As conversas são como as cerejas, é isto um facto por demais sabido e redito, mais ainda se de imaginações e lembranças se trata, vento que não cansa, rio que não pára de passar. Vejamos o caso de Gaspar, que temos acompanhado, se exemplo nos faltar para a demonstração. Vai esta sossegada barca assim Castela adiante, no mar calmo da noite, tão apertados os viajantes por força do escasso habitáculo que mal podem mexer-se, mais parece que tomámos lugar na arca de Noé. Esta mulher dorme, acaso tem o espírito mais leve, ou consegue apenas aconchegar melhor o pequeno corpo no minúsculo assento, o luar não chega para animar esta paisagem que de seu natural é monótona e repetitiva, e no caminho apenas o condutor reparou numa patrulha de carabineiros, brutamontes altos que ali estavam. Tal é o visível sossego, que poucas palavras temos ouvido, mas o frenesim das lembranças e o cavalgar dos pensamentos tem sido o que se viu, e vai agora a missa apenas em metade.
Quem não precisa de assistir à metade restante somos nós, baste-nos o que já vimos para tirar conclusões. Estes dois são clandestinos que o desenrolar da revolução empurrou a buscar outros ares, por certo sob pena de males maiores, é bem verdade queimar-se quem com fogos brinca, se não é mais concreto dizer que nenhuma revolução poupa os filhos. Não inventámos nada desde os velhos gregos, já entre eles havia quem não soubesse furtar-se ao implacável destino, acaso será a vida de cada homem vera revolução, desde que o mundo começou.
Gaspar não desencostou a cabeça da pequena vidraça, um rosto fechado assim apoiado na mão esquerda, mas na sua ideia vai ainda a entrar no autocarro já falado, avança, lenta, a bicha dos passageiros, compra e não compra bilhete, que este motorista não gosta de fazer tudo por atacado, guiar o mastodonte e cozinhar os trocos, se lhe perguntássemos diria que enquanto se capa não se assobia, é esta discutível ciência o mais eficaz modo de propongar a vida. E só a palavra de João, que assim se chama este condutor são cristóvão, logrou interromper-lhe o devaneio, e trazê-lo de novo ao momento. Salamanca está aí, não tarda chegamos aos arrabaldes, o melhor é comer alguma coisa e dar uma folga às pernas, ainda há muito que andar, a dormida é só em Palência. Alvíssaras capitão, alívio geral neste convés, lá está o clarão nocturno da cidade, são dez da noite, uma aguada vem mesmo a calhar. (cont.)