sexta-feira, 30 de abril de 2010
A economia do hidrogénio
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
O hidrogénio é o elemento químico mais leve da natureza, e é o mais abundante no Universo. É o combustível das estrelas onde, pelo processo de fusão nuclear, se transforma em hélio. Nesse processo liberta-se uma enorme quantidade de energia. É a energia do Sol, fonte de vida do nosso Planeta.
O hidrogénio é visto por muitos como o combustível do futuro. E fala-se já em “economia do hidrogénio” como algo que poderá substituir a “economia do carbono”. Mas, para que tal possa acontecer, o caminho a percorrer é longo e cheio de dificuldades.
Na prática (a fusão nuclear é algo que não está no horizonte das próximas décadas) existem dois processos de aproveitar a energia do hidrogénio: como energia térmica em resultado da sua combustão, ou através de pilhas de combustível, em que se produz electricidade no processo de combinação do hidrogénio com o oxigénio. Em qualquer dos casos, a equação química básica traduz-se nesta igualdade:
Hidrogénio + Oxigénio > Água + Energia.
O hidrogénio tem uma alta densidade energética por peso. Porém, em resultado da sua baixa densidade, a densidade energética em volume (mesmo na fase líquida) é baixa, cerca de um quarto da dos hidrocarbonetos. Na prática, isto significa que um veículo movido a hidrogénio liquefeito necessitaria de um depósito quatro vezes maior que um veículo a gasolina, para armazenar a mesma quantidade de energia. E se um dia voarem aviões a hidrogénio, eles terão de ser redesenhados para incorporar depósitos com muito mais capacidade do que os actuais.
O hidrogénio não existe livre na natureza, isto é, na sua forma molecular (H2). Infelizmente, só nesta ocorrência ele tem capacidade energética. Temos pois de o libertar dos compostos onde se encontra em abundância (na água, por exemplo) para o poder utilizar como fonte de energia. Por outras palavras, o hidrogénio livre tem de ser produzido, e isso só pode ser feito a partir da utilização de uma outra forma de energia.
Por isso ele não é considerado como uma forma de energia primária, mas sim um “carrier”, ou um transportador de energia, tal como acontece com a electricidade. Sobre a electricidade tem a vantagem de poder ser armazenado, mas infelizmente tem muitos outros inconvenientes.
Industrialmente o hidrogénio é produzido a partir da electrólise da água, utilizando energia eléctrica ou, por reacção química, a partir de hidrocarbonetos (gás natural, por exemplo). Mas a verdade é que não compensa produzir electricidade para produzir hidrogénio, e depois usá-lo outra vez para produzir electricidade. É muito mais eficiente usar a electricidade directamente. E também não fará muito sentido produzi-lo a partir dos hidrocarbonetos ou do gás natural, por haver um desperdício na transformação. Podemos usar o gás natural directamente com a mesma finalidade e com mais mais rentabilidade.
E produzir hidrogénio com recurso a fontes renováveis (a partir de energia hídrica ou eólica, por exemplo) coloca o problema da eficiência. Neste caso, e querendo armazenar excedentes, é preferível carregar baterias, pois consegue-se uma eficiência de 80%. Se houver um processo intermédio para produzir hidrogénio, essa eficiência baixa para menos de 30%.
Ainda mais problemático do que a produção de hidrogénio, é o custo elevado da sua armazenagem e distribuição. Atendendo ao seu maior volume, imagine-se a actual frota de camiões cisterna multiplicada por quatro. Certamente teria de ser criado um sistema de transporte, através de pipeline, ou possivelmente criar um sistema de produção autónomo junto dos locais de abastecimento. Será muito caro criar uma estrutura de abastecimento de hidrogénio que possa substituir a actual estrutura de distribuição dos derivados do petróleo.
Além disso existem problemas de segurança associados ao uso de hidrogénio em veículos. É um gás altamente inflamável e "escapa-se" facilmente dos reservatórios que o contêm. E as pilhas de hidrogénio, por outro lado, têm uma tecnologia complexa, e recorrem a um metal caro e escasso: a platina. Desenvolver um sistema económico, seguro e eficiente de pilhas de combustível exige grandes investimentos. Finalmente a produção de hidrogénio a partir de carvão coloca o problema das emissões de CO2.
Em conclusão, a economia do hidrogénio não está no horizonte dos próximos decénios, como candidata a suceder à economia do carbono. Os investimentos seriam astronómicos e seriam necessárias enormes quantidades de combustíveis fósseis, que iriam escassear para outras aplicações.
