quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Um tantinho de nozes

Angelina tem mais de setenta anos e vive em Dine, que é o lugar onde nasceu. É um aldeia com fornos de cal, abandonados há muito. E fica atrás do derradeiro monte que limita os fins do mundo. Chega-se lá depois de passar muitas encruzilhadas, e é um lugar tão bonito que nem apetece deixá-lo.

É aqui que Angelina vive, com uma cadela que se chama Luna. Ouve uma pessoa um nome assim e põe-se a fazer perguntas ao instinto.

A seu tempo foi Angelina mãe solteira, duma filha que vive na cidade. Trabalha no comércio, a rapariga, e Angelina está toda contente. Gosta mais de a ver longe neste ofício, do que perto a labutar no campo. Ressalvando a tristeza comum de se encontrarem só de horas em quando. Mas um dia há-de-lhe dar uma netinha.

Angelina vive perto da fontana, ao lado duma represa que também serve de tanque de lavar. E quando chega o Natal faz um presépio ali no jardinzito, para alegria e animação do povo. A casa fica além, debaixo da parreira, e vivem hoje nela a dona e a cadela, conforme antigamente lá viviam a filha e a mãe já velha. Sempre que voltava a casa, Angelina punha-se a fingir a voz duma vizinha, às punhaladas na porta com recados urgentes. - Oh que assim és tontinha, minha filha! - E riam ambas no fim.

Ao contrário do resto da aldeia Angelina não anda de preto, porque não é viúva. E por sobre ser uma mulher com ar alegre, tem um espírito aberto, dado e solto. O melhor será chamar-lhe livre, porque o é. Ninguém lho amansou, que é o que sucede as mais das vezes, quando passa por cima das mulheres o rolo compressor da conjugalidade.

À despedida oferece-nos um tantinho de nozes e castanhas. E confessa que, por esse mundo além, só lhe agradava ver a árvore de Natal numa praça do Porto. Dizem na televisão que não há outra maior, e ela acredita.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Um plebeu chamou-lhe um dia vaca sagrada.

 

                           Eduardo Lourenço 

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A ninfa

Eram os olhos a maior perdição dela. Tão grandes que nele cabia o mundo, tão escuros e fundos que lembravam o mar. Depois vinha a estampa límpida do rosto, debaixo da gaforina asa de corvo: o lábio húmido a carnação macia, a flor da face cheia de mistério, a prometer abrir-se num sorriso que não chegava a abrir. O resto era o colo generoso, o ventre inquieto, as colunas das ancas a prometer abismos.

Ninguém sabe explicar como apareceu ali, criada na aldeia, aquela ninfa antiga. Olhava-se para ela e vinham à lembrança as deusas primitivas da fertilidade. O mesmo nome, Pristila, era um sinal pagão.

Dava escola para os lados de Aveiro, e vinha a casa sempre que podia. Chegava na carreira, ao fim da tarde, porque o pai, atento à vida, a reclamava. A bem dizer, era a aldeia inteira que a exigia.

Na vila sabia toda a gente que o Tunante não era boa rês. Era um vilão bastardo, que fazia deste mundo uma coutada de caça. E todos lhe guardavam respeitinho, mais por instinto primário de defesa do que por atributos que não tinha. A ninfa confundiu nele a brutidade grosseira com predicados de macho dominante. E quando vinha à vila, a passear, nem lhe escusava as momices atrevidas nem os avanços de bruto galaroz. E acabou, já mansa e confundida, a enlear-se no assédio do bargante.

No dia em que as férias começaram chegou a ninfa à vila, desceu da carreira ao fim da tarde. Uma outra que vinha do comboio havia de pô-la em casa. Mas o Tunante estava à espera dela. Cercou-a de rapapés e cortesias, havia de lhe mostrar a loja nova, logo à entrada das muralhas.

A ninfa deixou-se conduzir. E quando veio a hora da carreira, à beirinha da noite, prometeu-lhe o Tunante que um amigo a levaria a casa, de carrinho, à moda das princesas. E logo ela se rendeu, enleada em semelhante gentileza. Tinha mesa posta e banquete preparado, bom presunto, melhor queijo, de vinho bastava-lhe um dedal, não estava acostumada.

A princípio o Tunante foi cordato, coroou-a de rapapés, quis levá-la com bons modos. Penteou-lhe a gaforina, passeou-lhe as mãos no flanco, encheu-lhe o copo de vinho. E abriu-lhe um botão do peito, só para ter uma visão. 

A ninfa aos poucos cedeu, o coração num galope. Dum lado o corpo inteiro a amotinar-se, o sangue a romper as veias, o ventre incendiado a extravasar. Doutro lado um grande medo, a cara dele a perder as feições, e um gesto tão poderoso que a assustava. 

