quarta-feira, 31 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 25


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            Março chegara. No Canadá, os piscos-de-peito-ruivo, as felosas-assobiadeiras e os borrelhos-de-duas-coleiras faziam já os ninhos. E na costa do Yucatán reinava a impaciência e a excitação migratória. Quando no Inverno acontecia o mesmo, isso não perturbava as aves de arribação. Porém, mal se anunciava fisiologicamente, o novo ciclo de reprodução apressava-as. Procuravam espaço, pois cada casal queria preservar-se. As andorinhas e os andorinhões-das-chaminés, que se alimentam em voo, viajavam de dia e seguiam calmamente a costa mexicana para Norte. Mas a maior parte das aves juntava-se na península do Yucatán, e ali se acumulavam, como um rio que tropeça num obstáculo. Esperavam e juntavam forças, até que, numa noite de vento favorável, levantavam na escuridão do crepúsculo e avançavam para o vasto golfo do México.
            Após dois ou três dias de calmaria, uma tarde o vento levantou-se e a impaciência apoderou-se das aves. Os tordos e os estorninhos iniciavam pequenos voos ao rés da água, experimentavam o vento e as asas e voltavam para trás. Para os maçaricos, a etapa de oitocentos quilómetros sobre o golfo era para fazer numa noite. Mas para as pequenas aves canoras, que voavam duas vezes mais devagar, esta era a etapa mais difícil de toda a viagem. Por isso tinham que escolher o momento da partida com especial cuidado. Durante a tarde, muitas já não regressavam dos seus voos de ensaio. Elevavam-se no ar, pairavam sobre a rebentação e avançavam para o mar alto, até serem apenas pequenos pontos negros, que desapareciam finalmente no azul do céu. Ao pôr-do-sol reinava um estranho sossego na praia. Só os maçaricos e um par de narcejas tinham ficado para trás.
            Quando por fim partiram estava escuro e nascia a lua nova. Nas outras travessias do oceano, os maçaricos e as tarambolas-douradas tinham voado sozinhos. Mas agora tinham companhia, uma vez que outras aves percorriam o mesmo caminho. Duas horas depois, os maçaricos começaram a ultrapassar as aves mais pequenas, que partiram mais cedo. A atmosfera vibrava com chamamentos e gorjeios, por todo o lado faiscavam asas prateadas ao luar. Havia rotas mais fáceis, sobre o mar das Caraíbas e o golfo do México. As aves podiam saltar de ilha em ilha, e ter quase sempre terra firme à vista. Mas as ilhas eram minúsculas e ofereciam pouco alimento. Por essa razão, a maior parte delas voava sobre a terra firme centro-americana até ao Yucatán, e dali directamente sobre o golfo, sem qualquer escala. Os maçaricos ultrapassaram os cucos, que nidificam na Nova Inglaterra, depois os chascos e as pequenas felosas cujas reservas se encontram nos escuros bosques de abetos do Norte, em seguida os tordos-americanos que se dirigem ao Alaska, os estorninhos e as escrevedeiras que se espalham pelas pradarias do centro do continente, e finalmente os tangarás-d’asa-negra, para quem a viagem termina já nas costas da Louisiana. De entre as aves que naquela tarde tinham deixado as praias do Yucatán, só havia uma espécie que os maçaricos não ultrapassavam. Muitos colibris tinham partido também, esses pequenos anões tenazes que não pesam mais que alguns gramas. Iam muito à frente, deixando todos os outros atrás de si. As suas asas minúsculas faziam setenta batidas por segundo. A maior parte das aves precisavam de vinte horas para chegar a terra firme norte-americana. Os maçaricos precisavam de dez, e os colibris apenas de oito.
            Quatro ou cinco horas depois, os maçaricos tinham ultrapassado as aves mais pequenas e voavam sozinhos. De repente o ar tornou-se mais frio e pesado. As asas obtinham mais impulso, e o alísio de Leste rodou para Sul. Pequenos farrapos baixos escureceram a lua, nuvens pesadas e negras começaram a acastelar-se, a noite ficou escura e as águas do golfo despareceram na treva. O vento rodou para Leste, mas logo virou de novo, soprando agora de Norte com fortes rajadas. Os maçaricos rumaram para Oeste, para o manterem de lado. Então começou a chover copiosamente, como uma parede de água erguida diante deles.
            Passada a primeira bátega, o vento e a chuva amainaram um pouco, mas o mau tempo manteve-se durante cinco horas. Só ao nascer do sol é que atingiram céu calmo e transparente. Normalmente continuariam a voar em frente, sobre os charcos e os pântanos salgados da costa do Texas, para depois poisarem, um pouco mais além, nas aluviões das pradarias. Mas o temporal tinha-os esgotado. As rémiges encharcadas colavam-se umas às outras, e já não reagiam adequadamente aos movimentos dos músculos. Mal alcançaram a costa, desceram em voo planado sobre a praia.
            Paralela à costa, corria por baixo deles uma estreita ilha, com dunas de areia e manchas de capim, ao longo de quilómetros. Durante um ou dois minutos os seus olhos procuraram um lugar onde houvesse alimento. Na areia havia numerosos charcos de água, provocados pela chuva da noite. Bandos de narcejas, obrigadas a poisar pelo temporal, rodeavam estas poças, procurando comida ou alisando a plumagem. Os maçaricos sobrevoaram vários bandos de tarambolas e galinholas sobre a duna. Na sua frente havia charcos lamacentos, onde já se encontravam centenas de maçaricos-norte-americanos, que gritaram na sua direcção. Os dois maçaricos abriram as asas e poisaram no meio deles.
            Mas só ali ficaram durante o dia. Ao cair da noite partiram sozinhos, e duas horas depois poisaram na pradaria enluarada, cento e cinquenta quilómetros para o interior.
            A sua intranquilidade diminuiu, agora contentavam-se com a espera. O instinto dizia-lhes que tinham ultrapassado todos os obstáculos. Os últimos cinco mil quilómetros até ao Árctico passavam pelas grandes planícies dos Estados Unidos e do Canadá, onde nem montes nem cordilheiras lhes dificultavam a rota, e onde havia alimento até ao exagero. Em caso de necessidade, poderiam fazer esse trajecto numa só semana, e por algum tempo sossegou-lhes o impulso migratório. Na melhor das hipóteses, a tundra só estaria pronta para a nidificação dentro de dois meses. Mas isso não o sabiam os maçaricos. Sabiam apenas que, neste começo da Primavera, havia muitos insectos nas pradarias do Texas. E sentiam o desejo de ficar.
            Esperaram três semanas, durante as quais não avançaram mais de cento e cinquenta quilómetros para o interior. Quase todas as noites ouviam passar lá por cima os bandos das aves mais pequenas. Estas não nidificam no Árctico, mas em reservas muito mais a Sul, onde era já Primavera. Quando chegasse o momento, os maçaricos fariam numa noite o que a estas aves demorava três.
(Cont.)

