quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Nada feito

Ou a vida se abastardou ao ponto de se tornar indizível, ou fui eu que perdi a capacidade de a soletrar.
Seja como for, e enquanto for assim, nada feito.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Adagiário - 9

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Portugalmente - 81


(...)

O viajante chegou à estação de Almendra, demorou um olhar nela, desejou não ter lá ido. Ouviu Camilo falar do que ela foi noutros tempos, da chegada dos comboios que vinham da cidade a silvar vapor e fumaradas, dos cestões de fruta nas balanças para despacho ao domicílio, dos vagões de cereais e de farinhas que rangiam ao partir, das pipas atulhadas dum arroz envergonhado para o rancho dos falangistas, dos barris atestados de volfrâmio clandestino para as forjas dos nazis, das encomendas que vinham endereçadas com etiquetas de pau, da pedra-lipes para as vinhas. O viajante desejou não ter lá ido, porque hoje só ali vão turistas desocupados e ladrões de carris, muitos que já não existem são travejamentos de vivendas patuscas, onde moram portugueses que adormecem em sossego. O viajante desejou não ter lá ido, pois ver assim desprezado um lugar destes é ver a esperança a morrer. E, sendo verdade ou mentira, o viajante não se tem por masoquista.
(...)

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ar do tempo - III

Em meados do séc. XVIII, o Arcadismo, a 3ª fase clássica, foi um precário interregno de equilíbrio, antes da grande onda romântica. Reagindo aos formalismos ocos do barroco, e reclamando os princípios do racionalismo iluminista, os árcades procuraram ressuscitar as antigas formas e lugares clássicos, seguindo modelos franceses. Em certa medida foi um refúgio falhado, porque a história não avança recuando.
Porém, fazendo eco duma crescente ascensão cultural burguesa e do declinar do antigo regime , há um quotidiano prosaico que entra pela primeira vez na poesia. O louro chá no bule fumegando, de Correia Garção, que usa ainda a forma clássica do soneto com conteúdos inovadores, é um interessante exemplo dessas contradições.
Mas não tarda aí o Romantismo, de raiz inglesa e alemã, a arrumar na prateleira o universo estético clássico, e a reivindicar os direitos da subjectividade, da inspiração, do génio, do individualismo, do "eu": o sentimento, a paixão, a noite, a solidão, o belo-horrível, a tradição popular medieval como origem nacionalista, tornam-se tópicos comuns.
O liberalismo político não faz senão alargar o espaço cultural e social burguês. E a prosa portuguesa, com as Viagens na Minha Terra, de Garrett, solta-se para a modernidade.
A história nunca se repete ipsis verbis, ou ficaria parada. O que se repete é o seu ciclo, integrando elementos novos que a fazem avançar.

Adagiário - 8

Pouco janta, quem tarde se levanta.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Encruzilhada

Aqui.

Barrela, e a falta dela

Os funambulismos malabares a que se vem assistindo no campo da Justiça mostram de forma cruenta o que sempre foi verdade, às vezes obscurecida: por baixo da majestade e do lustro das togas, o que mais há são cuecas mal lavadas.

Ecos da Sonora - XXXII

É raro, mas acontece, tropeçar a gente num pedaço de ficção que se lê com prazer e proveito. Este vem da América, da mão do senhor J. D. Salinger, e chamaram-lhe À Espera no Centeio.
É editado pela Difel, mas viu a luz do dia no ano longínquo de 1945. E isso explica muita coisa.
O narrador, um adolescente de 16 anos, é despedido do colégio que frequenta, pelos resultados medíocres. E regressar a casa nessas circunstâncias não é um gesto pacífico. Durante cinco dias, de sábado a quarta-feira, desfilam emoções, errâncias, peripécias, aventuras, lembranças e sonhos, numa sucessão de pequenos gestos que à nossa frente compõem o quadro afectivo, social, cultural e mental dum adolescente americano da época.
A linguagem utilizada é a surpresa maior, marcada por uma irreverência que se adequa perfeitamente à condição do narrador. Num registo que chamaremos mínimo, anda perto da pura oralidade. Faz uso dum calão adolescente que às vezes roça o vernáculo, sem nunca atingir o despudor nem fazer disso bandeira. A mostrar que, com mestria e muito pouco, é possível fazer muito.
Junte-se a isso uma tradução de luxo, o que é raríssima coisa, e o rebuçado é perfeito.
(...) Quando estava em Pencey, morava na ala Ossenburger nos dormitórios novos. Era só para os do penúltimo ano e para finalistas. Eu era do penúltimo ano. O meu colega de quarto era finalista. Tinham posto àquilo o nome de Ossenburger, por causa de um tipo que tinha andado em Pencey. Tinha feito uma data de massa no negócio das agências funerárias depois de ter saído de Pencey. (...) Seja como for, doou a Pencey um monte de massa e então eles deram o nome dele àquela ala.
No primeiro jogo de futebol do ano, apareceu no colégio na merda daquele Cadillac enorme, e nós tivemos todos de nos levantar na bancada e dar-lhe uma "locomotiva", que é uma aclamação. Depois, na manhã seguinte, na capela, fez um discurso que durou umas dez horas. Arrancou uma cinquenta piadas foleiras, só para nos mostrar o tipo porreiro que ele era. Uma coisa que só visto. Depois desatou a contar-nos porque é que nunca se envergonhava, quando se via metido em qualquer problema ou assim, de ajoelhar e de rezar a Deus. (...) Aquela deu cabo de mim. Estou mesmo a ver o armante daquele cabrão a meter a primeira e a pedir a Jesus que arranjasse maneira de mais uns quantos esticarem o pernil.
A única parte gira do discurso foi quando ele ia mesmo a meio. Estava a contar-nos o gajo bestial que ele era, o manda-chuva que era e tudo, qundo de repente o tipo sentado na fila à frente de mim, o Edgar Marsalla, mandou um peido do caraças. Foi uma coisa bastante grosseira, na capela e tudo, mas também bastante divertida. G'ande Marsalla. Ia mandando o telhado pelos ares. (...)

Portugalmente - 80

(...)
Camilo foi desenhando os lances destas tragédias nas curvas e contra-curvas do caminho para a estação. E ao viajante foram escassos estes dois olhos que tem, para os perder nos encantos da paisagem. Nas vinhas do benefício encabritadas nos montes, nos olivais que pontilham as colinas, nos campos de amendoeiras a marinhar nas encostas.
Mas nem tudo é o que parece, na opinião de Camilo. E o viajante, que de amêndoas só conhece esta paisagem, não sabe que as mais delas os donos as não apanham, apesar da qualidade excepcional. Ele há subsídios à lavragem e aos cuidados do maneio. Mas o declive das encostas e o tipo de plantio impossibilitam a apanha mecânica, e as despesas de mão-de-obra transformam a colheita em pura perda. O viajante não sabe que na praça do Tablado as cotações se definem pela amêndoa da Califórnia, um produto de segunda a preços que ninguém bate. E que os poucos compradores, quase todos de Escalhão, só lhe pegam ao desbarato para a vender aos espanhóis. É assim que a casanova e a célebre fura-saco se limitam a esbranquiçar a paisagem, para excursões de reformados e animação das fábulas mouriscas. Deixaram simplesmente de existir, diluídas no mercado espanhol.
À margem da ribeira de Aguiar encontrou o viajante a dormitar na capela uma Senhora do Campo, enquanto o rebanho de António Digo-lhe-mais retoiçava numas hortas. Mais louçãs vão as ovelhas que o pastor, com este ar tão consumido, notou logo o viajante. Ao António não lhe agradam as notícias sobre o leite, que uns espanhóis lhe recebem. Querem-lhe baixar os preços e a ele não lhe convém. Bem queria evitar vender o gado, que já lhe criou amor há muitos anos. Mas assim…digo-lhe mais! Além disso anda gente por aí a derrotar os zimbros à socapa, por causa duns óleos da medicina. Os espanhóis dizimaram os que lá tinham, e agora vêm buscar os portugueses ao preço da uva mijona. Digo-lhe mais, outra vez!
(...)

domingo, 24 de outubro de 2010

Ecos da Sonora - XXXI

Portaria do Ministério do Reino
Tendo chegado ao conhecimento de Sua Majestade El-Rei, por informação do governador civil de Lisboa, e publicações dos jornais, que no Casino Lisbonense, no Largo da Abegoaria desta capital, se celebram reuniões públicas com a denominação de "conferências" nas quais se tem feito uma série de prelecções em que se expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do estado ... (...) ... que o governador civil de Lisboa não consinta as referidas reuniões e conferências... (...) ... sob pena de se proceder contra os transgressores na conformidade das leis.
Paço, em 26 de Junho de 1871 - Marquês d'Ávila e de Bolama

NOTA: Estas Conferências do Casino tiveram lugar há 150 anos. Enfim, as que se realizaram. Particularmente esta, de Antero de Quental, teve a lucidez e a ousadia de nos colocar diante dos olhos uma série de questões decerto polémicas, porém fundamentais para uma útil compreensão da nossa história e da nossa vida colectiva.
E no entanto, ao nível da nossa elaboração mental, é como se não tivesse existido.
Não é a primeira vez que ela é editada. Mas creio não andar longe da verdade, se pensar que 10% dos portugueses já a leram, mais 20% ouviram falar dela, e os restantes a desconhecem em absoluto. Em qualquer nível do ensino, ela não é objecto de atenção. Aqui ou ali, alguma fugidia e inócua referência.
Já a certeza de que, ao nível do poder, os marqueses d'Ávila e Bolama destes anos todos de bom grado assinariam a portaria da sua interdição, perante a nossa indiferença colectiva, é coisa que me causa nojo íntimo. Lá no fundo merecemos o que temos.