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
O hidrogénio é o elemento químico mais leve da natureza, e é o mais abundante no Universo. É o combustível das estrelas onde, pelo processo de fusão nuclear, se transforma em hélio. Nesse processo liberta-se uma enorme quantidade de energia. É a energia do Sol, fonte de vida do nosso Planeta.
O hidrogénio é visto por muitos como o combustível do futuro. E fala-se já em “economia do hidrogénio” como algo que poderá substituir a “economia do carbono”. Mas, para que tal possa acontecer, o caminho a percorrer é longo e cheio de dificuldades.
Na prática (a fusão nuclear é algo que não está no horizonte das próximas décadas) existem dois processos de aproveitar a energia do hidrogénio: como energia térmica em resultado da sua combustão, ou através de pilhas de combustível, em que se produz electricidade no processo de combinação do hidrogénio com o oxigénio. Em qualquer dos casos, a equação química básica traduz-se nesta igualdade:
Hidrogénio + Oxigénio > Água + Energia.
O hidrogénio tem uma alta densidade energética por peso. Porém, em resultado da sua baixa densidade, a densidade energética em volume (mesmo na fase líquida) é baixa, cerca de um quarto da dos hidrocarbonetos. Na prática, isto significa que um veículo movido a hidrogénio liquefeito necessitaria de um depósito quatro vezes maior que um veículo a gasolina, para armazenar a mesma quantidade de energia. E se um dia voarem aviões a hidrogénio, eles terão de ser redesenhados para incorporar depósitos com muito mais capacidade do que os actuais.
O hidrogénio não existe livre na natureza, isto é, na sua forma molecular (H2). Infelizmente, só nesta ocorrência ele tem capacidade energética. Temos pois de o libertar dos compostos onde se encontra em abundância (na água, por exemplo) para o poder utilizar como fonte de energia. Por outras palavras, o hidrogénio livre tem de ser produzido, e isso só pode ser feito a partir da utilização de uma outra forma de energia.
Por isso ele não é considerado como uma forma de energia primária, mas sim um “carrier”, ou um transportador de energia, tal como acontece com a electricidade. Sobre a electricidade tem a vantagem de poder ser armazenado, mas infelizmente tem muitos outros inconvenientes.
Industrialmente o hidrogénio é produzido a partir da electrólise da água, utilizando energia eléctrica ou, por reacção química, a partir de hidrocarbonetos (gás natural, por exemplo). Mas a verdade é que não compensa produzir electricidade para produzir hidrogénio, e depois usá-lo outra vez para produzir electricidade. É muito mais eficiente usar a electricidade directamente. E também não fará muito sentido produzi-lo a partir dos hidrocarbonetos ou do gás natural, por haver um desperdício na transformação. Podemos usar o gás natural directamente com a mesma finalidade e com mais mais rentabilidade.
E produzir hidrogénio com recurso a fontes renováveis (a partir de energia hídrica ou eólica, por exemplo) coloca o problema da eficiência. Neste caso, e querendo armazenar excedentes, é preferível carregar baterias, pois consegue-se uma eficiência de 80%. Se houver um processo intermédio para produzir hidrogénio, essa eficiência baixa para menos de 30%.
Ainda mais problemático do que a produção de hidrogénio, é o custo elevado da sua armazenagem e distribuição. Atendendo ao seu maior volume, imagine-se a actual frota de camiões cisterna multiplicada por quatro. Certamente teria de ser criado um sistema de transporte, através de pipeline, ou possivelmente criar um sistema de produção autónomo junto dos locais de abastecimento. Será muito caro criar uma estrutura de abastecimento de hidrogénio que possa substituir a actual estrutura de distribuição dos derivados do petróleo.
Além disso existem problemas de segurança associados ao uso de hidrogénio em veículos. É um gás altamente inflamável e "escapa-se" facilmente dos reservatórios que o contêm. E as pilhas de hidrogénio, por outro lado, têm uma tecnologia complexa, e recorrem a um metal caro e escasso: a platina. Desenvolver um sistema económico, seguro e eficiente de pilhas de combustível exige grandes investimentos. Finalmente a produção de hidrogénio a partir de carvão coloca o problema das emissões de CO2.
Em conclusão, a economia do hidrogénio não está no horizonte dos próximos decénios, como candidata a suceder à economia do carbono. Os investimentos seriam astronómicos e seriam necessárias enormes quantidades de combustíveis fósseis, que iriam escassear para outras aplicações.
