domingo, 14 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 19


Durante cinco meses um impulso insaciável tinha espicaçado o maçarico e as tarambolas. Temporariamente enfraquecera, sem nunca ter desaparecido. Mas agora morria. Uma estranha letargia apoderava-se das tarambolas. Bastava-lhes alternar entre duas lagoas salgadas. Comiam, devaneavam, flanavam sem gosto por ali, como actores que se haviam esquecido do texto e esperavam por uma deixa, por um impulso instintivo que lhes dissesse o que fazer.
            O próprio maçarico estava livre da pressão do impulso migratório. E no entanto atormentava-o um desassossego, uma antiga e indizível fome, uma velha solidão. Ocorreu-lhe de súbito que estava sozinho, num mundo onde não tinha companheiros de espécie. Tentou levar as tarambolas a continuar a migração, mas elas não o seguiram. Finalmente não pôde mais controlar a inquietação. Elevou-se no ar e alargou os seus círculos sobre a lagoa onde as tarambolas esgaravatavam alimento. Chamou-as repetidamente em altos gritos, mas elas não responderam. Então o maçarico tomou a direcção do Leste, lá onde estava o mar, bem o sabia, à distância de muitas horas de voo. Estava de novo em viagem, e sozinho.
            Na Patagónia não havia solo fértil, como nas Pampas. O terreno era composto sobretudo de saibro e de cascalho, misturado com rochas vulcânicas de pontas aguçadas. A vegetação era diminuta, e o sol mordente do Verão tingira de castanho as escassas manchas de capim e de cardos. As tarambolas abandonaram esta região inóspita e voaram para Leste, à procura dos charcos da costa, mais frescos e cheios de alimento.
            Aqui verifica-se um dos maiores desníveis de maré do mundo, e por isso, na maré baixa, quilómetros de solo ficam a descoberto. Duas vezes por dia o mar arroja para terra todo o tipo de despojos. Alimento nunca falta, e enormes bandos procuram estes baixios. A maior parte são tarambolas-douradas, mas também há pernas-amarelas, com os seus torsos luminosamente claros. As galinholas e os pequenos pilritos evitam, pressurosos, a rebentação, como se tivessem medo de molhar os pés.
            O maçarico vagueava de bando para bando, procurava incansavelmente, sem saber exactamente o quê. Com o seu longo bico encurvado e a grande envergadura de asas, sobressaía claramente entre os muitos milhares de pequenas narcejas.
            Janeiro chegara. E a longínqua tundra canadiana, a catorze mil e quinhentos quilómetros de distância, seria ainda durante alguns meses a adormecida terra fria das tempestades de neve e das noites sem fim. Mas o maçarico sentia já o chamamento do Árctico, uma suave emoção interior, um pequeno sinal. As suas gónadas em breve começariam a produzir hormonas, um novo ciclo anual aproximava-se. A princípio era quase imperceptível, mas o processo foi-se tornando lentamente mais forte. Era um sentimento que se distinguia do impulso migratório do Outono. Partir para o Sul tinha sido uma vaga impaciência, sem fim definido. Mas agora só o objectivo contava. A migração era um fenómeno acidental e acessório. O que ele sentia era essencialmente a ânsia, a saudade de casa. Conhecia perfeitamente o destino, não só o Árctico e a tundra, mas o amontoado de cascalho, à beira da curva do rio. Aí havia de chegar também a fêmea, aí havia de ser o ninho.
            E o maçarico pôs-se a caminho de casa. Seguia de charco em charco, e não fazia grandes trajectos. A indecisão tinha passado. Voava sempre para Norte. Também as outras narcejas sentiam o mesmo, estavam sempre em movimento. O número e a espécie das aves nos charcos mudava de hora a hora. Uma semana depois o maçarico encontrava-se trezentos quilómetros mais a Norte.


O CORREDOR DA MORTE

            Em anexo ao relatório anual do Instituto Smithsoniano, deve acrescentar-se algo sobre determinadas descobertas científicas. As participações vêm de colaboradores da casa...
            O maçarico-esquimó e o seu desaparecimento (reedição, revista pelo autor, Myron H. Swenk, dos debates da Sociedade Ornitológica do Nebraska, de 27 de Fevereiro de 1915).
           
            Todos os ornitólogos informados concordam entretanto que o maçarico-esquimó (Numenius borealis) está ameaçado de extinção. Muitos acreditam mesmo que as poucas aves que ainda existem não são suficientes para a renovação dos efectivos. Consideram-no como uma espécie que pertence praticamente ao passado. Se partirmos de situações análogas, parece legítimo este pessimismo. Talvez a história do maçarico-esquimó, parecida com a do pombo-torcaz, constitua mais uma daquelas tragédias ornitológicas que sucederam na segunda metade do séc. XIX. Devido aos abates incontrolados e irracionais, reduziram-se os efectivos norte-americanos de aves. Várias espécies largamente difundidas, como se vê pelos gigantescos bandos, foram quase ou totalmente aniquiladas...
(Cont.)