Ecos da Sonora - XXX

[ibidem]
(...)
A estas duas causas principais de decadência, uma moral e outra política, junta-se uma terceira, de carácter sobretudo económico: as Conquistas.
Há dois séculos que os livros, as tradições, e a memória dos homens, andam cheios dessa epopeia guerreira, que os povos peninsulares, atravessando oceanos desconhecidos, deixaram escrita por todas as partes do mundo. Embalaram-nos com essas histórias; atacá-las é quase um sacrilégio. E todavia esse brilhante poema em acção foi uma das maiores causas da nossa decadência. É necessário dizê-lo, em que pese aos nossos sentimentos mais caros de patriotismo tradicional.
(...)
No ponto de vista heróico, quem pode negá-lo, foi esse movimento das conquistas espanholas e portuguesas um relâmpago brilhante, e por certos lados sublime, da alma intrépida peninsular. (...) A desgraça é que esse espírito guerreiro estava deslocado nos tempos modernos. As nações modernas estão condenadas a não fazerem poesia, mas ciência. (...)
Ora é à luz da Economia Política que eu condeno as Conquistas e o espírito guerreiro. Quisemos refazer os tempos heróicos na idade moderna: enganámo-nos. Não era possível: caímos. Qual é, com efeito, o espírito da idade moderna? É o espírito de trabalho e de indústria: a riqueza e a vida das nações têm de se tirar da actividade produtora, e não já da guerra esterilizadora.
(...)

Ecos da Sonora - XXIX

[ibidem]
(...) estarei autorizado a concluir que é nesses novos fenómenos que se devem buscar e encontrar as causas da decadência da Península.
Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico.
O primeiro é a transformação do Catolicismo, pelo concílio de Trento.
O segundo, o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais.
O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas.
Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. (...)
Esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização.
(...)

Ecos da Sonora - XXVIII

[ibidem]
(...)
Nos últimos dois séculos não produziu a Península um único homem superior, que se possa pôr ao lado dos grandes criadores da ciência moderna; não saiu da Península uma só das grandes descobertas intelectuais, que são a maior obra e a maior honra do espírito moderno.
Durante 200 anos de fecunda elaboração, reforma a Europa culta as ciências antigas, cria seis ou sete ciências novas, a anatomia, a fisiologia, a química, a mecânica celeste, o cálculo diferencial, a crítica histórica, a geologia.
(...)
Que nome espanhol ou português se liga à descoberta duma grande lei científica, dum sistema, dum facto capital?
A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência; foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos. A alma moderna morrera em nós completamente.
(...)

Ecos da Sonora - XXVII

Causas da Decadência dos Povos Peninsulares
Discurso pronunciado na noite de 27 de Maio de 1871, na Sala do Casino Lisbonense, por Antero de Quental

A Decadência dos Povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história. Pode até dizer-se que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica originalidade, é o único facto evidente e incontestável (...).
(...)
A história dos últimos três séculos perpetua-se ainda hoje entre nós em opiniões, em crenças, em interesses, em tradições, que a representam na nossa sociedade, e a tornam de algum modo actual. Há em todos nós uma voz íntima que protesta em favor do passado, quando alguém o ataca; a razão pode condená-lo, o coração tenta ainda absolvê-lo. É que nada há no homem mais delicado, mais melindroso do que as ilusões; e são as nossas ilusões o que a razão crítica, discutindo o passado, ofende sobretudo em nós. (...)

Ecos da Sonora - XXVI

Programa das Conferências Democráticas do Casino
(...)
Não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando deve ser também o assunto das nossas constantes meditações.
Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este momento do século (...);
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;
Procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa;
Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna;
Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa;
Tal é o fim das Conferências Democráticas.
(..)
Posto isto, pedimos o concurso de todos os partidos, de todas as escolas, de todas aquelas pessoas que, ainda que não partilhem as nossas opiniões, não recusam a sua atenção aos que pretendem ter uma acção - embora mínima - nos destinos do seu país (...).
Lisboa, 16 de Maio de 1871 - Adolfo Coelho - Antero de Quental - Augusto Soromenho - Augusto Fuschini - Eça de Queirós - Germano Vieira de Meireles - Guilherme de Azevedo - Jaime Batalha Reis - J.P.Oliveira Martins - Manuel de Arriaga - Salomão Sáraga - Teófilo Braga.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A grande farra

Lembro-me deles, há anos, todos juntos, a falar destes assuntos na capela de Santa Luzia. Chovia se Deus a dava! Mas lá estava o presidente da câmara, o delegado regional do IPPAR em Castelo Branco que pagaria a factura, e um renomado arquitecto, responsável pelo plano de valorização do património histórico da vila. Tratava-se da alcáçova do castelo, e de instalar na torre de menagem um miradouro virtual. E eu vi em tudo aquilo um acesso de febre que havia de passar. Um jogo de interesses e poderes em roda livre, deslumbrados todos com vagos conceitos de progresso, de futuro e de tecnologias novas. Isto pensava eu.
Pensava eu que havia de passar e enganei-me, porque a obra já está pronta. E lá fui visitar a alcáçova renovada. Dentro duma gaiola de madeira, duas assistentes esgrimiam contra o tédio, se não contra a solidão. Que podia, sim senhor, subir ao miradouro, ver imagens, ver paisagens, não havia entradas a pagar.
Subi o primeiro lanço da escadaria de ferro, uma espécie de máquina de guerra, daquelas torres de assalto das fortalezas antigas. Subi o segundo e o terceiro, e cheguei finalmente onde nunca tinha estado. O ponto mais elevado, e mais alto, de todo aquele planalto.
Tirei o sobretudo ao miradouro virtual, e achei-me frente a uma figura mista, entre a cadeira dum dentista e um viajante espacial. Em qualquer dos casos, fora de serviço.
Vesti-lhe outra vez o sobretudo e voltei à gaiola da entrada. Lá me disseram que uma vez valorizada, logo a alcáçova tinha sido assaltada.
E agora, que são horas de acabar, não sei se me dá para rir, se hei-de chorar.

Perguntas

Pertinentes e oportunas. Por isso é que não são feitas.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O cavalo do inglês

Há muito tempo que não ia às compras, porque deixei de comer. E ontem dei com as vitaminas todas no vermelho.
Logo de manhã fui-me à banca da fruta, numa dessas lojas que são vacas leiteiras a oferecer-nos as tetas.
Os diospiros chegam-nos de Espanha, as bananas e os abacaxis vêm do Equador, as mangas e as limas e as papaias do Brasil, os kiwis do Chile, os maracujás da Colômbia, as meloas de Israel, as toranjas da Sul-África. Espanha ainda nos manda os pêssegos, e as batatas, e os limões, e as clementinas, e as ameixas, e as anonas, e as romãs, e as uvas pretas, que as brancas vêm da Itália. As cebolas francesas tinham esgotado, e os alhos da China estavam a chegar. Portuguesíssimas só a pêra rocha, a maçã bravo de esmolfe, o melão branco e a melancia negra.
Será este despautério um antigo tributo, do mundo rendido ainda, e esmagado, pela nobre gesta da nossa cruz de Cristo?
Cada um fique no que lhe parecer. Cá para mim é tanta a esmola, que um pobre desconfia. O mais certo é termos à nossa espera o destino do cavalo do inglês. O tal que se finou no momento mais inoportuno, quando já tinha aprendido a não comer.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Riba-Côa




Juizinho

E bons critérios. Aqui.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Ecos da Sonora - XXV

Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos três últimos séculos, Antero de Quental, Tinta da China.

Do prefácio de Eduardo Lourenço:
(...) Nas circunstâncias presentes da nossa cultura, imersa num contexto planetário tão diverso do, então, ainda histórico e ideologicamente eurocêntrico, talvez alguns esperem que uma releitura da célebre Conferência redunde menos numa reiteração da mitologia cultural inaugurada por Antero sob o signo da Decadência como uma espécie de estigma indelével e recorrente do nosso destino peninsular, do que no da obliteração definitiva desse paradigma fantasmático a que um prosador e um poeta de génio conferiu uma aura mítica. (...)

Ó homem, porra! Já reparou quantos megas são precisos para deslindar frases destas sem sete repetições?

Portugalmente - 79

(...)
Um certo dia a fidalga preparou a diligência, desceu à estação de Almendra e foi visitar os filhos que estudavam em Coimbra. E lá se tomou de amores por uma visita da casa, um estudante de leis que não chegaria a bacharel, dadas as prioridades. E quando ela, à procura doutra vida, deixou para trás a Família, o doutor olhou para as mãos, ficou com Deus e a Pátria.
Não se sabe ao certo por que enredos, o casal foi parar a uma pensão do Porto, ali à rampa da Escola Normal. E um dia embarcou para a África, que sempre foi bom refúgio dos desesperados. Anos mais tarde, abreviando razões, e uma vez que se finara o patriarca, voltaram ambos a Almendra e ao solar dos bonifrates.
Mas um dia há sempre um dia. E o bacharel, que nunca chegara a sê-lo, veio a saber dos sucessos com o Mal-Casado, e dos antigos enredos de tarimba, por denúncia dum criado. O bacharel quebrou e foi-se embora, ela ficou e morreu. E ainda vive em Almendra quem se lembre da fidalga na feira de Trancoso, a comprar ovos de pata, se não antes a vendê-los, quem o saberá dizer.
(...)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Mina

Já sei duma mina desmazelada onde cabe um Chile inteiro.
Agora só me falta ser industrial da comunicação, para pôr a coisa render e ser um homem feliz.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Cem cães...