Em alta velocidade
À beira do precipício onde já estava, Sócrates deu enfim o passo em frente.
Ou eu me engano muito, ou deixou à raposa, escancaradas, as portas da capoeira. Da nossa.
Ou eu me engano muito, ou deixou à raposa, escancaradas, as portas da capoeira. Da nossa.
Danças com lobos
Antes de ser um acto terrorista, cuja real autoria nos levará 30 anos a desvendar, o famigerado 11 de Setembro foi um crime contra a Humanidade, a merecer pena maior, que nunca chegará.
O corolário sequencial é o caos económico geral, o desemprego que não tem remédio, as falências em cascata. E é ainda com o medo da crise da economia, que eles contam restringir-nos o direito de ser gente.
Para os cleptocratas sem pudor e seus inumeráveis serventuários, o povo sempre viveu acima das suas possibilidades. Chegou a altura de metê-lo na ordem, crêem eles.
Mas foi com o medo do terrorismo internacional que nos puseram o freio, nos fizeram aceitar guerras iníquas, e nos truncaram liberdades. Em favor, claro, da liberdade deles, de lançarem fora a máscara e assumirem a natureza de cleptocracia reinante. Quando trocaram a economia produtiva pela economia especulativa, para mais rápida criação de valor para o accionista. Pois deslocalizar uma fábrica para a China, triplicava por milagre o dividendo.
A crise financeira do subprime, que veio logo a seguir, foi basicamente a mudança de mãos dum volume incalculável de riqueza. Milhões foram esbulhados dum só golpe.O corolário sequencial é o caos económico geral, o desemprego que não tem remédio, as falências em cascata. E é ainda com o medo da crise da economia, que eles contam restringir-nos o direito de ser gente.
Para os cleptocratas sem pudor e seus inumeráveis serventuários, o povo sempre viveu acima das suas possibilidades. Chegou a altura de metê-lo na ordem, crêem eles.
terça-feira, 27 de abril de 2010
Caleidoscópio
1 - Quando chegou ao fim o Outono cavaquista, em 1995, as duas primeiras decisões de Guterres foram abolir as portagens na CREL e suspender a barragem do Côa. Da primeira, reza a história. Da segunda, sobra o crime do Tua e o museu de arte rupestre, um serralho de sultão construído num cabeço. Agora não sabem como geri-lo, o IGESPAR, o poder municipal e o turismo. Não sabem o que fazer dele, nem dos auroques pintados. Mas a linha do Tua já lá vai.
2 - O novo gestor do PSD, Pedro Passos Coelho, é um lobito neo-liberal disfarçado de cordeiro. E no entanto... sirvam os gestos que vem tomando, para aferir da canalhice das administrações precedentes.
3 - Se não for desta que Sócrates manda às malvas o TGV para Madrid, e adia até às calendas o novo aeroporto... o melhor é dá-lo para a troca, aos farsantes do rating da América.
4 - Em 2009, 81% dos patrões portugueses tinham como nível de instrução o ensino primário ou secundário inferior; 10% tinham o secundário superior; e 9% o ensino superior.
Já entre os empregados, as percentagens eram, respectivamente, de 65%, 16% e 18%. Palavras para quê?!
5 - A nata democrática da Nação vem-se consumindo em inquéritos parlamentares, para saber se sim ou não Sócrates falou verdade ao parlamento. Isto tudo num país em que a pequena e média trafulhice são endémicas, e a grande vigarice é lei de séculos. Hão-de ter um lindo enterro, eles e nós, quando vierem a descobrir o sexo dos anjos!
2 - O novo gestor do PSD, Pedro Passos Coelho, é um lobito neo-liberal disfarçado de cordeiro. E no entanto... sirvam os gestos que vem tomando, para aferir da canalhice das administrações precedentes.
3 - Se não for desta que Sócrates manda às malvas o TGV para Madrid, e adia até às calendas o novo aeroporto... o melhor é dá-lo para a troca, aos farsantes do rating da América.
4 - Em 2009, 81% dos patrões portugueses tinham como nível de instrução o ensino primário ou secundário inferior; 10% tinham o secundário superior; e 9% o ensino superior.
Já entre os empregados, as percentagens eram, respectivamente, de 65%, 16% e 18%. Palavras para quê?!
