quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Portugalmente (69)

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Avelino é o nome do pastor, e já tem a sua idade. Veio da Sapateira, lá ao fundo, passando a ribeira, e trabalha aqui na quinta a tomar conta do gado. À noite vai dormir a casa do patrão. Torna com a estrela de alva, ainda a manhã vem em Castela, e se calha traz a merenda aviada, como hoje aconteceu. É cativa, uma tal vida, assim desemparelhada, mas sozinho já ele estava desde que a mulher morreu.
Hoje ninguém pega em tais trabalhos, vive-se não sei de quê, mas Avelino resiste, nas vizinhanças da santa. Fazem-lhe uma festa em Maio, quando chega o último domingo, é coisa de nomeada e junta aqui muito povo. Dizem missa na capela, sai o andor em procissão à volta deste castelo e no fim arrematam-se as oferendas no palanque de cimento. Para resto há o arraial, mais uns copos que se bebem, e assim se passou o dia.
Mas esta santa já não é a verdadeira, que essa vieram cá os dos Gatos e roubaram-na. Depois os de Casteição fizeram-lhe a mesma coisa, guardaram-na lá na igreja e puseram cá uma nova, de muito menos virtude. Dava chuva, a antiga santa, em lha pedindo. Esta agora parece que já não.
- Pois pena é, coitadas das ovelhas! Sempre tinham pasto fresco e renovado!
O que mais toca Avelino, ponderando esta sequia, são as hortas e as vinhas da redondeza, que as ovelhas não têm razões de queixa. A quinta abrange a encosta toda, vai até lá acima, à estrada. E tudo quanto se cultiva nela serve de pasto para o gado. Que as culturas de algum tempo já não merecem a pena.
- Aqui há uns anos o patrão fez umas plantações modernas, aí pela encosta acima. Só arrotear aquilo foi um cabo das tormentas. Eu bem disse que não provava as novidades, depressa abandonou tudo!
Muito embora escarmentado com tudo quanto tem visto, o viajante fica alvoroçado. Mas são horas de partir. O pastor fica a dormir a sesta no frescor da galilé da capela. E ele já seguiu o seu caminho, já retomou a estrada na direcção da Meda. Toda a cumeada em volta é sáfara e maninha, uma plantação aqui nem por milagre da santa. Mas não é preciso muito procurar. Afogadas no crespo matorral, algumas macieiras resistentes fazem lembrar degredos e sertões.
O viajante meteu-se a corta-mato e foi ver com os próprios olhos. À raiz dos pinheiros que voltaram, em restolhais de pastagens e descampados bravios, rojam-se ainda os tubos ressequidos dum sistema de rega gota-a-gota. Não se imagina donde viria a água, nem que frutas poderiam medrar em tão desabrigadas solidões. Mas certo é que houve aqui projectos de pomares, e mais ainda alguém que os aprovou.
O viajante não quer ceder à descrença, mas vai regressando à estrada imerso em cogitações. Tal como noutros momentos que a história já nos mostrou, a bebedeira dos fundos chegados em catadupa, a política medíocre e a corrupção geral endoidaram o país. Quem apanhou, apanhou, quem o não fez, que o fizesse! É esta a palavra de ordem!
O viajante quer alcançar Marialva sem tornar a ver a Meda, que tem um padrão de pedra plantado logo à entrada. É uma homenagem aos soldados que andaram a combater nas províncias ultramarinas. Desenha a silhueta dum soldado, altaneiro e vertical, a projectar-se em fronteiras de lata, que delimitam colónias antigas.
Ora este viajante tem das guerras africanas recordações dolorosas, conforme já deixou dito. E este linguajar de pau deixa-lhe sempre um amargor na boca. Toda a vida ouviu falar dum passado português de marinheiros audazes. Até que um dia notou que, ou não somos, agora, o que já fomos, ou nunca fomos o que disseram de nós. Levaram-nos, é o mais certo, a fingir o que não fomos. Se assim foi, nunca seremos o que nos dizem que somos. Nas nuvens é que ficámos.
Fosse ele a bem da verdade e o viajante havia de emocionar-se, com este padrão da Meda. Fosse ele o justo tributo às mortificações de tantos portugueses, levados ao altar do sacrifício pátrio, mesmo se vão, mesmo se enganador, mesmo demente. Porém este padrão celebra mitos, em lugar de sacrifícios. Tem saudades de quimeras, cheira a mistificação e a trapaça. Por isso o viajante chegou ao cruzamento e fugiu por uma estrada secundária, para escapar a maus encontros.
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terça-feira, 27 de outubro de 2009

Portugalmente (68)

