segunda-feira, 22 de julho de 2024

As Aves 2-21

Gaspar também não sabe ao certo, nunca foi criatura de grandes surpresas, intui apenas que ser livre é cumprir, o ponto estará em saber quais são os mandamentos, e neste labirinto de razões nenhuma ariadne salvadora se mostra. Acreditou que a sociedade se compõe de classes com interesses que divergem, e que é preciso descobrir uma fórmula que os harmonize, se será a abolição das mesmas classes. Mas duvida de que os homens sejam todos iguais, pois tantas serão entre eles as diferenças quantos os diferentes lugares e situações de que o mundo se compõe. No íntimo desconfia da massificação, do nivelamento igualitário, que afoga a respiração das utopias na medíocre paisagem das ruelas de bairro. Acredita nos ideais que podem melhorar o mundo, e que é um dever de consciência e de cidadania lutar por eles. Mas pressente o erro das utopias que resvalam da realidade para o desenho e o sonho, e acabam agarradas à jangada náufraga dos dogmas, reproduzindo velhos vícios, semeando vítimas novas. Habituou-se a ouvir endeusar as massas, porém no íntimo desconfia da sua real consciência, e teme que isso não passe de facilidade retórica, cujo eco reboa nas fachadas das grandes praças, para consumo nos comícios. Apercebe-se de que os seus movimentos resultaram sempre de opções da razão, ele nunca foi um proletário, seja lá isso o que for. Fora de mesquinhos interesses a sua contabilidade, e bem diversas teriam sido as suas posições. Por isso isso se sentiu sempre fora do seu lugar. E talvez por isso vacile tantas vezes, e tantas vezes lhe custe compreender o que acontece. Assim é que a sua atitude foi sempre recolhida e discreta. Desafiou, porém, riscos que pressente, e cuja dimensão é incapaz de avaliar. Não pode hoje prever as atribulações que o esperam, e muito menos saberá que vinte anos depois não terá cessado ainda o seu calvário.

Mas Deus dá o frio conforme a roupa, é o povo que o diz, se o seu dizer está certo. No silêncio da noite ouvimos apenas o ronronar deste motor que nos transporta, a estrada é macia e cómoda, sem sobressaltos de molas, passa por nós, às vezes, um camião pesado e a onda de choque estremece-nos, acorda-nos o roncar das engrenagens, e só então nos damos conta do grande silêncio em que vamos, parece geral a tranquilidade, se não for erro da nossa apressada avaliação. De Gaspar já sabemos que neste manto se resguardam apenas desconforto e incerteza, ou alguma pusilanimidade, no ponto em que as coisas estão só a grande força ou a inconsciência da juventude lhe pode servir de alguma ajuda. Dos outros nada sabemos, e a lua já cá não está para nos iluminar, acaso se fartou desta monotonia e foi pregar a freguesia mais animada.

Quem bem prega é frei Tomás, pois, para pregador, essteve Gaspar apenas prometido. Saiu da escola na desgraçada época em que o liceu era ainda um luxo de gente rica, e de novo nos cai nas mãos a questão de saber se o mundo será igual para todos, ou se não é antes para todos diverso, pela simples razão de que para todos igualitariamente não chega. Acabou há alguns anos a guerra que dessangrou a Europa, da qual um sopro divino nos livrou, aoque se vai ouvindo, e afinal é no nosso corpo que as mais fundas feridas se notam, apetece desejar que ela tivesse passado por cá e deixasse tudo arrasado, ao menos entenderíamos o porquê das coisas. E em vez de passarmos a vida a agradecer a paz que nos deram, sem a termos merecido, aproveitávamos para mudr alguma coisa, percorre-se o país inteiro e não há uma escola fora das capitais de distrito, tudo o resto são comendas, alguma paisagem e trabalho de sol a sol. Não tardam muitos anos e havemos de conhecer os invernos de Paris antes de irmos a Lisboa, e falaremos francês antes de sabermos ler a nossa língua, e andaremos de passeio nas margens do Sena, aos domingos, antes de vermos o mar e as dunas da nossa terra, e teremos carreiras expresso para os cantões suíços antes de as termos para ir à cidade, de que nos serviriam elas. (Cont.)

terça-feira, 2 de julho de 2024

As Aves 2-20

Gaspar entretém-se com estes pensamentos enquanto deambula cabisbaixo pelo saibro das ruelas, pergunta-se pela racionalidade do mundo e não sabe ainda que não há, nesta vida dos homens, racionalidade nenhuma. Um dia virá a descobri-lo por força de tntas perguntas lhe ficarem sem resposta, mas não sabe ainda que tudo quanto consegue o comum dos mortais é mover-se por paixões e instintos vagamente primários, às vezes pela força dum sentimento, quase sempre por interesses que é melhor manter privados. Nestes tempos de sonho à solta, acreditou que era possível uma outra forma de viver, e que, essa sim, havia de apurar nos homens uma outra racionalidade. Não sabe ainda que o sonho de transformar o mundo é uma febre de idealistas inquietos, condenados ao fracasso e ao desprezo geral, um dia virá a descobrir que só o poder ou a violência, última forma de poder de quem outro não tem, atraem a atenção e o respeito dos homens.

Mas isso Gaspar não o sabe, por enquanto. Nes tempos de galope desenfreado, acreditou numa verdade que se imporá por si mesma, tanto melhor se alguém lhe for abrindo caminho. E viu na revolução a oportuna ocasião de gritar contra a injustiça e a mentira, como se tais coisas, em absoluto, existissem, a ocasião de chamar a terreiro os poderosos, e vê-los assim, ridículos e frágeis, sem peitorais de alfaiate, assustados, de caças na mão, como qualquer um. Gaspar ainda não descobriu que neste mundo só há injustiça quando uma vítima dela tem consciência. E que o poder só mente quando os seus discursos esbarram no riso geral e provocam o desprezo do povo. Afora isso, o poder exerce-se, e legitima-se a si mesmo, e ninguém se pode queixar dele. A injustiça e a mentira, referendadas pelo silêncio geral, transformam-se em ideologia e em catecismo, são a legalidade. É por isso que a suma essência de todos os poderes está em descobrir a fórmula capaz de alienar os homens, capaz de os privar da liberdade crítica, dando-lhes em troca o sono dos justos. E desde as promessas de boa-ventura no além, a um par de safanões dados a tempo, não contando com outras sofisticações que a seu tempo virão, vasto é o arsenal já inventado, de efeitos comprovados, por atacado e a singelo. Velha de séculos é a escola em que os poderosos aprenderam a conhecer as fragilidades do inimigo, e lento é o processo em que o homem comum ganha consciência dos seus direitos e da força que tem.Gaspar dá-se conta, embora tardiamente, de que averdadeira revolução é um gesto de rebelião estritamente pessoal, que tem que ser elaborado por cada um, e que só um voluntarismo perigoso a pode transformar num acto vanguardista, em que uns se vêem arrastados por outros, e um só iluminado supõe representar a voz de todos. Um dia achar-se-á sozinho, atado ao pelourinho da praça, culpado de todos os males. Por isso, não há-de a revolução gritar  contra a injustiça e a mentira, que são relativismos privados. Antes reivindicará a liberdade geral de cada homem, pela qual será, cada homem, responsável. Ver-se-á então o que faz cada um desta caixa de Pandora, das delicadas benesseas que traz, e dos agudos cuidados que exige.

Mas não há, sobre o mote, geral unanimidade, conforme se tem ouvido. Liberdade é o trabalho mais o pão, é levantar os punhos pela revolução, é ter cada um segundo a precisão, liberdade é votar em chegando a sazão, eu prometo-te o céu e tu dás-me a eleição, é não haver poder, é não haver patrão, é não ser proibido escarrarmos no chão, liberdade é cultura, liberdade é saber, é fazer cada um tudo quanto quiser, sobretudo respeitinho pela propriedade, isso é para mim a real liberdade, liberdade é ter cada um seu lugar, é uns a obedecer e outros a mandar, liberdade é poder, liberdade é mantença, um dia saberemos o que isso vem a ser, e se cada cabeça der uma sentença, talvez não haja, afinal, mais nada que aprender. (Cont.)

domingo, 2 de junho de 2024

As Aves 2-19

Que filhos são cadilhos toda a gente o sabe. Lá vêm estes galrejando risos pela rampa acima, senão gritos e choros, ao menos estes não pedem sangue, como as espingardas, singela candura a desta infância que tão bem aproveita as folgas do estado de sítio, parece isto uma geral gazeta na cidade, ninguém está onde devia, noutra ocasião ficaria Gaspar encantado com a sociedade, mas não assim, ó mãe, está ali um homem sozinho, de cara triste, sentado ao cimo do pinhal. O rebanho dos garotos está cada vez mais perto, Gaspar reconstrói-lhes pelas vozes o volteio das brincadeiras, perde-se a imaginar-lhes caras e estaturas, cabelos e cores de bibes, o que vale é este tufo rasteiro de arbustos que ali vai sobrevivendo, não é Gaspar um coelho bravo, mas por uma vez qualquer um pode sê-lo.

