As coisas políticas assustavam a sua ignorância, e a violência desordenada das consignas dos partidos fazia tremer a sua timidez insegura, qualquer che guevara de bairro impressionava o seu incerto pensamento ideológico, não podemos perder esta oportunidade histórica de implantar o socialismo, é preciso aproveitar a momentânea desorientação dos inimigos do povo e assestar-lhes golpes demolidores, e uma táctica assim é que tinha dado jeito na terra dos macondes, no planalto de Mueda.
Mas o povo não era um animal homogéneo, de contornos concretos e incapaz de incoerências, e isso ainda Gaspar o não sabia. Porém, foi-se dando conta de que o mais pequeno gesto íntimo, o simples modo de olhar o mundo e os outros homens tinha sempre uma significação política. Julgou mesmo descobrir que a revolução lhe trouxera resposta para enigmas do mundo nunca decifrados, e lhe desatara mesmo os nós da compreensão da sua própria vida pessoal. Sentiu que a revolução vinha resgatá-lo também a ele, e Gaspar escolheu o seu campo, sem avaliação de riscos. Andou por herdades na apanha da azeitona, assistiu a comícios, gritou em manifestações, acorreu a assembleias, sentiu raiva e temor em cada atentado bombista, em cada assalto, em cada assassinato, descobriu que não há limites para o impudor dos poderosos assustados, ainda não tinha então concluído que os ricos têm sempre razão, já que, quando a não têm, vem a fraqueza dos pobres oferecer-lha.
Gaspar hesita,mas já tinha escolhido o seu campo, e por isso estendeu as pernas para fora da cama e deslizou dos lençóis, cuidadoso, não valia a pena acordar a mulher. Os filhos dormiam, doces, nas camitas, e o comboio que passava perto, silvando vapores na ravina, lembrou-lhe a premência daquela voz que viera acordá-lo. Andavam cavalos à solta nos verdes prados da revolução e Gaspar não sabia de nada, ninguém lhe comunicara intenções nem planos, nem isso era importante, a sua mão não era indispensável, mas onde está a revolução que dispensa mãos, e que mãos dispensam a revolução depois de ela tomar assim o freio nos dentes.
Havia tropas amigas na rua, nos últimos dias era duma evidência transparente que ficaria sem cabeça quem a expusesse, e por isso Gaspar não compreende, sabe só que as tropas nunca se movimentam sem ordens, não sabe ainda que nunca saberá donde tais ordens vieram. Mas vai, porque já não pode recuar. Vai para uma base militar onde encontra confinada num salão toda a oficialidade, pastoreada pela tropa alevantada enquanto joga às damas, enquanto dá umas tacadas no bilhar, enquanto a meia voz comenta o insólito, quem sabe se inesperado, súbito lance. Gaspar ensaia uma explicação do que está a acontecer, tenta mostrar os limites da sublevação, procura legitimar-lhe os objectivos. Ainda não sabe que a razão não desempenha aqui qualquer papel, outros são os motivos que levam os homens a ver, não o que está, mas o que querem ver, numa revolução. E ele próprio é quem vê, pela primeira vez, o ódio nos olhos dos camaradas de ontem, o ódio nos olhos dos companheiros de África de ontem, que lhe chamam traidor e não entendem, alguns cospem-lhe aos pés e não entendem que se possa desejar outra coisa, que se pretenda substituir a definitiva rigidez de cadáver dos códigos deontológicos pelo calor suado e desprezível do povo, não entendem que se possa trocar esta vazia, mas certa, segurança, pela duvidosa aventura de indefinidas utopias, por sonhos incertos de transformar o mundo, assim é a tropa, a fingir-nos a vida para nos interditar o ofício de a criarmos, e eles sem entenderem que chegou o momento do resgate, e que não o aproveitar será deixar toda a história a meio. (cont.)