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Em silêncio atravessa Paipenela, onde decide abastecer-se de água, que a sua já se acabou. Pára num pequeno largo e vai por essas ruas, encostado à sombra das paredes, a escapar aos dentes da canícula. E está a pontos de perder as esperanças quando chega ao portão de Benjamim, que anda atarefado no quinteiro, a pôr em ordem a carrinha dos transportes para a Europa.
- Os passageiros são de muitos lados, vêm donde os houver! Às vezes de Lamego, de Pinhel, d’ Além-Doiro, e a maior parte vai para a Suíça. Só é preciso i-los buscar a casa!
Enquanto fala das suas viagens, Benjamim encaminha o viajante a uma torneira, ao fundo do quinteiro. Mas logo este fica preso à porta duma loja atravancada de rodas de automóvel. Há jantes de aço e outras de liga leve, e rimas de pneus de todos os desenhos. Se fossem de uso caseiro, a carrinha de Benjamim podia dar muitas voltas ao mundo.
- Trago-as na volta das viagens, quando não há outra carga. Sempre há-de haver quem as queira!
- E onde é que arranja estas coisas?!
- Estas coisas não se compram! – cumplicia Benjamim.
O viajante põe-se a congeminar. É madrugada nessas ruas da Europa, não custa nada pôr um carro nos calços e levar um par de pneus em bom estado. Por cá estas pechinchas têm muita procura. E aos portugueses, que toda a vida trouxeram nos pés sapatos de heróis defuntos, dão muito jeito os pneus usados da Europa.
Ao viajante não seduz o negócio. Mas não são dele as contas deste rosário, enche a garrafa de água e mete a língua na caixa. Sorte sua foi ter encontrado o atarefado motorista, pois não há, por estas partes do mundo, outro sinal de gentes ou de bichos. A canícula da hora há-de ser a explicação.
E lá segue, estrada fora, a pensar no que esta vida é, quando surge a tabuleta a apontar-lhe o Santuário da Vila Maior. Mais levado pela curiosidade do que por viveza de ânimo, e menos ainda por devoções que não tem, o viajante seguiu a indicação. Trazia assinalada no roteiro a existência dum lugar antigo, onde já vivia gente antes de cá chegarem os romanos, e depois deles os godos, e mais tarde os sarracenos, muito antes das conquistas dos cristãos. Não estava à espera do santuário que a tabuleta promete, e resolve ir tirar a coisa a limpo.
Mesquinha mas escorreita, a estradinha é obra dos mesmos fundos a que já nos habituámos, e desemboca nas costas duma capela, fronteira a um terreiro arrelvado. A capela atesta devoções recentes, de tão cuidada que está. E o viajante já conhece este vezo da Santa Igreja, de instalar oragos milagreiros onde os povos antigos se fixaram, e onde a história andou mexendo há muitos anos. Porém, não lhe faltando gerais e particulares motivos, se ele trouxesse ilusões de maravilhas e milagres, o mais certo era sair daqui de mãos a abanar. Que o prometido santuário mais não é que um simplíssimo lugar de romarias, onde mais contam as folganças do corpo que os recolhimentos de alma. Ao fundo do terreiro há um renque de carvalhos, a sombrear umas mesas de pedra. E ao lado um palanque de cimento, a encobrir um morro de fraguedos, obra deste benfeitor que deixou aqui o nome numa placa.
O viajante já subiu ao morro. E confirma o que diz o seu roteiro, tão claros se mostram nele os vestígios dum castro primitivo. Razão seria, e da máxima força, para o manter resguardado de palanques de arraial. Mas não é esse o entendimento das gentes destes lugares, que não gastam cera com pedras antigas, como ali atrás disseram os pedreiros de Casteição. Nem com pedras antigas nem com ruins defuntos. Foram cobertas de saibro aquelas sepulturas cavadas numa fraga, apenas para alisar uma rodeira a circundar o morro, onde há-de passar a procissão da santa.
O arredor é feito de hortas e retalhos de vinhedos, e tapadas derramadas pela encosta, cercadas de altas paredes. Tudo nos diz serem pedras que já viram muita história, queira Deus não passe aqui um dia destes algum romeiro espanhol. À mão direita há um pombal antigo e uma casa arruinada. É o que sobra duma velha quinta, a lembrar a vila romana que um dia já houve aqui. Essa era a vila maior, a origem mais remota do nome do santuário. Agora serve de abrigo ao rebanho que ali vem, nas horas do maior calor.
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segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Prémio Saramago


O prémio estimula jovens escritores, atarefados na busca dos grandes temas, afadigados com a boa explanação das matérias da arte. É um estimável desígnio.
Com as suas concessões e os seus deslizes, alguns passos em falso e equívocos não poucos, o romance CAIM é um bom candidato ao prémio do seu autor.