Estes índios vieram brincando até ao cimo do pinhal, e a mais não se aventuraram. Gaspar jaz, imóvel, de costas no chão frio, como um rei de pedra que se cobriu de ramos de oliveira, parece contraditória a figura e nãoo será tanto assim, a vida tem destas ironias. Em todo o caso, ele próprio escolheu o seu papel nesta história, não tem que se queixar da pele que vestiu, mais valera ter-me ido embora, caraças, saía por aí tranquilamente e nem os putos davam por mim, se algum sacana aqui mete o focinho curioso ou me desenterra a pistola, a tarde é longa e tem que passar, tende paciência, Senhor, chamai as criancinhas, fazei-as ir a vós, já é chegado o tempo. É fácil rirmos nós desta comédia que aqui se representa, e tantos são os actos e peripécias quanto é infindável o poder de improviso destes figurantes, o pano só baixou quando um aguaceiro veio correndo da calçada do Lumiar, e obrigou a trupe a debandar desordenadamente encosta abaixo.

Gaspar libert-se enfim da camuflagem, tem a véstia molhada e gelaram-lhe os pés da imobilidade, agora só lhes resta caminhar por essas ruas até que a noite chegue. Lá vai ao longo do alto muro do cemitério velho, se modos há de um vivo passar despercebido é misturar-se com os mortos, outra vez parecerá ironia mas não é, que para alguma coisa haverá de servir o rio do esquecimento que estes já cruzaram. Está entreaberto o pesado portão de ferro forjado e Gaspar respira enfim descontraído, não é este um lugar de brincadeiras infantis e os mortos ficaram indiferentes ao estado de sítio, para eles nada se passou, para eles é já a vida toda um recolher obrigatório.

Há aqui meia dúzia de ciprestes que resistem à febre dos jazigos e das lápides funerárias, e, lá ao fundo, uns restos de sebe de buxo sobrevivem à praga das sepulturas perpétuas. Tudo o mais é um sufoco, uma claustrofobia para estes defuntos, quando  morreres esvoaçarás invisível entre sombras impotentes, sem que haja de ti memória no futuro, não assim para estes vivos, que todos querem aceder à imortalidade, todos se julgam dignos de figurar nestes mapas do tempo. Os antigos, no tempo em que as tardes eram sossegadas e o mundo era ainda uma coisa compreensível, esses tinham, ao morrer, o bom senso de se empilhar na propriedade horizontal de um jazigo de família, se o havia, mesmo os que eram ricos e se julgavam famosos poupavam nestes loteamentos. Hoje, qualquer um reclama um lote próprio, vivenda exclusiva e jardim anexo, num imenso desperdício de espaço, onde sóos caracóis pastam as ervas e bolçam o nácar dos humores. Por este andar, amanhã os cemitérios não comportarão mais sepulturas perpétuas, estas perversões da propriedade, cujos donos deixaram de existir. E elas hão-de saltar para as azinhagas circundantes, alinhar-se-ão à beira dos caminhos, ocuparãoo lugar das hortas e searas, misturar-se-ão com as perpétuas campas dos gatos e dos cães que também sonharam com a imortalidade, hão-de alcançar a orla das praias, os mortos que nunca viram o mar vão assustar-se com as marés vivas de Setembro, e acabarão,quem sabe, por ter que se espalhar pelo fundo dos oceanos. E um dia, quando todo o vasto mundo or um campo santo inútil e pejado de fantasmas ocos, os homens descobrirão que apenas a indiferença das pedras tumulares contempla a sua maçadora imortalidade. (Cont.)

sábado, 1 de junho de 2024

As Aves 2-18

Desce Gaspar do autocarro suburbano e sobe a encosta do bairro, é meio dia e o bairro está estranhamente silencioso, se deserto ou recolhido não o saberemos, não há ninguém no estanco sujo da esquina, descontando um locutor afogado no aquário da velha televisão doente de fantasmas, enquanto debita na atmosfera dde carapaus fritos mais um comunicado, partiu um avião sa Força Aérea com cinquenta prisioneiros para o norte, certamente com destino a Custóias, as informações militares mantêm-se reservadas sobre o evoluir da situação e do estado de sítio na cidade, reservada também namora esta velhota a fruta que o merceeiro expõe cá fora, pois que tudo são horas de negócio e aflito andará o povo mas comer sempre come, assim possa, que feito será das crianças que não há no pátio desta escola, as ruas estão ali por estar, admiradas, quem sabe, com este vazio de moradores, esta mulher que ali vai d blusa vermelha não sabemos quem é, este homem de sobretudo é Gaspar, e vao tocar à campainha dum amigo, ali no segundo andar.

Prime, de novo, o botão, num arrastado toque de urgência, que fica sem resposta. Nem admira, quem poderá ficar em casa hoje, depois que a velha assim comeu as nêsperas do poema, ele haverá ordens do sindicato, talvez mobilizações do partido, Gaspar domina a perturbação e o desamparo em que está, talvez à noite, Deus queira que à noite.

A velha pistola de guerra mal se lhe acomoda debaixo do sovaco, a guerra parece ter terminado mas deixou este inchaço inútil e suspeito, quem dera que só este fosse, é preciso arranjar modo de passar o dia fora de vistas curiosas. A encosta prolonga-se por cima do bairro, há mesmo além um arremedo de pinhal que resistiu às casas de cimento, uns campos de antigas oliveiras, um cereal raquítico, o incómodo abcesso da pistola acaba por dirigir Gaspar na direcção da mata. Estes campos estão vazios de gente, e debaixo deste pinheiro mais copado escava Gaspar um buraco onde enterra a arma.

As nuvens agitam-se na atmosfera outoniça da tarde, se também terá chegado ao céu o desassossego da cidade, o vento corre fresco entre o casario que por estas encostas se derrama, por entre as vivendas clandestinas que assomam aos picos de Camarate como rebanhos de cabras a tasquinhar restos de capim do verão, os rebanhos das melancólicas cabras de Lisboa, que aos domingos se aventuram até àspistas da Portela e acabam a galopar à frente dos guinchos das hospedeiras de bordo, bolsando pelos cabeços o enjoo do querosene das turbinas. Não tarda muitos anos e nenhuma daquelas hortas sobreviverá lá em baixo, à beira do ribeiro que há-de ser encanado em betão, ceifada a ilusão verde dos caniçais da margem. Tempos virão em que será pouco todo o espaço para rasgar auto-estradas e circulares periféricas, não há fome que não dê em fartura, como é sabido, alguns dirão que mais fácil há-de ser então fugir daqui, com tanta via aberta, outros acreditarão que por aí há-de entrar à força o progresso vindo do estrangeiro em camiões gigantes, em contentores alemães, em paletas espanholas.

Mas isso é o que há-de ver quem lá chegar. Aqui, do alto da colina em que está sentado, relanceando o olhar à escassa e confusa história pátria que lhe permitiram conhecer, e à resumida experiência de vida acumulada, o que vê Gaspar é um povo submetido e parado na infância, esbracejando há séculos contra a miséria que Deus manda,ou o diabo, pastoreado por tiranetes a golpes de hissope e de bastão por quantas paisagens do mundo abriga a rosa do sol, esbulhado de consciêcia e de dignidade em trocas de favores, da salvação eterna e outros, bem aventurados serão os pobres de espírito porque é deles o reino dos céus. O que vê Gaspar é um povo que parou, exangue, à beira dum mar de névoas, apalermado da maresia, um gigante de feira que vai curando as chagas das pernas à sombra dos padrões que o vento semeou nas costas de África, arquejando ao peso das múmias da história enquanto rega as couves, enquanto procura exílio nos subúrbios da Europa a ver se escapa à fome, enquanto vai digerindo o fardo inútil dos mitos que arrasta como uma jibóia exausta, um povo que tem, para tudo, resposta na ponta da língua, menos para as perguntas que é, ele próprio, incapaz de fazer, e que trota a pé, a caminho de Fátima, à procura do extremo, desesperado e definitivo milagre. Nunca mais, desde que o forçaram à Índia, acertou o passo com a própria sombra. E agora, fatal surpresa, aí tem pela frente a liberdade toda de fazer com a história as contas atrasadas, acaso será esta a maior penitência que lhe pode ser dada.