... a um osso esburgado! Isto é, uma roda cada vez mais quadrada.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Portugalmente - 78

(...)
A fidalga era uma das muitas filhas da casa dos viscondes, e nasceu em Salamanca. Corriam por então os tempos da República e os ares andavam torvos, dos brados de carbonários e pedreiros-livres. A quem trouxesse a consciência mais pesada, com motivos ou sem eles, só restava uma saída: passar de noite a fronteira e resguardar-se. Foi o que o visconde fez, enquanto se esfumava a poeirada, até poder regressar. E assim nasceu em Castela uma fidalga, que se já vinha dotada de condição e prebendas, mais medrou com as bênçãos da natureza.
Junto dos condes de Almendra encontrara entretanto acolhimento um mocetão de Foz-Côa, filho natural dum Távora remoto. A seu tempo se fez médico, a encargos do patrono. E foi o primeiro passo para vir a ser nomeado delegado de saúde, e administrador do concelho, e mais tarde o homem forte da União Nacional, um feudo de patriotas. Isto tudo muito antes da fundação da fábrica de azeites, cujo destino atrás se antecipou.
Quando lhes chegou a altura, o médico de Foz-Côa e a fidalga dos viscondes deram o nó sacramental. Ela juntava aos predicados naturais o património. E ele acrescentava o ceptro da autoridade, a figura impositiva e o poder. É com tais coligações que se edificam reinados.
Se o homem tinha má fama, o proveito era melhor. E famas leva-as o vento. O terror que infundia às criancinhas, que na consulta lhe mostravam a garganta tomada do garrotilho, só achava paralelo no rancor dos camponeses, que no lagar lhe sofriam o esbulho da funda a cinco. Por cem quilos de azeitona recebiam cinco litros, era pegar ou largar. Pior só assaltantes de estrada.
A fidalga era dez anos mais nova. E tinha uma figura de menina que fazia rir as rosas, quando descia a sentar-se no caramanchão. Os filhos foram chegando, como frutos naturais, conforme Deus os mandava. Só às vezes um reflexo no espelho do toucador, ou uma lágrima furtiva no recesso da alcova, traíam inconfidências que o peito ainda recusava e o tempo foi agravando.
Os encontros da família, ao repasto do jantar, eram momentos de aspérrima doutrina. Ninguém arriscava fala, qualquer simples transacção era através do mordomo. Às fêmeas e aos mais pequenos fê-los Deus para obedecer, era o primeiro mandamento. Por isso o doutor tinha no Porto, para reserva das hormonas, uma amiga de casa e pucarinho.
A fidalga não era senhora de ir à rua, de seu não tinha um tostão. E só a cumplicidade duma ama compassiva lhe permitia vender às escondidas uma medida de azeite, duas fanegas de trigo, para dispor dumas moedas. Fosse ele por ciúme ou por doideira, o doutor era um algoz. Humilhava a fidalguita diante das visitas, mais que uma vez lhe pôs as mãos na cara.
Quando à ama lhe cheirou a história com o Mal-Casado, deu-lhe o coração um baque. A fidalga abria o corpo ao serviçal, estendida na tarimba das cavalariças. E sorvia dele, em ânsias, o fio de humanidade que de outro lado não vinha.
- Muito mal vai à colmeia se a rainha se tresmalha! - gemia a pobre da ama. Mas nem ela imaginava o que estava para chegar.
(...)

sábado, 9 de outubro de 2010

Agendas

Pelo-me por tudo quanto seja folheto municipal. Não há agenda cultural, agenda de eventos, ou agenda de cultura e eventos a que não chame um figo. É por elas que vou tomando o pulso ao meu país, e à febre de cultura que grassa por aí. Em podendo, nunca falto.
Na Meda, é um exemplo, há meia dúzia de anos que vou tomar café ao centro cultural, quando estou perto. Tenho o bar inteiro ao meu dispor, e a atenção das camareiras. Nunca me cruzei lá dentro com a sombra dum concorrente.
Aqui há dias foi tudo bem diferente, encontrei o auditório a abarrotar. Celebravam-se os 500 anos do foral de Longroiva, nem faltavam ali mestres de estudo nem eminências ilustres.
Cá fora, os carros topo de gama já me tinham avisado. É que estava lá dentro, a conversar, um grupo de irmãos templários. Vinham ver o que foi feito do país que eles empurraram para o mar, amarrado à cruz de Cristo.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Ar do tempo - II

Já no 2º período clássico, o barroco, domina o desequilíbrio, a desrazão. E nem a Contra-Reforma nem a Santa Inquisição são alheias ao fenómeno. O homem barroco é um espírito atormentado, precário e inseguro, o Galileo que o diga. Foge do real concreto, refugia-se nas formas.
Os frades atarefavam-se a construir sonetos Ao Menino Jesus em metáfora de doce. E o único rigor que praticavam era o de um formalismo extremo, tão surpreendente quanto vazio. [Nise (tb Lisi), sois mais dura que o muro mais duro que a terra goza;
sois mais cruel que a rocha mais cruel que cerca o mar;
sois mais rigorosa que o cometa mais rigoroso que o céu vê.]

A construção da quadra é geométrica, perfeita. Nem lá faltam os 4 elementos, sendo que o fogo é a Nise. Mas é um puro jogo de palavras, um cultismo de escasso conteúdo.
O Vieira, ícone do conceptismo, elaborado jogo de conceitos, por força tinha que ser o grande mestre que foi, da língua portuguesa. Teve que inventar uma maneira de carrear em linguagem o sarilho em que se meteu.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Portugalmente - 77

(...)
O largo do pelourinho, que era uma praça maior ali no cimo do outeiro, caiu há tempos nas mãos dum urbanista, para beneficiação. Ao pelourinho roubaram-lhe um degrau, lá lhes pareceu que não fazia falta. E acrescentaram ao largo, em cima dum pedestal, um busto do Venturoso, que foi rei de Portugal e do Algarve, da Índia, do Brasil e da Guiné, e visto o foral de Almendra, mandou que pagarão os moradores, em cada ano, no dia de S. Martinho, sete reais… É o mais que fazem, as ordenações d’el-rei.
A igreja matriz de Almendra guarda esplendores antigos e imponência pouco vista. Amparada em contrafortes, parece uma fortaleza. E associa um portal renascentista de 1565, e o rocaille aligeirado da capela-mor, à imponência da traça medieva, que mistura a gravidade do românico e a respiração do gótico. Na vastidão das três amplíssimas naves cabia a devoção dos fiéis todos, mesmo no tempo em que Almendra era rainha.
Nem palácios lhe faltaram, que era dois. Este, o dos condes de Almendra, uma honraria serôdia da mão de el-rei D. Carlos, tem a sisudez ensimesmada da casa grande burguesa. Já aquele, o dos viscondes do Banho, que foi concessão duma rainha antiga, padece as demasias do seu tempo. O espavento dos arabescos de pedra que lhe enfeitam os frontões nas fachadas dá-lhe um ar de teatro de bonifrates. Destoa no aglomerado, ali à beira da estrada. Mas por um qualquer sinal, às vezes uma verruga, se hão-de distinguir os homens.
Os dois solares vieram a ser cenário de dramas do romantismo tardio, se for verdade que o bom do romantismo escolhe idades. Estes dramas ficaram na memória, e eram matéria da pena do Camilo original. Na falta dele, contentou-se o viajante com o relato atamancado do Camilo anfitrião.
(...)

Espionagem galáctica

Ver o relatório aqui.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Tebas

Já foi a mais orgulhosa das sete portas de Tebas. Hoje nem as pombas guarda.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Adagiário - 7

Comadre andeja, não vou a parte que a não veja.

Adagiário - 6

Quem quer dar, pau acha.

Adagiário - 5

Em cama feita, qualquer um se ajeita.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Ar do tempo - I

A arte segue sempre o ar do tempo, se antes o não antecipa. Enquanto expressão humana, nela se repercutem todos os aspectos da vida dos homens: religiosos, científicos, sociais, políticos, filosóficos, económicos, técnicos e materiais. E a sua história é uma eterna hesitação, quando não um conflito, entre polos antagónicos: o claro e o escuro, o apolíneo e o dionisíaco, a razão e o sentimento, o equilíbrio e a perturbação, o objectivo e o subjectivo, o conteúdo e a forma, a realidade e o sonho, a ordenação e o caos, o exterior e o interior, a certeza e a dúvida, a materialidade e a transcendência, o racionalismo e o seu contrário. Em cada período, segue o factor dominante. E esta ciclicidade é particularmente visível na literatura.
Deixemos de lado os tempos medievais, os últimos de fundo popular genuíno, que percorre outros caminhos. No Renascimento o homem conheceu globalmente a geografia do planeta. O sol foi o centro do sistema planetário. O antropocentrismo substituiu o teocentrismo medievo. O ideal estético era a harmonia e a justa medida clássica. O primeiro Classicismo foi um tempo do equilíbrio, da razão e do concreto. A própria criação artística obedecia a uma fórmula.
(...)

domingo, 26 de setembro de 2010

Calceteiro

Trouxe de Itália o soneto. Mas porém deles fazia como quem calceta ruas. Ora a maço, ora a martelo.

sábado, 25 de setembro de 2010

Portugalmente - 76

(...)
9
Quem vem dos lados da Lapa, como é o caso deste viajante, e abriu os olhos ao mundo a espreitar a brutidão das serranias do demo por onde nem Cristo andou, por força fica encantado em terras de Riba-Côa.
Embora estafado da jornada, o viajante veio no seu vagar, flutuando no requebro feminino das colinas e das charnecas que avistam a Marofa. E ao chegar a um cruzamento decidiu-se pela estrada de Escarigo, Almofala, Malpartida, Vale da Mula, estranhas terras de nomes peregrinos. Andou por sítios em que Espanha e Portugal parecem a mesma coisa, se alguma vez foram coisa diferente. E não deu o tempo gasto por mal-empregado, embora só tenha chegado a Almeida à hora do crepúsculo. Por trás da silhueta escurecida do burgo havia um céu pintado de cor-de-rosa e o dia estava a morrer.
O viajante não é versado em crepúsculos, mas já se tem deixado impressionar. Enquanto foi menino, na idade em que tudo se aprende, o pôr-do-sol era sempre atrás do monte, nas costas da serrania. E se não trouxesse agora tanta pressa, o mais certo seria ter parado.
Assim não foi. Passou a deslado da estacada, espreitou de fugida as quinas aguçadas de revelins e baluartes, e seguiu adiante. Ainda lhe veio à lembrança a explosão dos paióis e a destruição de Almeida, no tempo das invasões. Mas mesmo assim não parou, que era outro o seu destino. E lá seguiu estrada fora, na direcção da fronteira.
Tanta lida para tão pouca vida, é o que sugere o tardio da hora e a dureza da jornada. Depois do serão de ontem à noite, que foi a dádiva última do pai dos pobres, o viajante levantou-se cedo. Tinha à espera o seu anfitrião, disposto a mostrar-lhe Almendra e o mais que o viajante não esperava encontrar.
A aldeia é hoje uma princesa singela. Mas já foi rainha em Riba-Côa, quando as ruas, e as casas todas que há nelas, fervilhavam de força de trabalho e bocas para alimentar. Foi sede municipal, teve um façanhudo forte de que hoje não há sinais, e uma prisão a que levaram as paredes, por falta de prisioneiros. E como era cá da terra o dono dos filmes todos, que os distribuía no país inteiro, chegou a haver um cinema com entrada graciosa, coisa que noutros lugares nem sonhada. Agora deixou de haver, porque a liberdade à solta é bicho que se tresmalha. Por libertinagens várias, deixaram de vir as fitas.
No seu tempo foi Almendra celeiro de cereais, e de garrobas para os gados. Teve lagares e moagens, e uma fábrica de azeites que os seus donos levaram à ruína. Quando as latas de sardinha portuguesa, nos duros tempos da guerra, eram a ração da Europa inteira, de Londres a Estalinegrado, os traficantes da fábrica trocaram os bons azeites de Almendra por águas ruças e aditivos químicos. Houve gente que morreu envenenada e conserveiros falidos. Os operários foram para o olho da rua, a fábrica foi selada em alvoroço, e ficou desde então a enferrujar. Ainda hoje lá está, qual rainha destronada a lembrar glórias antigas, ao comprimento da estrada.
(...)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Auto-frugalismo

ouviste falar?! Ou preferes depois queixar-te?

