segunda-feira, 25 de abril de 2022

Abril

 

Ainda e sempre|

sábado, 23 de abril de 2022

Cantigas

Mil vozes chilreiam à Primavera. Mas cai a noite e só o rouxinol se ouve.

terça-feira, 19 de abril de 2022

Melodramas

A primeira vez que ela me saltou da poltrona e se dissolveu no ecrã, à vista de toda a plateia, foi quando uma das crianças da família trape, acostumada a vê-la na primeira fila, veio tomá-la do braço para lhe ouvir, à noite, o embalo da voz, antes de adormecer.

A nossa vida já não corria há uns tempos. E não minto se disser que tudo se deveu à incorrigível mania que ela tinha de adiar tudo para depois do casamento. Quando passeávamos no parque, era sabido que só aceitava sentar-se comigo nos bancos onde passava toda a gente. Experimentei várias vezes levá-la à margem do rio, quando à tarde o sol convidava a um repouso debaixo dos salgueiros. Cheguei a estender na relva a manta que trago sempre na mala do fiat, enviesado modo de lhe tornar a sesta mais convidativa. Mas ela escapulia-se, entre risos, e punha-se a refrescar os pezinhos na água, a ver se apanhava à mão as bogas que passavam, a abrir a boca entre os juncos.

E assim me foi arrefecendo a paixão. De modo que fiquei muito tempo em cuidados, sem saber bem como livrar-me dela.

Um dia descobri-lhe uma insopitável tendência para o melodrama, e decidi levá-la à matiné, para ver em que paravam as modas. Mal sabia eu as peripécias que haviam de vir. É que estava ali no ecrã tudo quanto a fazia feliz. Um fidalgo distante e sedutor, a manada dos filhos a precisar de mãe, e uma fada que se perdera a caminho de casa e se abrigara no jardim. Com aquela música dos anjos, o céu, a havê-lo, era por certo assim.

Nunca a vi tão feliz, decerto foi por isso que não mais deixou de ir à matiné das três, até vir a criança tomá-la do braço, como já ficou dito. E, quando a família trape saiu de cena, já ela não podia dispensar-lhe o convívio e continuou a dissolver-se no ecrã. Um dia a história dirá que foi ela a salvação da menina escarlate, na solidão da geórgia, quando o vendaval do destino lhe desabou em cima e o dandy dos bigodes desertou, batendo com o portão. Noutra ocasião, hibernava um poeta russo na tundra siberiana, de alma retalhada e incapaz dum verso, foi ela que se meteu, intrépida, aos frios dos urais, inçados de guardas vermelhos, para guiar o pobre a uma cidadezinha onde haveria salvamento. E, numa tarde de tombstone city, ela mais uma vez não hesitou em pôr-se do lado dos bons, e segredou à orelha do xerife o nome do homem que matou o liberty valance.

Num domingo dei por ela a passar para a matiné, sem imaginar que a via pela última vez. Nessa arde foi juntar-se a um grupo de anarquistas espanholas, que defendia heroicamente uma portela qualquer da sierra de guadarrama, para salvar madrid dos tércios mouros do franco. Não sei onde é que ela aprendeu a manejar os fuzis de repetição, creio que não havia limites para aquele coração febril. Mas a correlação de forças era desesperada, e os alfanges berberes acabaram a cevar-se no sangue nobre das guerrilheiras libertárias.

Ela nunca mais voltou. E, durante uma semana, até eu me reconciliei com a escumalha dos fascistas.

terça-feira, 12 de abril de 2022

Metafísicas

O jagudi de pescoço pelado, indígena dos pântanos, poisou no galho escasso do embondeiro. O soldado de infantaria vinha cansado no coice do pelotão, deitou a bazuca no capim e estendeu-se à sombra do jagudi.

O pássaro ficou a chupar a última perna dum caranguejo do lodo, e o atirador abriu uma lata de sardinhas de conserva, que tirou do bornal.

- Mais me valia um pássaro na mão! - disse o soldado de infantaria.

- Antes te acudiram dois a voar! - disse o jagudi dos pântanos.

E assim ficaram. Mas quando o soldado atirador deu um piparote na lata vazia, um raio de sol fez ricochete no fundo da lata e regressou ao infinito.

Atentos ao sinal estavam dois bombardeiros de focinho comprido, que patrulhavam as nuvens e tinham ordens para abater tudo quanto mexesse. Vieram como duas setas, de nariz esticado e sorrateiro, rasgaram o ar por cima do embondeiro e largaram as duas bombas de napalm.

Iguaizinhos na vida, o jagudi e o soldado de infantaria mantiveram-se idênticos na morte. Só divergiam na metafísica.

sábado, 2 de abril de 2022

Lidoro

Um tal nome é corruptela do vulgo, do original já não há quem se lembre. Tinha ressonâncias clássicas perdidas, engendradas ninguém sabe como na cabeça do pai, a quem chamavam filósofo. Isto quando voltou da grande guerra, de cabeça estonteada pelos gases.

Hoje vive ali nas Tapadinhas, a meio da encosta, como um anacoreta. Tem uma casita de chão térreo, com uma porta por onde o sol espreita, sem entrar. Lá dentro cabe uma vaca, duas cabras, e dúzia e meia de cães. Na horta há uma presa velha, de águas-vivas. Basta-lhe a ele, aos bichos e ao renovo.

Quando calha apanha uma perdiz, um laparoto incauto, se os cachorros ajudarem. Poda as vides da latada em lhe chegando o tempo, e é delas que tira um palheto improvisado para adoçar as invernias. Afora isso deixa o mundo correr.

Teve em tempos uma namorada, e desejos de fazer vida com ela. A mãe é que não deixou, no entendimento dela não era mulher para ele. A namorada foi casar a outro lado, a mãe morreu quando lhe chegou o dia, Lidoro ficou sozinho e mudou-se para as Tapadinhas. Nunca mais voltou ao povo, que foi ficando deserto.

Já lhe ofereceram uma casa da Misericórdia, um catre no lar dos velhos, mas ele escorraçou o mensageiro. Diz que se fartou daquelas galgas, que não está para as aturar. As galgas são as línguas das mulheres, quando se juntam na fonte. E ninguém lhe deu notícia de que as galgas já morreram e deixaram de lá ir.

A pontada que lhe mói o lado esquerdo já passa as noites com ele. A princípio ia e vinha, uma fraqueza assim ao fim da tarde, talvez por mor do cansaço. Agora nem de madrugada o larga. Prende-o à cama e só o vai largar quando acabar com ele. Mas Lidoro ainda o não sabe.

Nessa altura, que não tarda, os cachorros vão juntar-se à roda do seu dono, todo ausente, a mão imóvel. Vão ganir-lhe, em voz chorada, a pressentir o pior. Vão uivar-lhe, em desespero, já sem esperança nenhuma. E vão ladrar-lhe, raivosos deste abandono, já toldados pelo instinto. Até que o primeiro deles lhe afoite na jugular os caninos esfaimados.