Quando quis despir-lhe a blusa a ninfa ainda resistiu. Mordeu o lábio para evitar um grito, cruzou os braços no peito sublevado, refugiou-se no medo. E o Tunante deteve-se um momento, pareceu abandonar o campo de batalha. Foi ajeitar, ao canto, as mantas que lá tinha. Depois apagou a luz, ergueu numa braçada a ninfa amedrontada e foi estendê-la no chão.

Lá fora passaram socas a tropear na calçada. Porém a ninfa hesitou, reteve outra vez um grito. E já dois braços poderosos lhe sujeitavam o corpo, e as pernas brutas lhe apartavam as colunas, e rudes mãos lhe devassavam o peito. As socas na calçada voltaram a tropear, mas a ninfa retraiu-se. Conteve a respiração, não fosse ouvir-se lá fora o ranger do bragal que estilhaçava. Por três vezes entrou nela um vendaval, três vezes a desfolhou. Depois caiu uma escuridão desamparada, e um lago que arrefecia.

Por fim bateram à porta, era o outro que chegava. Aconchegou a ninfa no banco de trás do seu Volvo marreco e arrancou. Antes de a deixar em casa foi parar na carreteira dos moinhos do Alcaide, ninguém ali passava àquela hora.

O Tunante recolheu as mantas, fechou a porta da loja. Uma ninfa desfolhada dava casamento certo, era raspar-se um homem para o Brasil ou sujeitar-se aos códigos. Porém, em sendo o festim a meias, era ela assumida marafona e os códigos sossegavam. Cumprisse o amigo a sua parte e ficava o problema resolvido.

Quando o Outono chegou, depois das primeiras chuvas, o Tunante subiu para a camioneta e foi recolher à aldeia uns contratos de centeio. Bem o avisaram as sibilas, que desfizesse o negócio, que por lá tinha a morte prometida. Mas ele guardou a sovaqueira no casaco e lá subiu a encosta, a governar a vida. Um homem não saiu para outra coisa das mãos do criador.

O pai da ninfa já estava à espera dele, sentado no balcão. E quando o viu saltar da camioneta, de machado nas unhas foi-se a ele. O outro ficou surpreendido, não podia acreditar. Estendeu a mão à sovaqueira e pôs-se a ladear, queria ver se era verdade. Mas o homem trazia no carão a fúria dum deus irado, como quem chega duma tragédia antiga, o melhor era levar a coisa a sério. E desatou a correr.

As mulheres espreitavam à janela, havia gente que parava pelas hortas, a olhar, silenciosa. A própria tarde parou, a ver um homem cavalgar estrada abaixo, atrás doutro que fugia. Quando o sentia mais perto, virava o braço para trás e disparava. Disparou à passagem do ribeiro, e à horta da Teresa Côta, e à subida do negrilho, e à curva da fraga grande.

Agora chegámos nós à fundeira da encosta, e já cruzámos a estrada, e temos à nossa frente o açude da ribeira. Não nos sobra mais que um tiro, e já nos queima o pescoço o bafo dum deus irado. O Tunante apontou-lhe ao coração e disparou. E o machado, que lá vinha como um raio, enterrou-se-lhe no ombro.

Mas vem dalém um pastor, a correr em altos berros, vem salvar esta desgraça. O primeiro já está morto, nada podemos fazer. De que nos serve o segundo, um vagabundo. E num golpe de machado abriu-lhe a cabeça ao meio.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Despautérios canalhas

Aqui há uns anos, numa feliz conjugação astral, veio à fala o presidente da câmara com dois cidadãos do mundo. Eram eles um brasileiro de lusas raízes, arquitecto e compositor entre mais dotes, e um tal Barbas de méritos prováveis de quem nada se apurou. Logo os três se deram conta de não existir no país uma entidade que congregasse os labores de artistas, filósofos, pensadores e cientistas. E consideraram Trancoso o lugar ideal para uma contínua reflexão sobre os males do planeta, através da arte, da ciência e das novas tecnologias. Os três criaram a FACTO, logo ali, como quem diz a Fundação para as Artes, Ciências e Tecnologia - Observatório.

O objectivo da FACTO era a promoção de projectos de carácter transdisciplinar, transcultural e intermediário. Seja lá isso o que for, em boa hora lhe deram nascimento, que assim veio a ter lugar o primeiro encontro internacional de arte e ciência, a que chamaram o Espírito da Descoberta. Um tal espírito visava promover um momento de informação e debate, gerando uma visão mais ampla, diversificada e profunda de alguma das mais fascinantes descobertas da ciência e das propostas da arte, questionando a sua natureza, os seus fins e o universo humano nelas envolvido. 

Perante o duvidoso jargão da propaganda, cresce ao viajante a muita perplexidade. Mas logo veio em apoio de tão peregrino evento uma procissão de aclamadores, entre eles um filósofo europeu, presidente da Associação Mundial de Críticos de Arte, que era também a cabeça honorária do Tribunal Europeu do Ambiente.

