quarta-feira, 31 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 25


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            Março chegara. No Canadá, os piscos-de-peito-ruivo, as felosas-assobiadeiras e os borrelhos-de-duas-coleiras faziam já os ninhos. E na costa do Yucatán reinava a impaciência e a excitação migratória. Quando no Inverno acontecia o mesmo, isso não perturbava as aves de arribação. Porém, mal se anunciava fisiologicamente, o novo ciclo de reprodução apressava-as. Procuravam espaço, pois cada casal queria preservar-se. As andorinhas e os andorinhões-das-chaminés, que se alimentam em voo, viajavam de dia e seguiam calmamente a costa mexicana para Norte. Mas a maior parte das aves juntava-se na península do Yucatán, e ali se acumulavam, como um rio que tropeça num obstáculo. Esperavam e juntavam forças, até que, numa noite de vento favorável, levantavam na escuridão do crepúsculo e avançavam para o vasto golfo do México.
            Após dois ou três dias de calmaria, uma tarde o vento levantou-se e a impaciência apoderou-se das aves. Os tordos e os estorninhos iniciavam pequenos voos ao rés da água, experimentavam o vento e as asas e voltavam para trás. Para os maçaricos, a etapa de oitocentos quilómetros sobre o golfo era para fazer numa noite. Mas para as pequenas aves canoras, que voavam duas vezes mais devagar, esta era a etapa mais difícil de toda a viagem. Por isso tinham que escolher o momento da partida com especial cuidado. Durante a tarde, muitas já não regressavam dos seus voos de ensaio. Elevavam-se no ar, pairavam sobre a rebentação e avançavam para o mar alto, até serem apenas pequenos pontos negros, que desapareciam finalmente no azul do céu. Ao pôr-do-sol reinava um estranho sossego na praia. Só os maçaricos e um par de narcejas tinham ficado para trás.
            Quando por fim partiram estava escuro e nascia a lua nova. Nas outras travessias do oceano, os maçaricos e as tarambolas-douradas tinham voado sozinhos. Mas agora tinham companhia, uma vez que outras aves percorriam o mesmo caminho. Duas horas depois, os maçaricos começaram a ultrapassar as aves mais pequenas, que partiram mais cedo. A atmosfera vibrava com chamamentos e gorjeios, por todo o lado faiscavam asas prateadas ao luar. Havia rotas mais fáceis, sobre o mar das Caraíbas e o golfo do México. As aves podiam saltar de ilha em ilha, e ter quase sempre terra firme à vista. Mas as ilhas eram minúsculas e ofereciam pouco alimento. Por essa razão, a maior parte delas voava sobre a terra firme centro-americana até ao Yucatán, e dali directamente sobre o golfo, sem qualquer escala. Os maçaricos ultrapassaram os cucos, que nidificam na Nova Inglaterra, depois os chascos e as pequenas felosas cujas reservas se encontram nos escuros bosques de abetos do Norte, em seguida os tordos-americanos que se dirigem ao Alaska, os estorninhos e as escrevedeiras que se espalham pelas pradarias do centro do continente, e finalmente os tangarás-d’asa-negra, para quem a viagem termina já nas costas da Louisiana. De entre as aves que naquela tarde tinham deixado as praias do Yucatán, só havia uma espécie que os maçaricos não ultrapassavam. Muitos colibris tinham partido também, esses pequenos anões tenazes que não pesam mais que alguns gramas. Iam muito à frente, deixando todos os outros atrás de si. As suas asas minúsculas faziam setenta batidas por segundo. A maior parte das aves precisavam de vinte horas para chegar a terra firme norte-americana. Os maçaricos precisavam de dez, e os colibris apenas de oito.
            Quatro ou cinco horas depois, os maçaricos tinham ultrapassado as aves mais pequenas e voavam sozinhos. De repente o ar tornou-se mais frio e pesado. As asas obtinham mais impulso, e o alísio de Leste rodou para Sul. Pequenos farrapos baixos escureceram a lua, nuvens pesadas e negras começaram a acastelar-se, a noite ficou escura e as águas do golfo despareceram na treva. O vento rodou para Leste, mas logo virou de novo, soprando agora de Norte com fortes rajadas. Os maçaricos rumaram para Oeste, para o manterem de lado. Então começou a chover copiosamente, como uma parede de água erguida diante deles.
            Passada a primeira bátega, o vento e a chuva amainaram um pouco, mas o mau tempo manteve-se durante cinco horas. Só ao nascer do sol é que atingiram céu calmo e transparente. Normalmente continuariam a voar em frente, sobre os charcos e os pântanos salgados da costa do Texas, para depois poisarem, um pouco mais além, nas aluviões das pradarias. Mas o temporal tinha-os esgotado. As rémiges encharcadas colavam-se umas às outras, e já não reagiam adequadamente aos movimentos dos músculos. Mal alcançaram a costa, desceram em voo planado sobre a praia.
            Paralela à costa, corria por baixo deles uma estreita ilha, com dunas de areia e manchas de capim, ao longo de quilómetros. Durante um ou dois minutos os seus olhos procuraram um lugar onde houvesse alimento. Na areia havia numerosos charcos de água, provocados pela chuva da noite. Bandos de narcejas, obrigadas a poisar pelo temporal, rodeavam estas poças, procurando comida ou alisando a plumagem. Os maçaricos sobrevoaram vários bandos de tarambolas e galinholas sobre a duna. Na sua frente havia charcos lamacentos, onde já se encontravam centenas de maçaricos-norte-americanos, que gritaram na sua direcção. Os dois maçaricos abriram as asas e poisaram no meio deles.
            Mas só ali ficaram durante o dia. Ao cair da noite partiram sozinhos, e duas horas depois poisaram na pradaria enluarada, cento e cinquenta quilómetros para o interior.
            A sua intranquilidade diminuiu, agora contentavam-se com a espera. O instinto dizia-lhes que tinham ultrapassado todos os obstáculos. Os últimos cinco mil quilómetros até ao Árctico passavam pelas grandes planícies dos Estados Unidos e do Canadá, onde nem montes nem cordilheiras lhes dificultavam a rota, e onde havia alimento até ao exagero. Em caso de necessidade, poderiam fazer esse trajecto numa só semana, e por algum tempo sossegou-lhes o impulso migratório. Na melhor das hipóteses, a tundra só estaria pronta para a nidificação dentro de dois meses. Mas isso não o sabiam os maçaricos. Sabiam apenas que, neste começo da Primavera, havia muitos insectos nas pradarias do Texas. E sentiam o desejo de ficar.
            Esperaram três semanas, durante as quais não avançaram mais de cento e cinquenta quilómetros para o interior. Quase todas as noites ouviam passar lá por cima os bandos das aves mais pequenas. Estas não nidificam no Árctico, mas em reservas muito mais a Sul, onde era já Primavera. Quando chegasse o momento, os maçaricos fariam numa noite o que a estas aves demorava três.
(Cont.)