segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Dia 9

O bartolomeu não sabe explicar por que tomou a decisão de subir ao chiado, naquele dia à tarde. Certo está apenas de já não guardar esperanças no peito, à medida que ia subindo a rua nova do almada. Dormia há três meses nas arcadas do ministério das finanças, encostado a um pilar que os pombos ainda respeitavam. Esmolava no sul e sueste, quotidianamente posto em  risco pelas avalanches de pernas que desaguavam de cacilhas, e aventurava-se a um almoço na económica dos anjos, quando as forças lhe deixavam subir a avenida, o que era raro. Nesse dia trepou ao chiado como quem vai de férias.

Olhai as aves do céu, que não semeiam nem colhem! - Soletrou o cartaz pendur ado ao cimo das escadas da igreja dos mártires, que no íntimo sentiu como sua, porém sem cogitar o milagre que ali estava à espera. Atravessou o guarda-vento, tacteou ao longo da parede e lançou os dedos à pia de água benta, num gesto que desenterrou duma memória antiga. E foi quando a mão direita lhe transitava, canhestra, entre o pai e o espírito santo, que os olhos se afizeram à obscuridade e decifraram o peixe picotado no lioz da coluna, mesmo por cima do tanque.

 Pouco dado a leituras cabalísticas, o bartolomeu ficou surpreendido. Mas logo saltou da surpresa para o espanto, quando viu o peixe desprender-se da pedra e mergulhar na água benta, num encarpado perfeito.

Arqueou as sobrancelhas, roçou um punho nos olhos, não queria acreditar. Procurou assento num dos bancos corridos e ali ficou, de queixo nas mãos, enquanto a fresca atmosfera da nave central lhe assentava lentamente na cumeada dos ombros. À saída foi espreitar a concha da água benta. O pequeno dorso do peixe evolucionava lá dentro, a lavrar, cuidadoso, as lodagens do fundo.

Oito dias depois regressou à igreja, e lá encontrou o vulto escuro a remexer as águas. Mas o que via agora eram dois palmos de lombada sólida e carnuda, de barbatana inchada, abrindo as guelras ávidas ao maná da água benta. Logo ali capturou o robalo a mãos ambas, fê-lo desaparecer no bolso e foi tratar do jantar.

No dia seguinte foi à igreja de são roque e saiu-lhe uma carpa enorme. Na sé teve direito a salmão. Nos jerónimos ia-se empanturrando de besugos, de linguados, de azevias. O bartolomeu tem o futuro assegurado. Levará muitos anos a percorrer as pias de água benta de lisboa. Depois há-de vir o porto, santarém, a idolátrica braga... E o bartolomeu olhará, sem cobiça, os pássaros do céu, enquanto for correndo as capelas do minho, à espera duma lampreia.

|O Mensário do Corvo]

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Burro

 

Jumento queixoso por ter ido à Caparica de óculos escuros e máscara no focinho.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Feira de Agosto

 Há um sobressalto na paisagem. Do céu fugiu a cor. A brisa bate à porta. Vem entrando Saturno, o melancólico.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Pardais ao ninho!

 Um alferes artilheiro numa base aérea não trazia vantagem que se visse. Mas este era apreciador de música e estava atento às notícias. E assim eu soube que, no domingo, a Olga Prats e o Pizzamillo davam em Carmona um recital.

O que faria um jeitão era o comandante da esquadra dispensar-me um Auster. Muito mais fácil do que fazer de jipe cinquenta quilómetros para lá e outros tantos para cá. É certo que a passarola não tinha sequer o painel iluminado, quanto mais ser capaz de fazer voo nocturno. Mas porém... E eu lá fui, depois do almoço. 

As coisas correram bem, com ganhos múltiplos. Porém, sendo tão cedo, resolvi eu fazer uma visita a uma cinturinha de vespa que conhecia na cidade. E assim o resto da tarde se escoou num ai.

Quando dei por mim caía a noite. Despedi-me à francesa, corri a apanhar um táxi e fui para o aeroporto. Meti-me na passarola, dispensei procedimentos, rolei para a pista e descolei de seguida. Durante a subida, ainda acendi o isqueiro para ver a pressão do óleo. À minha volta era tudo escuridão.

A minha referência principal eram as luzes dum carro ou outro, lá em baixo, na estrada. E eu lá fui, sempre a subir, confiando que o motor fizesse a sua parte. A certa altura comecei a ouvir no rádio chamadas insistentes da torre de controlo do Negage. Eu respondi, com um tempo estimado em rota muito escasso, para acalmar o pessoal.

Às tantas lá vi ao longe uma pista iluminada e pude respirar fundo. Afinal a passarola não fazia voo nocturno mas era o tanas! Benzi-me, falei para a torre e fiz aproximação directa.

O mecânico orientou-me na placa, tinha um ar preocupado. E eu corri para a esquadra, onde o chefe me aguardava. Não me restava outra coisa que não fosse pôr o cachaço no cepo.

Foi assim que o desarmei. E lá fomos todos, cada um à sua vida. Ao ninho.