Uma tal instituição, que anos atrás já naufragara na Bélgica por culpa dos governos que faltam aos compromissos, das multinacionais cuja bandeira é o dividendo, e de corrupções avulsas, achara por fim em Londres um porto de acolhimento. Foi nessa altura que o já citado brasileiro-luso se tornou seu director. E os Encontros Internacionais de Arte e Ciência, já firmados em Trancoso, deram então lugar às sessões do Tribunal Europeu do Ambiente. O Espírito da Descoberta cedeu passo às Origens do Futuro, muito embora pareça ao viajante, em linguagem mais terrena, que à tal fome de aventuras visionárias se juntou aqui a mais singela vontade de comer.

Esperava-se audiência de estudantes das várias universidades vizinhas de Trancoso, não especificadas pela organização. Ademais de professores, artistas, investigadores e público em geral. A plateia, porém, não chega a duas dúzias de presenças exóticas, as mais delas personagens da própria encenação. Mistura-se nas conversas o linguajar brasileiro com um inglês de várias latitudes, alguém atarefado nos serviços de apoio fala um português genuíno. Mas a tradução simultânea permite ultrapassar a babélica confusão.

O primeiro orador é um artista português. Debita um par de noções elementares sobre a eutrofização das lagoas dos Açores, fala no pico do petróleo e nos limites do crescimento, cita os malefícios da suburbanização e da fordização da sociedade. Discursos consensuais. E acaba por desvendar o seu projecto de capital dum país do futuro, uma grande estuário estimulado pela utopia dos jogos olímpicos de 2020, que haverão de ser os primeiros jogos pós-carbónicos.

O segundo orador é um físico judeu, que parte do big-bang original até chegar ao microcosmos dos protões, feitos de quarks ligados por gluões. Revela ao auditório sonolento a descoberta dos quasi-cristais, que possuem natureza quasi-periódica. Verdade ou não, o viajante não o sabe. Nem conhece, neste vasto mundo, ninguém a quem isso interesse, muito menos em Trancoso ou no auditório que o cerca. Mas o cientista já se aproxima do fim, e termina com uma incursão, quem sabe se pertinente, ao campo dos números irracionais.

O orador seguinte vem da América, é especialista em novos meios e revoluções editoriais. Para economizar papel, lê a cansativa intervenção num écra de computador, e ao viajante parece isto, finalmente, um escrúpulo a registar. Fala de livros, da rede, de mercados e de comunicação. Porém muito vagamente, que a tradução simultânea claudicou.

A seu tempo abandona a plateia um marquês bem conhecido, anfitrião de lúcidas tertúlias, que veio do seu palácio em Lisboa atraído pelo rumor das propostas. Pôs-se ao fresco e não sabe o que perdeu, que à chegada do crepúsculo vai faltar à vernissage. Na vastidão das paredes da igreja do convento há uma instalação dum criativo inglês. A propósito da água, esse liquido precioso, e dos seus aspectos físicos, simbólicos e espirituais, há imagens vagas dum feto na bolsa de águas, um banhista às voltas numa piscina, e uma sequência de fotos dum galã americano a metamorfosear-se em boga.

Escapando a intervenções de cientistas avulsos e dum antropólogo indiano, o viajante seguiu o exemplo atilado do marquês, deu às de vila-diogo. E só tornou ao fechar dos trabalhos, para ver como acabava aquilo tudo. Um velho arquitecto português quis saber como é possível redesenhar a humanidade, se o principal dos orçamentos do governos vai para as armas e as guerras.

Um engenheiro brasileiro jurou que na sua terra estava tudo preparado para a nanotecnologia, só o equilíbrio da economia do mundo os mantinha sossegados. Vindo embora do país que deu ao mundo os camponeses sem terra, assegura que há nele terra bastante para afectar aos bio-combustíveis, sem molestar a produção alimentar. E porque era, enfim, necessário concluir, alvitrou uma figura feminina que ao menos guardassem os pensadores os telefones dos comparsas.

O Tribunal Europeu do Ambiente acabou a anunciar nos jornais a instalação em Trancoso dum projecto-piloto de cidade biológica. Benza-os Deus, ao tribunal e ao projecto, por virem tão a propósito. Pensa isto o viajante, ao lembrar-se do fedor das queijarias do quinta do Forcas, ali abaixo a dois passos. Com os seus lagos de efluentes a céu aberto, empestam a atmosfera à saída para Lamego, inquinam a ribeira de Rio de Moinhos, interditam a rega aos aldeãos, matam as faunas do Távora.

