terça-feira, 30 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 24


O sol caiu para Oeste. E ele estava de tal modo enfraquecido que nem a mais tenaz força de vontade lhe permitia já bater as asas, tão depressa como até aqui. Mas manteve-se à frente. As batidas abrandaram, a velocidade diminuiu, e a fêmea notou-o. E foi então, depois de vinte e quatro horas de silêncio, que ela começou a enviar-lhe suaves gorjeios de ternura. Isso deu-lhe mais força do que o alimento ou o descanso. E ela repetiu o gesto muitas vezes. O sol estava ainda acima do horizonte, o mar doirado resplandecia como pedra preciosa, e as asas dele transportavam-nos, incansáveis.
            Estava o sol a pôr-se quando algo azul-escuro, fino e vaporoso, apareceu no horizonte. Durante alguns minutos pareceu-lhes uma nuvem. Depois ganhou consistência, tornou-se uma faixa de costa, e finalmente surgiram lá atrás os contornos serreados das montanhas da Guatemala e das Honduras. Os cumes vulcânicos longínquos sobressaíam claramente. A mancha azul, junto ao mar, tornou-se verde, e onde ela terminava apareceu a faixa branca da rebentação. Quando os maçaricos atingiram a praia orlada de palmeiras, dispunham ainda de meia hora de claridade e começaram logo a comer. Ao chegar a escuridão, já a tortura da fome e do esgotamento diminuía.
            Toda a manhã seguinte trataram de se alimentar. Mas não havia muita comida, pois a praia era estreita e fora varrida pela rebentação. Ao meio dia prosseguiram o voo, apesar do enorme calor. Agora dirigiam-se terra adentro, pois era Verão na América Central, e as altas pradarias fervilhavam de gafanhotos. Voavam sobre a zona costeira, que subia lentamente até às montanhas. O solo vulcânico, escuro e fértil, produzia frutos exuberantes, como cocos, bananas e cana sacarina. Uma hora depois estavam a 1500 metros acima do nível do mar, e chegaram a uma zona mais temperada, com ar frio e seco. Continuaram a subir, avançaram para as montanhas e alcançaram um estreito vale que conduzia a um planalto elevado.
            Voaram durante quatro horas. Finalmente poisaram trezentos quilómetros terra adentro, num planalto acidentado. Aqui juntaram-se pela primeira vez a outras aves de arribação, que iam ao encontro da Primavera na América do Norte. Bandos inteiros de tangarás, tordos e piscos procuravam alimento afanosamente, nos vales arborizados. Tinham que armazenar energias para os longos voos nocturnos. Nas altas pradarias, os maçaricos encontraram bandos de narcejas e de estorninhos. Mas não se ouvia qualquer canto. Isso só aconteceria na reserva de criação, e, para a maior parte deles, ela distava ainda mais de três mil quilómetros.
            Nas encostas em declive havia gafanhotos por todo o lado, nelas pastavam grandes rebanhos de carneiros. O capim estava tosado e rente, por isso era fácil encontrar os insectos. Os maçaricos comeram até terem os papos e os estômagos cheios. E ao escurecer milhares de aves partiam. Não podiam ver-se na escuridão, salvo quando uma delas riscava o disco da lua, como um traço de sombra. Mas ouviam-se constantemente os seus gritos ligeiros. Porém os maçaricos não tinham pressa, pois no Árctico era ainda inverno, e aqui podiam acumular gordura para o caminho até à reserva.
            Esperaram uma semana, comeram muito e voavam cada dia um pouco mais para Norte. Os seus corpos ficaram outra vez nédios e redondos, e agora, de novo com forças, ardia neles a febre do acasalamento. No princípio da semana atingiram a ponta da península de Yucatán. Oitocentos quilómetros a Norte, do outro lado do golfo do México, ficavam os pântanos da costa da Louisiana e do Texas, atrás dos quais se estendiam, quase até ao Árctico, as pradarias sem fim




O CORREDOR DA MORTE

            ... Mas pior que tudo era a carnificina, quando as aves, na Primavera, atravessavam o golfo do México, e se deslocavam em bandos pelas planícies norte-americanas.
            Estes bandos enormes recordavam aos habitantes das pradarias os pombos-torcazes, e por isso os maçaricos foram chamados “pombos da pradaria”. Voavam aos milhares, em quantidades tais que os bandos mediam às vezes mil metros de comprimento por cem de largura. Quando poisavam, cobriam quarenta a cinquenta acres de solo. A matança era nesse tempo uma coisa inimaginável. Vinham caçadores de Omaha, no Nebraska, e abatiam as aves sem piedade. Abatiam-nas literalmente às carradas. As aves mortas eram mesmo empilhadas em carros abertos, que chegavam a precisar de taipais laterais. Quando os bandos eram particularmente numerosos, e os caçadores dispunham de munições em abundância, os carros enchiam-se depressa. Despejavam-se então carregamentos inteiros na pradaria. As aves ficavam ali em pilhas enormes, como se de um monte de carvão se tratasse. Deixavam-nos a apodrecer, e os caçadores enchiam os seus carros com novas vítimas.
            Tal carnificina só era possível pela dimensão dos bandos e pela mansidão das aves. Por cada tiro caíam dúzias delas ao chão. Certa vez um caçador abateu vinte e oito, com um único tiro de uma velha escopeta de carregar pela boca. E do bando que continuou a voar caíram ainda algumas aves mortas, nos mil metros seguintes. Voavam tão cerradas que era quase impossível atirar-lhes uma pedrada sem atingir uma delas...
            Ao lado dos muitos fuzileiros que abatiam estas aves para consumo próprio ou pelo prazer de matar, havia caçadores profissionais, que abasteciam os mercados e perseguiam os bandos sistematicamente...
            Através de binóculos, os caçadores observavam a progressão do voo... Qualquer um podia aproximar-se das aves poisadas até uma distância de vinte e cinco ou trinta metros. Uma vez aí, os caçadores esperavam que elas se colocassem na melhor posição de fogo, após o que era disparada a primeira salva. Desorientadas, as aves levantavam voo e descreviam um par de círculos no ar, oferecendo novas oportunidades de tiro. Chegavam, por vezes, a poisar no mesmo local, e este procedimento repetia-se. Com uma arma de tiro semiautomático, um certo senhor Wheeler abateu de uma vez trinta e sete aves. Ocasionalmente podia observar-se pelos binóculos que o bando tinha poisado quatro ou cinco quilómetros mais adiante. A cavalo ou de carro, os caçadores dirigiam-se rapidamente ao seu encontro, e continuavam a chacina...
            Nos anos oitenta, os efectivos de maçaricos diminuíram rapidamente...
(Cont.)