Vultos na paisagem


Um vulto é um espantalho de contornos difusos, e temos dois na paisagem literária: o primeiro é o prémio Nobel, e o segundo a falta dele.
O prémio Nobel, a incurável presunção, diz que o deus criador é um filho da puta, que não é de fiar. E a falta dele, o egocentrismo idólatra, confidencia que o bom deus lhe conduz a desgarrada mão, sempre que escreve.
O deus criador balança entre estas inanidades, já trinta vezes repeso de as ter arrancado ao pó. Mas nada pode fazer. Quer o prémio Nobel, quer a falta dele, já só fecham a torneira febril da produtividade, quando a lista das obras completas ocupar a folha inteira.
E falta pouco, num e noutro caso. Felizmente para a nossa paciência.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A economia de transição

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO-Portugal


Entre os economistas e os gestores, vai-se alargando o consenso sobre aquilo que eles próprios designam como a “necessidade da mudança de paradigma”. Mesmo entre os cornucopianos, aqueles que crêem no crescimento económico contínuo e ilimitado, começam já a pressentir-se dúvidas, reservas e interrogações, quanto à validade das receitas tradicionais para a saída da crise. Sejam elas de pendor monetarista ou keynesiano. “Depois desta crise, nada será com dantes”, é a sentença corrente dos oráculos que, nos órgãos de informação, nas empresas, nas universidades e nos órgãos de poder, tentam prever o futuro da organização económica mundial.
Apesar disso, ninguém arrisca soluções sobre o processo de transição para um modelo económico de tipo diferente. Embora cada dia mais inevitável, ninguém parece saber muito bem como defini-lo e implementá-lo. Existe um estranho tropismo subjacente à actividade económica, traduzido na insistente fé no crescimento, como único remédio para as múltiplas maleitas da crise. É ele que ilumina todas as medidas, e orienta todas as iniciativas que hão-de levar à retoma.
E contudo, parando um pouco para pensar, a lógica mais elementar mostra-nos o enorme equívoco que se esconde atrás desse tropismo. No último século, a população mundial cresceu quatro vezes, sendo que hoje um bilião de seres humanos vive paredes meias com a fome. Imaginamos que não poderá voltar a crescer mais quatro vezes no próximo século, muito longe disso! Além disso o aquecimento global, o pico do petróleo, a poluição, a ameaça de colapso do "Estado Providência", são hoje outras "verdades inconvenientes". Embora algumas sejam já certezas assumidas, a exigir soluções e medidas que não podem ser adiadas por muito mais tempo. Sustentabilidade e crescimento, diz Bartlett, são incompatíveis. E esclarece: "um sistema não pode ter crescimento contínuo se tiver fronteiras a limitá-lo".
Acontece que a economia da transição, tal como eu a imagino, é contrária aos interesses imediatos dos políticos. Não traz votos, exige sacrifícios, convive mal com os modelos do liberalismo económico, e com a chamada “mão invisível” do mercado. Existe mesmo quem questione a possibilidade de a implementar de forma pacífica, para não concluir que só surgirá como consequência de uma ruptura, de um colapso ou de um conflito.
A grande interrogação está em saber como vais ser esta economia, uma vez que não existe, no passado, nenhum modelo de transição a servir de exemplo. A história não revela nenhuma situação em que uma sociedade, ou um grupo, tenha sido capaz de se auto-regular para evitar o colapso. Não o fizeram os maias, nem os romanos, nem os mesopotâmios. Nenhuma civilização extinta parece ter percebido antecipadamente o caminho deslizante para o colapso.
Poderá a nossa, que é global e planetária, poderá ela ser diferente das outras? Algo sugere que sim. Antes de mais, porque existe hoje um grande conhecimento tecnológico. E a facilidade de o partilhar e difundir alcançou, com a Internet, níveis nunca antes vistos. Além disso existe hoje uma "consciência" da Humanidade como um todo, muito diferente das situações passadas.
Entre as grandes questões que, a nível global, terão de ser contempladas num processo de transição, destaco a necessidade de conviver com o crescimento zero, de condicionar o crescimento populacional, de regular as emissões de CO2, e de equacionar o problema energético. O qual passa pelas energias renováveis e pela eficiência energética, e não pode ignorar a discussão da opção nuclear.
Portugal tem seguido um modelo de crescimento baseado no turismo e no betão, ignorando com displicência tudo o resto. Mas tudo indica que esse modelo está a esgotar-se. Manuel Pinho terá sido um Ministro da Economia desajeitado. Mas terá percebido isso, nos dias quentes do verão de 2008, quando disse que estava a chegar ao fim o mundo como até então o conhecíamos. Infelizmente não chegou a dizer como seria ele a partir daí.
Entretanto falam os oráculos em sinais de retoma, e na inversão da crise. E nós acalentamos a ideia falaciosa de que voltaremos em breve aos tempos antigos, em que "tudo será com dantes". Infelizmente é uma esperança vã.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Portugalmente (67)