Ainda bem que chegaram a Trancoso estes cavaleiros andantes. A vila inteira é que não deu por eles, se antes não caprichou em manter as distâncias. É que há nestas liturgias diletantes um solipsismo patético, há um vazio que dói. Porém muito suspeita o viajante que a tão irreais oficiantes não molestou tão grande alheamento. Bem antes pelo contrário. E custa-lhe a acreditar que a câmara de Trancoso dispenda uma fortuna a financiar tudo isto.

Porque ainda não é tudo. Buscando nas entrelinhas, acaba por saber o viajante que o dito museu do tempo exporá uma  colecção de duzentos relógios dos últimos quatro séculos. Os quais fazem parte do espólio dum inventor e industrial português de contornos indecisos, directo ascendente do já citado compositor brasileiro-luso, a alma destes encontros. E o arrojado museu vai ter o nome do filósofo que é também presidente honorário do Tribunal Europeu do Ambiente. Sabidos que já eram os efeitos, ficam assim conhecidas as causas, não vá alguém iludir-se com os acasos deste mundo. Tudo não passa afinal dum concerto de privadas conveniências.

Ora o viajante considera que um tão distinto cenáculo de construtores do futuro bem faria em reunir-se no hotel do Alto dos Frades, para uns serões pacíficos de bridge. Mas não para estes rituais iniciáticos, alheios a uma realidade que absurdamente os ignora e financia. Bem verdade é o que se diz de qualquer poder sem freio. Ou corrompe ou ensandece.

(bem mais havia a dizer, mas fiquemos por aqui)

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Lidoro

Um tal nome é corruptela do vulgo, do original já não há quem se lembre. Tinha ressonâncias clássicas perdidas, engendradas ninguém sabe como na cabeça do pai, a quem chamavam filósofo. Isto quando voltou da grande guerra, de cabeça estonteada pelos gases.

Hoje vive ali nas Tapadinhas, a meio da encosta, como um anacoreta. Tem uma casita de chão térreo, com uma porta por onde o sol espreita, sem entrar. Lá dentro cabe uma vaca, duas cabras, e dúzia e meia de cães. Na horta há uma presa velha, de águas-vivas. Basta-lhe a ele, aos bichos e ao renovo.

Quando calha apanha uma perdiz, um laparoto incauto, se os cachorros ajudarem. Poda as vides da latada em lhe chegando o tempo, e é delas que tira um palheto improvisado para adoçar as invernias. Afora isso deixa o mundo correr.

Teve em tempos uma namorada, e desejos de fazer vida com ela. A mãe é que não deixou, no entendimento dela não era mulher para ele. A namorada foi casar a outro lado, a mãe morreu quando lhe chegou o dia, Lidoro ficou sozinho e mudou-se para as Tapadinhas. Nunca mais voltou ao povo, que foi ficando deserto.

Já lhe ofereceram uma casa da Misericórdia, um catre no lar dos velhos, mas ele escorraçou o mensageiro. Diz que se fartou daquelas galgas, que não está para as aturar. As galgas são as línguas das mulheres, quando se juntam na fonte. E ninguém lhe deu notícia de que as galgas lá morreram e deixaram de lá ir.

A pontada que lhe mói o lado esquerdo já passa as noites com ele. A princípio ia e vinha, uma fraqueza assim ao fim da tarde, talvez por mor do cansaço. Agora nem de madrugada o larga. Prende-o à cama e só o vai largar quando acabar com ele. Mas Lidoro ainda o não sabe.

Nessa altura, que não tarda, os cachorros vão juntar-se à roda do seu dono, todo ausente, a mão imóvel. Vão ganir-lhe, em voz chorada, a pressentir o pior. Vão uivar-lhe, em desespero, já sem esperança nenhuma.  E vão ladrar-lhe, raivosos deste abandono, já toldados pelo instinto. Até que o primeiro deles lhe afoite na jugular os caninos esfaimados.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Felisberto

E o viajante já está de partida quando chega Felisberto, a cavalo numa espécie de lambreta, barulhenta e minúscula. 

- Há-de-me ver isto, mestre Fernando! Vejo-me grego para a pôr a trabalhar, passa a vida a tossir!

O nome de Felisberto não lhe diz com a fachada. É um homem seco, nervoso. tem um ar atormentado, e a cortesia dos gestos não disfarça o sobressalto íntimo em que parece tropeçar. O mestre promete que ainda hoje tira as tosses à lambreta. E o viajante, é ao que anda, vai conversar com Felisberto para a sombra dum castanheiro.

O homem não esconde a vontade de falar das suas vidas, pouco terá ocasião de o fazer. Ora o viajante, médico não sendo, sabe da própria experiência o poder milagroso das palavras, mormente se outro remédio não houver. Há anos está Felisberto reformado da polícia e agora vive aqui na aldeia. Sempre é ambiente mais favorável ao seu génio sobressaltado.