terça-feira, 30 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 24


O sol caiu para Oeste. E ele estava de tal modo enfraquecido que nem a mais tenaz força de vontade lhe permitia já bater as asas, tão depressa como até aqui. Mas manteve-se à frente. As batidas abrandaram, a velocidade diminuiu, e a fêmea notou-o. E foi então, depois de vinte e quatro horas de silêncio, que ela começou a enviar-lhe suaves gorjeios de ternura. Isso deu-lhe mais força do que o alimento ou o descanso. E ela repetiu o gesto muitas vezes. O sol estava ainda acima do horizonte, o mar doirado resplandecia como pedra preciosa, e as asas dele transportavam-nos, incansáveis.
            Estava o sol a pôr-se quando algo azul-escuro, fino e vaporoso, apareceu no horizonte. Durante alguns minutos pareceu-lhes uma nuvem. Depois ganhou consistência, tornou-se uma faixa de costa, e finalmente surgiram lá atrás os contornos serreados das montanhas da Guatemala e das Honduras. Os cumes vulcânicos longínquos sobressaíam claramente. A mancha azul, junto ao mar, tornou-se verde, e onde ela terminava apareceu a faixa branca da rebentação. Quando os maçaricos atingiram a praia orlada de palmeiras, dispunham ainda de meia hora de claridade e começaram logo a comer. Ao chegar a escuridão, já a tortura da fome e do esgotamento diminuía.
            Toda a manhã seguinte trataram de se alimentar. Mas não havia muita comida, pois a praia era estreita e fora varrida pela rebentação. Ao meio dia prosseguiram o voo, apesar do enorme calor. Agora dirigiam-se terra adentro, pois era Verão na América Central, e as altas pradarias fervilhavam de gafanhotos. Voavam sobre a zona costeira, que subia lentamente até às montanhas. O solo vulcânico, escuro e fértil, produzia frutos exuberantes, como cocos, bananas e cana sacarina. Uma hora depois estavam a 1500 metros acima do nível do mar, e chegaram a uma zona mais temperada, com ar frio e seco. Continuaram a subir, avançaram para as montanhas e alcançaram um estreito vale que conduzia a um planalto elevado.
            Voaram durante quatro horas. Finalmente poisaram trezentos quilómetros terra adentro, num planalto acidentado. Aqui juntaram-se pela primeira vez a outras aves de arribação, que iam ao encontro da Primavera na América do Norte. Bandos inteiros de tangarás, tordos e piscos procuravam alimento afanosamente, nos vales arborizados. Tinham que armazenar energias para os longos voos nocturnos. Nas altas pradarias, os maçaricos encontraram bandos de narcejas e de estorninhos. Mas não se ouvia qualquer canto. Isso só aconteceria na reserva de criação, e, para a maior parte deles, ela distava ainda mais de três mil quilómetros.
            Nas encostas em declive havia gafanhotos por todo o lado, nelas pastavam grandes rebanhos de carneiros. O capim estava tosado e rente, por isso era fácil encontrar os insectos. Os maçaricos comeram até terem os papos e os estômagos cheios. E ao escurecer milhares de aves partiam. Não podiam ver-se na escuridão, salvo quando uma delas riscava o disco da lua, como um traço de sombra. Mas ouviam-se constantemente os seus gritos ligeiros. Porém os maçaricos não tinham pressa, pois no Árctico era ainda inverno, e aqui podiam acumular gordura para o caminho até à reserva.
            Esperaram uma semana, comeram muito e voavam cada dia um pouco mais para Norte. Os seus corpos ficaram outra vez nédios e redondos, e agora, de novo com forças, ardia neles a febre do acasalamento. No princípio da semana atingiram a ponta da península de Yucatán. Oitocentos quilómetros a Norte, do outro lado do golfo do México, ficavam os pântanos da costa da Louisiana e do Texas, atrás dos quais se estendiam, quase até ao Árctico, as pradarias sem fim




O CORREDOR DA MORTE

            ... Mas pior que tudo era a carnificina, quando as aves, na Primavera, atravessavam o golfo do México, e se deslocavam em bandos pelas planícies norte-americanas.
            Estes bandos enormes recordavam aos habitantes das pradarias os pombos-torcazes, e por isso os maçaricos foram chamados “pombos da pradaria”. Voavam aos milhares, em quantidades tais que os bandos mediam às vezes mil metros de comprimento por cem de largura. Quando poisavam, cobriam quarenta a cinquenta acres de solo. A matança era nesse tempo uma coisa inimaginável. Vinham caçadores de Omaha, no Nebraska, e abatiam as aves sem piedade. Abatiam-nas literalmente às carradas. As aves mortas eram mesmo empilhadas em carros abertos, que chegavam a precisar de taipais laterais. Quando os bandos eram particularmente numerosos, e os caçadores dispunham de munições em abundância, os carros enchiam-se depressa. Despejavam-se então carregamentos inteiros na pradaria. As aves ficavam ali em pilhas enormes, como se de um monte de carvão se tratasse. Deixavam-nos a apodrecer, e os caçadores enchiam os seus carros com novas vítimas.
            Tal carnificina só era possível pela dimensão dos bandos e pela mansidão das aves. Por cada tiro caíam dúzias delas ao chão. Certa vez um caçador abateu vinte e oito, com um único tiro de uma velha escopeta de carregar pela boca. E do bando que continuou a voar caíram ainda algumas aves mortas, nos mil metros seguintes. Voavam tão cerradas que era quase impossível atirar-lhes uma pedrada sem atingir uma delas...
            Ao lado dos muitos fuzileiros que abatiam estas aves para consumo próprio ou pelo prazer de matar, havia caçadores profissionais, que abasteciam os mercados e perseguiam os bandos sistematicamente...
            Através de binóculos, os caçadores observavam a progressão do voo... Qualquer um podia aproximar-se das aves poisadas até uma distância de vinte e cinco ou trinta metros. Uma vez aí, os caçadores esperavam que elas se colocassem na melhor posição de fogo, após o que era disparada a primeira salva. Desorientadas, as aves levantavam voo e descreviam um par de círculos no ar, oferecendo novas oportunidades de tiro. Chegavam, por vezes, a poisar no mesmo local, e este procedimento repetia-se. Com uma arma de tiro semiautomático, um certo senhor Wheeler abateu de uma vez trinta e sete aves. Ocasionalmente podia observar-se pelos binóculos que o bando tinha poisado quatro ou cinco quilómetros mais adiante. A cavalo ou de carro, os caçadores dirigiam-se rapidamente ao seu encontro, e continuavam a chacina...
            Nos anos oitenta, os efectivos de maçaricos diminuíram rapidamente...
(Cont.)

