sábado, 25 de setembro de 2010

Portugalmente - 76

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Quem vem dos lados da Lapa, como é o caso deste viajante, e abriu os olhos ao mundo a espreitar a brutidão das serranias do demo por onde nem Cristo andou, por força fica encantado em terras de Riba-Côa.
Embora estafado da jornada, o viajante veio no seu vagar, flutuando no requebro feminino das colinas e das charnecas que avistam a Marofa. E ao chegar a um cruzamento decidiu-se pela estrada de Escarigo, Almofala, Malpartida, Vale da Mula, estranhas terras de nomes peregrinos. Andou por sítios em que Espanha e Portugal parecem a mesma coisa, se alguma vez foram coisa diferente. E não deu o tempo gasto por mal-empregado, embora só tenha chegado a Almeida à hora do crepúsculo. Por trás da silhueta escurecida do burgo havia um céu pintado de cor-de-rosa e o dia estava a morrer.
O viajante não é versado em crepúsculos, mas já se tem deixado impressionar. Enquanto foi menino, na idade em que tudo se aprende, o pôr-do-sol era sempre atrás do monte, nas costas da serrania. E se não trouxesse agora tanta pressa, o mais certo seria ter parado.
Assim não foi. Passou a deslado da estacada, espreitou de fugida as quinas aguçadas de revelins e baluartes, e seguiu adiante. Ainda lhe veio à lembrança a explosão dos paióis e a destruição de Almeida, no tempo das invasões. Mas mesmo assim não parou, que era outro o seu destino. E lá seguiu estrada fora, na direcção da fronteira.
Tanta lida para tão pouca vida, é o que sugere o tardio da hora e a dureza da jornada. Depois do serão de ontem à noite, que foi a dádiva última do pai dos pobres, o viajante levantou-se cedo. Tinha à espera o seu anfitrião, disposto a mostrar-lhe Almendra e o mais que o viajante não esperava encontrar.
A aldeia é hoje uma princesa singela. Mas já foi rainha em Riba-Côa, quando as ruas, e as casas todas que há nelas, fervilhavam de força de trabalho e bocas para alimentar. Foi sede municipal, teve um façanhudo forte de que hoje não há sinais, e uma prisão a que levaram as paredes, por falta de prisioneiros. E como era cá da terra o dono dos filmes todos, que os distribuía no país inteiro, chegou a haver um cinema com entrada graciosa, coisa que noutros lugares nem sonhada. Agora deixou de haver, porque a liberdade à solta é bicho que se tresmalha. Por libertinagens várias, deixaram de vir as fitas.
No seu tempo foi Almendra celeiro de cereais, e de garrobas para os gados. Teve lagares e moagens, e uma fábrica de azeites que os seus donos levaram à ruína. Quando as latas de sardinha portuguesa, nos duros tempos da guerra, eram a ração da Europa inteira, de Londres a Estalinegrado, os traficantes da fábrica trocaram os bons azeites de Almendra por águas ruças e aditivos químicos. Houve gente que morreu envenenada e conserveiros falidos. Os operários foram para o olho da rua, a fábrica foi selada em alvoroço, e ficou desde então a enferrujar. Ainda hoje lá está, qual rainha destronada a lembrar glórias antigas, ao comprimento da estrada.
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