- Tudo isto são nervos! - resume Felisberto, que pouco mais sabe explanar dos seus padecimentos. Embora saiba muito bem que tudo ficou assim desde as guerras de Angola. Um dia, em 70, acabado de chegar a Luanda, meteram-no com mais dois colegas num avião que os deixou em Serpa Pinto. De lá seguiu numa coluna militar para o Baixo-Longa, e depois para o Cuíto. Atravessaram o Kuando-Kubango e ao cabo de dois dias chegaram a Mavinga. Luanda ficara a dois mil quilómetros, e isso pouco era, comparado com a distância a que deixara a mulher e um filho, em Alcabideche, do outro lado do mar via-se a Trafaria.

Mas o guarda Felisberto não se quedou por aqui, o seu destino final era mais longe. E ainda faltava outro tanto de viagem até ao posto policial e fiscal do Rivungo, na fronteira da Zâmbia. Era lá que o império precisava dele, para enquadrar as milícias dos quimbos, e para controlar as populações de que o império era feito.

O viajante não entende muito bem o que  isto quer dizer, não sabe como se enquadram milícias, nem imagina como é que estes três homens vão controlar as populações dum império. As palavras são de Felisberto, o viajante limita-se a ouvi-las e a guardá-las na memória.

Ali viviam os três guardas num barracão de adobe e telhado de zinco, perdidos num mar de capim, quando iam ao rio espreitar os jacarés levavam em bandoleira a Mauser de repetição, que era tudo o que tinham por companhia. De horas em quando vinha uma coluna e deixava latas de salsichas, uns fardos de arroz e sacos de farinha, de que eles faziam pão numa fornalha de barro.

Felisberto não era nada feliz naquele mar de areias verdes onde a vista se perdia, mas aguentou sete meses. Até que o apanhou um ataque fatal de paludismo, mesmo ruim, e uma paralisia facial que o deixou de cara à banda. O viajante não compreende como é que o paludismo e a paralisia se juntaram assim, mas Felisberto também não sabe explicar.

Lá foi um dia evacuado para Serpa Pinto, numa passarola de quatro asas que aterrou na picada. Dali apanhou uma camioneta para Nova Lisboa, e depois outra para Luanda, onde acabou por chegar ao fim duma eternidade e com menos de cinquenta quilos de peso. Ficou assim mais perto do filho e da mulher, mas ainda havia de tardar em vê-los, que lhe faltava um ano e tal de comissão na 7ª esquadra de Luanda. Gastou-o ele entre idas ao médico e transportes de presos para a Damba, um presídio de pretos lá nos confins do Norte. E foi assim que Felisberto conheceu meio mundo, e viu coisas com que nunca sonhou, e se fartou de viajar à custa do império.

Quando voltou, foi parar à Quinta do Pisão, a um centro de apoio social da Misericórdia de Cascais. Ficou por lá uns anos, em serviços de enfermaria, e só não aguentou mais porque já nada era igual. Nem a vida com a mulher e o filho voltaram a ser a mesma coisa.

Ao viajante, que se limita a observar enquanto vai ouvindo, Felisberto faz lembrar um barco que perdeu o lastro. Sendo dum país de marinheiros, cabia-lhe andar assim por mares e sertões, isso o viajante não discute. Mas a um marujo assim não convirá expor-se a virações, nem aventurar-se em águas muito fundas.

Há cem anos...



 À hora do crepúsculo regressava a casa. Montado na Marquesa, um rádio de pilhas pendurado ao ombro, atrás das vacas que subiam a encosta de barriga cheia. Tinham olhos muito grandes, muito meigos, e quando era preciso arrastavam o mundo. 
O caminho era este. E eu lá subia, enquanto a emissora nacional emitia "um conto radiofónico pelo doutor Paulo Pombo".
Hoje não guardo lembrança de conto nenhum. Mas da Marquesa, da Cereja, da Castanha, deste caminho e do poente que morria nunca mais me esqueci.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Feira de Agosto

Há um sobressalto na paisagem. Do céu fugiu a cor. A brisa bate à porta. Vem entrando Saturno, o melancólico. 