[A um amigo andarilho, que foi de férias para a Índia.]

Encore

A propósito de Trovas, que tornam a fazer falta.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Mais coisa menos coisa

Mais coisa menos coisa, foi aqui que um dia rebentaram os paióis da fortaleza, que derreteram Almeida. Saíram estes senhores para logo entrarem aqueles, que não chegaram a sê-lo, allons enfants de la patrie.
O rei, que não apreciava fumaradas, reunira a comandita e já estava no Brasil. Chamaram-lhe notável estratega.
Ao povo, abrigado num talude, mandou dizer que assim era o destino, assim é que estava bem.
Não era a verdade toda, mas logo passou a sê-lo.

Pesadelo

Os papagaios de serviço apregoam que a economia americana saiu da crise, o que é um sinal de esperança. Nada mais falso.
Com 20% dos americanos sem trabalho, com um déficit que desafia a imaginação e o mundo inteiro não financiará por muito mais tempo, com as castanhas do Iraque e do Afeganistão a rebentarem-lhe na boca, com o Tea-Party da América profunda a afiar as unhas ao presidente negro, com as finanças em ruínas e a administração em colapso, nem a América, nem o mundo com ela, encontrarão saída sossegada.
Não foi para isso que um tipo chamado Reagan inaugurou a folia, que um tipo chamado Bush elevou a pesadelo. Conforme mostrarão os próximos capítulos, depois das eleições de Novembro.

domingo, 19 de setembro de 2010

Refrão

O pargo estava no ponto e a bola na tv até corria bem, com os lampiões a ganhar. O que me deprimia era o casal em frente.
Trinta e tal anos, uma filhita pré-adolescente, o raspejar duma colher no prato e um silêncio de sepulcro a dividi-los.
- Ao menos um estralejar de hormonas! - matutei. - Nem esse pouco?!
Foi quando a rapariguita me trouxe à realidade e se pôs a trautear:
- Olha a bola, Manel, olha a bola...
Ainda agora me interrogo como é que soube o meu nome.

Adagiário - 4

Cabra ruiva, o que faz, cuida!

[Confirmo que assim é. E atesto com cicatrizes.]

Adagiário - 3

A rico não devas, a pobre não prometas!

Transição

Quem te alerta, bom amigo é.
Quer estejas de acordo ou não!

sábado, 18 de setembro de 2010

Inverno bom só no Verão

A actividade editorial, (e a literatura digna desse nome), foi em tempos uma camisola, pela qual boa gente deu o coiro, com proveito geral. Havia editores que eram uma marca de água, uma garantia de qualidade.
Mas agora já deixou de o ser, e a sua recente concentração em mãos de comerciantes, que apenas visam o lucro, está aí para o confirmar. De acordo com as novas regras, não é indispensável que uma coisa exista para a tornar realidade; basta que se fale dela, e o deus mercado encarrega-se do resto.
Pelos vistos assim é também com a literatura. O novo romance de João Tordo já era top de vendas, mesmo antes de ser lançado oficialmente, com auras de epifania. E outras ameaças há no horizonte.
O jovem autor sentenciou a propósito, falando com a jornalista: Existe um cânone em Portugal que endeusa certos escritores e sacraliza a escrita, tentando fazer dela uma actividade de deuses e não de homens. (...) A nova geração de escritores tem que fazer tudo para o reformular. Isto enquanto a jornalista destacava a importância que (o autor) dá ao poder da narrativa, em detrimento de artifícios e metáforas de linguagem.
O crítico António Guerreiro veio pôr alguma água na fervura. Referindo a máquina narrativa, reconhece no romance um grande domínio dos códigos e requisitos do género a que pertence. Acrescenta no entanto que este romance responde às exigências de um thriller, mas aliena-se das exigências literárias. (...) Porque não há nele nenhuma espessura.
São exactamente aquelas exigências que a jornalista chamou artifícios e metáforas de linguagem, lá no linguajar dela. Uma e outro desconhecem, pelos vistos, o mais elementar: que a linguagem da literatura é diferente da linguagem comum, normalizada e unívoca. É de natureza conotativa, desviada, não referencial. Entre outros, é desse modo que a arte chega à pluri-significação, que lhe permite sugerir mais do que diz, e dizer muito mais do que afirma. Sob pena de não ser o que é.
Eu não li, nem tenciono ler o livro. Já lhe sofri a receita, e o travo, e a azia. Se o autor considera que a literatura é uma noz que só tem casca, faz ele muito bem. A imbecilidade ainda não paga imposto. Não prometa é reformular uma coisa de cuja existência nem suspeita.
E a multidão dos leitores, que das nozes com a casca se contentam, faz ela ainda melhor. A quem não dispõe de dentes, de que servia o miolo?
No entretanto, a questão fulcral continua a ser uma: a quem serve esta literatura?

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Vá lá!

Sai de casa e inebria-te!
Ou pelo menos comove-te!
Ou pelo menos emociona-te!
Ou pelo menos perturba-te!
Ou pelo menos encanta-te!
Ou pelo menos erudita-te!
Ou pelo menos reforma-te!
Ou pelo menos aplica-te!
Ou pelo menos cosmopolita-te!
Ou pelo menos contemporaniza-te!
Ou pelo menos elucida-te!
Ou pelo menos diverte-te!
Ou pelo menos distrai-te!
Ou pelo menos interroga-te!
Ou pelo menos aliena-te!

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Críticos

Já um dia aqui se falou do prémio literário José Saramago 2009. Para dizer, em suma, que os embondeiros fazem mais falta, vivos, nas paisagens do mundo, do que imolados ingloriamente à pasta de papel. Que este romance é um arado, que em lugar de lavrar vai fazendo riscos pelo chão; ou a mó andadeira de um moinho a fingir, que mói, mói, mói, mas não deita farinha. Porque isto da literatura não é nada trigo limpo e farinha amparo, como boa gente pensa e o santo mercado exige.
O jovem autor voltou agora à carga com um trabalho novo, sobre o qual diz o crítico do Expresso estarmos perante um thriller, sujeito a um fator perverso. É a boa recepção que teve o anterior, o premiado, "construindo" o autor como uma das grandes revelações da literatura portuguesa, na ficção narrativa.
Isto por haver um desajuste gritante entre as auréolas antes "construídas", e a realidade do trabalho actual, porque não há nele nenhuma espessura.

Se projetarmos neste romance as aspirações literárias que lhe têm sido atribuídas, ele revela-se vazio e nem deixa que assomem as virtudes que lhe são próprias. Em suma: falha-se o objecto.

No final (...) do texto nada resta porque não há nele qualquer opacidade.

Em nenhum momento ele se fecha sobre si, de modo a que se possa ler outra coisa diferente daquilo que ele quer dizer.

(...) uma intriga que até parece ter sido engendrada para ser contada por outros meios.

Já um crítico do Público e outros espaços do meio, enquanto afina as trombetas, considera este o melhor dos romances do autor.
Para que nem tudo se perca, vamos agora saber: se englobarmos nós o júri do prémio Saramago, que invocou o nome dum deus em vão, quantos papagaios palradores povoam a peripécia?

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Peregrinação

Tomemos o caso do Fernão Mendes Pinto, agora reeditado.
O homem que fala dirá da Peregrinação que ela nos escancara uma rara visão sobre o que fomos, aquilo que vivemos e fizemos, em que é que nos consumimos e gastámos. E que só isso esclarece aquilo que hoje somos, e o que devemos fazer.
Um papagaio falante diz-nos que esta obra conta as fantásticas aventuras do seu pícaro autor, nas partes da Índia aonde foi.
Por cada homem que fala, há nove papagaios palradores.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Tabuleiros

Convirá sumamente destrinçar entre o homem que fala e o papagaio falante. Nada mais difícil e nada mais proveitoso.
O homem que fala elabora um pensamento, partilha concepções novas, oferece pistas de compreensão do mundo. Ilumina a escuridão que nos afoga.
Já o papagaio falante nunca arrisca. Prefere as águas turvas, ambíguas, movediças, donde espera sair de pés enxutos. Quando alguma coisa afirma, logo em seguida expõe o seu contrário, não vá perder nalgum dos tabuleiros.
O homem que fala acende uma luz própria, diz o que tem de ser dito.
O papagaio falante reflecte um sol alheio. Diz o que lhe encomendaram, ou o que lhe convém que seja dito.
O homem que fala ajuda-nos a pensar, mesmo se erra. Empurra-nos para a análise, estimula o espírito crítico, desperta a consciência. Dá-nos armas de defesa.
O papagaio falante convida-nos ao sono e quer-nos a ruminar. Usa cortinas de fumo e sabe muito bem o que é a alienação. O seu fim último é deixar-nos desarmados.
O homem que fala persegue a razão e a objectividade.
O papagaio falante foge delas, manuseia paixões e as suas manhas obscuras. Cultiva, com eufemismos, a parte vaga das coisas. E reduz a realidade às formas com que labora.
Ao contrário do homem que fala, o papagaio falante é multifacetado, pelas múltiplas razões por que chegou a sê-lo: a solidez da carreira, a subserviência ao poder, a humana sobrevivência, a indisposição mental para outra coisa.
O homem que fala cria, o papagaio falante apenas presta serviços: no púlpito, na academia, na tribuna, nos meios de comunicação, no foro, no palco, nas artes, (ah, nas artes!), nas tardes de domingo, nas segundas de manhã...
Um quer romper-nos o cerco, o outro existe para o perpetuar.

domingo, 12 de setembro de 2010

Ah!