5 - A nata democrática da Nação vem-se consumindo em inquéritos parlamentares, para saber se sim ou não Sócrates falou verdade ao parlamento. Isto tudo num país em que a pequena e média trafulhice são endémicas, e a grande vigarice é lei de séculos. Hão-de ter um lindo enterro, eles e nós, quando vierem a descobrir o sexo dos anjos!
sábado, 24 de abril de 2010
"Chega de fado"
A escrita de Paulo Kellerman era uma enseada amena, no pantanal miasmático da escrituração pós-modernista. Texto breve, sintético, contido, capaz do essencial.
Não se sabe o que lhe deu. Porque desta vez se gasta em teias mal urdidas, em formas fragmentadas, em fusões de metais incompatíveis que as didascálias maníacas não ligam.
Serão as tentadoras vozes da sereia. Porém o texto curto, tão denso quanto exacto, quanto apaixonante, esse é que não sobrevive.
Não se sabe o que lhe deu. Porque desta vez se gasta em teias mal urdidas, em formas fragmentadas, em fusões de metais incompatíveis que as didascálias maníacas não ligam.
Serão as tentadoras vozes da sereia. Porém o texto curto, tão denso quanto exacto, quanto apaixonante, esse é que não sobrevive.
24 de Abril
O homem recebera das mãos da pátria vinte soldados e uma missão sagrada: ocupar a cidade à beira do rio e manter a soberania no território, que se estendia por uma orla de floresta e duas bolanhas lamacentas, onde trotavam caranguejos cegos.
Logo mandou encerrar a cidade em longas espirais de arame farpado, aplicou-se a organizar o terreno, construiu abrigos com troncos de palmeira. Todos os dias formava as tropas na parada, trazia a pátria ao discurso e mandava publicar as ordens de batalha. E ao fim do dia, da furna escura do abrigo, espreitava o crepúsculo breve, que fugia para o mar.
De início, o inimigo andava escondido pelos trilhos esconsos do mato, longe do soar dos clarins que içavam a bandeira, todas as manhãs. E o soldados faziam longas nomadizações na floresta, para conhecerem o mundo e deixarem um rasto da pátria no território. Depois o inimigo começou a aventurar-se nas picadas, e logo o homem fez avançar o esquadrão dos bombardeamentos aéreos.
Quando um grupo de inimigos se aproximou do rio e bombardeou a cidade, os primeiros soldados foram devolvidos à pátria distante, metidos em caixões. O homem fez disparar os pesados canhões a limpar o terreno, e do fundo do abrigo ficou a espreitar o crepúsculo de sangue, que morria no mar.
Numa madrugada em que o inimigo veio encostar-se ao arame farpado e largou as primeiras granadas na boca estreita dos abrigos, o homem lançou todas as tropas na luta corpo a corpo. Mas teve que bater em retirada a coberto da noite, com os mortos a proteger as costas dos vivos, antes de serem metidos em caixões.
Desde então o homem passou a viver na floresta, com os soldados que restaram. Camuflou casamatas de bambu sob as árvores, e enterrou abrigos de palmeira por baixo da terra, para resistir aos bombardeamentos aéreos que vêm de longe e devastam a mandioca estendida ao sol. Quando vão à pesca no rio, os soldados tropeçam nos caranguejos cegos que trotam na bolanha. E apagam cuidadosamente qualquer rasto da pátria, quando ousam aventurar-se nas picadas.
Um dia o homem reuniu os soldados, aproximou-se do rio e bombardeou a cidade. E numa madrugada foi encostar-se ao arame farpado, para lançar as granadas na boca estreita dos abrigos. Depois da luta corpo a corpo, o inimigo bateu em retirada, e o homem ficou a olhar o crepúsculo febril que se afogava no mar. Em frente da cidade, mandou chamar os correspondentes das agências e declarou emancipado e livre o território. É que tudo na vida tem um fim. Mesmo o sonho ébrio das epopeias.
Logo mandou encerrar a cidade em longas espirais de arame farpado, aplicou-se a organizar o terreno, construiu abrigos com troncos de palmeira. Todos os dias formava as tropas na parada, trazia a pátria ao discurso e mandava publicar as ordens de batalha. E ao fim do dia, da furna escura do abrigo, espreitava o crepúsculo breve, que fugia para o mar.
De início, o inimigo andava escondido pelos trilhos esconsos do mato, longe do soar dos clarins que içavam a bandeira, todas as manhãs. E o soldados faziam longas nomadizações na floresta, para conhecerem o mundo e deixarem um rasto da pátria no território. Depois o inimigo começou a aventurar-se nas picadas, e logo o homem fez avançar o esquadrão dos bombardeamentos aéreos.