E estas são divagações amargas nossas, está bem de var, maneiras de brincarmos com sérias coisas enquanto vai correndo o preguiçoso tempo, Gaspar está ali sentado debaixo do pinheiro, afogados os olhos numa aflição miúda, a bem dizer vai resistindo ao medo, e não imagina o que virá a acontecer daqui a vinte anos, se o soubesse mais aguda seria a sua angústia.

Nem sequer sabe o que agora corre na cidade, já perguntou a este vento que passa e ele não disse que Caxias está a encher-se de presos, não confessou que em Santarém também os há, que outros chegam em levas a Custóias já o locutor o anunciou, mas nem um nem outro falaram das algemas que lhes prendem as mãos às costas durante o voo, nem das metralhadoras que os pastoreiam enquadrados assim na linha de mira, sobre as espingardas que pedem sangue nem um nem outro se traíram, nem dirão que há baionetas faiscando pela desforra, meu general, consideramos que tudo vai ainda a meio e muito está por fazer, ditosa pátria que tais filhos tem. (Cont.)

sábado, 25 de maio de 2024

As Aves 2-17

Já outros entendiam a vida das sociedades como uma barcaça antiga, a hesitar entre disputas e ralhos, dirigida porémpelos escolhidos em eleições democráticas e livres, ou por alguns mais expeditos, como vezes bastantes se tem visto e se há-de tornar a ver. Porém, enquanto uns e outros se tomavamde tais razões, velhos senhores de ânimo recobrado começaram a mover armas e tropas, afinando estratégias em segredo, enquanto bombistas multiplicavam assaltos e atentados, e o governo preparava a saída de Lisboa, declarando greve à impossível função de governar. Por isso Gaspar ficou surpreendido quando as movimentações das tropas rebentaram, participou nelas com o sobressalto que já vimos e as dúvidas quenos confidenciou, e aguardou um desenlace que lhe não traria surpresas. Foi só asi próprio que enganou, se engano houve. Porém, mais por saber o que não queria, do que por estar certo daquilo que buscava, nunca cedeu aos sinais de derrocada, como fazem os ratos em cheirando a água nos porões.

Derrocada, porém, não foi o que agora aqui houve, nada mais que um desfalecimento passageiro, um baque no chão de que este companheiro já se recompôs, a embaixada segue rua adiante, o caminho espera por nós.

E é longo, este caminho. Rodando no céu, a lua descaiu para o indistinto horizonte, não chega este luar para claramente iluminar o mundo, se o mundo se terá tornado vasto demais para nós, ou nós por demais minúsculos perante ele.

E talvez seja isso. São todos os homens formigas demasiado minúsculas perantea vida, mesmo as que seguem de vaidoso rabo alçado no carreiro, bêbedas deste verão que aí está e não vai durar muito. São bonitos os sonhos que na arca do peito lhes rebentam, mais fáceis de sonhar quede materializar, que estes sonhos pedem o que nunca foi feito, e exigem, para viver, um mundo que ainda não houve. É demasiado simples decretar a igualdade geral, e que nenhum homem construa a sua felicidade com o sofrimento alheio. E tavez aí se funde este azedume que em Gaspar desvendámos, e esta intolerância com fraquezas que a si próprio não permite. Em rigor, o que ele sente é o desconforto de ter persistido em acreditar, mesmo quando a sua intuição lhe segredava os perigos que aí vinham, em acreditar na litania da capacidade milagrosa das massas,dos operários, dos camponeses, dos soldadose dos marinheiros, em acreditar que só os pequeno-burgueses pusilânimes descrêem da força e do avanço imparável da história, sem se darem conta, uns e outros, de que apenas são já uma trupe de robertos de feira, nas mãos de quem recuperou o comando dos acontecimentos, e os manipula em silêncio.

Poderia Gaspar ter ficado estendido, como outros, debaixo da grande figueira bíblica que esta vida é, olhai as aves do campo, que não semeiam nem colhem. Sejas tu homem cordato e reverente, sabendo esperar alguma coisa te há-de vir à mão, quando os figos maduros, em Setembro, vierem a cair. Foi culpa sua ter desprezado este saber de séculos, se presunção temerária não foi antes o seu pecado original. Já ao pai adão rebentaram os beiços deste leite, e mais eram do paraíso os figos verdes que comeu. (cont.)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

As Aves 2-16

O companheiro fez as despedidas telefónicas, está encostado ao balcão e perdeu visivelmente a cor, qualquer coisa lhe deserta do semblante, se não é a luz dos olhos que inesperadamente selhe apaga, agarra-se ao balcão e desaba redondo no duro soalho. Discreto alvoroço geral, e de novo Gaspar não compreende, a bem dizer de novo a situação o escandaliza, agora por caricata, se por ela poderemos nós avaliar e perceber inexplicadas coisas, segunda vez que tal comentário, assim azedo e suspeitoso, escapa do peito de Gaspar, que coisas serão elas. Se não houver aqui diferenças de galões e de responsabilidades, ficamos sem saber a que vem esta subtil censura, este protesto fechado. A um subalterno desilude sempre a vista destas e outras fraquezas, é como quem diz, onde haveríamos nós de ter podido ir com gente assim, se entrega um homem a outro as suas confianças, natural é aguardar que ele esteja à altura delas. De facto, Gaspar nunca se deu à boca de cena nos múltiplos palcos da revolução, embora a estranha essência das coisas conferisse aos militares fundamental papel. Nunca usou da ofertada intimidade das velhas secretárias, pontes discretas dos antigos patrões silenciados e das suas conspirações, nunca fez depender da sua opinião o correr dos rios, nunca mergulhou no vulcão das escolas, das empresas, das herdades na planície, onde o povo, como um cavalo de súbito sem freio, subitamente irado, se debatia entre contrários gritos, agora contra o fascismo e logo contra o social-fascismo,ninguém lhes perguntou se sabiam do que falavam. Outros o fizeram por ele, assim se expondo à euforia da glorieta fugaz, vaidosos talvez por se terem tornado personagens de entrevistas, com direito a sentença e opinião. Discretamente, Gaspar sonhou apenas o sonho colectivo, que o houve, e remou muita vez contra si mesmo, mas a euforia geral empurrou-o a silenciar vagos augúrios de catástrofe.

Ultimamente pressentia, arrumado numa prateleira administrativa onde um coronel lhe entregava tarefas sem sentido, como um sísifo qualquer condenado a alinhar, das nove às cinco, inúteis listas de pessoal em quilométricas folhas de papel quadriculado, ultimamente pressentia, já isolado e sem contactos num segundo andar de larga escadaria de madeira, que os pulmões da revolução sofriam de bronquite asmática, como um cavalo a rebentar dos quartos à vista da meta de chegada, pressentia que a euforia primaveril da liberdade dera lugar a um outono melancólico e cinzento, em que as facções surgidas no povo e nas tropas se afadigavam a cozinhar intolerâncias, e que ambos os campos aguardavam apenas um despize do adversário para o degolar. A princípio tudo era unidade, todos queriam o socialismo e a revolução. E os poderosos, que a temiam, traziam na consciência um peso tão antigo, que só acharam refúgio seguro no exílio ouno silêncio das alcovas. Porém, aos poucos, se  foram separando as águas entre as partes. Uns aprenderam a ver a história como loga sucessão de opostos insanáveis, infatigável e verdadeira guerra de classes, a dado ponto os interesses em vigor bloquevam a sociedade, tornavam impossível a expansão e o desenvolvimento geral. Qualquer avanço exigia a ruptura violenta que só a revolução trazia, uma classe nova arrancava às mãos da antiga os lemes do poder, se quisessem mudar o rumo da sua vida os trabalhadores tinham que suceder à esgotada burguesia, já esta fizera o mesmo à esgotada arstocracia do despotismo antigo.Era assim, por saltos bruscos, que a ahistória dos homens mudava de qualidade.

sábado, 6 de abril de 2024

As Aves 2-15

Todos têm as pernas entorpecidas, e Gaspar percorre uns metros no passeio para aquecer os joelhos que protestam da prolongada imobilidade, pior está o companheiro que sofre de mazelas da coluna. A mulher é a mais animada e louçã, efeito prodigioso do prolongado sono ou milagres da juventude, a bem dizer todos aqui são jovens, o bastante para não podermos opinar que alguém seja velho, há nestas palavras uma irrespondível relatividade que havemos de aceitar, e mais facilmente se entendermos que esta e todas as revoluções se alimentam de sangue novo, é dos verdes sonhos que vivem, a bem dizer todos aqui são jovens, duas vezes fica dito, e esta mulher mais que todos, por isso vai assim viçosa e guapa, não sabemos o que seria deste mundo sem as mulheres.