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Se a vida fossem só as boas vistas, este era o melhor dos mundos. A estradinha é macia, vai seguindo a cumeada na direcção do Douro e parece uma fronteira. À esquerda o vale da Teja e mais além a rudeza das serranias da Lapa, um reino de castanheiros e carvalhos, de matagais bravios e pinhais. À direita o Massueime e as crestadas charnecas da terra quente, pontuadas de vinhedos e olivais, e de inóspitas quebradas a alcançar os confins de Riba-Côa. Já era assim no tempo dos afonsinos, dum lado moram cristãos, doutro são terras de mouros. Vêem-se ao longe os picos da Marofa, da Gata já em Castela, da Malcata lá para o sul. Não se cansam de correr o panorama os olhos do viajante. Pára na encruzilhada dos caminhos, aventura-se a umas fragas mais altas, deleita-se na amplidão do horizonte.
No tocante a lindezas e harmonias, e ao invés do que se vê noutros lugares, os portugueses dão-se por contentes com os favores da natureza. Salvo o monumento antigo, o templo dum outro século ou algum burgo vetusto, basta-lhes para exaltação estética o aprazível recanto na falda duma montanha, o sol-pôr num promontório que afronta o mar oceano, o soberbo panorama onde lhes fica o olhar. A beleza em Portugal não vai além da paisagem. E as suas cores são as que o céu manda, quando não são as do mar. Ao tempo demos feição a este país rural, que aos poucos nos vai morrendo. Mas a história, ou os fios que ela tece, distraiu-nos com miragens e deixou-nos tudo o resto por fazer. Um dia urbanizámo-nos à pressa, para nos tornarmos modernos, mas não criámos qualquer modernidade. E dos nossos fingimentos europeus sobram estendais de fealdade e caos.
A estradinha vai deserta, e a paisagem, que a hora não é propícia. Poucas e magras são as terras de cultivo, cercadas de penedias que os incêndios pertinazes deixaram a descoberto. Mas o viajante já se acostumou a esta solidão. Sabe muito bem que estes caminhos não vêm nos mapas do mundo, e que este Portugal velho não tem lugar na Europa, onde só contam os números e o lucro que deles vem. Mas este pouco é a reprodução miniatural de Portugal inteiro, à procura dele é que veio o viajante. E não contava encontrar a esta hora aqueles três paisanos, que andam atarefados a empilhar umas pedras ali num logradouro. Pára na berma da estrada, vai saber quanto lhe falta até chegar à Meda. A pergunta não passa dum pretexto, o que ele quer é pô-los a falar. Mas os pedreiros levaram-no a sério e alargam-se em comentários. Lá fituram que merece compaixão um sujeito que anda assim longe de casa, a esbracejar no mundo, à torreira deste sol.
Os homens vieram de Casteição, e andam a empilhar as pedras em estrados de madeira, aconchegadas em cercaduras de plástico. Há-de vir um camião de Castaíde a levá-las para Espanha. Os espanhóis forram as casas com elas.
- E donde vêm as pedras?
- Vendem-nas os donos delas! É coisa que não falta por aí!
O homem que assim falou passeia um olhar em volta, a abarcar meia paisagem. O viajante ainda não compreendeu.
- Primeiro vem o mandante, a resolver o negócio com os donos das paredes. Depois chega o pessoal a derrubá-las, e a separar as lascas mais afeitas. É só juntá-las aqui, preparar o carregamento e avisar o patrão. Os espanhóis levam quantas houver.
Ao viajante custa-lhe a acreditar no que está a ouvir. Com permissão dos pedreiros, para não parecer indiscreto, embrenha-se mato adentro e vai ver o campo de batalha. Até onde a vista alcança não há paredes em pé, e o viajante fica embasbacado. Habituou-se a pensar que estes muros desenhavam na paisagem a alma do povo que os ergueu durante séculos. Fazem parte duma herança colectiva. E nunca lhe passou pela cabeça poder alguém chamar-lhes coisa sua e trocá-los por dinheiro. Ao viajante caberá compreender a ganância ou a miséria, mas não entende esta insânia. E não haver um ministro, um juiz, um delegado, um polícia, um deputado, um edil, um pároco, um regedor que intervenha no desmando, só pode significar que Portugal já morreu.
- E como é que apareceu um tal negócio?
- Há muitos anos, sei lá! Veio da raia do Côa, espalhou-se por aí fora, já vai nos montes da Lapa...
- E as paredes dos baldios?
- Mais depressa vão abaixo!
- E você, que pensa deste negócio?
- Cá por mim, do ponto em que me paguem o trabalho...
Abatido com a funesta descoberta, o viajante afasta-se dali, que o abandonaram as palavras.
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domingo, 18 de outubro de 2009