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Ouro Preto

Na estrada a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a casa das fidalgas. Seja ele como for, é um insólito lugar. E este viajante já por aqui andou alguma vez, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, pelo mistério simétrico das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes.
O viajante empurra um portão carcomido. Mas não encontra o Gastão, sentado atrás da bancada, a fazer bonecos de madeira a canivete, e flautas de cada para vender aos turistas. O anexo do solar está fechado, a cumeeira mestra já ruiu, e quem recebe o viajante é uma assistente que anda por ali, de mau feitio e pior catadura. Logo lhe dispara a novidade da morte do feitor.
Antigamente o Gastão habitava estes anexos e olhava pelo conjunto. Ele era neste lugar a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR, e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Mostrava ao viajante as palmeiras do jardim, as japoneiras em flor quando era o tempo, levava-o à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, nas terras que um fidalgo arrematou ao fisco, à vinda do Brasil, há muitos anos atrás. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer pela Santa Inquisição.
Subia depois ao belvedere, virado às doçuras do poente, e mostrava o salão de honra nos altos do torreão. Era um deslumbramento inusitado, olhava o viajante a paisagem lá fora e não acreditava no que estava ali, à frente dos seus olhos. O tecto era um céu de caixotões pintados, com o brasão do fidalgo no lugar central. O resto em volta eram painéis de santos e naturezas mortas. E tão mortos estavam, as naturezas e os santos, que uns prometiam a ruína e as outras já desabavam, comidas da humidade. O todo apoiava-se, nos cantos, em anjos-cariátides, empenachados como índios do Brasil.
Finalmente o Gastão conduzia à capela um viajante estonteado, cativo do esplendor dos ouros, do jogo das simetrias barrocas, dos exotismos  da flora mineira, com crocodilos e palmeiras e coqueiros. A Senhora da Penha de França lá estava em apoteose, entre prodígios de arte e opulência, cercada de querubins, envolta em festões e grinaldas. À direita uma porta a fingir, reflectindo a entrada verdadeira na parede da esquerda. E em cima, à esquerda, uma janela pintada, a espelhar a verdadeira, que à direita abria para a ruela.
Depois contava ao viajante a história do fidalgo, que ali se mostrava em dois retratos de tamanho natural. Dum lado o escarlate da labita cortesã, do outro o hábito escuro das ordens que tomou, já sexagenário. Luís de Figueiredo Monterroyo foi-se ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Era capitão da armada real e provedor dos quintos de el-rei em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará. E à desmedida fortuna acumulava uma filha, a mulatinha Angélica, que fez numa escrava da Mina por quem tomou paixões. "Mercê que fez Nossa Senhora no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 léguas às Minas do Ouro". E o Gastão mostrava, num ex-voto, um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. "Milagre que fez Nosso Senhor... no mar da Bahia... E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
Ao ver-se em aflições, implorou D. Luís a protecção da santa, jurou construir-lhe uma capela que não tivesse igual. Em 1727 cumpriu-se o voto aqui, ao lado dum solar que ninguém concluiu, e dum convento franciscano que não chegou a existir. Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar. O cavalo é que escolheu este lugar, concluía o Gastão, antes de mostrar ao viajante, num livro dum letrado, que a mulatinha se finou solteira, sem deixar descendência, no ano em que assaltaram a Bastilha. E que o Solar dos Brasis é testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará.
Agora o Gastão foi-se embora e com ele a sorte deste viajante, que se limita a uma ronda exterior do solar. O IPPAR pôs-lhe um telhado novo, e trancou as portas e janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira. Ao contrário do letrado, o viajante só vê neste lugar um tempo triste da história, que deixou aqui um túmulo, mais um, onde embalsamaram Portugal. Chegavam rios de ouro nos porões, a um país sangrado pelo império. E acabavam aqui, neste espavento, sem deixar outro sinal nas vidas. Mas este viajante nunca o disse ao Gastão, e ele foi-se embora sem saber a verdade. Ao menos foi em paz.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Ó PAN!

E agora que se faz ao crocodilo do Nilo? 
Mata-se a tiro ou não?!

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Rifoneiro

Do cerejo ao castanho bem me avenho.
Do castanho ao cerejo mal me vejo!

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Sá de Miranda

O homem fartou-se da corte e foi viver para o Minho. E por lá andou a elaborar sonetos como quem calceta ruas.

O sol é grande, caem co'a calma as aves 
do tempo em tal sazão que sói ser fria...

T'arrenego demonho!

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Bocas

Mil vozes chilreiam à Primavera. Mas cai a noite e só o rouxinol se ouve.

