MORTE
...
Mas pior que tudo era a carnificina, quando as aves, na Primavera, atravessavam
o golfo do México, e se deslocavam em bandos pelas planícies norte-americanas.
Estes
bandos enormes recordavam aos habitantes das pradarias os pombos-torcazes, e
por isso os maçaricos foram chamados “pombos da pradaria”. Voavam aos milhares,
em quantidades tais que os bandos mediam às vezes mil metros de comprimento por
cem de largura. Quando poisavam, cobriam quarenta a cinquenta acres de solo. A
matança era nesse tempo uma coisa inimaginável. Vinham caçadores de Omaha, no
Nebraska, e abatiam as aves sem piedade. Abatiam-nas literalmente às carradas.
As aves mortas eram mesmo empilhadas em carros abertos, que chegavam a precisar
de taipais laterais. Quando os bandos eram particularmente numerosos, e os
caçadores dispunham de munições em abundância, os carros enchiam-se depressa.
Despejavam-se então carregamentos inteiros na pradaria. As aves ficavam ali em
pilhas enormes, como se de um monte de carvão se tratasse. Deixavam-nos a
apodrecer, e os caçadores enchiam os seus carros com novas vítimas.
Tal
carnificina só era possível pela dimensão dos bandos e pela mansidão das aves.
Por cada tiro caíam dúzias delas ao chão. Certa vez um caçador abateu vinte e
oito, com um único tiro de uma velha escopeta de carregar pela boca. E do bando
que continuou a voar caíram ainda algumas aves mortas, nos mil metros
seguintes. Voavam tão cerradas que era quase impossível atirar-lhes uma pedrada
sem atingir uma delas...
Ao
lado dos muitos fuzileiros que abatiam estas aves para consumo próprio ou pelo
prazer de matar, havia caçadores profissionais, que abasteciam os mercados e
perseguiam os bandos sistematicamente...
Através
de binóculos, os caçadores observavam a progressão do voo... Qualquer um podia
aproximar-se das aves poisadas até uma distância de vinte e cinco ou trinta
metros. Uma vez aí, os caçadores esperavam que elas se colocassem na melhor
posição de fogo, após o que era disparada a primeira salva. Desorientadas, as
aves levantavam voo e descreviam um par de círculos no ar, oferecendo novas
oportunidades de tiro. Chegavam, por vezes, a poisar no mesmo local, e este
procedimento repetia-se. Com uma arma de tiro semiautomático, um certo senhor
Wheeler abateu de uma vez trinta e sete aves. Ocasionalmente podia observar-se
pelos binóculos que o bando tinha poisado quatro ou cinco quilómetros mais
adiante. A cavalo ou de carro, os caçadores dirigiam-se rapidamente ao seu
encontro, e continuavam a chacina...
Nos
anos oitenta, os efectivos de maçaricos diminuíram rapidamente...
(Cont.)
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