domingo, 28 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 23


9

            Ano após ano, durante os nove meses de migração, os maçaricos eram como peões num gigantesco tabuleiro de xadrez. As suas rotas eram definidas por jogos cósmicos, pelas forças da natureza e da geografia, pelos ventos, pelas marés e pelo estado do tempo. Os ventos determinavam em que direcção as aves deviam voar. O tempo e as chuvas decidiam se havia mais ou menos alimento, definindo desse modo o objectivo do voo. Na partida de xadrez intervinha agora um outro jogador, uma corrente marítima.
            A corrente de Humboldt vem do Antárctico, corre ao longo da costa Oeste da América do Sul, em direcção ao Norte, e transporta águas frias quase até ao equador. Os ventos que varrem todas as tardes a costa do Peru são secos, pois a água fria da corrente de Humboldt quase não sofre evaporação. Assim, a estreita faixa de costa entre os Andes e o Pacífico é árida, com planaltos arenosos quase desertos e pouca precipitação. Há muito poucos rios que corram para o Pacífico e formem estuários pantanosos, onde as marés depositem alimento. Por isso neste local os maçaricos pouco encontram que comer. Depois da travessia dos Andes estão magros e esgotados, mas a região não convida a demoras. E assim continuaram a voar.
            Seguiram as estreitas praias do Peru na direcção do Norte. Voavam, noite após noite, até à madrugada, e aproveitavam cada hora do dia para se alimentarem. Tarefa difícil esta, pois estavam sempre esgotados e nunca completamente fartos. Para os jogos amorosos não restavam tempo nem energias, já que estes mal chegavam para descansar.
            Em menos de uma semana tinham percorrido 3200 quilómetros, atingindo a planície arenosa de Punta Pariña, perto do equador. A partir daqui, ao longo de 1600 quilómetros, a costa sul-americana segue na direcção Nordeste, até ao istmo do Panamá.
            Aproximava-se o mês de Março. Lá em cima, no Norte, começava a Primavera no vale do Mississipi, tornando verdes os choupos e as pradarias. Os maçaricos encontravam-se ainda a Sul do equador, a tundra estava a quase dez mil quilómetros de distância. Mas ela chamava-os já tão fortemente, que os seus músculos cansados e doridos não eram rápidos bastante.
            Até às exuberantes terras altas da Guatemala, a costa descrevia um grande arco, primeiro a correr para Leste, depois para Norte e finalmente para Oeste. A etapa era de quatro mil quilómetros. Em linha recta a distância era cerca de metade, mas passava sobre o Pacífico. Quando a noite que caía arrefeceu a areia quente, o maçarico ainda tinha fome, o papo não estava cheio. Mas levantou voo, no crepúsculo tropical, e a fêmea logo o seguiu. Tomaram a direcção do Norte, abandonaram a plana faixa costeira e rumaram para o mar alto. Deviam atingir a América Central vinte e quatro horas depois.
            Voavam silenciosos, para não desperdiçarem energias. Esta travessia do oceano demorava apenas metade da esgotante viagem sobre o Atlântico. Mas no Outono, graças aos arandos do Lavrador, as aves partiam gordas e bem alimentadas. Agora iniciavam o trajecto sobre o Pacífico já esgotadas e emagrecidas. Duas horas mais tarde teriam os papos vazios.
            Quatro horas depois tinham ultrapassado a zona dos alísios de Sueste, e alcançaram as calmarias equatoriais. Mas o mar por baixo deles estava tudo menos calmo. Baloiçava fortemente em pequenas rebentações que provocavam carneiros de espuma, um verdadeiro campo de batalha. Aqui encontram-se a corrente fria de Humboldt e a corrente quente do Equador, e ambas lutam pelo domínio do mar. Embora só com a luz do luar, as aves podiam observar como a cor do oceano mudara subitamente. O verde glacial da corrente de Humboldt cedeu lugar ao azul profundo das águas tropicais. E a atmosfera aqueceu.
            A lua desapareceu e começou a amanhecer. Pouco depois do romper do dia atingiram a zona dos alísios de Nordeste, e estes ventos de lado aligeiraram o voo. Mas o dia estava quente. O ar húmido e abafado anulava o efeito agradável do vento.
            Voaram hora após hora com velocidade estável, mantendo constante o ritmo esgotante de três a quatro batidas por segundo. O cintilar do sol sobre a água foi enfraquecendo, e desapareceu completamente ao atingir o zénite. O mar tornou-se mais azul. Então o sol descaiu para Oeste e a cintilação voltou. Oitocentos metros abaixo deles brilhavam as cristas das ondas, e o ar aqueceu ainda mais. Desde que a costa da América do Sul desaparecera na escuridão da última noite, nada alterara a monotonia e a desolação do mar, a não ser, aqui e ali, um albatroz, que planava com as suas asas poderosas e imóveis. Os maçaricos voavam infalivelmente para Norte, sem se desviarem do rumo. Os seus cérebros estavam mais bem compensados, em relação às forças de orientação da terra, do que a bússola mais sensível.
            O macho, que seguia na frente e tinha que vencer maior resistência do que a fêmea, sofria de particular cansaço. As tormentosas pontadas que lhe arrepanhavam os músculos do peito transformaram-se numa dor surda e constante. O coração batia fortemente. E poderia descansar um pouco, cedendo o comando à fêmea. Mas o facto de ela se manter atrás dele, e beneficiar da força com que ele atacava o ar, o facto de o voo dela depender do seu, comovia-o como um sentimento quente e sublime, obrigando-o a aguentar. Inabalável, manteve o comando.
(Cont.)