canto

domingo, 3 de maio de 2020

Cândida

Vive além naquela casa grande, ao fundo da vereda. Mas nunca gostou de morar fora do povo, aqui no descampado. E agora ainda por cima está sozinha,desde que enviuvou.
Antigamente a vida era diferente e até os dias lhe pareciam mais pequenos, sempre numa fona entre a cozinha e a horta, o asseio da casa e as lixaradas que o vento juntava no pátio. Mas agora tornaram-se tão grandes, e tão pesados às vezes, que mal os consegue suportar. Só a poder de tristeza e solidão.
Metade da casa não parece sua, fechou a porta que dá para o corredor e nem lá entra. Só para se defender. As latas das sardinheiras que rodeiam o pátio ficam semanas sem uma atenção. O que lhes vale é serem resistentes e saberem esperar. Agora tem muita pena, mas foi assim que as sécias lhe morreram.
Esta lembrança das sécias deixa-a numa aflição, fá-la sentir-se culpada da morte do marido naquela manhã. Ele em frente do espelho, a deixar de ver no queixo a espuma da barba, a queixar-se das tonturas. Ela chegou a correr, e ele dobrado por cima do lavatório, ele a estender a mão à procura da parede, ele a pedir que lhe limpe um suor frio na testa. E ela a ficar ali atarantada, a telefonar ao cunhado em vez de ligar para as ambulâncias, o cunhado a tirar o carro da garagem, a levar o irmão ao consultório do médico, e o médico sem atentar no que fazia, sem perceber o que se estava a passar, sem o despachar logo para as urgências, o médico a escrever uma carta vagarosa para os colegas do hospital, a mandá-lo seguir no carro do cunhado em vez de reclamar os bombeiros, o tempo a passar e os dois a gastá-lo na sala de espera, sem que nenhuma enfermeira reparasse nele, sem que a menina da bata lhe adivinhasse o nome e viesse chamá-lo, senhor Manuel dos Santos.
Ah, se ela tivesse aprendido que havia ambulâncias quando se deixa de ver a espuma da barba em frente do espelho, se ela tivesse escrito num papel o telefone dos bombeiros, se ela ao menos soubesse conduzir, talvez o Manel não tivesse morrido de abandono, cercado de tanta gente, ali à entrada das urgências do hospital da cidade!
O certo é que o marido lhe morreu, porque o tempo foi demais. Tão comprido o tempo dele, nesse dia, conforme o dela é hoje, que só a poder de tristeza e solidão lhe consegue resistir.
A casa, grande demais, ambos a ganharam na Alemanha, há trinta anos atrás. Deixaram o filho em casa do avô e ala moleiro. Bem lhe custou, como mãe. E mais lhe custaria se soubesse o que sabe hoje, porque a criação do filho não foi bem o que devia. Sobre o mais, era aquela língua tão arrevesada que nunca foi capaz de lhe meter o dente. Mas os peixes na fábrica também não falavam, os peixes que ela amanhou anos a fio, a metê-los nas latas e nos frascos, sem dizer uma palavra. Para já não falar do frio, que lhe incendiava os dedos, na água onde nadavam barbatanas e tripas. De vez em quando havia quem metesse uma krankada, mas ela nunca o fez. E se não fossem as férias que vinham em Agosto não se tinha aguentado. A bem dizer, ainda hoje não sabe se valeu a pena tanto sacrifício.
Mas este ano já prometeu à Dulce que não vai ficar aqui sozinha. Quando as vindimas vierem, já prometeu à Dulce e à Armandina que há-de ir com elas para o Doiro. Há-de apanhar, madrugada, a camionete que as vai levar e trazer. Não será lá grande coisa. Mas pode ser que as férias em Agosto aconteçam outra vez.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

25 de Abril

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SEMPRE!!!

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Tempos idos

Alguns dormitam, maçados, nos beliches, ele viaja a noite inteira a pé. Entre o bar e o corredor, entre uma nova cerveja e os considerandos do salário que recebe. Quase setecentos contos, mesmo quando não embarca. Como agora, que vem a casa ver a mulher. Mas isso vai acontecer só amanhã, lá pelo meio-dia, em chegando à Pampilhosa, depois de atravessar a infindável noite basca, a leonesa, a castelhana, num Sud-Expresso lôbrego. 
Alfredo tem trinta anos e deixou a escola antes do tempo, em Mira. Foi trabalhar com o pai, no tempo em que havia quarenta companhas só nas artes da xávega. A princípio puxavam a rede à unha, com juntas de bois que enterravam os cascos no areal macio. Hoje não chegam à dúzia. O peixe foi-se embora, será culpa das chuponas espanholas. E ficou tão barato na lota quanto é caro nas bancas do mercado, não se compreende Portugal. Paga-se o gazol do barco e o resto mal dá para viver. De forma que o pessoal começou a emigrar e ele foi parar a Quipert, ao pé de Nantes. Foi há dois meses, mais um cunhado, é esta a primeira vez que vem a casa. Em Quipert saem para o mar à quinzena e Alfredo é o cozinheiro. O dono do barco é tão velho que já não navega, toda a companha de sete é contratada. Mas o peixe vai à lota ao mesmo preço para todos e toda a gente ganha. Só não se entende o que se passa em Portugal. 
Alfredo vem excitado com os considerandos do salário que recebe. Jantou no vagão-restaurante, bebeu uma garrafa de bom vinho, no fim pediu um conhaque e pagou quarenta euros mas valeu a pena. Depois foi aturando a noite a poder de cervejas, e é por isso que já lhe arrasta a voz, e tem este bafo choco e amargoso, e repisa outra vez os considerandos do salário que recebe. Quando chega a Vilar Formoso desce ao cais durante meia hora, o tempo de mudar a máquina ao comboio. Bebe outra cerveja na cantina, com uns camaradas negros que exercitam um hip-hop lusófono, e também chegam da Europa. 
Lá pelo meio-dia, toldado como vai, Alfredo levará tempo a encontrar-se com a mulher. E logo que o conseguir, vão ser horas de apanhar outra vez o comboio para voltar a Quipert, ao pé de Nantes. Onde agora é cozinheiro, sempre que sai ao mar, a pensar nos considerandos do salário que recebe.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Primaveras