João já lá vai em busca dum estanco restaurador, parece este conjunto uma romaria de paisanos perdidos na cidade, faltará aqui o poeta a olhar as fachadas como quem busca o sete-estrelo, tão difícil de ver neste estranho céu, ainda bem que afinal não demorou a encontrar. O comedor nada tem de singular e próprio, que este mundo é todo ele uma redonda uniformidade, um balcão à direita, a parede rendada de garrafas antigas cobertas de pó, ao fundo uma porta que dá para o reservado, e é nele que estes viajantes procuram algum recato e discrição, chuletas de cerdo para todos e uma botelha de sidra, produto regional garantizado para ustedes, afinal não ra desagradável, João paga a conta, o caminho espera por nós.

Antes que se partam vai este companheiro telefonar, Gaspar supõe que para Lisboa, mas não sabe se de razões do coração ou de outras mais conspirativas se trata, ele não poderia explicar porquê mas não lhe agrada o gesto, que toma por leviano, se por ele poderemos nós avaliar e perceber muitas inexplicadas coisas, acaso será apenas injustificado temor seu, ou sua ingénua intolerância. E enquanto espera perdeu-se-lhe na rua o olhar, triste, se não inseguro ou aflito, há esta onda de melancolia a desabar-lhe sobre o coração, este niagara a dissolver-lhe a força dos membros, simples fruto da nostálgica hora ou mais completo diagnóstico Gaspar não o sabe ao certo, se acaso terá tudo isto algum sentido, está um homem a meio dum rio sem poldras para trás nem para a frente, a meio dum rio a que a enxurrada levou as margens, subitamente engrossou a torrente e engoliu-as, o que fazia aqui falta agora era abrir-se este mar vermelho e passar, por seu pé enxuto, o povo eleito, não seria esta a vez primeira, mas o mundo ainda não é igual para todos. (cont.)

segunda-feira, 18 de março de 2024

As Aves 2-14

As conversas são como as cerejas, é isto um facto por demais sabido e redito, mais ainda se de imaginações e lembranças se trata, vento que não cansa, rio que não pára de passar. Vejamos o caso de Gaspar, que temos acompanhado, se exemplo nos faltar para a demonstração. Vai esta sossegada barca assim Castela adiante, no mar calmo da noite, tão apertados os viajantes por força do escasso habitáculo que mal podem mexer-se, mais parece que tomámos lugar na arca de Noé. Esta mulher dorme, acaso tem o espírito mais leve, ou consegue apenas aconchegar melhor o pequeno corpo no minúsculo assento, o luar não chega para animar esta paisagem que de seu natural é monótona e repetitiva, e no caminho apenas o condutor reparou numa patrulha de carabineiros, brutamontes altos que ali estavam. Tal é o visível sossego, que poucas palavras temos ouvido, mas o frenesim das lembranças e o cavalgar dos pensamentos tem sido o que se viu, e vai agora a missa apenas em metade.

Quem não precisa de assistir à metade restante somos nós, baste-nos o que já vimos para tirar conclusões. Estes dois são clandestinos que o desenrolar da revolução empurrou a buscar outros ares, por certo sob pena de males maiores, é bem verdade queimar-se quem com fogos brinca, se não é mais concreto dizer que nenhuma revolução poupa os filhos. Não inventámos nada desde os velhos gregos, já entre eles havia quem não soubesse furtar-se ao implacável destino, acaso será a vida de cada homem vera revolução, desde que o mundo começou.

Gaspar não desencostou a cabeça da pequena vidraça, um rosto fechado assim apoiado na mão esquerda, mas na sua ideia vai ainda a entrar no autocarro já falado, avança, lenta, a bicha dos passageiros, compra e não compra bilhete, que este motorista não gosta de fazer tudo por atacado, guiar o mastodonte e cozinhar os trocos, se lhe perguntássemos diria que enquanto se capa não se assobia, é esta discutível ciência o mais eficaz modo de propongar a vida. E só a palavra de João, que assim se chama este condutor são cristóvão, logrou interromper-lhe o devaneio, e trazê-lo de novo ao momento. Salamanca está aí, não tarda chegamos aos arrabaldes, o melhor é comer alguma coisa e dar uma folga às pernas, ainda há muito que andar, a dormida é só em Palência. Alvíssaras capitão, alívio geral neste convés, lá está o clarão nocturno da cidade, são dez da noite, uma aguada vem mesmo a calhar. (cont.)

domingo, 17 de março de 2024

As Aves 13

É talvez por estar distraído das lições da nossa história que este gasolineiro nãosai da sua pacatez, nem desliza sorrateiro para o telefone ao receber os talões militares, senhor general dos comandos, sei como tem vocelência no coração uma alma de patriota, tenho acompanhado nos últimos dias tudo quanto tem feito para nos livrar do perigo comunista, pois olhe que passou agora aqui um desses traidores à pátria, num carro que também é vermelho, o melhor é deitarem-lhe a mão. Este gasolineiro não quer saber, acaso estará também farto desta pátria, limita-se a olhar mais atentamente o cliente paisano ao receber os talões militares, e, se perguntou aos próprios botões de que lado estará este na batalha que aqui se trava, não exteriorizou a pergunta e Gaspar não tem que responder, moita carrasco. Pelo sim pelo não arranca intranquilo, e mesmo sem razão avança mais depressa, à medida que se mistura no trânsito citadino.

Esta cidade está hoje mais sossegada do que é seu costume, dizemos nós quando deveríamos precisar que parece desconfiada e temerosa, os olhares comuns parecem outra vez os antigos, olha este homem o céu no temor de que ele traga chuva, quando ontem estava bem seguro do sol que todos os dias o sol manda. Olhares outros mais triunfantes haverá também por aí, não é difícil imaginá-lo, mas desses não encontrou Gaspar nenhum sinal na rua. E não é por distracção. Esqueceu-se de que, sendo a rua o natural lugar das emoções do povo, outros lhe preferem os salões. Deixa o carro no Campo Pequeno, a mulher o irá buscar. E é mais descontraído e confiante, por se ver assim dissolvido entre os passantes, que sai de novo para o subúrbio, na camioneta do Barraqueiro.(cont.)

quinta-feira, 14 de março de 2024

As Aves 12

E Gaspar lá fica, enquanto a situaçãose vai desmoronando. A rádio traz notícias da queda de quartéis, notícias do estado de sítio na cidade, notícias das prisões e do medo. Os telefones já não funcionam e Gaspar vai-se embora, são oito da manhã e ele não pode voltar a casa. Leva no bolso uma velha pistola de guerra, por que será que uma lembra a outra, da revolução e da guerra falamos, sempre tão próximas ambas, quem quiser a revolução tem que aceitar a guerra, parecia  que tornar o mundo um lugar habitável havia de ser desejo natural de todos os homens, sonho a construir em cada dia, pacificamente. Porém, muito seengana quem cuida, e muito mais Gaspar, que só mais tarde aprenderá não haver salvação para os homens, porque nem todos dela precisam, dirão sempre alguns que já estão salvos, e muito bem, assim.

Esta manhã é chuvosa e enfermiça, longos nevoeiros cobrem o rio, como poderia a mesma natureza ficar alheia à consumição que em tantos peitos lavra, e Gaspar lembra-se de esconder a pistola num dos bancos do carro. Atravessou a vilória encolhido atrás da roda do volante, desejando que ninguém dê por ele, e agora vai deixando para trás a charneca em direcção ao Porto Alto, se haverá barragens na estrada, e, havendo, como reagir-lhes, pergunta que deixa sem resposta enquanto passa, temeroso, a entrada do campo de tiro de Alcochete e se lembra das experimentações que andou por estes ares a fazer, do velho material de artilharia que era preciso adaptar aos aviões, já não havia material para o cansaço africano, já ninguém nos vendia material para a teimosia africana, o império aguentava-se preso por arames, e Gaspar lembra-se de quem aqui ficou pulverizado por má selecção duma espoleta, para que o império se aguentasse mais um pouco. A morte não énada do outro mundo, pensa Gaspar, salvo quando se morre ao serviço duma mentira colossal, caso esse em que tudo se resume a perda vã e total desperdício.

Os sobreiros da paisagem dormem ainda na humidade cinzenta da manhã, não é nada com eles, o trânsito é escasso na carreteira estreita, e vendo nós a sossegada marcha desta viatura não adivinhamos a agitação que vai lá dentro, o galope sem freio deste peito, o sobressalto de cada curva, se consegues chegar a Vila Franca tens as estradas saloias à mão, cala e confia, coração.