domingo, 21 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 22

Finalmente deixaram para trás as camadas agitadas de nuvens e voaram num céu claro e tranquilo. Era um estranho mundo encantado, de um frio penetrante e uma luz que cegava, e que parecia desligado de tudo o que havia na terra. A camada de nuvens estendia-se por todo o horizonte, uma planície branca, ondulada e vastíssima. Quase parecia sólida bastante para poisarem. O sol reflectia nela o seu brilho intenso. Mil e quinhentos metros adiante deles, um pico nevado rompia as nuvens. O seu cume era um penhasco nu e inteiriçado. Ao longe havia outros cumes, como ilhas, num vasto mar de brancura.
            Os maçaricos voaram rente à camada de nuvens, ao encontro do pico. Avançavam lenta e penosamente. Voavam de bico aberto, ofegantes no ar rarefeito, e os corpos doíam-lhes.
            Ao aproximarem-se do cume o vento refrescou de novo. Farrapos de neve turbilhonavam pela encosta. Evitaram-nos e poisaram, para descansar numa aresta do penhasco, donde o vento varrera a neve. E de novo tinham que padecer. O ar seco e rarefeito tinha-lhes perturbado fortemente o equilíbrio dos líquidos. As gargantas ardiam-lhes de sede.
            Menos de cem quilómetros adiante floriam exuberantes orquídeas e cactos do verão tardio sul-americano. Mas aqui, no tecto das duas Américas, seis mil metros acima do nível do mar, reinava um inverno sem fim. Mesmo por baixo deles encontrava-se um mundo incerto e assustador. Massas brancas misturavam-se umas nas outras, mal se distinguia onde terminavam os montes nevados e começavam as nuvens. Nenhuma criatura podia manter-se aqui por muito tempo. E apesar disso encontravam-se traços de vida, uma vez que grande parte da falésia era constituída por esqueletos fossilizados de animais marinhos, que tinham vivido há milhões de anos, quando os continentes ainda não existiam, e o cume da montanha era apenas lodo no fundo dos oceanos.
            As dores abrandaram e os maçaricos continuaram para Oeste, sobre a neve que o vento moldara, acima da camada de nuvens. E longo tempo continuaram em frente, evitando o manto branco, pelo menos quando não sabiam exactamente o que havia lá por baixo. Atrás deles desapareceu o pico, num véu de neve e neblina. E então abriu-se o tapete de nuvens. A camada contínua e plana deu lugar a fundas depressões de causar vertigens, e a elevadas colunas brancas. Vieram ainda poços maiores, e num deles caíam a pique as paredes sem fundo. Através dele avistaram um planalto arenoso, parecido com um deserto, com manchas verdes e acastanhadas, de cactos e cascalho. Estava quatro ou cinco mil metros abaixo deles, pois a Oeste caíam os Andes abruptamente para o Pacífico.
            Tinham-se mantido silenciosos durante todo o dia, já que o voo a tão grande altitude reclamava toda a energia de que dispusessem. Mas agora, ao conduzir a fêmea descendo a pique entre paredes de nuvens, o maçarico gritava, excitado. O poço atmosférico alargou-se e o ar assobiava à sua volta. Voavam em glissagens laterais, para reduzir a velocidade de descida. A princípio o ar era tão rarefeito que não podiam travar com as asas. Quase não tinham controlo sobre si próprios, e despenhavam-se de encontro ao solo. Mas o ar foi-se tornando mais denso, forneceu resistência às asas, e começaram a descer mais lentamente. A pressão crescia rapidamente e causava-lhes dores nos ouvidos. Depois de passarem a camada de nuvens, nivelaram o voo e dirigiram-se para o Pacífico, que viam no horizonte, como leve linha azul.
            Em dois ou três minutos tinham chegado com uma rapidez dramática a regiões muito diferentes do ermo gelado e luminoso de há pouco. Voavam ainda tão alto que só podiam distinguir contornos difusos. Muito embora, a terra era de novo sua. Lá em baixo havia solo e pedras e plantas, não já o nada aéreo das nuvens. Mas aqui o céu era opaco, não havia sol nem qualquer luz brilhava, na atmosfera quente. E o ar sentia-se novamente. Tinha de novo substância, dava às asas força e impulso e enchia os pulmões, sem que, ao expirar, eles sofressem de dolorosa dispneia.
            Sem perder tempo continuaram em frente, seguindo o terreno que caía a pique. E poisaram, já tarde avançada, numa estreita faixa de praia, à beira do Pacífico. Durante alguns minutos beberam sofregamente água salgada. Depois comeram, até escurecer.
            Ao crepúsculo clareou um pouco. E os grandes cones vulcânicos dos Andes desenhavam-se cruamente a Leste, ganhando um ímpeto e uma força aterradores. Todos os anos o instinto do maçarico o conduzia sobre esta poderosa barreira de calcário, de tempestades e neve. E todos os anos lançava um olhar para trás, antes que a lembrança se lhe apagasse. Por mais lento de raciocínio que o seu cérebro fosse, ficava sempre espantado com a resistência das asas.


O CORREDOR DA MORTE
           
            A comissão de protecção das aves receia que tenham de ser colocadas na lista dos animais ameaçados de extinção as seguintes espécies: o condor californiano (em 1939 já não existiam sequer 50 exemplares), o bico-de-marfim (são conhecidas menos de 30 aves), o maçarico-esquimó (efectivo desconhecido, caso ainda exista)...
            Não temos disponível nenhuma outra informação sobre o maçarico-esquimó. É perfeitamente possível que esta ave esteja extinta. Mas os relatos esporádicos de que dispomos, relativos aos últimos dez anos, deixam a esperança de que ele tenha sido casualmente avistado por alguns observadores. Apesar disso parece-nos aconselhável que a Liga Americana de Ornitólogos estabeleça ligação, quer na Argentina quer noutras repúblicas sul-americanas, com organizações ou pessoas individuais que estejam em condições de efectuar novas pesquisas. No caso de serem detectados maçaricos-esquimós que passam o Inverno na Argentina, poderiam ser tomadas medidas que lhes garantam uma melhor protecção, seja através da direcção do Parque Nacional Argentino, seja de qualquer outro modo...
(Cont.)

