sábado, 30 de junho de 2018

Rio

A prosa é um rio grande. Poesia é a viagem rio abaixo. Poetas são aqueles que sabem bolinar.

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Crepúsculo

No lugar onde hoje estou andava eu, há muitos anos, a apascentar as vacas no lameiro. E, quando o crepúsculo chegava, punha-me a cavalo na Marquesa e acompanhava as vacas, que subiam a vereda até chegar à corte.
Tenho saudades desse tempo em que havia árvores, e bichos, e natureza. Ao ombro trazia  um rádio de pilhas, onde perorava um dr. Paulo Pombo, que ladrava um conto radiofónico. Dos contos não me lembro de nenhum.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Prudências

Para lá da vedação há uma pequena horta rodeada de aveleiras. No resto cresce o capim, e o Platão passeia-se por lá. Os grilos...as lagartixas…
Hoje um pastor trouxe o rebanho e as ovelhas andaram por ali, tosando o capim e saboreando as folhas tenras das árvores. Lá pelo meio do rebanho alguns molossos de guarda cumpriam a função.
Logo que os pressentiu, o Platão entrou em casa. Desapareceu completamente debaixo dum sofá, e não saiu de lá enquanto os canzarrões não se foram embora. É que o Platão é filósofo  e leu o livro: sê prudente como a serpente mas simples como as pombas.

terça-feira, 26 de junho de 2018

A casa nova

" Mas quem sabe de emigrações em França é o senhor Primo. Não seria ele o caso, mas havia menino que fazia negócio dos patrícios, encalhados ali em Champigny, na maior das misérias. Sem poiso nem dinheiro, sem conhecer da língua uma palavra, dispunham-se a pagar o que não tinham só para arranjarem trabalho. Outros vinham a Portugal e faziam-se correios, traziam dinheiro em mão para as mulheres dos colegas. Muita vez eram roubados no caminho, ou assim se fazia constar, o dinheiro é que nem sempre aparecia. (…)
A dada altura terão virado os ventos, que o homem desapareceu por muito tempo. Até que numa noite apareceu a arder a casa branca. E quando o tribunal mandou arrestar tudo por causa duns calotes. amanheceram dinamitadas as paredes. São estas as pedras de armas que aqui se hão-de abrigar, quando lhes chegar o dia.
Lá em baixo, num cabeço à margem do lençol de água, reconhece o viajante um cramoiço de pedras. Já foram casa onde gente morou, já prometeram ser um lar de velhos, agora são as ruínas do sucesso moderno, perdidas na paisagem. O viajante fica a olhar o jazigo vazio, e o azul do horizonte no espelho das portadas. Razão tinha quem disse que esta vida é uma feira, cada um vende nela o que tem para vender. (…)

sábado, 23 de junho de 2018

Meteorologias

Há 50 anos estava eu no norte de Angola, não vivi aquilo. E aquilo foi uma circunstância meteorológica tramada, que pôs o regime a coçar os tomates. Na região de Lisboa caiu em poucas horas a quantidade de chuva dum ano inteiro. Setecentos e tal mortos ficaram na lama, no vale de Loures.
A juventude universitária puxou dos galões e fez o que devia. Auxiliou, vacinou, denunciou. O regime censurou, claro.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

País fodido

Há dias fui à cidade, comprar umas calças de verão para esconder as vergonhas. O carro era uma barcaça da Índia, grande com´ó caraças. Estacionei-o dez minutos perto da loja, e quando voltei tinha uma multa no vidro.
A papeleta da multa mandava-me comparecer na esquadra da polícia. E eu lá fui, no dia seguinte, para evitar males maiores. Parei a um quilómetro da esquadra, numa cidade atravancada de latas ferrugentas. Mas consegui lá chegar.
O agente informou-me que o assunto era tratado na esquadra da GNR, na estação dos comboios. Eles é que sabiam se a infração me custaria trinta, ou sessenta euros. Dependia da quantidade de passeio ocupado pela viatura.
Eu não fazia ideia onde era a GNR, e tinha mais que fazer do que andar à procura dela. De modo que optei por mandá-los foder e fui à minha vida.

terça-feira, 19 de junho de 2018

E assim foi

Ensonado, o rouxinol dormiu numa videira. Durante a noite uma gavinha cresceu e prendeu a pata do rouxinol. Para se ver livre, o rouxinol virou-se para a virgem e logo ficou solto.
Porém sujeito a repetir toda a noite no silvado: Nossa senhora disse, disse, disse, que não dormisse, que não dormisse, que não dormisse… E assim foi!

domingo, 17 de junho de 2018

Favas

No rés-do-chão a estação de correios ainda lá está. E no 1º andar havia quartos para dormir, num tempo em que mais nada havia. Passei aqui uma noite.
Ao lado passava a linha do comboio, e ainda passa. Os comboios, sempre retardatários, são iguais aos que trouxeram o Jacinto, que vinha de Paris a Tormes. Na essência, nada mudou, nem as favas!

terça-feira, 12 de junho de 2018

Muito a propósito...

Neste troço de estrada uma placa limita os 50 Kms. E eu não consigo imaginar a velocidade a que passou o grande filho da puta que atropelou este gato. Tinha que ser.
O bicho ficou estendido no alcatrão. E o condutor foi depressa para casa estender os pés à lareira, porque o cabrão do inverno veio para ficar. Como tudo o que é mau!

terça-feira, 5 de junho de 2018

O marrafinha

O pai tinha partido para a África longínqua, a cumprir um destino que era o mesmo, desde há séculos. E nunca mais deu sinal de vida. Os três ganapos ficaram nas mãos da mãe, que era tecedeira, e pouco tinha para lhes dar além da fome.
O garoto foi servir como pastor para uma aldeia distante, e a patroa aviava-lhe a merenda numa meia das dela. Ele aguentou-se algum tempo. Mas um dia fartou-se, abandonou o gado e regressou a casa. Chegou ao fim de três dias.
Alguém o encaminhou para Matosinhos, onde foi servir de marçano numa loja. E tudo quanto podia mandava-o para casa, para ajudar a mãe e os irmãos. O tempo em que ele próprio ensaiaria as aventuras de África ainda vinha longe. Mas já estava traçado.

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Arroz de chabéu

No labirinto dos Bijagós havia a ilha de Bubaque. Era uma estância balnear improvisada que permitia um dia ou dois de folga: nos alertas, nos bombardeamentos, na fuga aos Strela russos, naquele absurdo todo.
Em Bubaque instalara-se um cabo-verdeano que mantinha alojamentos primários e cozinhava um excelente arroz de chabéu. O chabéu eram as bagas das palmeiras e davam ao cozinhado o tom amarelado do açafrão. Um tinto do Cartaxo, que vinha em garrafões, compunha o repasto.
Isto foi assim há muitos anos. Tão absurdo que mal dá para acreditar, mas foi.

sábado, 2 de junho de 2018

Timidez

O sol ainda ia alto quando a raposeta pintalegreta passou pela vinha das brasileiras e achou que estavam verdes, não prestam. E ela aproveitou para beber água.
Andava ali um pescador às trutas, a ver se a cana lhe dava um sinal. Por isso a raposeta afoitou-se pela margem e bebeu metade da represa.
Ia ela de rabo comprido e focinhito aguçado pelo meio dos rosmaninhos, quando eu pus um pé fora do carro. Ela não estava interessada em encontros, acelerou o passo, saltou o muro e lá se foi vinha acima. Um caso de timidez!