Maus sinais

A falência do PSD, como coisa politicamente relevante, não é de hoje nem tem remédio. Mas é um mau prenúncio para o país.
Ele foi sempre o melhor espelho da sociedade que somos, no que ela tem de pior. Nenhum partido reflecte as entranhas do país, melhor que o PSD. Nenhum lhe foi tão igual, mesmo quando a maioria votou diferente.
O PSD pegou de estaca quando a liberdade veio, num composto de antigas ruralidades e algumas eminências assustadas. Pilotado por caciques, encomendado por padres, gerido por arrivistas, nunca teve outra mola ideológica que não fossem as benesses do poder. E foi servindo de palco a figuritas cinzentas, fiéis assíduas das missas da ditadura, sem a mais leve noção do que pudesse ser um país diferente e novo.
Num país que estava todo por fazer, o PSD mandou construir estradas e pagou aos empreiteiros, quando chegaram os fundos europeus. E enfeitou-nos o futuro com um novo D. Sebastião. O tal que ficou na história não por aquilo que fez, mas por aquilo que havia de fazer, se não tivesse morrido antes do tempo. Ora disso já nós estávamos servidos.

sábado, 17 de outubro de 2009

Portugalmente (66)

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À beira da estrada, num pequeno café, logo encontra refrigério. Que além de professora reformada e boa conversadora, a dona Mariazinha é a gentileza em pessoa. Os clientes são escassos, salvo este velhote que tem bócio e vem encher a garrafa do tinto. E ela está entretida no croché, enquanto a irmã lá dentro traquina na cozinha. Logo quer saber a que anda o viajante, assim exposto ao calor, e o que faz ele na vida, e donde vem. Mas depressa aparece a cozinheira, a dar fé do que se passa. E acabam, ambas as duas, a contar ao viajante a história de Ramón.
O homem dormia na casa da escola, num quarto que ficava por trás do quadro preto. A dona Mariazinha e a irmã eram crianças na altura, e nunca mais se esqueceram do mistério. A professora encostava todos os dias o quadro àquela porta, e proibia alguém de lá entrar. Um dia em que a apanharam distraída houve quem a fosse abrir, e todos viram Ramón, que estava a dormir lá dentro. Logo nesse dia soube a aldeia inteira que havia um homem na casa das professoras.
Elas eram três irmãs. Uma trabalhava na costura, outra ocupava-se da casa, e a terceira dava as aulas aos garotos. O homem era galego, dos vermelhos, andou na guerra de Espanha. E quando caíram as portelas da serra de Guadarrama, e a Casa de Campo sucumbiu às investidas do Franco, perderam-se também as esperanças de Ramón. Com o batalhão destroçado, em vez de recolher à ratoeira de Madrid, enterrou a escopeta por trás duma ruína e pôs-se a andar na direcção contrária. Mais de noite que de dia, mais por carreiros de bichos que por caminhos de gente, viu ao longe a serra de Ávila, depois os montes de Francia, passou dias escondido em casebres de pastores, um era de Alba de Tormes, outro era de Santo Estêvão, três vezes morreu de fome, e já lá iam dois meses quando uma noite saltou o rio Águeda e chegou a Portugal. Alguém lhe deu inculcas em Almendra, e assim ficará explicado que o homem tenha vindo bater à porta do padre Júlio, aqui nos confins do mundo.
Durante muito tempo não saiu Ramón de casa, que o padre Júlio não era tolo nenhum. Até que um dia calhou ele morrer, e o Ramón foi ao enterro. Desde então deu em sair à rua, que já não aguentava a solidão. Juntou-se às fainas do campo, pôs-se a trabalhar à jorna, fez amigos aí no povo. No final já se mostrava pelas festas, não faltava a um bailarico, era mais um entre a gente. Sabia a guarda do caso há muito tempo, e as ordens eram severas. Mas sempre que ela aparecia, alguém havia a passar a palavra. E sumia-se o Ramón, no quarto por trás do quadro.
Um dia apareceu no povo um amola-tesouras que ninguém conhecia. Ficou dias por aí, rua abaixo, rua acima, a soprar numa flauta esganiçada. Foi ao Zabro, às Moreirinhas, aos Moinhos das Cebolas, a meter-se no coração de toda a gente e a dar fé das passadas de Ramón. Já não havia mais facas para aguçar, nem mais tesouras da poda, nem navalhas de enxertia, quando a guarda cá voltou. E o amolador, que afinal era espião, delatou-lhe o segredo de Ramón.
O padre já cá não estava, que era duro de roer. O Ramón foi parar ao calabouço, antes de o devolverem ao Vale dos Caídos, onde acabaram com ele. E a dona Mariazinha e a irmã ficaram sem escola, que as professoras desapareceram daí.
À saída, depois das alongadas despedidas, passa o viajante por uma escola abandonada. Logo ao lado, ali no alto, está São Sebastião, que a seu tempo encobriu a Carmina, à espera da escuridão. No final, pensando bem, conclui o viajante que o rei que Moreira teve não foi o pobre dom Sancho.
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sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A influência do vinho nas elites