Ah o que eu não dava para ter acompanhado os últimos cem anos do império de Roma!
Ah a luxúria do sangue do gladiador núbio, a esguichar, espesso, da carótida escura!
Ah o magnífico ranger duma quadriga, a desconjuntar-se na curva do forum!
Ah a escarninha risada do vândalo de barbas, a jogar à sueca à sombra do coliseu!
Ah o rugir da turba apinhada no circo, suspensa do polegar dum deus de carne e osso!
Se eu tivesse acompanhado os últimos cem anos do império de Roma, já conhecia agora o restante da história. E escusava de me pôr para aqui a adivinhar.

Conspiração, dizem eles!

1 - O que é que fez implodir o edifício 7, a cem metros das torres, e que nenhum objecto voador atingiu?
2 - O que é que fez fundir e colapsar o aço dos pilares, suporte principal de toda a estrutura das torres? A combustão do querosene das turbinas não gera mais que mil e tal graus, o que não é bastante. Mas a termite pode ir além dos 3000 ºC!
3 - Que objecto voador atingiu o Pentágono? A parte menos destrutível dum avião comercial são os motores, que incorporam ligas particularmente resistentes. Porém o que nos mostraram foi um buraco redondo, sem mais danos laterais. Um míssil de cruzeiro podia tê-lo feito. Um simples avião é mais que duvidoso.
4 - A vala que apareceu na Pensilvânia é o lugar onde um avião se despenhou, ou é trabalho dum catrapilo? É que, se não for, parece.
5 - O NORAD é um serviço de vigilância e controle do espaço aéreo americano, de irrepreensível eficácia. Não há notícia de que um objecto suspeito apareça no radar, sem ser de imediato interceptado por caças com uma prontidão surpreendente. O que é que falhou exactamente nesse dia, com tantos pardais à solta?
6 - Determina a lei que os destroços duma catástrofe só possam ser removidos depois de libertos pelos serviços de investigação e de justiça. Por que motivo estes foram removidos de imediato, postos a caminho das fundições de sucata do Extremo Oriente?
7 - A quem interessava mais, e a quem afinal serviu, o 11 de Setembro?
Um dia sabê-lo-emos, quando já não fizer falta.

Crime

O crime fez anos ontem.
Já são nove.
E outros nove passarão, até que o conheçamos.

sábado, 11 de setembro de 2010

Borda d' Água

E agora falta acabar as vindimas, pôr a fermentar o mosto, crestar ainda as colmeias e recolher as nozes. E decruar a restolha do nabal, que é o que sobra da ânsia das searas.
Depois há que apanhar as castanhas, tarefa de Saturno. E varejar as azeitonas, que hão-de manter acesa a luz do mundo.

Litografia

[Sá Nogueira]

Então a minha mãe voltava-se para a janela, creio que para ver melhor e não errar. Entalava o corpo da galinha nos joelhos, com a esquerda segurava-lhe a cabeça por cima da tigela, enquanto a mão direita lhe apontava, ao comprido da crista, o fio duma faca.
A galinha esperneava ao golpe na cabeça. E à medida que o sangue gotejava, tingia-se a malga de vermelho, até ela ficar apaziguada.
A mão que, às manhãs de gelo, me trazia à boca ainda adormecida uma colher de mel, era a mesma mão que manejava a faca.
E agora que eu já cresci, e me fiz velho, e descobri que todas as galinhas têm alma igual à minha, como é que eu resolvo isto?

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Catarse

Os tipos andaram o verão inteiro a furar o passeio, a abrir valas no passeio, a enroscar tubos negros no passeio, a despejar areia no passeio, a desenhar quadrados de cimento no passeio, e a pôr tábuas bailarinas a atravessar o passeio, para as pessoas poderem entrar em casa e não terem que dormir na rua. Encheram o verão de poeiradas, e a rua de poeiradas, e a escada de poeiradas, e os quartos de poeiradas, e até a gaveta das peúgas se cobriu de poeiradas.
Quando o cimento secava, os tipos arrancavam do passeio as cancelas de arame e traziam outra vez o compressor, e carregavam no gatilho do martelo pneumático, e punham-se outra vez a esventrar o passeio porque os canos e tal, a velhice era muita e isso, e a ferrugem ainda mais, derivado aos muitos anos.
De modo que um dia meti-me no carro, fartei-me de andar quilómetros por essa merda de estradas até encontrar uns montes onde não chegava a raiva do martelo pneumático a mastigar o passeio e a lixar-me os ouvidos. Lá fiquei.
Lá fiquei até dar conta de que as peúgas lavadas tinham acabado. As camisolas também já cheiravam mal, mas pior eram as putas das peúgas, quando abria o saco da roupa suja. Era uma coisa que me lixava o juízo, o saco da roupa suja cheio de peúgas podres.
Então lembrei-me da máquina de lavar e voltei para casa, cheguei há uns três dias. O passeio parecia a cara da lua nas imagens da Nasa, mas o compressor estava calado e assim. Não havia cancelas de arame nem tábuas a pendular, nem tipos de cigarro nos queixos, a piscar os olhos atarantados do fumo. De forma que aproveitei para entrar na garagem, a merda do elevador até subia. Atafulhei de peúgas a boca da máquina, dobrei as doses do pó e dos cheirinhos de plástico e deitei-me a dormir.
Ontem à noite carreguei as tralhas no carro. Meti lá dentro a televisão que deixou de dar imagens porque os cabrões me cortaram a antena, arranquei das paredes as gravuras e as reproduções e as serigrafias e as imitações baratas e coiso. A ideia era voltar para os montes logo de manhã, com o saco das peúgas lavadas e camisolas frescas e tudo o mais.
É certo que o verão vai acabar, e toda a gente sabe que os montes no inverno não são pêra doce. São uma porra muito complicada por causa do frio, por causa da chuva, por causa das flores que já não há na horta, à beira do poço e assim. Mas quando vemos um tipo sair de casa com o carro atafulhado de televisões, e molduras empilhadas, e sacos por tudo o que é sítio, ou é que o gajo se passou, ou tem alguma fisgada e está por tudo.
É muito bem capaz de ser verdade. Mas que merda é que se faz numa puta duma casa onde não há barulhos da televisão nem gravuras nas paredes?!
De manhã, ia a sair, dei com os tipos do capacete amarelo a remendar o passeio, a endireitar o passeio, a desenhar quadrados no passeio. Os cabrões tinham montado as cancelas de arame mesmo em frente do portão, e passaram naquilo o dia todo. Que era preciso deixar secar a massa e tal, e que sair só à tarde, lá muito para o fim do dia.
Puta que os pariu a todos, falando mal e depressa. Amanhã tiro a banheira cá para fora. E se ela resistir aos quadrados e aguentar com as livralhadas, as televisões e as molduras, meto por essas estradas à procura dos montes e estou-me cagando para os passeios deles. É que nem ao trabalho me dou de fechar a garagem!

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Fim do Verão

A vida em Portugal é tão precária, que a um suspiro do Outono se arreceia.
E as almas tão enfermiças, que às primeiras névoas se constipam.

Ecos da Sonora - XXIV

Uma coisa é a loucura, ou estultícia, que um humanista herético exaltou. O mesmo São Francisco só por esquecimento lhe não chamou irmã.
Outra coisa diversa é esta insânia em que nos querem a viver.

Linguagem

Qualquer sim-bolo integra. É o caso do pendão da confraria, dum hino nacionalista.
Já um dia-bolo apenas desintegra. Como sabe muito bem quem se mete com ele.

Riscos

Alguém disse, não sei quem: no espírito, carrego o pessimismo; na vontade, o optimismo sobra-me.
Nem mais.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Há quanto tempo...

Sim, há quanto tempo não vias uma libelinha azul?!
[fotos de Ana Cardinal]

Contemporâneos - 2

A estética contemporânea é um modismo, uma onda, se não quisermos dizer uma gangrena. Integra o espírito do tempo que vivemos, o da chamada pós-modernidade. E tão passageiros são um como a outra.
Faz parte dum modo peculiar de ver o mundo e a vida nele, de ver a arte e as relações humanas, e o modo de fazer política, e gerir a economia, e exercer um poder, o da cultura. De ver, ou de impedir que se veja. Não lhe escapa nenhum aspecto da vida, nenhum recanto da sociedade. Nas artes plásticas e performativas, na literatura, na música, no teatro, na dança, é duma vera enxurrada que se trata.
Cada tempo da história teve um espírito seu, sempre assim foi. Este é o de hoje, e é composto dum misto de cinismo e despudor, de efemeridade e caos, de hedonismo e de vazio, de provocação e desfaçatez, de destruição e de descrença, de desespero e desordem, de relativismo, de excesso, de irracionalismo.
Corresponde ao fim da linha em que se encontra a elite burguesa dirigente, enfim só e globalizada, exaurida e esgotada, sem soluções para o mundo absurdo que engendrou. É um fruto do endeusamento do mercado como valor supremo.
Os figurantes da cena contemporânea não procuram emoções estéticas, são agentes de mercado. Nem ela existe para gerar significados, antes para fazer negócios. Vive em circuito fechado. Do público não espera espírito crítico, uma vez que lhe reserva o papel de béstia ruminante.
O criativo contemporâneo capturou o estatuto duma vaca sagrada. Segrega arte porque ele próprio o afirma, enquanto larga poias pela rua. O seu vulto de iluminado e as respectivas criações são indiscutíveis, face a tamanha ignorância e tacanhez. E o público, que é bem-mandado, torce o nariz e silencia.
O distante Wahrol, que como ser humano era um escroque e como artista um farsante, foi o primeiro papa deste evangelho apócrifo.