Quando um grupo de inimigos se aproximou do rio e bombardeou a cidade, os primeiros soldados foram devolvidos à pátria distante, metidos em caixões. O homem fez disparar os pesados canhões a limpar o terreno, e do fundo do abrigo ficou a espreitar o crepúsculo de sangue, que morria no mar.
Numa madrugada em que o inimigo veio encostar-se ao arame farpado e largou as primeiras granadas na boca estreita dos abrigos, o homem lançou todas as tropas na luta corpo a corpo. Mas teve que bater em retirada a coberto da noite, com os mortos a proteger as costas dos vivos, antes de serem metidos em caixões.
Desde então o homem passou a viver na floresta, com os soldados que restaram. Camuflou casamatas de bambu sob as árvores, e enterrou abrigos de palmeira por baixo da terra, para resistir aos bombardeamentos aéreos que vêm de longe e devastam a mandioca estendida ao sol. Quando vão à pesca no rio, os soldados tropeçam nos caranguejos cegos que trotam na bolanha. E apagam cuidadosamente qualquer rasto da pátria, quando ousam aventurar-se nas picadas.
Um dia o homem reuniu os soldados, aproximou-se do rio e bombardeou a cidade. E numa madrugada foi encostar-se ao arame farpado, para lançar as granadas na boca estreita dos abrigos. Depois da luta corpo a corpo, o inimigo bateu em retirada, e o homem ficou a olhar o crepúsculo febril que se afogava no mar. Em frente da cidade, mandou chamar os correspondentes das agências e declarou emancipado e livre o território. É que tudo na vida tem um fim. Mesmo o sonho ébrio das epopeias.
quinta-feira, 22 de abril de 2010
Mitologias - O cavalo de Tróia
A guerra prolongava-se há dez anos, muitos heróis haviam já sucumbido. Mas a cidade mantinha-se inviolada, atrás da cintura altiva das muralhas. E foi o Odisseu dos mil ardis quem resolveu o problema.
Mandou fazer um cavalo de madeira, fechou-se-lhe na barriga com outros mais destemidos, e deu ordens que os gregos embarcassem, como quem deixa o campo de batalha. Pela calada da noite.
Os troianos, levados ao engano, logo meteram em casa o inimigo. E a majestosa Tróia foi reduzida a cinzas.
Cassandra bem avisou, mas ninguém lhe deu ouvidos. Porque um dia amou-a Apolo, e fez dela profetisa, com dotes de adivinhar o futuro. Ela repudiou o luminoso amante, mas dom que os deuses concedem não pode ser revogado. Apolo retirou o crédito à sibila, mais não podia fazer.
Cassandra bem preveniu, sobre os gregos escondidos na barriga do cavalo! Ninguém quis saber de nada!
Mandou fazer um cavalo de madeira, fechou-se-lhe na barriga com outros mais destemidos, e deu ordens que os gregos embarcassem, como quem deixa o campo de batalha. Pela calada da noite.
Os troianos, levados ao engano, logo meteram em casa o inimigo. E a majestosa Tróia foi reduzida a cinzas.
Cassandra bem avisou, mas ninguém lhe deu ouvidos. Porque um dia amou-a Apolo, e fez dela profetisa, com dotes de adivinhar o futuro. Ela repudiou o luminoso amante, mas dom que os deuses concedem não pode ser revogado. Apolo retirou o crédito à sibila, mais não podia fazer.
Cassandra bem preveniu, sobre os gregos escondidos na barriga do cavalo! Ninguém quis saber de nada!
Mitologias - A sentença de Páris
A deusa Éris habitava o Olimpo, onde não era bemquista. Tinha o condão de espalhar a cizânia e a discórdia, e os seus pares faziam por ignorá-la. Acabou a pôr o mundo numa babilónia, e deixou-o povoado de sequazes, tão frustrados quanto numerosos. Ainda hoje.
Um belo dia, numa boda a que não fora convidada, atirou para o salão uma maçã doirada, "para a mais bela!". É de imaginar o rebuliço, com tantas deusas a cobiçar a prenda. Mas no fim ficaram três: Hera, antes que todas a dama primeira, Afrodite, a que surgiu da espuma, e Atena, a dos olhos cintilantes.