Numa esquecida bomba de gasolina tratou de encher o depósito, de nada servirão, no futuro, a este viajante, os talões de combustível que traz no bolso, não demora muito passará na televisão a sua cara de menino com apelos de delação e de captura, juntamente com outros igualmente perigosos traidores, tem esta pátria reincidente experiência denunciante e acusa-cristos, é um corropio de séculos, verdade que Gaspar não é judeu, nem bruxo, nem cristão-novo dado a marranices, não é estrangeirado, nem liberal, nem pedreiro-livre, nem comunista se lhe pode chamar, a bem dizer, é apenas um traidor aos objectivos da revolução, quem puder que entenda. (Cont.)

sábado, 9 de março de 2024

As Aves 11

As coisas políticas assustavam a sua ignorância, e a violência desordenada das consignas dos partidos fazia tremer a sua timidez insegura, qualquer che guevara de bairro impressionava o seu incerto pensamento ideológico, não podemos perder esta oportunidade histórica de implantar o socialismo, é preciso aproveitar a momentânea desorientação dos inimigos do povo e assestar-lhes golpes demolidores, e uma táctica assim é que tinha dado jeito na terra dos macondes, no planalto de Mueda.

Mas o povo não era um animal homogéneo, de contornos concretos e incapaz de incoerências, e isso ainda Gaspar o não sabia. Porém, foi-se dando conta de que o mais pequeno gesto íntimo, o simples modo de olhar o mundo e os outros homens tinha sempre uma significação política. Julgou mesmo descobrir que a revolução lhe trouxera resposta para enigmas do mundo nunca decifrados, e lhe desatara mesmo os nós da compreensão da sua própria vida pessoal. Sentiu que a revolução vinha resgatá-lo também a ele, e Gaspar escolheu o seu campo, sem avaliação de riscos. Andou por herdades na apanha da azeitona, assistiu a comícios, gritou em manifestações, acorreu a assembleias, sentiu raiva e temor em cada atentado bombista, em cada assalto, em cada assassinato, descobriu que não há limites para o impudor dos poderosos assustados, ainda não tinha então concluído que os ricos têm sempre razão, já que, quando a não têm, vem a fraqueza dos pobres oferecer-lha.

Gaspar hesita,mas já tinha escolhido o seu campo, e por isso estendeu as pernas para fora da cama e deslizou dos lençóis, cuidadoso, não valia a pena acordar a mulher. Os filhos dormiam, doces, nas camitas, e o comboio que passava perto, silvando vapores na ravina, lembrou-lhe a premência daquela voz que viera acordá-lo. Andavam cavalos à solta nos verdes prados da revolução e Gaspar não sabia de nada, ninguém lhe comunicara intenções nem planos, nem isso era importante, a sua mão não era indispensável, mas onde está a revolução que dispensa mãos, e que mãos dispensam a revolução depois de ela tomar assim o freio nos dentes.

Havia tropas amigas na rua, nos últimos dias era duma evidência transparente que ficaria sem cabeça quem a expusesse, e por isso Gaspar não compreende, sabe só que as tropas nunca se movimentam sem ordens, não sabe ainda que nunca saberá donde tais ordens vieram. Mas vai, porque já não pode recuar. Vai para uma base militar onde encontra confinada num salão toda a oficialidade, pastoreada pela tropa alevantada enquanto joga às damas, enquanto dá umas tacadas no bilhar, enquanto a meia voz comenta o insólito, quem sabe se inesperado, súbito lance. Gaspar ensaia uma explicação do que está a acontecer, tenta mostrar os limites da sublevação, procura legitimar-lhe os objectivos. Ainda não sabe que a razão não desempenha aqui qualquer papel, outros são os motivos que levam os homens a ver, não o que está, mas o que querem ver, numa revolução. E ele próprio é quem vê, pela primeira vez, o ódio nos olhos dos camaradas de ontem, o ódio nos olhos dos companheiros de África de ontem, que lhe chamam traidor e não entendem, alguns cospem-lhe aos pés e não entendem que se possa desejar outra coisa, que se pretenda substituir a definitiva rigidez de cadáver dos códigos deontológicos pelo calor suado e desprezível do povo, não entendem que se possa trocar esta vazia, mas certa, segurança, pela duvidosa aventura de indefinidas utopias, por sonhos incertos de transformar o mundo, assim é a tropa, a fingir-nos a vida para nos interditar o ofício de a criarmos, e eles sem entenderem que chegou o momento do resgate, e que não o aproveitar será deixar toda a história a meio. (cont.)

sábado, 2 de março de 2024

As Aves 10

Dizia isto a pátria, enquanto empilhava nos anexos do hospital militar os destroços dos mutilados, Gaspar tinha-os visto passar de relance em cadeiras de rodas, amamentados por enfermeiros discretos, o olhar vazio confinado a corredores sombrios que apenas pesadelos habitavam, dizia isto a pátria ao mesmo tempo que escondia atrás de muros altos, para que ninguém os visse, os restos da guerra que o furor de marés longínquas vinha arrojar ali, como troféus perversos. Nessa tarde, ao descer a João XXI a caminho do Campo Pequeno, Gaspar ouviu claramente o que a pátria dizia, olhou para si próprio e sentiu-se um cordeiro imolado.

Mais tarde voltou à África, ao aroma azedo dos bairros negros e aos lamaçais do Corubal, às evacuações de soldados estropiados das pistas de terra do mato, leve-me depressa, meu alferes, não me deixe morrer, meu alferes, ambulância à chegada com médico e sangue, médico e sangue, mádico e sangue, voltou aos alertas dia e noite em aviões de museu, despejavam-se bombas em catadupa sobre as bolanhas silenciosas, sobre a paisagem de rios indiferentes, sobre a África inteira, e do chão subiam cogumelos de fumo espesso que eram a raiva das acácias violentadas, que eram a fúria dos embondeiros a desmoronar-se, e ondas de choque faziam ranger as velhas carcaças dos aviões que se retiravam à pressa. Voltou aos alertas dia e noite, para aliviar os quartéis flagelados a toda a hora pela artilharia do inimigo, pelos morteiros do inimigo, pelos foguetões do inimigo, abria-se um buraco na barriga dos velhos dakotas e semeavam-se bombas à mão pela noite africana, lá em baixo acendiam-se fiadas de pequenos fogachos brilhantes, fogos-fátuos de fim do mundo, espécie de rosários sacrílegos, berravam os capitães da tropa ao rádioo seu desespero indefeso, enquanto desencravavam a espingarda automática em subterrâneos lúgubres, cobertos de sacos de areia e troncos de palmeira apodrecidos.

Um dia voltou a Lisboa, já a revolução tinha tomado o freio nos dentes. Percorria a cidade uma euforia que só acontece um vez na vida, porque não há energia que a viva duas vezes, e inundava praças e avenidas uma grande catarse colectiva, que floria em risos e rosas vermelhas. Ele há males que vêm por bem, vale a pena todo o sofrimento do mundo para ver um grumete de marinha silenciar um general já com lugar cativo na história, é da voz e da vida de homens que aqui se trata, meu general, daquilo que eles nunca tiveram, e essa táctica não vem nos seus livros, meu general, não são deste céu as suas estrelas cadentes. Há males que vêm por bem, mas também já se tem visto o contrário, muitas casacas tornaram-se subitamente incómodas e virá-las é uma urgência, de repente a longa noite de cinquenta anos fora apenas uma fatalidade indesejada, pomos um cravo ao peito enquanto as pratas passam a fronteira, e os quadros do Botelho, e as jóias de família, quero que a menina se ponha a salvo em Madrid com as crianças, sabe lá o que estes comunistas são capazes de fazer. Os reorganizadores do proletariado pintavam nas paredes grandes bandeiras vermelhas e operários imponentes, cada mural era um decreto-lei, e uma tarde no Rossio viu-se Gaspar misturado na multidão que gritava nem mais um soldado para as colónias. E lá foi,da Baixa a Sâo Bento, parecia aquilo um rio Jordão onde Gaspar tomou baptismo, ele que vinha de férias já não voltou à Guiné. (cont.)

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

As Aves 9

Gaspar confundiu aqui osalhos com os bugalhos, o seu desespero interior não lhe deixou ver mais um cão à chuva em cada transeunte, quando é disso que em verdade se trata, perdoemos-lhe nós a metonímia aflita, estamos apesar de tudo mais folgados, nós fazemos pela vidinha em cada dia, ele não pode. Talvez Gaspar sinta apenas inveja de não poder, isso não é muito claro, mas a verdade é que meteu dó a si próprio, tinham-no atraído assim com falas patrióticas para o violarem atrás do capim, atrás de todas as roças de café que existiam no planalto, atrás de todas as cantinas do mato que trocavam milho e feijão por reles chitas coloridas, atrás das mesas de todos os bares nocturnos da ilha de Luanda, onde inglesas de Moscavide cavalgavam um estropiado can-can, antes de se meterem às estradas de Malange e Salvador do Congo, tinham-no atraído para o violarem atrás da pesporrência vil de todos os colonos que cheiravam a suor e pediam armas, que desprezavam a tropa e exigiam armas para massacrar os pretos todos e resolver a guerra num ai, tinham-no violado atrás dopalanque azul do 10 de Junho, à beira do Tejo que marulhava indiferente a tudo, à beira de viúvas também elas violadas pela cicatriz gelada das cruzes de guerra póstumas ao peito.