Para o Euro 2004, foi construído um estádio num descampado de Aveiro. Palco de dois ou três jogos, custou 65 milhões.
O edil da cidade era então socialista, mas o projecto recebeu o eufórico acolhimento de todos os partidos do executivo municipal.
Entretanto o Beira-Mar desapareceu da Liga, engoliram-no as marés, afogou-se em cambalachos.
A construção ainda está a pagamento, e a simples manutenção é um quebra-cabeças no orçamento camarário.
O responsável da empresa municipal Parque Desportivo de Aveiro já apontou a solução: proceder à implosão do empreendimento.
O pior é o trotil que aquilo leva! A somar às bebedeiras desta câmara, e à de Faro, à de Leiria...

O Tua e os cavalinhos, outra vez!

A afirmação é polémica, concedo que discutível. Este lhe chamará blasfema, aquele despropositada, o outro coisa pior. Para mim é simplesmente verdadeira. Olhados globalmente, os militares portugueses constituem uma das poucas classes profissionais que não fazem rir o mundo, nem envergonham o país internacionalmente.
Houve um tempo em que Eanes tinha um certo ar sinistro, de patilhame comprido e óculo escuro. Mais tarde foi Presidente, foi à escola de Navarra. E hoje diz coisas que fariam pensar os beaux-esprits de que esta pátria anda cheia, se a pátria contasse mais do que o seu próprio umbigo.
Numa tertúlia do casino da Figueira que discutia a energia, Eanes lembrou a necessidade de ultrapassar os nossos atavismos na questão do nuclear. E sobretudo (é a isso que o caso vem!) assentiu que os cavalinhos do Côa não saberão nadar. Mas já tiveram tempo de aprender!
A expressão há-de ser rude, mas não lhe falta clareza. E de finezas retóricas andamos nós todos fartos, que somos de carne e osso verdadeiro.
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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Portugalmente (65)

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As ruas de Moreira têm calçada antiga, do bom tempo, não ficaram à espera que os fundos europeus viessem cuidar delas. E depressa chega o viajante ao largo do pelourinho, vistoso exemplar manuelino com cinco degraus. Cercado de fraguedos e hortas secas, o povoado é pequeno. Filho de estratégias muito antigas, nasceu à sombra do castelo que além está, no alto dum penhasco. Ganhou em esplendores e amplidão de vistas o que perdeu em espaço vital. Afora as casas, algumas modernizadas, tudo o que se pode ver neste adro minúsculo são antiguidades de outro tempo. A primitiva igreja de Santa Marinha, há muito sem usos litúrgicos, ainda hoje tem à porta o padrão das medidas correntes, entalhado nas colunas. Bastando a qualquer um dois côvados de burel para cobrir os ombros, estava aqui a justa medição. E se estes primores de pedra do pelourinho impressionam o viajante, mais o comove a secular gravidade do negrilho ali ao lado. Já sustentou uma frondosa copa, já a perdeu, e agora ganhou outra renovada. Só a frescura da sombra, que o viajante aproveita, é que se mantém igual.
Mais antigas do que o largo, e o castelo, e o negrilho, são estas sepulturas cavadas a picão, na rocha dura. A igreja de Santa Marinha foi-lhes construída em cima, e muitas outras ficaram por aí, disseminadas no largo. Há sepulturas debaixo das casas e dos canteiros de flores, algumas estão cobertas pela base do pelourinho, outras foram ocupadas pelas raízes do negrilho. A julgar pela dimensão e a fundura, dormiram nelas o sono derradeiro adultos e crianças, infantes e anciãos. Fossem eles justos, fossem pecadores, adormeceram todos a contemplar o sol, que todas elas foram escavadas na direcção exacta do nascente. Estão aqui, ombro com ombro, na grande igualação da morte. Mas porque o nascer do sol varia de lugar no horizonte, nem todas são paralelas. Este aqui morreu dos frios do inverno, aquele além sucumbiu às estiagens do verão, põe-se a imaginar o viajante. Se as contas baterem certas, logo aqui se pode ver a falta que faz ao mundo a sombra refrescante dum negrilho, e o fogo dos ramos dele.
Para chegar ao penhasco do castelo tem este viajante que subir uma empinada ladeira. Já passou à porta duma mulher de preto, que tem os figos a secar num tabuleiro, enquanto malha o feijão à sombra dum alpendre. Mas vinha tão afoito e decidido, à procura da cadeira do rei Sancho, que o viajante mal lhe deu a salvação. Muito a custo subiu à cidadela, ao pouco que dela resta, com este sol desapiedado a morder-lhe nos costados. Não viu cadeira nenhuma, e as bagas de suor que já lhe escorrem da fronte põem-no descorçoado. Manuel não está aqui para o ajudar. E apesar do panorama deslumbrante, decide bater em retirada, para escapar à canícula.
Bom refúgio era a sombra do negrilho, se não estivesse ocupada por duas famílias buliçosas, à volta dum farnel improvisado. Vêm dos lados de Aveiro, e andam à procura de alguma casita velha que possam reconstruir, cativas deste silêncio e do sossego da aldeia. Mas fazem tal barulheira que logo vem um vizinho, a explicar as qualidades dum queijo que lá tem para lhes vender. As mulheres falam tão alto que deixam o adro inteiro atordoado, era uma vez o sossego dum largo. E o viajante despede-se do negrilho, algum lugar há-de haver onde matar a sede.
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Azia pós-moderna