Cavaco

O nosso Presidente andou pelo Alentejo, a recomendar que os jovens empresários se entreguem à agricultura e ao turismo rural.
Quem havia de dizer que um aprendiz de feiticeiro viria ressuscitar as nossas terras, depois de lhes ter cavado a sepultura, na década dourada do oásis?!

Maputo

Os motins da carestia e da fome no Maputo hão-de parecer, aos beaux-esprits, efeito simples de disfunções locais. Infelizmente não são.
Hoje só há fenómenos globais, resultantes de causas inelutáveis: escassez de energia barata, irregularidades climatéricas, colheitas deficitárias em especial nos cereais, insuficiência de stocks, especulação desenfreada nos mercados alimentares, desregulação da economia em benefício último de cleptocratas.
A cadeia parte sempre pelo elo mais fraco. Mas isso é apenas o começo.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Contemporâneos - 1

Em 2007, uma criação do génio plástico britânico Damien Hirst foi leiloada pela Sotheby's por 13 milhões de Euros. Hirst tinha então 42 anos, e nunca uma obra dum artista vivo atingira um tal valor no mercado da arte.
A peça chamava-se Lullaby Spring, e era nem mais nem menos do que um armário metálico de produtos farmacêuticos cheio de comprimidos pintados à mão.
Para o observador corrente, que de longe tropeça nas questões da expressão artística, uma tal circunstância perturba o senso comum, semeia perplexidades e convida à reflexão.
Nos anos 80, Hirst conheceu Charles Saatchi, um homem de negócios que era dono de uma das mais importantes agências de publicidade britânicas. E parece que as cabotinices artísticas de um casaram na perfeição com o sentido publicitário do outro. Em bom rigor, juntou-se a fome com a vontade de comer.
Porque logo em 1995 Hirst recebeu o prémio Turner, atribuído anualmente pelo museu Tate Britain. Ora o prémio Turner fora instituído por um grupo de mecenas criado por Saatchi, em colaboração com o Tate. A obra premiada chamava-se Mother and Child, e era um vitelo cortado ao meio, imerso numa solução de formaldeído.
Três anos depois a cotação artística de Hirst atingia os píncaros da fama, e o seu volume de negócios aumentava mil por cento. 100 € investidos numa obra de Hirst em 1997 valiam cerca de 700 € em 2007.
Entre as muitas perplexidades suscitadas pela arte contemporânea, a sua natureza de negócio especulativo não é a menor. Faz lembrar um subprime das artes. Na realidade, tudo nela parece funcionar num circuito fechado, que tanto mais atrai especuladores e crentes quanto mais inflaccionado for o valor das peças. Artistas, marchands, comissários, galeristas, coleccionadores e especuladores constroem uma rede de influências que legitima a arte e define o seu valor.
A Art Review edita anualmente o Power 100, onde cataloga as cem personalidades mais influentes no mercado da arte contemporânea. Em 2007, 19% eram artistas (com Hirst em 6º lugar); 31% eram coleccionadores; e 22% eram galeristas.
Assim é que a garantia de qualquer comprador não reside no valor do artista, nem sequer da obra. Antes se apoia na solidez da rede de frequentadores e devotos. Muito mais que a própria obra, vale quem dela se ocupa. E para ter êxito no mercado da arte não é necessário ser artista, pois que isso está ao alcance de qualquer espontâneo. O que é indispensável é saber vender-se. A desfaçatez transgressiva, o culto da seita privilegiada, o martelamento mediático e a rede de influências sociais e financeiras são os ingredientes do milagre.
O comprador da obra de arte contemporânea não oferece a si mesmo uma obra mas um preço. E quanto mais elevado o preço for, menor será a capacidade de a criticar. Porque os críticos, os especialistas, os entendidos na coisa não são mais do que pagens avençados, numa corte cujo rei vai nu.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Mercado

Mais do que aos inúteis produtos que nos impinge, é a nós que o mercado transforma em avatares.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Dois murros no focinho

Assim desabrida e rude, desta forma se exprimiu a polémica surgida entre um grupo de ex-combatentes da guerra colonial e o escritor António Lobo Antunes. À exacta e justa medida de qualquer dos contendores.
Em causa estavam afirmações do escritor, a propósito da guerra: a desmedida violência experimentada, as baixas de 150 homens num batalhão de 600, e a contabilidade dos famigerados pontos, que eram a forma de rodar para um lugar menos agreste.
A primeira questão a esclarecer é a da ficção literária, que se não submete às leis do discurso historiográfico. Abundam por aí vastos equívocos. Porque a ficção cria um universo ex-nihilo. O que ela narra não é o acontecido, mas o que bem podia acontecer. Uma vez que o narrado tem que ser verosímil e plausível.
Ora as polémicas afirmações de ALA são feitas numa conversa com o jornalista. Não estão integradas em qualquer narrativa literária, não são uma página da literatura. Pertencem ao discurso da história, que não ao da ficção. Têm por isso que respeitar o vivido, para não se confundirem com charlatanice bêbeda.
Os ex-combatentes ganham aqui a primeira cartada. E ganham outra logo em seguida, porque nenhum batalhão da guerra colonial sofreu baixas de 25%. Se ALA, lá nas Lundas onde esteve, experimentou violências desmedidas, então nunca viu lobo pequeno, conforme diria o outro. Tivesse ele andado por Cabo Delgado, ou pela santa província da Guiné, e não sei o que diria.
Com a teoria dos pontos, perde a cartada terceira. Mesmo que ela alguma vez tivesse estado em vigor, para aferição do ardor patriótico dos escalões superiores, transformado em medalhas ou benesses, nunca houve dela o mais leve sinal ao nível do soldado atirador, ou do alferes médico exilado no mato.
É pena ver um homem que se quer do espírito e do pensamento a dar razão de protesto e argumento a muitos outros, de quem se não esperam ensinamentos úteis. Mas a vida é assim, e o génio tem limites, mesmo lá onde for real e verdadeiro, isento de objecção. E tal não é o caso, manifestamente.

domingo, 29 de agosto de 2010

A sangueira do Côa

Foi isto há 200 anos, tinha o rei há tempos zarpado para o Brasil, com mais 10 mil colegas da elite dirigente.
Os ingleses vieram por aí fora, amigaram-se com a tropa portuguesa,
e desceram à ponte velha do Côa, para resistir ao papão que aí vinha.
Foi ali uma sangueira. E o Massena conquistou a ponte e derreteu Almeida, mas perdeu a guerra.
Pelo sim pelo não, as senhorinhas ataviaram-se a preceito e foram ver em que paravam as modas.
O povo esqueceu as guerras próprias e pôs-se a ver as alheias.
Indiferente, quem sabe se desgostado, o Côa lá ficou até hoje, a lamber a face dos fraguedos.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Paredes-meias

É frequente na história portuguesa a oscilação esquizofrénica entre a megalomania absurda e a catástrofe. Mafra e o seu rei magnânimo são apenas um exemplo.
O plano original tinha previsto, frente à fachada poente, a principal, uma avenida, ou alameda, ou álea, desde o convento ao mar, até à Ericeira.
E eu imagino quilómetros de bosques e fontanas, e escadórios barrocos, e jogos de água e arabescos mitológicos, e tritões à versalhesa, à enorme dimensão da paranóia de el-rei.
Felizmente a catástrofe do terramoto de 1755 veio gorar tais projectos, já que o país todo inteiro pouco era, para reconstruir Lisboa. E a alameda grandiosa nunca mais foi construída.
Assim nos poupou, o terramoto, a mais esta contradição. Entre a megalomania duma elite dirigente, parasita e antipatriótica, e a miséria com que o povo nunca deixou de viver paredes-meias.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Portugal e o Futuro

O futuro de Portugal é cuidar dele. Qualquer outro só existe nas visões do V Império.

sábado, 21 de agosto de 2010

Metáforas

É frequente, nos meios escritos ou falados, tropeçarmos em referências ao recurso estilístico de metáforas que o não são. A ignorância é um vasto cobertor que tapa muita coisa.
À semelhança da metonímia e da sinédoque, que também o fazem por razões diferentes, a metáfora dá a uma coisa o nome de outra coisa, por razões de semelhança ou identificação.
Um exemplo: as estrelas da Mariana alvoroçam o bairro. O emissor da frase usou uma metáfora. E para que ela seja eficaz em termos de comunicação, o receptor tem que descodificar o seu significado. Que coisa são as estrelas da Mariana, que fazem tanto alarido?
A primeira etapa de qualquer metáfora é sempre uma comparação: os olhos da Mariana são tão brilhantes como as estrelas.
A segunda etapa da metáfora consiste em identificar uma coisa com a outra: os olhos da Mariana são estrelas.
A metáfora propriamente dita coloca estrelas no lugar de olhos: as estrelas da Mariana semeiam ânsias no bairro.
A frase incorporou valor estético, e amplificou o valor significante. Vistas por dentro, as coisas são assim.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Boa lição

Passaram ontem 48 anos, desde o primeiro concerto dos Beatles, em Hamburgo, com a formação que ficou consagrada: John, Paul, George e Ringo.
Com o meu amigo Cabide, comprei eu em 66, num PX americano, o Sargeant Peppers Lonely Hearts Club Band, quando mais tarde apareceu. Nunca mais me esqueci disso.
Era uma coisa nova e nunca vista, cada cantiga daquelas: na estrutura, nos textos, nos temas, na composição, no instrumental, nas orquestrações, no universo estético induzido.
O que se ouvia então eram as xaropadas licorosas do Dean Martin ou do Bing Crosby, e um bom artista era aquele dinossauro que tinha uma boa voz. E mal ouvimos o disco, o meu amigo Cabide achou-o tão esquisito que logo trocou o dele por uma Ella Fitzgerald.
É isso a arte, a criatividade e a inovação. É extrair do nada um mundo novo. Tudo o mais é imitação, dejà-vu, tempo perdido. Depois dos Fab Four, a música futrica nunca mais foi a mesma.
Ora aí está uma boa lição para os numerosos farsantes pós-modernos de hoje.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Magalhães

Ao rei D. Manuel I chamaram O Venturoso, quando melhor lhe quadrava chamarem-lhe merceeiro. Ou oportunista caça-noivas, se depois de outras faenas acabou por se apoderar da prometida do filho.
Repudiou o plano de Magalhães. E assim foi que o maior navegador daqueles tempos, que juntou as pontas da Terra mostrando que era redonda e navegável, acabou a cumprir a odisseia ao serviço dum castelhano.
Dar hoje a um computador o nome que foi o seu é um remedeio fraco. Que a mãe-pátria é madrasta há muito tempo.