O exército é o espelho da nação, e isto é o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom comoos melhores. Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, pois convém a César dar o que de César é, e para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem , entre arames farpados, um sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra. Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne,se a houver. E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadamando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o deu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida cista a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores. (cont.)

domingo, 18 de fevereiro de 2024

As Aves 8

Está ali encostado na cama, neste abandono lasso de membros, há muito que escolheu campo mas tem agora as suas hesitações, além de campo escolhido tinha o práprio Cristo o seu fadário, com mais adequada linguagem falaríamos dum destino, se o profeta não terá mesmo referido uma imposição categórica do pai, e por aqui se vê que não são de agora estes desconcertos de gerações, e apesar disso tudo o mesmo Cristo hesitou na hora da verdade, se for possível, pai, deixa que passe por mim este cálice sem que eu o beba. Gaspar hesita, e não é de fel o copo que tem que recusar, difícil não será isso para deuses mas ele é um simples mortal, o que teme é o risco, a insegurança, ai o aconchego tranquilo desta casa de terceiro andar. Gaspar hesita, a dar-nos tempo de contarmos aqui as contraditórias forças que o reclamam, há coisas que mais tempo levam a contar do que o fugaz relance em que sucedem, qualquer um sabe disso.

Vinha Gastar descendo a avenida João XXI, para o Campo Pequeno, à procura duma pensão, era ainda um menino dentro da sua farda de aviador. Trazia nos olhos aflitos o fascínio das paisagens de Angola, e as saudades dos amigos que tinha visto morrer, e as imagens absurdas que lhe povoavam os pesadelos e o aterravam, depois daquele encontro assim de cara aberta com a morte, num desastre aparatoso. Tinham-no mandado, ainda menino, defender a pátria. E ele acreditava que havia pátria, e que esta era uma e a mesma grande mãe de todos, e que devia defender-se, lá onde fosse preciso. E foi, e lá pôs a sua força generosa nas mãos dos que mandavam na pátria, e agora estava ali, regressado à rectaguarda para recuperação no hospital, como se rectaguarda houvesse, e trazia a alma cheia de rasgões e de medos, a precisar dum bálsamo, a precisar duma atenção da pátria, a precisar de um seu gesto suave no cabelo, como fazem as mães. E ao descer a avenida João XXI, desamparado que nem um cão à chuva, à procura duma pensão, de Gaspar falamos, pois claro, teve a revelação dolorosa da inutilidade de tudo. Poisou no chão o pequeno saco de viagem e encostou-se a uma ombreira alta. A multidão passava, era Setembro, e havia formas bonitas de mulheres expostas nos trajes exíguos, e havia um desdém ocupado nos homens que passavam engravatados, aos pares, com largos gestos de mão, a discutir importantíssimos interesses, e havia indiferença nos olhares que às vezes desciam até ele, sentado assim sem forças no degrau de pedra dum patamar, se dentre eles algum era olhar de poeta chegava-lhe embrulhado num cetim de fastio, ou numa grande tristeza, como se fosse um lamento, e havia um desprezo altivo nos lábios vermelhos das matronas que lá iam, agitando braceletes douradas. Havia olhos tristes e risadas escancaradas, a vida passava ao seu lado, como um rio, indiferente ao seu naufrágio interior, cega e surda à hecatombe da juventude que apodrecia lentamente nos planaltos africanos, que endoidecia lentamente nos planaltos africanos, afinal é mentira tudo quanto diz a propaganda oficial,e eu prefiro rosas, meu amor, à Pátria, afinal está pátria é uma madrasta galdéria que tem vergonha do abcesso africano, que prefere desconhecer o abcesso africano, que esquece, para não sentir, a dor que todos os abcessos provocam.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

As Aves 7

Porém, não é de passeio que aqui se trata, isso mesmo afiançam os fracos cavalos desta carruagem que por Castela nocturna vai avançando, esgotados e raivosos já desta maratona, e melhor do que eles o poderia fazer Gasparse nos dissesse em que pensa, não foi um convite para passear que o acordou naquela manhã, haverá três meses. Eram sete horas, Gaspar dormia um sono pesado, os dias eram frenéticos como só sabe quem os viveu e ainda não se esqueceu deles, e as noites pequenas para leituras, dos clássicos para aprender de cor a revolução, e dos jornais da tarde para saber o que a revolução fazia acontecer, e que descaminhos tomava. Andavam loucos os cavalos da revolução, raivosos e esgotados como estes que agora nos transportam, mas menos dóceis e previsíveis, e a voz que apareceu ao telefone e assim arrancou Gaspar ao sono dizia justamente que havia estranhos cavalos à solta nos verdes prados da revolução, o melhor era pôr-se em campo. A mesma voz, a voz que apareceu ao telefone era a mesma voz que hoje de manhã lhe entregou o passaporte falso, quando passou a chamar-se Gaspar, e o seu tom era ainda mais seguro e voluntarioso do que hoje foi, quase triunfalista, se não era apenas exercício táctico de quem faz das fraquezas forças, ou ligeireza de quem mete os cães à fieita e na sombra se fica.

Assim mergulhado na penumbra matutina do quarto ficou Gaspar estremunhado e hesitante, já sabemos que o nome ainda não era este, a história já estava acontecendo mas ainda não tinha passado dos começos, chamemos-lhe por isso Gaspar, modo de falar para melhor nos entendermos. Estes olhos fechados têm pesadas olheiras de cansaço, e a cabeça que assim repousa encostada à cabeceira da cama parece, por momentos, agir por conta própria e buscar uma decisão. Gaspar sentiu o corpo da mulher abandonado ao lado, que mais verdes prados haverá no mundo do que estas tépidas campinas onde um vento enlouquecedor sopra sempre, ou do que estas ondulações a esconder na paisagem do corpo abismos de fogo e mel a que ele nunca soube resistir.

Na rua crescia a agitação matutina, alguém subiu e voltou a descer as escadas de madeira do terceiro andar, talvez o padeiro, a mulher-a-dias não teria ido embora sem bater, e ainda é cedo, que disparate, para ela chegar dos lados das barracas de Chelas, é assim, uns a comer as carnes da vida e para outros apenas a sobrarem os ossos, se não haverá mais justas formas de administrar os trabalhos e as incomodidades do mundo, descansem estes aqui no abençoado choco dos lençóis que outros lhes virão trazer à mesa os pãezinhos de leite para o café, as carcaças de farinha ainda assim cheirosa e quente, basta pôr-lhes dentro a manteiga que por ela mesma se derrete, e para quê pensar no trabalho que deu a produzir se por milagre aqui apareceu, com tão fraco merecimento nosso e tão a tempo de calar o apetite matinal que esta suada e gemida noite provocou. É o caso destes dois insignificante exemplo, que assim se toma por estar aqui à mão, são as pequenas coisas que mais claro significado têm e mais profundo sulco nos deixam na consciência, calhando um homem tropeçar nela.

É o caso de Gaspar, insistamos no indevido nome, para bem ou para mal fruto da sua pessoal história, ou de certo currículo de vida, tem a revolução destes surpreendentes caprichos, como seja empurrar cada um até esta encruzilhada e forçá-lo a escolher um dos caminhos, agora diz lá de que ldo ficas tu nesta batalha que aqui se trava, a que vozes juntas a tua voz para gritar, porque a revolução é um grito que deixou de poder calar-se, se nunca tiveste direito a gritar aproveita agora, muitos nem assim se decidem, apura-se o ouvido e nada, nem preta nem branca, preferem ver primeiro em que param as modas, como quem escolhe cavalo só depois da chegada à meta, para terem a certeza de não perder a aposta que sobre a mesa está. Não é este o caso de Gaspar, que já escolheu campo, e acredita ainda que a vida se rege por princípios, e que tem ideais, e que está na hora de lutar por uns e por outros. (Cont.)

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

As Aves 6

Nestas coisas, o melhor é ter as despedidas sempre feitas, e este esclarecimento veio do condutor da minúscula viatura, parece impossível que tal estatura possa meter as pernas no espaço dos pedais, este consegue-o e mantém um ar seguro e decidido, mais tranquilos vamos nós nas mãos deste são cristóvão, o qual acrescenta, despedidas feitas e nada de pessoal, o que é pessoal tolhe gestos e decisões, retira disponibilidade para uma luta geral em que cada um de nós não toma mais que uma ínfima parte.

