sábado, 6 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 17

A noite estava escura como breu. Até que a manhã rompeu finalmente, não com amarelos e vermelhos, mas com uma luz turva e cinzenta. Por baixo deles a terra era húmida e lamacenta, atravessada por rios largos, como a tundra na Primavera. Tão longe quanto podiam ver, na luz cinzenta da manhã, estendia-se em todas as direcções o extenso vale do Orinoco. E continuava a chover.
            O bando tinha voado quase sessenta horas seguidas, sem descanso nem alimento. Das terras da neve e da luz árctica, chegavam agora a um lugar que ressumava da exuberante vegetação dos trópicos. Diante deles havia centenas de quilómetros de terras pantanosas e de planícies cobertas de capim. Era um formigueiro de insectos, alimento mais que suficiente, que só os meses de chuvas contínuas dos trópicos podiam produzir.
            O dia ficara um pouco mais claro. E o maçarico abriu as asas rígidas e mergulhou em picada. Deixara para trás a vastidão dum continente, desde a última vez que elas tinham estado inactivas. As tarambolas seguiram-no e o bando poisou.
            Nenhuma ave descansou, porque antes de mais era preciso comer. Durante cinquenta e cinco horas tiveram os estômagos vazios, tinham voado quase cinco mil quilómetros e consumiram toda a gordura acumulada no Lavrador. Dela não restava agora um único grama. Em menos de três dias, as aves tinham perdido entre 10 a 15 por cento do seu peso. Só o facto de elas serem os mais económicos consumidores de energia de todo o reino animal lhes possibilitava tal voo. Para atravessar o oceano, cada ave tinha queimado sessenta gramas de gordura. Com tal consumo de energia, um avião de meia tonelada voaria 250 quilómetros com cinco litros de combustível, em lugar dos habituais trinta e cinco.
            Só descansaram depois de terem comido. Mas nas vastas savanas do Orinoco havia grande abundância de alimento. Assim, antes de cair a noite tropical, as aves comeram ainda uma segunda vez, durante várias horas.


O CORREDOR DA MORTE
            Este é o oitavo boletim do Museu Nacional dos Estados Unidos, sobre a vida das aves norte-americanas, por Arthur Cleveland Bent.
            Ordem: Limicolae. Família: Scolopacidae... Numenius borealis, maçarico-esquimó... Não há dúvida de que foram sobretudo os abates excessivos, durante as viagens migratórias, e durante o Inverno na América do Sul, os responsáveis pela sua extinção. Não acredito que esta espécie tenha sido apanhada no alto mar por uma enorme catástrofe que a tenha dizimado. O maçarico possuía asas poderosas, e podia escapar a grandes tempestades, ou conseguia evitá-las. Além disso a sua época de migração era tão prolongada que uma só tempestade não podia exterminar toda a espécie. Nada aponta para doenças, ou para a redução do seu alimento habitual. Sobra uma única razão. Ele foi aniquilado pelos homens: no Verão e no Outono, no Lavrador e na Nova Inglaterra; no Inverno, na América do Sul; e ainda pior que tudo, na Primavera, desde o Texas até ao Canadá. Os maçaricos eram tão mansos e confiantes, tão apegados aos seus companheiros de viagem, que foram abatidos em massa, vítimas fáceis da carnificina. Estas delicadas aves deixavam atrás de si, por todo o lado, um verdadeiro corredor da morte. E ninguém mexeu um só dedo para as defender, até ser demasiado tarde...
(Cont.)