E Gaspar lá fica, enquanto a situaçãose vai desmoronando. A rádio traz notícias da queda de quartéis, notícias do estado de sítio na cidade, notícias das prisões e do medo. Os telefones já não funcionam e Gaspar vai-se embora, são oito da manhã e ele não pode voltar a casa. Leva no bolso uma velha pistola de guerra, por que será que uma lembra a outra, da revolução e da guerra falamos, sempre tão próximas ambas, quem quiser a revolução tem que aceitar a guerra, parecia que tornar o mundo um lugar habitável havia de ser desejo natural de todos os homens, sonho a construir em cada dia, pacificamente. Porém, muito seengana quem cuida, e muito mais Gaspar, que só mais tarde aprenderá não haver salvação para os homens, porque nem todos dela precisam, dirão sempre alguns que já estão salvos, e muito bem, assim.
Esta manhã é chuvosa e enfermiça, longos nevoeiros cobrem o rio, como poderia a mesma natureza ficar alheia à consumição que em tantos peitos lavra, e Gaspar lembra-se de esconder a pistola num dos bancos do carro. Atravessou a vilória encolhido atrás da roda do volante, desejando que ninguém dê por ele, e agora vai deixando para trás a charneca em direcção ao Porto Alto, se haverá barragens na estrada, e, havendo, como reagir-lhes, pergunta que deixa sem resposta enquanto passa, temeroso, a entrada do campo de tiro de Alcochete e se lembra das experimentações que andou por estes ares a fazer, do velho material de artilharia que era preciso adaptar aos aviões, já não havia material para o cansaço africano, já ninguém nos vendia material para a teimosia africana, o império aguentava-se preso por arames, e Gaspar lembra-se de quem aqui ficou pulverizado por má selecção duma espoleta, para que o império se aguentasse mais um pouco. A morte não énada do outro mundo, pensa Gaspar, salvo quando se morre ao serviço duma mentira colossal, caso esse em que tudo se resume a perda vã e total desperdício.
Os sobreiros da paisagem dormem ainda na humidade cinzenta da manhã, não é nada com eles, o trânsito é escasso na carreteira estreita, e vendo nós a sossegada marcha desta viatura não adivinhamos a agitação que vai lá dentro, o galope sem freio deste peito, o sobressalto de cada curva, se consegues chegar a Vila Franca tens as estradas saloias à mão, cala e confia, coração.
Numa esquecida bomba de gasolina tratou de encher o depósito, de nada servirão, no futuro, a este viajante, os talões de combustível que traz no bolso, não demora muito passará na televisão a sua cara de menino com apelos de delação e de captura, juntamente com outros igualmente perigosos traidores, tem esta pátria reincidente experiência denunciante e acusa-cristos, é um corropio de séculos, verdade que Gaspar não é judeu, nem bruxo, nem cristão-novo dado a marranices, não é estrangeirado, nem liberal, nem pedreiro-livre, nem comunista se lhe pode chamar, a bem dizer, é apenas um traidor aos objectivos da revolução, quem puder que entenda. (Cont.)