Cada um de nós pouco vale, o que conta é a vitória final e a confiança que havemos de ter nos amanhãs que cantam, onde é que eu já ouvi isto, perguntou a si mesmo Gaspar, o queixo apoiado na palma da mão e os olhos correndo a paisagem castelhana através do vidro minúsculo. O luar desenha rápidos vultos de ainheiras torturadas que trotam sem descanso, ao longe perpassam luzes de alguma finca isolada, ou serão apenas cristais duma lágrima que da taça deste peito transbordou.

Mas um homem não é de pau, com perdão do lugar-comum e de rasteiras insinuações, e muito poucas são as têmperas de puro aço. Gaspar alheou-se da circunstância, perdido nos seus pensamentos ou nos descampados infindos de Castela, raras aldeias desfilam a tempos no silêncio geral do mundo adormecido, o resto é estrada aberta sem encruzilhadas nem escolhas, este é um comboio que já não pára, não há apeadeiro para quemnele montou.

A lua deslocou-se no céu, esconde-se agora sobre o tejadilho do carro, e Gaspar pensa que a esta hora já não bate o luar nas janelas do terceiro andar do Areeiro, se nalguma delas haverá ainda luz, se estarão já dormindo os filhos, ou se uma voz está justamente deslindando o final da história dos dois meninos que foram passear ao monte e se perderam. Que bosque é este, em que se perderam estes dois que aqui vão, e se esta história acabará, como a outra, em bem, no meio de abraços gerais e grande júbilo familiar, rico filho da minha alma, que julguei não tornar a ver-te. A outra é uma história de inventar, para adormecer meninos, há uma luzinha ao longe, no monte, e acaba por saber-se que, afinal, é a janela da casa dos ladrões, mas isso não passa duma peripécia que introduz o mal num jogo em que o bem acaba sempre por vencer. (cont.) 

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

As Aves 5

Gaspar, que é o fumador, apaga cuidadosamente o cigarro, enterra a prisca no chão, vagueia no céu a lua, de barro da Andaluzia, quanto mais andas na rua, mais tempo ficas p´ra tia, isto ouviríamos nós se ele traduzisse em linguagem audível o que no pensamento lhe vai, há momentos assim, e gente desta, com olhos que vêem para além das coisas e do que nelas está, olha a novidade, o que lá está qualquer um pode ver, cego não sendo, uma lua, um céu fresco, três homens, pedras e moitas. O compasso é de espera e de abandono, já foi dito que a lua lá vai banhando o céu, do que se passa na alma deste homem não tivemos nós nenhuma confidência, fiquemo-nos por tais manifestações líricas, acaso espelharão elas o que por lá vai, tempestades ou ânsias, dúvidas ou medos, inseguranças quanto baste, e paixões as que houver.

A lua, primeiríssimo astro feminino, é aqui motivo principal. É de barro andaluz, a cor é quente e a matéria mais que todas terrena e primordial, se dela o Criador lançou mão para fabricar a matriz de todos nós. O campo de sugestões está demarcado, e a quem não reconhecer o peso da Andaluzia nestes casos, baste-lhe o contraste de uma lua, por exemplo, finlandesa. Além disso esta lua vagueia, e verbos há que são fatais quando aparecem, haverá contradição neste homem, um desejar e um temer, algum querer e não alcançar, quem sabe até se algum pleito em vias de perder-se, ou então esta mais antiga e mais incerta guerra do mundo, entre homem e mulher, se não for antes a guerra de um homem consigo mesmo. Tudo são congeminações nossas, mas a censura aí fica, tão claramente expressa, a quem se dirigirá ela. E, a propósito, notemos nós este semblante que se carregou, a fachada que um ricto endureceu, este olhar anuviado por impalpável brisa, acaso um pestanejar da lua fatigada, ou fiapo de nuvem que passou.

À espera deste pestanejar de faróis estava o mestre passador, cujo vamos! decidido cortou divagações ou o mais que fossem, conflitos ou enleios. O carro passou devagar na carreteira de macadame, os faróis abriram dois leques sobre o nada da paisagem nocturna, se alguma coisa era de mencionar não a notámos, que estes três já lá vão em marcha acelerada, o objectivo está ali à vista naquela berma ao fundo, este chão foi lavrado, a terra é mole, os pés enterram-se. Vou ali já venho, deu o carrouma volta no cimo daquele outeiro, ou porque o espaço é mais amplo, ou por hábito de outras repetidas viagens, não nos dizem as rodas de borracha se reconhecem este piso, nem os olhos de luz sejá iluminaram este chão, entrem rápido, não convém parar aqui muito tempo. Isto recomendou ainda o mestre,  passador, e de facto entre quedar-se o carro, apear-se esta mulher e alçar o banco dianteiro, abrindo caminho para os lugares traseiros, não decorreu um ai. Os gestos são precisos e eficazes, parecem estudadas partes de um mais amplo e desconhecido conjunto, quem é este homem novo que nos conduz, ou esta jovem mulher que o acompanha, o nosso caminheiro que já desapareceu na noite, quem será, se nos tornaremos a ver, até nos esquecemos de fazer as despedidas. (cont.)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

As Aves 4

Agachados na sombra, que nem sempre o luar triunfante é uma bênção dos deuses da luz, fazem-nos estes lembrar três conspiradores passando palavra no descampado, se é do preço da jorna que se trata ou se das oito horas da mesma nunca o saberemos, desnecessária congeminação esta que só imagens antigas alimentam, imaginações nossas deslocadas num tempo em que já não há patrulhas a cavalo pelos montes, de longe pastoreando ranchos de proletários descontentes, nem searas daqui se avistam, este campo é um pedregulhal cerrado, giestal bravio e um carrasco de horas em quando, nada aqui poderia medrar, que é das moitas, roeram-nas as cabras.

Estão os três homens estendidos no chão, cosidos com o terreno como já se tornou hábito ouvir, cada um deles procurando moldar os volumes do corpo às ásperas incomodidades naturais. O mestre passador ainda vá, é homem que não estranha intimidades com terras e mato, que sempre neles viveu e não se lhe dói o rude fato, não estes que são gente de cidade e usam vinco na calça, perderam aqui a estranheza, se não a relutância, que peso a isso os constrangeu é coisa que viremos a saber. Este da derradeira levantou dois calhaus que ali dormem, para acomodar uma perna cansada, cuidado com os lacraus, foi a voz sussurrada co capitão, se tal terá sido a justa palavra, há coloridos modos de dizer que os homens usam, como alcrários, o bicho é o mesmo e nem a peçonha varia, mas outro é o sabor na língua, que nem em todos os livros vem, por isso traduzimos nós, para alguma coisa aqui haveríamos de estar. Entendeu-o bem este homem, ou intuiu apenas, a perna é que não mais mexeu.

Nem a aragem, no suave céu. Sobe lento o fumo do cigarro que este esconde no côncavo das mãos, sinal de à vontade que baste no meio da tensão crispada que temos observado, o silêncio geral, o ramo que à passagem se ampara, o leve pisar, são gestos discretos de quem se quer calado e evita restolhadas. O geral dos homens, no comum da situação, aproveitaria tão propositado adjunto para das que fazer à língua, bendito instrumento muscular que, por força de tanto exercício, raramente sofre de paralisias, encordoamentos ou outras afecções. Bendigamos nós, de passagem, este magnífico dom, afinal era este o fogo de Prometeu, e bastas razões de queixa tiveram os deuses maiorais, se com ele os homens fazem e desfazem mundos, se criam ou aniquilam a si próprios, se eregem ou destronam os mesmos deuses. Não, porém, estes três que aqui vemos, destes silenciosos homens falamos. Porventura o simples facto de aqui estarem, neste lugar e nesta postura, os une e os identifica, nada têm a acrescentar ou a esclarecer, há casos assim em que os dados estão lançados, quanto ao resto só o silêncio é certo. (cont)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

As Aves 3

O da frente, mais velho, leva uma boina espanhola. E, se não nos enganam os sinais do atavio, o coçado das calças de pana e as alparcas leves de borracha, sem erro podemos considerá-lo passador. Entenderemos agora por que o vimos ali atrás, sentado bem três quartos de hora perto da estrada, alheio como se nada mais esperasse que o cair da noite, atento apenas à passagem dum carro branco, peuqeno, quatro passageiros, dos quais uma mulher nova. Vimos sair os viajantes do banco de trás, vimos o carro inverter a marcha e dirigir-se à portagem da alfândega, vimos três homens avançar para leste, a corta-mato, vê-la-íamos, com este luar, se a linha de fronteira estivesse marcada no chão, nada nos falta para concluir que se trata aqui de passar a salto a fronteira de Espanha.