Não tive, na altura, qualquer consciência disso, e havia de levar muitos anos a criá-la. Mas a primeira vez que arrisquei o pé no areal movediço da pós-modernidade foi em meados da década de 60.
Era uma noite medonha de Fevereiro, quando embarquei num velho quadrimotor que lá foi a ribombar a noite inteira, por cima do Atlântico. Ele atracou finalmente na ilha Terceira. E eu fiquei a perceber, depois daquela batalha, como é que aquilo tinha resistido à ponte aérea de Berlim.
A minha secreta finalidade era beber uma coca-cola. E logo na primeira noite fui ao bar americano, roído de curiosidade. Sentei-me a uma mesa onde luzia um frasco vermelho de estearina, dei ao gatilho da lata e ainda hoje tenho o sabor guardado nas papilas.
Ao lado conversavam duas amazonas, com um acento do Mississipi que eu conhecia dos filmes. E uma delas relatava uma viagem que fizera a França. A certa altura visitara um cható, uma coisa tipo estate em maiorzinho, que tinha um rio ao fundo da encosta. Era uma coisa verdadeiramente amazing. Pena é que a tivessem construído tão perto da via férrea, onde um comboio apitava muitas vezes.
Eu, que já saboreara a primeira coca-cola, pedi mais uma lata, antes de arriscar o primeiro alexander. Mas quando o rapaz do bar, um açoriano de bigodes, veio trazê-la à mesa, um texano ao balcão esticou o braço sorrateiro, e pescou lá de dentro uma garrafa de rum. Despejou-a em cima do balcão, e logo um camarada fez faiscar o Zippo. E foi uma agitação, um verdadeiro bródio juvenil, quando um terceiro compincha arrancou da parede um extintor e o esvaziou nas labaredas.
A certa altura reparou um deles na farda nova que eu tinha, de um azul novo e composto. Quis saber se aquilo era um uniforme português. E eu deixei-o encabulado, lembro-me perfeitamente, quando lhe confidenciei, num discurso etilizado, que era do vietcong.
Fiquei ali mais três dias, a encharcar-me em coca-cola, a interiorizar o progresso daquela civilização. Aprendi a apertar parafusos meticulosamente, e afoguei-me na pós-modernidade, sem saber no que me estava a meter. Dia e noite chegavam aviões, cargueiros descomunais, que logo punham em bandeira três quartos dos motores, mal se apanhavam no chão. Depois lá iam atrás do follow-me, as carcaças a tremer e os travões a uivar mugidos de bisonte, até pararem algures, na placa de estacionamento que ocupava o vale inteiro.
Nas estradas passavam banheiras imponentes, a ronronar dezenas de cilindros, arrastando pachorrentas toneladas de ferro. Muitas delas atacadas da ferrugem, por causa do salitre que chegava do mar. A gasolina era ao preço da uva mijona. Mas bem caras eram as tampas dos depósitos, quase todas já roubadas. As mais comuns eram fundos de latas de coca-cola, cortadas à tesoura.
Vim de lá entusiasmado, o papo cheio de coca-cola, e uma grande crença no papel dos parafusos na arquitectura do mundo. Mal eu imaginava no que aquilo iria dar. Andei anos até lavar as tripas daquela grande azia pós-moderna.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Comunidades de transição