O Zeus Tonante descartou intrometer-se, mandou-as ir ter com Páris, excelente juiz em tais matérias. Herdeiro do rei de Tróia, o pai correra com ele, quando um dia lhe constou que o filho havia de ser a ruína da cidade. Afastou-o para a montanha, onde apascentava o gado.
Sabidonas, as três deusas conheciam muito bem o que mais motiva os homens. E jogaram a melhor carta que tinham, para lhe condicionar o julgamento.
Hera prometeu fazer dele o senhor do mundo conhecido. Atena tentou-o com a chefia dos troianos, numa guerra que havia de arruinar a Grécia. E foi Afrodite quem o submeteu, com a promessa de vir ele a possuir as mulheres mais belas do mundo.
Páris, que a história fixaria como fraco e pusilânime, deu a maçã a Afrodite. A qual tratou de cumprir o prometido, conduzindo o pastor à cidade de Esparta, onde vivia Helena, a mais bela entre todas. Nem admira, se era filha de Leda e do mesmo Zeus, que para este fim se disfarçara de cisne.
Os dados estavam lançados, e o resto é Homero quem o conta.
Um belo dia, numa boda a que não fora convidada, atirou para o salão uma maçã doirada, "para a mais bela!". É de imaginar o rebuliço, com tantas deusas a cobiçar a prenda. Mas no fim ficaram três: Hera, antes que todas a dama primeira, Afrodite, a que surgiu da espuma, e Atena, a dos olhos cintilantes.
O Zeus Tonante descartou intrometer-se, mandou-as ir ter com Páris, excelente juiz em tais matérias. Herdeiro do rei de Tróia, o pai correra com ele, quando um dia lhe constou que o filho havia de ser a ruína da cidade. Afastou-o para a montanha, onde apascentava o gado.
Sabidonas, as três deusas conheciam muito bem o que mais motiva os homens. E jogaram a melhor carta que tinham, para lhe condicionar o julgamento.
Hera prometeu fazer dele o senhor do mundo conhecido. Atena tentou-o com a chefia dos troianos, numa guerra que havia de arruinar a Grécia. E foi Afrodite quem o submeteu, com a promessa de vir ele a possuir as mulheres mais belas do mundo.
Páris, que a história fixaria como fraco e pusilânime, deu a maçã a Afrodite. A qual tratou de cumprir o prometido, conduzindo o pastor à cidade de Esparta, onde vivia Helena, a mais bela entre todas. Nem admira, se era filha de Leda e do mesmo Zeus, que para este fim se disfarçara de cisne.
Os dados estavam lançados, e o resto é Homero quem o conta.
quarta-feira, 21 de abril de 2010
terça-feira, 20 de abril de 2010
O declínio das abelhas
A questão não tem a mínima importância, para o cidadão cuja ideia de ruralidade se esgota na banca de legumes do supermercado. Infelizmente, no mundo real, as coisas são algo mais delicadas.
Uma enorme quantidade de espécies vegetais cultivadas dependem, ao menos em parte, da polinização feita por insectos. E algumas delas, como as abóboras, os melões, o pepino, o maracujá, o cacau, dependem integralmente da sua acção.
De há alguns anos a esta parte, vem-se verificando em todo o mundo uma crescente mortalidade nas colónias de abelhas. Não estando cientificamente diagnosticadas as causas do declínio, é de admitir que sejam várias: o ácaro parasita que se lhes cola ao ventre e as enfraquece, os pesticidas, insecticidas e químicos da agricultura intensiva que as envenenam. Fala-se mesmo, ninguém sabe com que verdade, da maléfica influência das múltiplas radiações presentes na atmosfera, de redes de comunicações e outras, que lhes perturbam o sentido de orientação e as impedem de regressar à colmeia.
Como se isso não bastasse, a meteorologia caprichosa desta primavera atípica veio aumentar a razia. Pois perturbando a normal evolução da população nas colmeias e impedindo a saída de enxames, acaba a contribuir para o colapso das colónias.
Nos EUA a polinização é já uma indústria. Metade dos apicultores não têm abelhas para produzir o mel que não crestam, antes alugam as suas colmeias a grandes produtores de legumes e frutas. Transportam-nas em função das estações e das diversas culturas: as laranjas na Flórida, as amêndoas na Califórnia, as macieiras na Pensilvânia, os mirtilos no Maine.
A crescente escassez da oferta fez triplicar os preços do aluguer em poucos anos. E em 2008, na Carolina do Norte, a produção de pepinos sofreu uma redução de 50%, por não haver colmeias suficientes para a polinizaçãos das culturas.