Sol de pouca dura

A cruzada contra os albigenses, que em meados do séc. XIII levou à sua extinção nas primeiras fogueiras da Santa Inquisição, destruiu as condições em que floresceu no Sul de França uma sociedade cortesã requintada e culta. Os jograis, os trovadores, e a poética provençal eram elementos dela.
Com a sua morte, morreu entre nós a poesia trovadoresca. D. Dinis resistiu-lhe como poucos, honra lhe seja feita. Mas foi sol de pouca dura.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Toma... e retoma!

[o marketing... ]
Dezenas de milhar de licenciados portugueses não têm trabalho. Centenas de milhar de outros trabalhadores estão no desemprego. Espanhóis inactivos são quatro milhões. Alemães são ainda mais. Americanos, ingleses, franceses...
[... os produtos...]
A economia chinesa cresce 10% ao ano, e acaba de ultrapassar a japonesa. A Volvo já é chinesa, e a Jaguar é indiana. 40% dos produtos vendidos na América pela cadeia Wall-Mart são fabricados na China. Cada ano, 300 milhões de chineses abandonam o campo, com todo o direito a quererem viver melhor. A China já destronou os Estados Unidos, como primeiro poluidor planetário. E tornar-se na primeira economia mundial é questão de poucos anos.
[... e as condições de produção. Clique para ver melhor!]
Uma economia assim globalizada transformou um bilião de orientais em escravos do planeta, ao mesmo tempo que partiu os dentes aos pré-escravos do Ocidente. Serve apenas a criação de dividendos para o accionista, e a ganância da cleptocracia que puxa os cordéis do mundo.
Num quadro destes, com a energia barata a esgotar-se, falar de competitividade e crescimento, de trabalho e de retoma, só é próprio de imbecis ou de farsantes. Que merecem é um toma, à Zé Povinho. E um retoma dos valentes!

Ó Bama!

Pensas, e afirmas, que os muçulmanos têm o direito de erguer uma mesquita em Manhattan, no exacto local do crime. Só por isso, eras um tipo decente.
Mas a América profunda está-se nas tintas para tipos decentes e não te vai perdoar. Não foi para isso que ela engendrou o Ground Zero.

Romaria do Pontal

Muito apesar de tudo, sublinhe-se, todo aquele que não sabe distinguir o PPD do PS, ou pertence ao comité central, ou é ainda mais estúpido.

Congresso

Associação Rio Vivo? Mas o que é isso?!

sábado, 14 de agosto de 2010

Antevisões

Homem prevenido vale sempre por dois.

Como se o mundo...

Consta de três narrativas distintas: As Águas do Capembáua, João Carlos, natural do Chinguar, no Bié, e Como se o Mundo não tivesse Leste. Foi com esta obra que, em 1985, o autor me comoveu e me conquistou.
Um e a outra conheci-os em Luanda, num tempo em que não mais de 30 portugueses trabalhavam em Angola. Passava o autocarro da Itália, com crianças que iam à escola italiana. Passava o autocarro belga, e o autocarro espanhol, e o autocarro brasileiro. Mas não passava o autocarro português, porque não havia em Angola nenhuma escola para as crianças portuguesas.
Angola estava povoada de soldados cubanos e de idiotas russos. Os políticos de Lisboa andavam atarefados, a descobrir a maneira de pôr o país no prego e governar a vidinha. E os jornalistas portugueses, cuja cretinice não é só de agora, chamavam nessa altura mercenários aos 30 portugueses que trabalhavam em Angola. Hoje vivem lá cem mil.
[clicar ajuda a ler]
Ruy Duarte de Carvalho, cuja origem portuguesa a União dos Escritores Angolanos por essa altura omitia, foi um português de lei, mesmo quando se naturalizou angolano. Agora morreu. Bom pretexto para o honrar, e para voltar a lê-lo.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Retardantes

De modo que resolveram organizar um simpósio, para acudir aos incêndios. Não digo internacional, seria exagerado. Uma coisa assim transfronteiriça, para ser mais rigoroso. Custeada a fundos de coesão.
Vieram alcaldes espanhóis, bombeiros dum lado e doutro, delegados da protecção civil, e autarcas raianos ou nem tanto. Estava um representante do centro distrital de operações de socorro e alguns futricas avulsos. A mim, por lhes constar que entendo de palavras, que é uma coisa que não vem nos catálogos, encarregaram-me de resumir as actas.
Alugaram a sala de conferências do hotel Continental, e iniciaram a sessão com um atraso maçador.

- Frequência e dimensão dos fogos florestais na paisagem moderna
- Causas e consequências
- Papel fundamental dos retardadores de fogo no combate à catástrofe

Antes da ordem do dia, o moderador introduz um ponto prévio. De tão ilustres presentes, quer uma declaração de interesses. Quer saber quem não trabalha no mercado dos retardantes do fogo. E fosse ele o imprevisto da pergunta, o intrincado da formulação, ou distração momentânea, o caso é que ninguém se pronunciou. E entrou-se finalmente na agenda dos trabalhos.
Durante o dia inteiro discutiram argumentos, cruzaram fórmulas químicas, compararam resultados. E lamentaram todos não poder fazer milagres.
Eu deixei-os falar e fui tirando notas. E antes de encerrarem os trabalhos já tinha lavrada a acta. Eram todos, menos um, industriais do ramo.
Foi ali um pandemónio, a acrescentar aos fogos, com tanta raposa dentro do galinheiro.

Janelas

Enfim regressei ao bairro, onde a bicha dos crentes no euromilhões tomou conta do passeio.
As mulheres indígenas continuam toscas, mamudas, primitivas. Carregam sacos de alfaces para alimentar a família, e escolhem muito os pães na padaria. Os netos guincham como babuínos que se apoderaram do mundo. E as gaivotas pairam lá por cima, às gargalhadas sobre um areal.
Por sorte minha funciona o elevador, eu aproveito-o e subo. Fecho a porta e vou abrindo as janelas do deserto.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Morte do artista

A arrogância é das mais funestas qualidades humanas.
Irmã dela só a ignorância tosca.
Em parelha são a morte do artista.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

domingo, 1 de agosto de 2010

O pico do petróleo

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

Nos anos recentes, sobretudo a partir de 1998, ano da publicação no Scientific American do artigo The Coming Oil Crisis, de Colin Campbell e Jean Laherrère, a questão energética e o provável esgotamento dos combustíveis fósseis num curto horizonte temporal tem vindo a ganhar grande relevância nos fóruns de discussão entre especialistas. Mormente na Internet, a discussão tem-se centrado sobretudo nos EUA, no Canadá, na Austrália e na UE. E embora timidamente, o assunto começa a ser tratado nos mass-media, sobretudo nos mais especializados.
Esta é, no entender de muitos especialistas, a questão central dos nossos dias. Os combustíveis fósseis são o principal recurso da nossa civilização. Moldaram o nosso modo de vida, alimentam o nosso modelo de crescimento económico, e permitiram a explosão populacional do último século. Porém, tal como aconteceu na Ilha da Páscoa, a Civilização, tal como a conhecemos, poderá não sobreviver ao esgotamento do seu principal recurso.
Quando falamos de combustíveis fósseis, é de petróleo, de gás natural e de carvão que estamos a falar. São compostos (ou misturas de compostos) com fórmulas químicas diferentes. Mas têm em comum o facto de armazenarem energia nas ligações do átomo de carbono. Essa energia liberta-se sob a forma de calor, quando o carbono desses compostos se combina com o oxigénio (O2) para formar o anidrido carbónico (CO2). Na natureza, este chamado ciclo do carbono é um ciclo longo, que se pode traduzir no seguinte esquema:
Energia Solar + CO2 -> Carbono +O2 -> CO2 +Energia Térmica
Num extremo da cadeia está a energia solar, e no outro extremo está a energia térmica. No fundo, é como se o anidrido carbónico absorvesse a energia solar (uma árvore a crescer é disso perfeito exemplo), a qual é posteriormente libertada, na combustão do carbono. O carbono funciona, neste caso, como um transportador, ou carrier de energia.
A grande diferença entre os dois processos do ciclo (a acumulação e a libertação da energia) está no tempo em que decorrem: a reacção simbolizada na primeira seta – a formação dos combustíveis fósseis - demorou milhões de anos a ocorrer; ao passo que a reacção da segunda seta - a utilização desses combustíveis - decorre no espaço de algumas décadas. Tudo se passa como se um tesouro tivesse sido acumulado ao longo de muitos anos, e fosse dissipado num ápice.
Não existem quaisquer dúvidas de que os combustíveis fósseis vão escassear no futuro. Não irão desaparecer do pé para a mão. Mas vão ser cada vez mais raros, o custo de os extrair aumentará, e aquilo que era barato vai passar a ser caro. Isso vai implicar um momento a partir do qual se verificará uma redução na produção desses combustíveis. Nesse momento atingiremos um máximo de produção, e é esse máximo que se designa por “pico” de produção.
Entre todos os combustíveis fósseis, o petróleo é aquele que mais nos preocupa. Por ser mais conveniente de usar e armazenar, por ser mais fácil de transportar, e por ser o mais adequado à indústria dos transportes. E o “pico do petróleo” está à vista. Poderá estar a ocorrer neste momento, mas só será identificado depois de ter acontecido, como se estivéssemos a olhar pelo retrovisor do tempo. Uma tal conclusão ganha força. E a própria Agência Internacional de Energia não a enjeita, ao rever a cada ano, sempre em baixa, as previsões para os anos próximos. Embora não a apresente de modo muito explícito, para evitar alarmismos.
A alternativa das energias renováveis é uma via possível, mas não é a solução. Em primeiro lugar porque isso obriga a investimentos massivos, que vão usar o petróleo. E depois porque o seu retorno energético (relação entre o input e o output de energia) será muito inferior ao que é proporcionado pelo petróleo convencional.
O que temos como certo é que a ocorrência do “pico do petróleo” vai ter como resultado mais evidente a redução do crescimento económico. Isso vai pôr em causa o modelo que está subjacente à economia, o qual se baseia exactamente no crescimento contínuo do PIB. É quase certo que a actual crise tem como causa central, precisamente, a carência de crude, associada aos elevados preços que ele tem vindo a atingir, nas bolsas de matérias-primas.
O mundo tem pela frente um extraordinário desafio: insistir no esgotado modelo de crescimento contínuo num mundo finito, ou adaptar-se a viver com menos recursos, e com um crescimento mais reduzido ou mesmo nulo. Serão os economistas, educados a raciocinar apenas em contexto de crescimento contínuo, capazes de resolver este dilema?!

