Durante cinco meses um impulso insaciável tinha
espicaçado o maçarico e as tarambolas. Temporariamente enfraquecera, sem nunca
ter desaparecido. Mas agora morria. Uma estranha letargia apoderava-se das
tarambolas. Bastava-lhes alternar entre duas lagoas salgadas. Comiam,
devaneavam, flanavam sem gosto por ali, como actores que se haviam esquecido do
texto e esperavam por uma deixa, por um impulso instintivo que lhes dissesse o
que fazer.
O
próprio maçarico estava livre da pressão do impulso migratório. E no entanto
atormentava-o um desassossego, uma antiga e indizível fome, uma velha solidão.
Ocorreu-lhe de súbito que estava sozinho, num mundo onde não tinha companheiros
de espécie. Tentou levar as tarambolas a continuar a migração, mas elas não o
seguiram. Finalmente não pôde mais controlar a inquietação. Elevou-se no ar e
alargou os seus círculos sobre a lagoa onde as tarambolas esgaravatavam
alimento. Chamou-as repetidamente em altos gritos, mas elas não responderam.
Então o maçarico tomou a direcção do Leste, lá onde estava o mar, bem o sabia,
à distância de muitas horas de voo. Estava de novo em viagem, e sozinho.
Na
Patagónia não havia solo fértil, como nas Pampas. O terreno era composto
sobretudo de saibro e de cascalho, misturado com rochas vulcânicas de pontas
aguçadas. A vegetação era diminuta, e o sol mordente do Verão tingira de
castanho as escassas manchas de capim e de cardos. As tarambolas abandonaram
esta região inóspita e voaram para Leste, à procura dos charcos da costa, mais frescos
e cheios de alimento.
Aqui
verifica-se um dos maiores desníveis de maré do mundo, e por isso, na maré
baixa, quilómetros de solo ficam a descoberto. Duas vezes por dia o mar arroja
para terra todo o tipo de despojos. Alimento nunca falta, e enormes bandos
procuram estes baixios. A maior parte são tarambolas-douradas, mas também há
pernas-amarelas, com os seus torsos luminosamente claros. As galinholas e os
pequenos pilritos evitam, pressurosos, a rebentação, como se tivessem medo de
molhar os pés.
O
maçarico vagueava de bando para bando, procurava incansavelmente, sem saber
exactamente o quê. Com o seu longo bico encurvado e a grande envergadura de
asas, sobressaía claramente entre os muitos milhares de pequenas narcejas.
Janeiro
chegara. E a longínqua tundra canadiana, a catorze mil e quinhentos quilómetros
de distância, seria ainda durante alguns meses a adormecida terra fria das
tempestades de neve e das noites sem fim. Mas o maçarico sentia já o chamamento
do Árctico, uma suave emoção interior, um pequeno sinal. As suas gónadas em
breve começariam a produzir hormonas, um novo ciclo anual aproximava-se. A
princípio era quase imperceptível, mas o processo foi-se tornando lentamente
mais forte. Era um sentimento que se distinguia do impulso migratório do Outono.
Partir para o Sul tinha sido uma vaga impaciência, sem fim definido. Mas agora
só o objectivo contava. A migração era um fenómeno acidental e acessório. O que
ele sentia era essencialmente a ânsia, a saudade de casa. Conhecia
perfeitamente o destino, não só o Árctico e a tundra, mas o amontoado de
cascalho, à beira da curva do rio. Aí havia de chegar também a fêmea, aí havia
de ser o ninho.
E o
maçarico pôs-se a caminho de casa. Seguia de charco em charco, e não fazia
grandes trajectos. A indecisão tinha passado. Voava sempre para Norte. Também
as outras narcejas sentiam o mesmo, estavam sempre em movimento. O número e a
espécie das aves nos charcos mudava de hora a hora. Uma semana depois o
maçarico encontrava-se trezentos quilómetros mais a Norte.
O CORREDOR DA MORTE
Em
anexo ao relatório anual do Instituto Smithsoniano, deve acrescentar-se algo
sobre determinadas descobertas científicas. As participações vêm de
colaboradores da casa...
O
maçarico-esquimó e o seu desaparecimento (reedição, revista pelo autor, Myron
H. Swenk, dos debates da Sociedade Ornitológica do Nebraska, de 27 de Fevereiro
de 1915).
Todos
os ornitólogos informados concordam entretanto que o maçarico-esquimó (Numenius
borealis) está ameaçado de extinção. Muitos acreditam mesmo que as poucas aves
que ainda existem não são suficientes para a renovação dos efectivos.
Consideram-no como uma espécie que pertence praticamente ao passado. Se
partirmos de situações análogas, parece legítimo este pessimismo. Talvez a
história do maçarico-esquimó, parecida com a do pombo-torcaz, constitua mais
uma daquelas tragédias ornitológicas que sucederam na segunda metade do séc.
XIX. Devido aos abates incontrolados e irracionais, reduziram-se os efectivos
norte-americanos de aves. Várias espécies largamente difundidas, como se vê
pelos gigantescos bandos, foram quase ou totalmente aniquiladas...
(Cont.)