Parece questão de lana caprina, no composto explosivo dos problemas que hoje fustigam um mundo à deriva. Infelizmente não é. Einstein alertava, há 50 anos, para as leis de interdependência entre as espécies: "Le jour où l'abeille disparait, l'Humanité en a pour deux ans." Nem ouso traduzir.
Uma enorme quantidade de espécies vegetais cultivadas dependem, ao menos em parte, da polinização feita por insectos. E algumas delas, como as abóboras, os melões, o pepino, o maracujá, o cacau, dependem integralmente da sua acção.
De há alguns anos a esta parte, vem-se verificando em todo o mundo uma crescente mortalidade nas colónias de abelhas. Não estando cientificamente diagnosticadas as causas do declínio, é de admitir que sejam várias: o ácaro parasita que se lhes cola ao ventre e as enfraquece, os pesticidas, insecticidas e químicos da agricultura intensiva que as envenenam. Fala-se mesmo, ninguém sabe com que verdade, da maléfica influência das múltiplas radiações presentes na atmosfera, de redes de comunicações e outras, que lhes perturbam o sentido de orientação e as impedem de regressar à colmeia.
Como se isso não bastasse, a meteorologia caprichosa desta primavera atípica veio aumentar a razia. Pois perturbando a normal evolução da população nas colmeias e impedindo a saída de enxames, acaba a contribuir para o colapso das colónias.
Nos EUA a polinização é já uma indústria. Metade dos apicultores não têm abelhas para produzir o mel que não crestam, antes alugam as suas colmeias a grandes produtores de legumes e frutas. Transportam-nas em função das estações e das diversas culturas: as laranjas na Flórida, as amêndoas na Califórnia, as macieiras na Pensilvânia, os mirtilos no Maine.
A crescente escassez da oferta fez triplicar os preços do aluguer em poucos anos. E em 2008, na Carolina do Norte, a produção de pepinos sofreu uma redução de 50%, por não haver colmeias suficientes para a polinizaçãos das culturas.
Parece questão de lana caprina, no composto explosivo dos problemas que hoje fustigam um mundo à deriva. Infelizmente não é. Einstein alertava, há 50 anos, para as leis de interdependência entre as espécies: "Le jour où l'abeille disparait, l'Humanité en a pour deux ans." Nem ouso traduzir.
sexta-feira, 16 de abril de 2010
Relíquia antiga - XVII
E agora aqui estou eu no meio da rua, perdido na húmida noite da charneca, sem cama onde dormir, e sobre o mais taxado de ladrão de viúvas. Realmente, que não acreditar que o mundo é uma arca de surpresas, o melhor é não sair de casa. Nem sei por onde começar, para vos contar a história.
Aqui há uns anos, quando os primeiros arqueólogos começaram a espinotear nas fragas do côa, à procura de auroques e de cabras montesas picotadas nos calhaus, tive que fazer um levantamento do achado. Peguei no teodolito, não sei já como transportei a mira e o tripé, corri a apanhar o último comboio e era noite crescida quando vim parar aqui a foz-côa, numa camioneta da pré-história. Debaixo dum temporal de fins do mundo, lá me inculcaram a pensão da genoveva, única no planalto e sem quartos disponíveis. Mas há portas que uma azada juventude consegue abrir, toda a gente sabe isso. A genoveva arranjou-me instalação privada em sua casa, no primeiro andar da pensão, e a noite foi um sossego.
Algum tempo depois do regresso, fui surpreendido por uma estranha contra-fé da polícia. E um amigo meu, advogado previdente, que almoçava comigo nesse dia, achou melhor acompanhar-me na audição, sabendo muito bem que o diabo passa a vida a tecê-las. O agente recebeu-nos muito fechado em copas, disse que a intimação perdera a pertinência ou que havia um lapso de alguém, nem sequer abordou o assunto. E eu fui para casa resolver as triangulações, até que o percalço me saiu da cabeça.