Muitas voltas dá o mundo, o certo é que nalguma se há-de repetir. Preparemo-nos para a intervenção próxima do mesmo pequeno carro branco, agora já em carreteira espanhola, lá dentro um jovem casal que já passou a fronteira, atrás dois lugares vazios, se não é este o pezinho que ao meu sapato serve, onde estará.

Hevemos de reparar que vai mais afogueado o companheiro que na derradeira marcha, razão seria para que os outros o metessem no meio, por menos pesados erros tácticos está inchada a história de batalhas perdidas. Não sabemos nós de batalha que aqui se trave, ou será por tanto perigo haver na expedição que nenhuma hierarquia de galões se mostra nos ombros destes soldados. Tenhamos apenas por certo que, a haver derrota, dalgum canto sairá um general qualquer a salvar a honra dos que ficarem vivos, a justificar o sacrifício dos que vierem a morrer. Este da derradeira será um deles, ouve-se-lhe o tropeçar frequente, e, pior que tudo, já por duas vezes caiu, acaso tem pernas menos acostumadas a este rústico segredo de caminhar de noite por onde caminhos abertos não há, demais seria exigir que houvesse estradas reais para passar a fronteira a salto. Um dia virá esse tempo, a Europa será ela toda um lugar de encontro e livre trânsito, tanto como isso era nestes anos que o livre trânsito fazia falta, há dez anos que não temos visto mais que multidões de homens fugindo a salto por estes e outros montes, por que será, que febre lhes deu.

Perto estará a linha que dos castelhanos nos separa, tão roída de séculos no traçado que nos é impossível distingui-la, acaso a saberão de cor os guardas e mais carabineiros por dever de ofício, quem a conhece bem é este mestre passador, às vezes de pão ou de café, se não de simples caramelos viuda ou mais valiosos minerais, é de homens a carga desta vez, que por seu pé marcham enquanto nos folgam os ombros. Porém, sendo gente importante ou não, aumenta a responsabilidade, que estes não podemos alijá-los num valado qualquer, se um guardiãovier a mostrar-se mais activo. Acautelemo-nos no esconso desta moita, que tanto nos pediram sem mais nos explicar, isto é o que certamente exprime o gesto de mão do mestre passador, que acabámos de ver. (cont.)

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

As Aves 2

O outro que chegou é magro e decidido, se para o caso o dado é relevante, assim como a leve chuva que cai, antes nos fixemos nós nestes dois tons, a saber, o tom discreto em que a frase única foi dita, reservada, pessoal, clandestina se diria, eo tom voluntarioso e vivo de quem acende uma chama de coragem onde ela falta, fingida ou verdadeira coragem tanto monta, para alguma coisa ela servirá, só não sabe quem por elas nunca passou.

Nós passaremos ainda por uma rua de Olivais Norte onde outro homem nos espera num carro pequeno, os bombeiros ficam ali e são exactas as referências, lá está o outro viajante anichado no banco de trás, o carro é de facto minúsculo e escassa a bagageira, entendamos agora por que se impunha uma mala tão pequena e tão escassos meios de viagem. No restante do banco traseiro se ajeitou este homem, agora somos quatro e tantos ficaremos até chegar ao destino, uns ficam à espera dele, estes procuram-no, quem saberá dizer vantagens e razões nesta disparidade. Os cumprimentos foram breves, mais disseram os modos das palavras do que elas próprias, que o tempo é de partida e não de cortesias, terão estes viajantes outras mais fundas razões de entendimento do que a ligeireza das conversas, que tão poucas ouvimos enquanto durou a estrada e o dia se gastou.

A noite está aí, os dias de Fevereiro são pequenos. O homem atravessou um pequeno ribeiro, anos mais tarde virá ele a saber que da ribeira de Tourões se trata, se, por curiosidade, vier a procurar no mapa o insignificante risco azul, ainda assim mais fácil de pintar que de transpor. O luar nascente, escassamente embora, mostra duas pedras que em seu leito repousam, pé aqui, pé ali, lá fica para trás a verde cabeleira dos limos que ondulam na água sossegada, meu tempo de infância e de rãs, de águas tépidas nos charcos da ribeira e de risos na tremulina da tarde, o capitão andador já lá vai adiante, rodeia este homem uma giesta negral mais forte e aperta o passo.

Acaso sentirá ele nas orelhas as dentadas desta aragem nocturna, melhor podemos nós avaliá-las no contraste com o tépido casulo deste sofá que nos acolhe, vantagens, enfim, de leitor que descansadamente assiste ao formigar do mundo, sobretudo se queixarão os tenros lóbulos e a mais exposta ponta do nariz, o restante geral do corpo vai quente e confortável. Por experiência sabemos como é grande o poder calórico das emoções dos homens, se as temos sentido, não o sendo o do fraco tecido do casaco deste nocturno viajante, ou o das levíssimas botas que tem calçadas, talvez o do pouco esforço que a caminhada lhe vai exigindo.

Com menos atenção de ouvido apenas aqui detectaríamos uma respiração, sendo três os halos de vapor que de três bocas se soltam, três os barcos que assim procuram porto na vastidão escura deste indistinto mar da noite, com pouco mais nos daria a fantasia lugar para as três filhas do rei que esperam a nau catrineta, que mistério tem o aroma do laranjal que não exista neste céu, onde se dilui a fina neblina da noite, mais um pouco do fumo das chaminés de aldeia distante, um tanto da húmida paz dos ribeiros que por estes montes se passeiam, e outro tanto do éter suavíssimo que esta redonda lua cheia sobre o geral mundo vai espargindo.

Três são os viajantes. (...)

domingo, 14 de janeiro de 2024

As aves levantam contra o vento 1

Por enquanto nada sabemos do destino do homem que ali vai, em extremo concentrado no andamento das passadas que dá. Vemos que marcha atento e cabisbaixo, no gesto de quem poupa energias. Porém não tanto que perca de vista o andador que lhe vai na dianteira, obra de poucos metros, nem tão pouco que possa este limpo luar de Fevereiro lavar-lhe de sombras a barbada face. Nada sabemos, e dobrada razão é essa para atentarmos no leve pormenor, na mesquinha minúcia.cios 

Este gesto de andar por estes montes, igual seria se doutros montes se tratasse, o ar atento aos alçapões do terreno, agora velho restolho de pousio, há pouco bravio mato e padregal baldio, a controlada respiração que dos lábios lhe sai e aos ouvidos nos chega, bastm-nos para concluir que se trata de homam afeito ao campo. Será um caçador de vício, dos que em bando saem da cidade, quando para lebres e perdizes sopra anualmente a trombeta do juízo final. Mas este tempo é defeso, em primeiro, é insólita a hora para exercícios venatórios e escura em demasia para ajustadas pontarias em segundo, não se vê, este é terceiro, aràsma de fogo a denunciar intenções, nem, quarto e derradeiro, sombra de cão que essa injunção sustente. Assim nos cumpre o dever de ser minuciosos no exame, para evitar mal-entendidos e falsas bases de partida.

Há neste requebro de membros, no jeito como a perna que lançou a passada se amolda pelo joelho às fugas do terreno, no modo como o braço tenteia, a meia altura, o balanço requerido ao equilíbrio da rota, um grau de afeição e de familiaridade próprios só de jogos de campo já antigos. Sabemos que vem da grande cidade, já distante, que todo este dia o consumiu na apressada viagem que observámos, só interrompida para uma sopa caseira no primeiro andar da casa de pasto de Vila Velha, substanciosa sopa de feijão encarnado e uma estufada e dura vitela às fatias, lembremo-nos da insistente batida do velho relógio de coluna, a marcar o tempo e a urgência.

Vimo-lo, manhã cedo, ajeitar um par de pertences numa insignificante mala, avia-se em terra quem ao mar vai, pensámos nós, e não será grande o mar que este marinheiro espera, a julgar pela reduzida palamenta, uns pares de meias, duas camisas, nos olhos uma sombra, um tremor controlado de mãos, no final um olhar que passeou o espaço da sala, as paredes brancas, o colchão ali em pé, desajeitado, as duas mantas em que dormiu, o gesto de olhos é o de quem se despede e leva consigo mais do que tem na mão, a campainha tocou. São as nove horas prometidas, em baixo espera-nos um táxi, isto disse o homem que apareceu, enquanto lhe entregava um passaporte. O outro folheou-o, sorriu, ele há risos amarelos que não são de comprazimento, repetiu a leitura, Gaspar é o seu nome, se não condiz com o retrato que na primeira folha está cravado passa agora a condizer, as coisas são o que são, mas também aquilo que parecem. Fique então assente que, desde agora, este homem dá pelo nome de Gaspar. (cont.)