domingo, 28 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 23


9

            Ano após ano, durante os nove meses de migração, os maçaricos eram como peões num gigantesco tabuleiro de xadrez. As suas rotas eram definidas por jogos cósmicos, pelas forças da natureza e da geografia, pelos ventos, pelas marés e pelo estado do tempo. Os ventos determinavam em que direcção as aves deviam voar. O tempo e as chuvas decidiam se havia mais ou menos alimento, definindo desse modo o objectivo do voo. Na partida de xadrez intervinha agora um outro jogador, uma corrente marítima.
            A corrente de Humboldt vem do Antárctico, corre ao longo da costa Oeste da América do Sul, em direcção ao Norte, e transporta águas frias quase até ao equador. Os ventos que varrem todas as tardes a costa do Peru são secos, pois a água fria da corrente de Humboldt quase não sofre evaporação. Assim, a estreita faixa de costa entre os Andes e o Pacífico é árida, com planaltos arenosos quase desertos e pouca precipitação. Há muito poucos rios que corram para o Pacífico e formem estuários pantanosos, onde as marés depositem alimento. Por isso neste local os maçaricos pouco encontram que comer. Depois da travessia dos Andes estão magros e esgotados, mas a região não convida a demoras. E assim continuaram a voar.
            Seguiram as estreitas praias do Peru na direcção do Norte. Voavam, noite após noite, até à madrugada, e aproveitavam cada hora do dia para se alimentarem. Tarefa difícil esta, pois estavam sempre esgotados e nunca completamente fartos. Para os jogos amorosos não restavam tempo nem energias, já que estes mal chegavam para descansar.
            Em menos de uma semana tinham percorrido 3200 quilómetros, atingindo a planície arenosa de Punta Pariña, perto do equador. A partir daqui, ao longo de 1600 quilómetros, a costa sul-americana segue na direcção Nordeste, até ao istmo do Panamá.
            Aproximava-se o mês de Março. Lá em cima, no Norte, começava a Primavera no vale do Mississipi, tornando verdes os choupos e as pradarias. Os maçaricos encontravam-se ainda a Sul do equador, a tundra estava a quase dez mil quilómetros de distância. Mas ela chamava-os já tão fortemente, que os seus músculos cansados e doridos não eram rápidos bastante.
            Até às exuberantes terras altas da Guatemala, a costa descrevia um grande arco, primeiro a correr para Leste, depois para Norte e finalmente para Oeste. A etapa era de quatro mil quilómetros. Em linha recta a distância era cerca de metade, mas passava sobre o Pacífico. Quando a noite que caía arrefeceu a areia quente, o maçarico ainda tinha fome, o papo não estava cheio. Mas levantou voo, no crepúsculo tropical, e a fêmea logo o seguiu. Tomaram a direcção do Norte, abandonaram a plana faixa costeira e rumaram para o mar alto. Deviam atingir a América Central vinte e quatro horas depois.
            Voavam silenciosos, para não desperdiçarem energias. Esta travessia do oceano demorava apenas metade da esgotante viagem sobre o Atlântico. Mas no Outono, graças aos arandos do Lavrador, as aves partiam gordas e bem alimentadas. Agora iniciavam o trajecto sobre o Pacífico já esgotadas e emagrecidas. Duas horas mais tarde teriam os papos vazios.
            Quatro horas depois tinham ultrapassado a zona dos alísios de Sueste, e alcançaram as calmarias equatoriais. Mas o mar por baixo deles estava tudo menos calmo. Baloiçava fortemente em pequenas rebentações que provocavam carneiros de espuma, um verdadeiro campo de batalha. Aqui encontram-se a corrente fria de Humboldt e a corrente quente do Equador, e ambas lutam pelo domínio do mar. Embora só com a luz do luar, as aves podiam observar como a cor do oceano mudara subitamente. O verde glacial da corrente de Humboldt cedeu lugar ao azul profundo das águas tropicais. E a atmosfera aqueceu.
            A lua desapareceu e começou a amanhecer. Pouco depois do romper do dia atingiram a zona dos alísios de Nordeste, e estes ventos de lado aligeiraram o voo. Mas o dia estava quente. O ar húmido e abafado anulava o efeito agradável do vento.
            Voaram hora após hora com velocidade estável, mantendo constante o ritmo esgotante de três a quatro batidas por segundo. O cintilar do sol sobre a água foi enfraquecendo, e desapareceu completamente ao atingir o zénite. O mar tornou-se mais azul. Então o sol descaiu para Oeste e a cintilação voltou. Oitocentos metros abaixo deles brilhavam as cristas das ondas, e o ar aqueceu ainda mais. Desde que a costa da América do Sul desaparecera na escuridão da última noite, nada alterara a monotonia e a desolação do mar, a não ser, aqui e ali, um albatroz, que planava com as suas asas poderosas e imóveis. Os maçaricos voavam infalivelmente para Norte, sem se desviarem do rumo. Os seus cérebros estavam mais bem compensados, em relação às forças de orientação da terra, do que a bússola mais sensível.
            O macho, que seguia na frente e tinha que vencer maior resistência do que a fêmea, sofria de particular cansaço. As tormentosas pontadas que lhe arrepanhavam os músculos do peito transformaram-se numa dor surda e constante. O coração batia fortemente. E poderia descansar um pouco, cedendo o comando à fêmea. Mas o facto de ela se manter atrás dele, e beneficiar da força com que ele atacava o ar, o facto de o voo dela depender do seu, comovia-o como um sentimento quente e sublime, obrigando-o a aguentar. Inabalável, manteve o comando.
(Cont.)