sábado, 20 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 21

Voaram durante seis horas, as asas fatigaram-se. E quando poisaram para descansar era ainda muito escuro. Agora deslocavam-se pouco durante o dia. Mas, logo que o sol se punha, o maçarico conduzia a fêmea para as alturas do céu e encaminhava-se sempre para Noroeste. A cada noite as asas ganhavam força, e, uma semana depois, voaram sem parar, do pôr-do-sol até à madrugada.
            E assim continuaram, o macho sempre à frente e a fêmea um pouco atrás, arrastada pelo turbilhão numa das pontas da asa. Na escuridão falavam continuamente, enviavam-se pequenos sinais, um pouco mais fortes do que o rumor do vento cortado pelo voo. E o macho foi esquecendo lentamente a sua antiga solidão de sempre. Encontravam muitas tarambolas. Mas os dois bastavam-se a si próprios, e a sua relação preenchia-os tão completamente que nunca se juntaram a qualquer bando. A maior parte das vezes voavam sozinhos.
            A rota do Norte diferia da rota do Sul. Deixaram para trás as Pampas e a zona dos ventos de Oeste. Agora tinham por diante as regiões florestais do norte da Argentina, onde não era fácil encontrar comida. Oitocentos quilómetros a Oeste ficava o Pacífico e as suas praias, mas pelo meio erguia-se a cadeia dos Andes. Chegaram à zona dos alísios de Sueste. Para terem vento de lado, teriam que voar para Nordeste ou para Oeste. Podiam escolher entre as selvas infindáveis do Brasil, onde quase não havia alimento nem lugar onde poisar, em 2500 quilómetros. Ou então as alturas dos Andes, com a sua atmosfera instável e rarefeita. Instintivamente o maçarico rumou a Oeste.
            Durante uma noite inteira voaram sobre contrafortes montanhosos cada vez mais altos. Hora após hora foram subindo, até as asas vibrarem de cansaço. De manhã poisaram num planalto coberto de ervagem densa. A terra ondeava sem fim diante deles, ondeava subindo, até onde a vista alcançava. O horizonte parecia uma folha de serra. Nuvens brancas e cumes nevados fundiam-se uns nos outros.
            Logo que o sol mergulhou atrás dos Andes, os maçaricos reiniciaram o voo. Avançavam lenta e penosamente, uma vez que tinham de ir subindo sempre. O ar tornara-se rarefeito, oferecia às asas menor sustentação e menos oxigénio aos pulmões sobrecarregados. Eles eram aves de planície, e não possuíam os enormes pulmões dos lamas e seus pastores índios, que possibilitam a vida a cinco mil metros de altitude. Em breve ficaram cansados. Algumas horas antes do amanhecer poisaram, esgotados, na saliência duma falésia. Uma escassa camada de líquenes e musgos tinha-se agarrado à rocha. Descansaram ali o resto da noite, encostados um ao outro, defendendo-se das rajadas do vento cortante.
            Caiu a luz da manhã sobre um mundo áspero e desolado. Falésias cinzentas e pedaços de nuvens em movimento, que pareciam asas brancas de um vento eterno. E ainda não tinham atingido o ponto mais elevado. Os cumes que agora tinham de ultrapassar estavam escondidos atrás de massas de nuvens agitadas. Em nenhum outro lugar do mundo, salvo nos Himalaias, se encontram altitudes tão elevadas.
            Mas mesmo aqui viviam insectos, e os maçaricoes puseram-se à procura de alimento. Era uma operação lenta e difícil, não por haver pouco alimento, mas porque cada movimento era extenuante, exigindo muito oxigénio. À noite o ar arrefeceu rapidamente. Começou a nevar e eles não retomaram o voo. As turbulências atmosféricas e as enormes barreiras de falésias e glaciares só podiam ser ultrapassadas com a luz do dia.
            Nessa noite não puderam dormir, e quase não descansaram. O vento rugia estridente contra a parede da falésia e empurrava os duros flocos de neve. Por momentos, mal se conseguiram resguardar. Então uma poderosa rajada retirou-lhes o chão debaixo dos pés e arremessou-os na escuridão, no medonho vazio do espaço. O macho lutou, defendeu-se, retomou o controlo das asas e poisou. Mas a fêmea tinha desaparecido.
            Desesperado, tentou gritar mais alto que o rugido da tempestade. O vento não trouxe qualquer resposta, para além dos seus próprios gritos. Quando este amainou o maçarico levantou voo, descreveu pequenos círculos a baixa altitude, gritou, e procurou, e gritou em vão. O vento cresceu de novo e ele não pôde manter-se em voo. Agarrou-se aos musgos da falésia e esperou, sem respiração. A tempestade amainou por um momento e ele voltou a levantar voo, mas a sua resistência acabou rapidamente. Não podia continuar. Então encontrou um buraco na falésia que o defendeu da tempestade. Encolheu-se lá dentro, arfando, de bico aberto. O corpo precisava de oxigénio. E quando retomou forças voou de novo pela noite escura e bravia, descreveu círculos e gritou pela fêmea. Torturava-o a antiga solidão.
            Encontrou-a uma hora depois. Tinha-se escondido da tempestade por baixo duma saliência de xisto, na falésia, e estava tão perturbada e exausta como ele. Encostaram-se um ao outro, e o calor dos seus corpos derreteu um pequeno círculo de neve granulosa.
            Pela manhã o vento amainou. O macho sabia que tinham de continuar a voar, não podiam ficar ali mais tempo. Quando as nuvens carregadas de neve se dissolveram e o sol atravessou a névoa com uma luz amarelada, levantaram voo e avançaram para o manto que ocultava os cumes. Um minuto depois encontravam-se num mundo fantástico de neblina branca, cuja humidade lhes pesava nas penas. Subiam penosamente, em círculos. Tinham de ganhar altitude, mas o ar era agora tão rarefeito que pareciam mover-se no vazio. Mesmo com os pulmões cheios, respiravam com dificuldade.
            A camada de nuvens era muito instável e cheia de turbulência. Ocasionalmente encontravam camadas de ar mais denso, que as asas cortavam melhor, e ganhavam altitude rapidamente. Mas logo o ar se rarefazia, e, por momentos, mal se podiam manter. Uma vez clareou por cima deles, e o maçarico sabia que estavam perto de atingir o céu claro. Mas, antes de conseguirem furar as nuvens, uma rajada descendente arrastou-os consigo. Caíram desamparados, e perderam em poucos segundos a altitude que lhes levara muito tempo a ganhar.
 (Cont.)           

quinta-feira, 18 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 20


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            A chegada da fêmea foi um ponto culminante estranhamente desdramatizado, depois de uma vida de eterna espera. O maçarico estava no meio de algumas tarambolas, junto à água, e procurava alimento. De repente a fêmea estava ali! Tinha poisado a menos de um metro de distância, e ele podia observar-lhe cada pena da plumagem. Chegara com mais nove tarambolas. Silenciosamente tinham-se deixado planar sem que ninguém as notasse, salvo uma tarambola que se mantinha alerta às aves de rapina, enquanto as outras comiam. A fêmea fechou vagarosamente as asas, num movimento mais gracioso que o das companheiras. E voltou para ele o longo bico recurvado.
            Ela pulou então sobre as altas pernas esverdeadas, e saiu-lhe da garganta um gorjeio suave. Ele pôs-se também aos pulos e respondeu baixinho.
            Reconheceram-se sem reflectir, num súbito processo intuitivo. O macho sabia que se tinha enganado muitas vezes, sabia que os maçaricos-norte-americanos, confusamente parecidos, passavam o Inverno muito mais a Norte, no mar das Caraíbas. Aqui, no Sul profundo, ele só encontraria maçaricos da sua espécie. Este era mais pequeno do que os outros, e de um castanho mais claro, tal como ele próprio. Na verdade, os seus pensamentos eram fugidios e informes. Mas a voz, a atitude, os movimentos da outra ave, mais do que o seu aspecto, disseram-lhe imediatamente que a sua fêmea chegara.
            Nunca tinha visto um companheiro da espécie, e a fêmea provavelmente também não. Ambos tinham procurado, na América do Norte e do Sul, sem saberem exactamente o quê. Mas, logo que o acaso os juntou, o instinto velho de gerações permitiu-lhes reconhecerem-se sem qualquer hesitação, uma vez que o maçarico tinha sido uma das aves mais difundidas em toda a América.
            Durante um minuto ficaram ali imóveis, espreitando-se e saltitando. O macho estava excitado de contentamento. Finalmente podia calar o seu desejo da fêmea, que durante a vida inteira fora surgindo e desaparecendo, sem nunca ter sido satisfeito. Um pequeno caracol rastejava à sua frente, na água baixa. O maçarico partiu-lhe a casca com uma bicada, mas não o comeu. Com o pescoço esticado e a plumagem tufada pavoneava-se em frente da fêmea. Constrangido e algo desajeitado, chegou-se junto dela e ofereceu-lho. A fêmea, com as asas um pouco abertas e todo o corpo a tremer, aproximou-se dele. Picou o caracol e engoliu-o de imediato.
            O macho alimentou a fêmea, apresentou-se como companheiro e a fêmea aceitou-o. E assim começou o jogo nupcial. Nenhum deles mostrara qualquer excitação exterior, qualquer alegria exibicionista. O macho deu o caracol à fêmea, esta recebeu-o, o casamento estava selado.
            Agora cada um procurava alimento para si próprio, sem prestarem atenção um ao outro, embora se mantivessem próximos. E, mais que nunca dantes, o macho sentia-se atraído pelo montão de pedras, junto à curva do rio, na tundra distante.
            Levantou voo quando chegou o crepúsculo, circulou sobre a fêmea e chamou-a. Ela lançou-se para o ar e voaram juntos para o interior, sobre as elevações que bordejavam a costa. Depois do escurecer poisaram numa encosta atapetada de ervas e dormiram um junto do outro, os pescoços quase se tocando. O macho sentia-se renascer, uma outra vida tinha começado.
            Ao romper do dia regressaram à praia. Depois foram voando rapidamente para Norte, cerca de quinze quilómetros em cada etapa. De vez em quando faziam pausas para comer, mas a tundra chamava, cada vez mais urgente. Cada dia que passava voavam mais longe e comiam menos do que na véspera. No princípio de Fevereiro estavam já a 1600 quilómetros do ponto de partida. E como sempre, na viagem para Norte, paravam nos charcos à beira-mar. Era primavera, e as gónadas produziam cada vez mais hormonas sexuais, que lentamente faziam crescer a sua excitação. Muitas vezes o macho interrompia bruscamente a busca de alimento, e pavoneava-se em frente da fêmea como um galo de combate, com a plumagem do pescoço tufada e as penas da cauda emplumadas em leque sobre o dorso. Então a fêmea inclinava-se, de asas frementes, e pedia comida como se fosse um pintainho. O macho oferecia-lhe um petisco, os seus bicos tocavam-se, e com isso terminava o jogo nupcial.
            Uma noite, quando um forte vento de Oeste soprava sobre os montes junto à costa, voaram terra adentro, como habitualmente. Mas desta vez o macho subiu mais alto do que era costume. Seguiu Pampas adiante, e, quando a escuridão caiu, continuaram a voar. As etapas diárias que tinham percorrido eram curtas, e já não satisfaziam o impulso migratório cada vez mais urgente. Deixaram a costa para trás e voaram para Noroeste, na direcção dos Andes. O macho sentiu diminuir a tensão, ao reconhecer, com a primeira noite, que a migração tinha de facto começado.
(Cont.)