sábado, 31 de julho de 2010

Livração

Chamávamos-lhe Toninho. Era sobrinho do padre e tinha direito a diminutivo.
Um dia fechámo-nos num palheiro e engulipámos três latas de corned beef, que as fábricas da América mandavam para a Europa e o abade repartia na paróquia.
No fim experimentámos cigarros Kentucky, que também vinham da América. Uns rolos toscos apertados numa cinta, que os velhotes fumavam pelos caminhos.
A mim amotinaram-se-me os bofes, e até a alma se me queria sair.
Mas lá nos livraram do comunismo.

Esperar demais

A senhora ministra da Cultura é figura façanhuda, embora à primeira vista não pareça. Na mesma inauguração do museu dos cavalinhos, (o tal de que ninguém sabe bem o que fazer, salvo uma escassa trupe de agentes culturais iluminados, que confundem vida real e quimeras pós-modernas), armou-se dum capacete de mestra-de-obras, enfiou umas galochas de sapador, não sem prevenir, quiçá, umas quantas acções da empresa de electricidade. Para depois assegurar, do alto do pedestal, que a classificação da linha do Tua como património nacional não impedirá a EDP de a sepultar nas águas. É uma garantia que podemos dar!
Ora é tal e qual aí que o problema se centra!
Nenhum espírito que viva com os pés na terra pode desconhecer a dimensão dos problemas da energia, que o ar condicionado da senhora ministra não dispensa. E eles só podem agravar-se num futuro breve.
É por isso que a heresia de construir uma barragem pode bem ser um gesto inevitável e sensato, ao contrário do que pregam visionários idiotas. Depende do compromisso que ela implica, entre aquilo que se ganha ao fazê-la, e o que se perde deixando de a fazer.
O voluntarismo irresponsável da suspensão da barragem do Côa (onde um razoável compromisso era possível) abriu à EDP o caminho para o vale do Sabor e para a linha do Tua (onde nada se salva do naufrágio). É dum património incalculável e único que estamos a falar, quer em termos nacionais, quer em termos europeus.
Seria de esperar que a ministra da Cultura, ao analisar tão delicadas questões, fizesse melhor do que um vulgar mestre-de-obras. Quem havia de dizer que era esperar demais!

quinta-feira, 29 de julho de 2010

O elefante branco

O mastodonte é pardo. E não parece, mas é, um elefante. É um elefante branco.
Os papagaios de serviço dizem que custou 18 milhões, porém não é verdade. Ficou por 96, que é uma conta calada.
O Museu de Arte Rupestre é o segundo museu de Portugal, em superfície coberta. Maior só o de Arte Antiga. E sobram-lhe ainda desassete quilómetros de área aberta e ar livre, que é património mundial não sei de quê. Como se o não fosse tudo o que há no mundo.
Os elefantes brancos, bichos raros, eram poupados às torturas dos cornacas, que destruíam o ânimo dos seus irmãos comuns, para os reduzir à escravatura e os transformar em catrapilos. E assim andavam por ali, na vida airada, ninguém sabia o que fazer com eles. Nem eles tinham nada que fazer.
É o caso deste museu. Vão inaugurá-lo amanhã, que já é tarde para o riscarem do mapa. Mas ninguém sabe o que fazer com ele. É o IGESPAR que pretende uma coisa, é o poder local que há-de ter outra, é o Instituto dos Museus que puxa para a direita, é o Turismo que lhe prefere a esquerda, é o Parque Natural que afinal acha que não, são empresários privados que lhes parece que sim, é a triste salgalhada à portuguesa e o destino nacional.
Dizem agora que vai ser gerido por uma sociedade anónima. Que é como quem diz, mordam-se para aí, mas à porta fechada.
Vão inaugurá-lo amanhã. Da América vai chegar o melhor que há no mercado, desde que cheire a tralha pós-moderna e às palhaçadas da cena contemporânea. Os cachets são matéria reservada, para não alvoroçar a gentinha ignorante que anda aí por ver andar os outros. No mundo dos farsantes é assim.
E com sorte talvez haja, lá no meio, uma parelha de auroques num lameiro, em ousado pas-de-deux de animação, num ecrã computorizado. Só para deixar umas luzes de como se deve interpretar a arte rupestre.
Depois disso desmancha-se a barraca, excelências e génios vão-se embora. Fica o património mundial, a flutuar ali numa bandeira. E a gentinha triste a olhar para ela, enquanto o sol lhe não comer a cor.

[Adenda: À última hora, inventou-se uma fundação para gerir a coisa, em lugar da sociedade anónima. A seu tempo se verá que só as moscas mudaram.]

Estiagem

Esta canícula maluca, e os fogos que entretanto regressaram, trazem-me à lembrança os "secos e molhados", por razões de analogia e de contraste. Uns polícias a malhar noutros polícias, perante um rei atónito de bronze, e um terreiro do paço envergonhado.
Eram os tempos do ministro Dias Loureiro, a mais fina flor do cavaquismo, modelo maior da livre iniciativa e bicho de sete ofícios. Ah, homenzinho duma cana, é destes que à pátria fazem falta!
Escrevia os discursos do caudilho à custa de horas de sono, foi ministro das polícias e banqueiro, e cavalheiro de múltiplas indústrias, e lobrigou tecnoclogias de ponta numa ilha de indígenas que não vem no planisfério, e não se acobardou com traficantes de armas, e por pouco não reconquistou as praças de África, e andou na caça com el-rei de Espanha, e subiu na vida a pulso como a lei ordena, e traçou os rumos da protecção civil, e investiu forte no combate aos fogos, quando os fogos não paravam de crescer. E ainda lhe sobrava tempo para regressar às origens, a serões de bisca no país profundo, no salão dum mafioso que lhe servia whisky do melhor.
Dizem que agora vive em Cabo Verde, num resort que lá tem. É forte prejuízo nacional! Ele é dos que a pátria a muito custo dispensa, há tantos séculos sujeita a lavar-lhes os pés.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Duzentos escravos para cada um!

É de aproveitar enquanto há!

Chatice grande

O papa B16 andou aí. Recebeu devotadas vassalagens, esparziu indulgências avulsas, e regressou a casa em boa hora.
Um dia passou por Fátima, a sopesar a caixa das esmolas. Mandou dizer que estava lá para o ver meio milhão de crentes.
Mas uma empresa espanhola, que tem olho de Lynce e se dedica ao ofício das contagens, levou a coisa mais ao pormenor. Apanhas 40 mil e é um pau!
Não sei quem tem razão. O mais certo é ficar a demanda para a última instância do juízo final. Mas não deixa de ser uma chatice grande, este mundo moderno, e metediço, e tecnológico!

Deus me perdoe, que é santo

Tarde foi, mas descobri a arte das touradas.

Tiros pela culatra

Sócrates não é espingarda da minha colecção. Mas pior são os canhangulos que abundam por aí.
A chamada Direita, não sozinha, andou a fritá-lo em lume brando, durante muitos anos, à espera de comer o refogado. Agora o caso Freeport rebentou-lhe com os beiços. Transformou a tralha dessa gente política num bando mafioso de jogadores de vermelhinha, dos que andam pelas feiras com cartas marcadas.
A dita Esquerda, bem acompanhada, gastou-nos a todos o juízo, o tempo e o dinheiro com comissões parlamentares de inquérito, para mostrar que Sócrates mentiu ao Parlamento. Acabou transformada num catálogo de virgens postiças, das de página de anúncios.
Cavaco sobressaiu, no caso das escutas a Belém, que haviam de provar que o homem era um perigo para a nossa democracia. E só aquela saída de velho taralhoco, a tartamudear ao estupefacto país razões incompreensíveis, de atrasado inimputável, lhe permitiu descalçar a bota e besuntar os calos dos artelhos. Acompanhou na sombra todas as manobras e perdeu em todas elas.
Até no caso PT/Telefónica, por ínvios caminhos, Sócrates acabou a ganhar. Usou discutivelmente a golden share, que na minha singela opinião não tinha nada que usar. Mas viu afinal resolver a contento a contenda. O interesse nacional lá ficou salvaguardado, e até os espanhóis aumentaram a espórtula.
Mas tudo isto são notícias más, visto que Sócrates não é grande espingarda, e muito menos boa solução. E ir à caça com a restante canalha, é forte risco de apanhar com tiros que saem pela culatra.

Bocas

Disseram-me que os alemães, muito à sorrelfa, andam a imprimir os velhos marcos. Mas não querem que se saiba.
Compreender, eu até compreendo. Mas queira deus que tudo sejam bocas.