A segunda-feira da Pascoela era (se o não for ainda) o dia da Senhora da Saúde, numa aldeia vizinha. Velhos e novos lá iam campos fora, ladeando searas, fazer a romaria. 
Em chegando entravam na capela a cumprimentar a santa, a assistir à missa e ao sermão. E a qualidade do pregador media-se pelo fungar das devotas, que lacrimejavam. 
No fim acomodavam-se por ali, estendiam nas fragas os farnéis donde quem-quer se servia, e já ao lado um taberneiro oferecia dois pipos em cima duma burra. Era uma alegria.
A meio da tarde havia que regressar, tomando o mesmo caminho. E ao fim do dia havia bailarico ao som da concertina do mestre Batuta, que ia mimando os esgares do solfejo.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Rifões

Abril frio e molhado / Enche o celeiro e farta o gado.
E torna o confinamento muitíssimo mais pesado!

quinta-feira, 26 de março de 2020

Não há duas sem três

Quinze dias depois, também à noite, meti o aparelho no braço e medi a tensão. O valor sistólico era desmesurado e o número de batimentos cardíacos não passava de quarenta. Medi outra vez e baixou para trinta e dois. Tomei uma pílula e meti-me na cama.
A minha companheira é que não se ficou. Ligou para a Saúde 24 e logo lhe mandaram chamar o INEM. E eu lá fui, cheio de luzinhas azúis, parar à mesma urgência hospitalar. Também à sexta-feira.
Mas desta vez as coisas foram diferentes. Fui parar aos cuidados intensivos, rodeado de batas verdes e brancas, ligado a um ventilador. Instalaram-me no peito uma confusão de fios, fizeram-me picardias que nem sei descrever, medicaram-me e puseram-me a dormir.
Dias depois o INEM levou-me a outro hospital e instalaram-me um pace maker. Desde então sossegou-me o coração.
Acabei por regressar a casa e vim a tempo. Pois que, mal cá cheguei, foi só fechar a porta e resguardar-me, que andava aí à solta um vírus vindo de longe, a encher os hospitais, a dizimar milhões. Serenos só os meus gatos.
Ou o mundo enlouqueceu, ou a mãe-natureza entrou em roda livre, ou sou eu que já não tenho vida para tanto.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Espelho da nação

"O exército é o espelho da nação, e isto era o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom como os melhores. Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, pois convém a César dar o que de César é, e para o provar vamos nós ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem, entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra. Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver. E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é  vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida custa a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Sentido

Não foi aférese nem apócope o que se passou, antes fosse. Foi só síncope. 
Tinha caído a noite, ia eu a traquinar na sala dum lado para o outro, ao chegar à esquina caí redondo no chão. A cabeça bateu numa coisa qualquer, talvez um duro canto da pedra da lareira, tão duro que me deixou um lanho na cabeça. 
O que havia a fazer foi o que se passou: levaram-me ao centro de saúde, meteram-me numa ambulância e mandaram-me para o hospital. E lá fui eu na maca do bombeiro, adivinhando as curvas da estrada que sei de cor, até que ele me entregou na urgência.
Foi então que saltei cinquenta anos para trás e dei comigo numa ambulância militar, que buzinava frenética pelas ruas de Luanda. Era de noite e eu trazia a cabeça num bolo, os olhos entrapados nos cacos da viseira, uma miséria.
Na circunstância, os médicos e a juventude fizeram o seu milagre. Mas este hospital de agora não dispõe de bons médicos, nem se pode contar com a juventude do paciente. À meia noite, estendido numa maca e rudemente tratado, ao ver-me enfileirado num corredor sem fim onde velhos tossiam, assinei um termo de responsabilidade e fui para casa, contra o parecer do médico. O TAC nada acusava. E um fim de semana inteiro a corar, pendurado no estendal, à espera de amanhã,  tinham escasso sentido.

sábado, 4 de janeiro de 2020

O do rabo longo

O abelharuco, que tem o rabo longo, passa o tempo a estudar o relvado, saltitando entre a faia e a figueira. Não são, a bem dizer, os figos que o motivam, mas os grilos. Quando algum se arrisca no carreiro mergulha em cima dele. Crucifica-o no bico, vai sentar-se num galho e come-o. Passou a manhã nisto.
Afora isso abriga-se na sombra e alarga as penas à brisa, a refrescar-se. Só volta ao chão se um grilo se aventura.
Mas mal a gralha, que tem a fala dura, espanejou as asas e desce do carvalho, logo o abelharuco desampara o relvado. Esquece grilo e tudo.