domingo, 14 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 19


Durante cinco meses um impulso insaciável tinha espicaçado o maçarico e as tarambolas. Temporariamente enfraquecera, sem nunca ter desaparecido. Mas agora morria. Uma estranha letargia apoderava-se das tarambolas. Bastava-lhes alternar entre duas lagoas salgadas. Comiam, devaneavam, flanavam sem gosto por ali, como actores que se haviam esquecido do texto e esperavam por uma deixa, por um impulso instintivo que lhes dissesse o que fazer.
            O próprio maçarico estava livre da pressão do impulso migratório. E no entanto atormentava-o um desassossego, uma antiga e indizível fome, uma velha solidão. Ocorreu-lhe de súbito que estava sozinho, num mundo onde não tinha companheiros de espécie. Tentou levar as tarambolas a continuar a migração, mas elas não o seguiram. Finalmente não pôde mais controlar a inquietação. Elevou-se no ar e alargou os seus círculos sobre a lagoa onde as tarambolas esgaravatavam alimento. Chamou-as repetidamente em altos gritos, mas elas não responderam. Então o maçarico tomou a direcção do Leste, lá onde estava o mar, bem o sabia, à distância de muitas horas de voo. Estava de novo em viagem, e sozinho.
            Na Patagónia não havia solo fértil, como nas Pampas. O terreno era composto sobretudo de saibro e de cascalho, misturado com rochas vulcânicas de pontas aguçadas. A vegetação era diminuta, e o sol mordente do Verão tingira de castanho as escassas manchas de capim e de cardos. As tarambolas abandonaram esta região inóspita e voaram para Leste, à procura dos charcos da costa, mais frescos e cheios de alimento.
            Aqui verifica-se um dos maiores desníveis de maré do mundo, e por isso, na maré baixa, quilómetros de solo ficam a descoberto. Duas vezes por dia o mar arroja para terra todo o tipo de despojos. Alimento nunca falta, e enormes bandos procuram estes baixios. A maior parte são tarambolas-douradas, mas também há pernas-amarelas, com os seus torsos luminosamente claros. As galinholas e os pequenos pilritos evitam, pressurosos, a rebentação, como se tivessem medo de molhar os pés.
            O maçarico vagueava de bando para bando, procurava incansavelmente, sem saber exactamente o quê. Com o seu longo bico encurvado e a grande envergadura de asas, sobressaía claramente entre os muitos milhares de pequenas narcejas.
            Janeiro chegara. E a longínqua tundra canadiana, a catorze mil e quinhentos quilómetros de distância, seria ainda durante alguns meses a adormecida terra fria das tempestades de neve e das noites sem fim. Mas o maçarico sentia já o chamamento do Árctico, uma suave emoção interior, um pequeno sinal. As suas gónadas em breve começariam a produzir hormonas, um novo ciclo anual aproximava-se. A princípio era quase imperceptível, mas o processo foi-se tornando lentamente mais forte. Era um sentimento que se distinguia do impulso migratório do Outono. Partir para o Sul tinha sido uma vaga impaciência, sem fim definido. Mas agora só o objectivo contava. A migração era um fenómeno acidental e acessório. O que ele sentia era essencialmente a ânsia, a saudade de casa. Conhecia perfeitamente o destino, não só o Árctico e a tundra, mas o amontoado de cascalho, à beira da curva do rio. Aí havia de chegar também a fêmea, aí havia de ser o ninho.
            E o maçarico pôs-se a caminho de casa. Seguia de charco em charco, e não fazia grandes trajectos. A indecisão tinha passado. Voava sempre para Norte. Também as outras narcejas sentiam o mesmo, estavam sempre em movimento. O número e a espécie das aves nos charcos mudava de hora a hora. Uma semana depois o maçarico encontrava-se trezentos quilómetros mais a Norte.


O CORREDOR DA MORTE

            Em anexo ao relatório anual do Instituto Smithsoniano, deve acrescentar-se algo sobre determinadas descobertas científicas. As participações vêm de colaboradores da casa...
            O maçarico-esquimó e o seu desaparecimento (reedição, revista pelo autor, Myron H. Swenk, dos debates da Sociedade Ornitológica do Nebraska, de 27 de Fevereiro de 1915).
           