As gerações do último século tiveram o privilégio histórico de dispor duma energia abundante e barata, que levou milhões de anos a gerar: os hidrocarbonetos fósseis. Graças a eles a vida transformou-se completamente, e grande parte da população do planeta pôde usufruir dum desenvolvimento nunca experimentado. Foi também graças a eles que as sociedades mais evoluídas construíram um modelo de desenvolvimento edificado sobre o crescimento contínuo, baseado no mercado e no consumo.
Três são os estados possíveis dum sistema que opera em universo finito:
1 - estático ou congelado;
2 - em expansão, até ao limite físico do seu universo;
3 - oscilatório, com mecanismos de auto-compensação;
No que diz respeito ao nosso planeta, é hoje clara a consciência dos limites em variados campos: na energia, na poluição, na água potável, no solo arável, no aquecimento global, nas alterações climáticas, na exploração predatória dos recursos, na extinção das espécies, na biodiversidade.
O desequilíbrio atingido é multifacetado e já inegável. Se todos os habitantes da terra consumissem à medida das sociedades ocidentais, só os recursos de quatro planetas iguais satisfariam as suas necessidades. E o presente modelo de desenvolvimento apenas sobrevive se apoiado no mesmo consumismo frenético e no mesmo impossível crescimento contínuo.
Pelo que a pergunta se torna imperiosa: é possível que as sociedades humanas se desenvolvam e progridam, sem crescimento contínuo, sem consumismo predatório, sem mercado todo-poderoso?
O conceito de comunidades de transição surge como resposta, como busca. E vai fazendo o seu caminho por esse mundo.

Antes que esqueça... porque vamos ter mais!

No "Prós e Contras" de anteontem, onde uma parte das comadres tomou parte, o essencial ficou claro.
Há um ano e meio atrás, a Casa Civil do sr. Presidente urdiu uma moscambilha contra o governo, em benefício do PSD. Sócrates andava a vigiar Belém.
Em Agosto passado, José Manuel Fernandes prestou-se ao frete e disponibilizou o PÚBLICO para levantar a lebre e dar corpo à coisa. Noticia que Belém tem suspeitas de que há escutas por parte de S. Bento.
O sr. Presidente conhece as notícias e sabe da manobra, mas não ata nem desata. Não confirma, não desmente, não actua. Fica-se pela conivência táctica. Enquanto no PSD se amplifica a verborreia da asfixia democrática em que o país mergulhou.
Até que o e-mail interno do PÚBLICO chega ao EXPRESSO e ao DN. E o e-mail é explosivo. Diz expressamente que o sr. Fernando Lima, às ordens do patrão Cavaco, servindo-se do PÚBLICO, organiza uma cabala contra Sócrates, em favor da oposição. A qual cabala devia simular origens na Madeira, para cobrir o rabo ao gato.
O sr. Henrique Monteiro, que é pago por Balsemão, não faz notícia do e-mail. E alega não o fazer, porque a fonte era política. E o EXPRESSO não faz a política das fontes. Faz jornalismo ético e deontológico, que é o seu.
Já o DN, analisada a questão, decide publicar o e-mail, porque ele contém informação vital para os portugueses, sobretudo em período eleitoral. E José Manuel Fernandes verbera João Marcelino, por violar correspondência interna e pessoal da redacção do PÚBLICO, traindo os códigos sagrados do jornalismo.
Nesta história, José Manuel Fernandes é um canalha, e só pode vir meter os pés pelas mãos. Henrique Monteiro é um cúmplice cobarde, que apenas pretende espalhar a confusão, lançar cortinas de fumo, impedir a compreensão da moscambilha. Paquete de Oliveira, honra lhe seja feita, aproveitou a oportunidade para zurzir os dois escroques. E o sr. Presidente, que a seu tempo demitiu sem demitir o assessor Fernando Lima, e há semanas apareceu na televisão para dizer o que não disse, fez o melhor que podia, para escapar aos estilhaços: fazer de sonso patético, tentar comer-nos por parvos, contar absurdas histórias da carochinha, e esperar que a chuva venha e tudo passe.
E nós todos... estamos bem servidos!

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Pobres

- Ó mãe, o que é um pobre?!
- É quem não tem dinheiro para comprar comida, e ter roupa, e passear...
- Ó mãe, o pai é pobre?
- Disparate! Porque é que perguntas isso?!
- Porque a Inês disse... que o pai me foi buscar ontem à tarde, num carro mais pequeno!
- E tu, achas que o pai é pobre?
A rapariga ouviu a conversa à filha de 5 anos, à saída do colégio. Uma escola da Linha, com nome de missionários, e uma propina que lhe custa uma fortuna. E à noite, canalha já arrumada, abriu-se com o marido.
- Dizem que tu és pobre, na escola da Maria!
- Terão razão, sei lá! Tão porquê?!
- A Inês acha que tu andas num carro muito pequeno...
O rapaz, que há tempos mudou de empresa, mudou também de carro de serviço. Agora tem ao seu dispor um pequeno utilitário, discreto e eficaz.
Os papás da Inês andam a pagar ao banco um todo-o-terreno de 300 cavalos. E o plasma e o quarto novo. E as férias do verão passado, num paraíso exótico. E o T3, no bairro do Rosário. E a propina da Inês, já com dois meses de atraso.
É muita coisa, coitados, mesmo para ricos! Têm mais do que razão para dizer mal do governo, com esses despautérios todos do rendimento mínimo!