            Todos os ornitólogos informados concordam entretanto que o maçarico-esquimó (Numenius borealis) está ameaçado de extinção. Muitos acreditam mesmo que as poucas aves que ainda existem não são suficientes para a renovação dos efectivos. Consideram-no como uma espécie que pertence praticamente ao passado. Se partirmos de situações análogas, parece legítimo este pessimismo. Talvez a história do maçarico-esquimó, parecida com a do pombo-torcaz, constitua mais uma daquelas tragédias ornitológicas que sucederam na segunda metade do séc. XIX. Devido aos abates incontrolados e irracionais, reduziram-se os efectivos norte-americanos de aves. Várias espécies largamente difundidas, como se vê pelos gigantescos bandos, foram quase ou totalmente aniquiladas...
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quarta-feira, 10 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 18


7

            As tarambolas-douradas e o maçarico-esquimó ficaram duas semanas no Orinoco e depressa voltaram a engordar. Milhares de outras narcejas povoavam as pradarias, tarambolas que também tinham feito a longa viagem sobre o oceano, e ainda uma dúzia de outras espécies que tinham voado sobre terra, através das planícies da América do Norte e do istmo do Panamá. Aqui encontravam-se de novo, nos Llanos da Venezuela. Também havia esplêndidas aves dos trópicos, que nidificavam nesta altura e alimentavam zelosamente os filhos. Os ninhos das garças-brancas cobriam largas superfícies dos pântanos, junto ao rio, e as garças eram tantas que se empurravam umas às outras. A íbis vermelha, jóia das aves tropicais, voava em bandos ao longo das margens, procurando alimento. De início, quando as íbis se aproximavam, pareciam sombras cinzentas; ao passarem perto, inflamava-se-lhes a plumagem vermelha; quando se afastavam, a cor desvanecia-se novamente.
            Havia comida em abundância e muitas das narcejas árcticas deixavam-se ficar por aqui. Mas o maçarico e as tarambolas, após duas semanas em que comeram e acumularam gordura, voltaram a sentir o velho impulso que as empurrava para Sul. As outras tarambolas já tinham partido. Tal como no Lavrador, o bando do maçarico foi o último a largar.
            No princípio de Outubro, numa noite clara de luar, levantaram voo e seguiram um vale afluente do Orinoco, até ele se perder nas montanhas que separam as bacias hidrográficas do Orinoco e do Amazonas. Então desceram um pouco e sobrevoaram o vale de um afluente do Amazonas. Seguiram a estreita fita de água para Sul, e tinham atingido o poderoso rio quando a manhã chegou. Deste lado do equador, os ventos alísios sopram de Noroeste para Sueste. Para ter vento de lado, o bando seguiu, durante a noite, a direcção de Sudoeste, em vez de se dirigir directamente para Sul. Voaram 800 quilómetros, e ao romper do dia tinham à vista os Andes peruanos, com os seus cumes cobertos de neve. Na orla sul da zona dos alísios o vento soprava de Leste, e nas três noites seguintes dirigiram-se para Sueste. À quinta manhã as aves estavam de novo magras e cansadas. Poisaram nas Pampas argentinas, quatro mil quilómetros a sul dos Llanos da Venezuela.
            A Primavera tornara verdes o capim e os cardos gigantes, e havia gafanhotos aos enxames. As aves comeram durante todo o dia, alimentando-se dos insectos nas ervas rasteiras. Por vezes procuravam zonas mais fundas, onde o chão era pantanoso e o capim crescia mais forte. Aqui viviam insectos aquáticos, que enriqueciam a alimentação, tornando-a variada. E elas prosseguiam caminho frequentemente, sem nunca fazerem longas etapas. Tinham perdido as rémiges maltratadas, as quais deram lugar a outras novas. E em breve as asas ganharam de novo a sua antiga força.
            Estavam agora a treze mil quilómetros de distância dos locais de nidificação no Árctico. Para além delas, só os pernas-amarelas, pilritos-dos-prados e muito poucas aves tinham empreendido tão longa viagem. No entanto o impulso migratório continuava a empurrar o maçarico e as tarambolas para Sul. Nas noites claras, quando fortes ventos de Oeste varriam as Pampas, criando boas condições de voo com vento lateral, o bando atacava de novo os ares. Horas depois estavam duzentos ou trezentos quilómetros mais a Sul, e por um momento acalmava a sua inquietação. O maçarico conduziu o bando até ao cimo de uma colina enluarada. As tarambolas seguiram-no e esperaram aqui pela manhã.
            Assim foram avançando para Sul. Quando o sol quente de Dezembro secou os cardos, e a erva das Pampas ficou da cor da prata devido à quantidade de flores que baloiçavam, ligeiras, ao vento, eles encontravam-se já nas planuras ondulantes da Patagónia, a uma noite de voo dos mares da Antárctida. Com uma força hercúlea, o instinto migratório tinha-os empurrado desde o longínquo Norte até ao lugar mais a Sul do continente americano. E também aqui havia grandes bandos de narcejas. De todos os animais da terra, só a andorinha-do-mar-árctica, voando distâncias semelhantes, pode contemplar tanta luz e tanto sol como as narcejas. Ano após ano, elas correm acima e abaixo, entre as terras do sol da meia-noite, quase de polo a polo.
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sábado, 6 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 17

A noite estava escura como breu. Até que a manhã rompeu finalmente, não com amarelos e vermelhos, mas com uma luz turva e cinzenta. Por baixo deles a terra era húmida e lamacenta, atravessada por rios largos, como a tundra na Primavera. Tão longe quanto podiam ver, na luz cinzenta da manhã, estendia-se em todas as direcções o extenso vale do Orinoco. E continuava a chover.
            O bando tinha voado quase sessenta horas seguidas, sem descanso nem alimento. Das terras da neve e da luz árctica, chegavam agora a um lugar que ressumava da exuberante vegetação dos trópicos. Diante deles havia centenas de quilómetros de terras pantanosas e de planícies cobertas de capim. Era um formigueiro de insectos, alimento mais que suficiente, que só os meses de chuvas contínuas dos trópicos podiam produzir.
            O dia ficara um pouco mais claro. E o maçarico abriu as asas rígidas e mergulhou em picada. Deixara para trás a vastidão dum continente, desde a última vez que elas tinham estado inactivas. As tarambolas seguiram-no e o bando poisou.
            Nenhuma ave descansou, porque antes de mais era preciso comer. Durante cinquenta e cinco horas tiveram os estômagos vazios, tinham voado quase cinco mil quilómetros e consumiram toda a gordura acumulada no Lavrador. Dela não restava agora um único grama. Em menos de três dias, as aves tinham perdido entre 10 a 15 por cento do seu peso. Só o facto de elas serem os mais económicos consumidores de energia de todo o reino animal lhes possibilitava tal voo. Para atravessar o oceano, cada ave tinha queimado sessenta gramas de gordura. Com tal consumo de energia, um avião de meia tonelada voaria 250 quilómetros com cinco litros de combustível, em lugar dos habituais trinta e cinco.
            Só descansaram depois de terem comido. Mas nas vastas savanas do Orinoco havia grande abundância de alimento. Assim, antes de cair a noite tropical, as aves comeram ainda uma segunda vez, durante várias horas.


O CORREDOR DA MORTE
            Este é o oitavo boletim do Museu Nacional dos Estados Unidos, sobre a vida das aves norte-americanas, por Arthur Cleveland Bent.
            Ordem: Limicolae. Família: Scolopacidae... Numenius borealis, maçarico-esquimó... Não há dúvida de que foram sobretudo os abates excessivos, durante as viagens migratórias, e durante o Inverno na América do Sul, os responsáveis pela sua extinção. Não acredito que esta espécie tenha sido apanhada no alto mar por uma enorme catástrofe que a tenha dizimado. O maçarico possuía asas poderosas, e podia escapar a grandes tempestades, ou conseguia evitá-las. Além disso a sua época de migração era tão prolongada que uma só tempestade não podia exterminar toda a espécie. Nada aponta para doenças, ou para a redução do seu alimento habitual. Sobra uma única razão. Ele foi aniquilado pelos homens: no Verão e no Outono, no Lavrador e na Nova Inglaterra; no Inverno, na América do Sul; e ainda pior que tudo, na Primavera, desde o Texas até ao Canadá. Os maçaricos eram tão mansos e confiantes, tão apegados aos seus companheiros de viagem, que foram abatidos em massa, vítimas fáceis da carnificina. Estas delicadas aves deixavam atrás de si, por todo o lado, um verdadeiro corredor da morte. E ninguém mexeu um só dedo para as defender, até ser demasiado tarde...
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sexta-feira, 5 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 16


Quando a noite chegou já tinham atravessado o braço da corrente do Golfo que se dirige para Leste. Encontravam-se agora no meio do Atlântico, numa zona de cinco milhões de quilómetros quadrados, onde nenhuma corrente agita a água salobra e onde bóiam ilhas de algas esponjosas. Estavam sobre o Mar dos Sargaços, o mais estranho de todos os mares. E voavam há vinte e quatro horas sem descanso.
            Enormes tapetes de algas castanhas passavam por baixo deles. Quando perdiam altitude, viam os peixes-voadores com as suas barbatanas peitorais semelhantes a asas, lançando-se sobre os rolos húmidos de algas marinhas. Entre elas viviam caranguejos, camarões e caracóis. Em anos passados, por esta altura, já o maçarico tinha avistado os picos baixos do Sear’s Hill, nas Bermudas. Mas desta vez tinham sido afastados muito mais para Leste pela tempestade nocturna. O sol caía no mar sem fim. Quando escureceu, a água cintilava com o brilho claro e frio de milhões de seres fosforescentes.
            O maçarico conduziu o bando em frente, e durante toda a noite voaram a uma altitude de cerca de mil metros. De tempos a tempos, as aves comunicavam entre si através de pequenos gritos. Quando o maçarico seguia no comando, tinha que aplicar todos os sentidos para estar atento aos caprichos do vento e aos impulsos cósmicos. O seu cérebro traduzia estes impulsos num sentido de orientação. E, quando cedia o comando a uma tarambola, voava num estado de semi-sonolência. As asas batiam automaticamente, os olhos mantinham-se meio fechados, e ele seguia o turbilhão da ave precedente quase inconscientemente.
            Nessa noite, a estrela polar e as constelações do Árctico já se perdiam no horizonte. Para os lados do Sul apareciam estrelas novas. Pouco antes do romper do dia o vento tornou-se mais fresco. Soprava de Nordeste, forte, constante e monótono. Tinham atingido a zona dos alísios. Era um vento de bombordo, que lhes acelerava a velocidade nuns bons quinze quilómetros por hora.
            Apesar do vento, o dia estava quente. E por vezes deslizava à superfície da água a sombra azul escura dum tubarão. O bando estava perto dos trópicos, o mar tornava-se cada vez mais azul, e na atmosfera quente formavam-se maciças nuvens cumuliformes, cujas sombras salpicavam a água. Grossos montões de nuvens empilhavam-se, imóveis, no horizonte, a Oeste. Eram marcas de itinerário. Por baixo delas havia ilhas, cada uma com o seu capacete de nuvens, que podiam observar-se muito antes de elas se avistarem. O bando tinha agora diante de si o mar das Caraíbas e as Pequenas Antilhas. E lá à frente, por detrás do horizonte, à distância de doze horas de voo, encontravam-se as selvas e os montes da América do Sul.
            Após trinta e seis horas sobre o mar, os músculos e os nervos começaram finalmente a acusar cansaço. O voo deixou de ser um acto reflexo inconsciente e infatigável. Agora exigia esforço de vontade, e só a concentração determinada na tarefa fazia ainda bater as asas debilitadas. Duas noites e um dia sem alimento tinham afrouxado os processos no corpo das aves, que arfavam no ar quente dos trópicos. Mantinham os bicos abertos, pois tinham que respirar velozmente, para cobrir as necessidades de oxigénio dos pulmões. Três tarambolas novas, que faziam pela primeira vez a longa viagem sobre o oceano, atrasavam-se lentamente. O maçarico reduziu a velocidade, até ao ponto de as aves mais fracas se poderem aguentar.
            Ele sabia que havia ilhas além, a Oeste, por baixo das espessas nuvens do horizonte. Ficavam apenas a uma ou duas horas de voo. Porém, para as alcançar era preciso seguir um rumo em que o vento soprava directamente de cauda. E isso prejudicava o voo, tanto como o vento de frente. Por isso o maçarico mantinha a rota inicial. Ele sabia que havia de passar uma terceira noite antes que chegassem à costa. E se alcançassem terra firme na escuridão, numa noite cerrada e cheia de nuvens, só poderiam poisar quando os contornos dos mangais venezuelanos e das ilhas de areia dos estuários se pudessem desenhar na claridade da manhã.
            O dia demorou muito a passar. Mas finalmente o sol mergulhou no mar das Caraíbas, e rapidamente ficou escuro, quase sem crepúsculo. As nuvens cresceram e ocultaram a lua e as estrelas. Caíram as primeiras gotas, o bando chegava aos trópicos em pleno tempo das chuvas. Era uma chuva ligeira e fina, que refrescava o ar e facilitava a respiração. E assinalava a proximidade da costa.
            Durante duas horas voaram à chuva. O maçarico não podia ver nada, mas reconheceu imediatamente quando deixaram o mar e se acharam sobre terra firme. Primeiro trovejou, no escuro, a rebentação, e logo a seguir surgiram as turbulências das correntes térmicas, a elevar-se do solo quente.
            As aves não podiam senão continuar em frente, hora após hora. E agora, sabendo que por baixo delas se estendia terra firme, o voo tornou-se uma prova de força cruel, e cada batida de asa uma luta atormentada contra a inércia e o esgotamento. Muita energia era agora desperdiçada, uma vez que as rémiges estavam de tal modo estafadas que já não cortavam o ar como pás duma hélice. Tal como o faziam ao princípio, ao deixarem o Lavrador, com batidas ligeiras e fáceis.
            O maçarico sabia que, por trás da faixa costeira com praias e estuários de rios, havia mangais pantanosos. Eles estendiam-se ao longo de 250 quilómetros, e poisar neste emaranhado era tão difícil como fazê-lo no mar alto. Assim, quando clareasse, teriam que continuar a voar em frente, até atingirem os Llanos relvados da Venezuela. As asas tinham-se tornado pesadas, mas o maçarico ganhava altura para poder ultrapassar os montes costeiros. Era um tormento. Atravessaram os montes e o cansaço mantinha-se, crescia de repente em guinadas agudas, e fazia vibrar cada fibra dos seus pequenos corpos.
(Cont.)