Mas tantas vezes o mundo se repete, será porque é redondo. Hoje tive que voltar a foz-côa e procurei a pensão da genoveva. Foi uma trabalheira dar-me a conhecer, a viúva já não se lembrava do hóspede nocturno de há tantos anos. A minha obstinada persistência lá acabou por desenterrar-lhe na memória o jovem topógrafo, aqui arribado numa noite medonha, com todo o ar de náufrago das índias. E logo a genoveva reconheceu em mim o antigo ladrão dum finíssimo cordão de ouro, que tinha lá em casa. Se eu tivesse tranquila a consciência, não teria ido à polícia acompanhado por advogado, arguiu severamente. Na altura, bem contra a sua vontade e a opinião do genro, agente local da autoridade, a polícia arquivara a queixa por escassez de provas, dando sinais dum fraco desempenho que só protegia os ladrões, e era causa dos males do mundo. Ademais sabia muito bem que eu não era flor que se cheirasse, visto o mau conceito em que era tido pelos vizinhos.
Abriu-se-me a boca de espanto, e não fui capaz de encontrar formas de a fechar. É bem verdade que o mundo não pára enquanto um homem dorme, pois a genoveva tinha uma absurda explicação inteira para tudo, e de pouco valeram as minhas alegações. A filha apareceu também, a secundar as invectivas agrestes da progenitora. E eu achei melhor bater em retirada, antes de qualquer ataque ainda mais demolidor, vindo do posto da guarda.
Agora a humidade nocturna ameaça dissolver-me os ossos, e não há outra estalagem por aqui. Vou a pé até ao pocinho, antes que engendrem contra mim as provas que faltaram.
Aqui há uns anos, quando os primeiros arqueólogos começaram a espinotear nas fragas do côa, à procura de auroques e de cabras montesas picotadas nos calhaus, tive que fazer um levantamento do achado. Peguei no teodolito, não sei já como transportei a mira e o tripé, corri a apanhar o último comboio e era noite crescida quando vim parar aqui a foz-côa, numa camioneta da pré-história. Debaixo dum temporal de fins do mundo, lá me inculcaram a pensão da genoveva, única no planalto e sem quartos disponíveis. Mas há portas que uma azada juventude consegue abrir, toda a gente sabe isso. A genoveva arranjou-me instalação privada em sua casa, no primeiro andar da pensão, e a noite foi um sossego.
Algum tempo depois do regresso, fui surpreendido por uma estranha contra-fé da polícia. E um amigo meu, advogado previdente, que almoçava comigo nesse dia, achou melhor acompanhar-me na audição, sabendo muito bem que o diabo passa a vida a tecê-las. O agente recebeu-nos muito fechado em copas, disse que a intimação perdera a pertinência ou que havia um lapso de alguém, nem sequer abordou o assunto. E eu fui para casa resolver as triangulações, até que o percalço me saiu da cabeça.
Mas tantas vezes o mundo se repete, será porque é redondo. Hoje tive que voltar a foz-côa e procurei a pensão da genoveva. Foi uma trabalheira dar-me a conhecer, a viúva já não se lembrava do hóspede nocturno de há tantos anos. A minha obstinada persistência lá acabou por desenterrar-lhe na memória o jovem topógrafo, aqui arribado numa noite medonha, com todo o ar de náufrago das índias. E logo a genoveva reconheceu em mim o antigo ladrão dum finíssimo cordão de ouro, que tinha lá em casa. Se eu tivesse tranquila a consciência, não teria ido à polícia acompanhado por advogado, arguiu severamente. Na altura, bem contra a sua vontade e a opinião do genro, agente local da autoridade, a polícia arquivara a queixa por escassez de provas, dando sinais dum fraco desempenho que só protegia os ladrões, e era causa dos males do mundo. Ademais sabia muito bem que eu não era flor que se cheirasse, visto o mau conceito em que era tido pelos vizinhos.
Abriu-se-me a boca de espanto, e não fui capaz de encontrar formas de a fechar. É bem verdade que o mundo não pára enquanto um homem dorme, pois a genoveva tinha uma absurda explicação inteira para tudo, e de pouco valeram as minhas alegações. A filha apareceu também, a secundar as invectivas agrestes da progenitora. E eu achei melhor bater em retirada, antes de qualquer ataque ainda mais demolidor, vindo do posto da guarda.
Agora a humidade nocturna ameaça dissolver-me os ossos, e não há outra estalagem por aqui. Vou a pé até ao pocinho, antes que engendrem contra mim as provas que faltaram.
quinta-feira, 15 de abril de 2010
Mitologias - Anfitrião
Plauto, autor romano (254 - 184 a.C.), construiu da peripécia uma bela comédia. E muitos outros depois a utilizaram, como Camões e António José da Silva - o Judeu, para citar apenas gente nossa.
Anfitrião estava longe de casa, em missão militar. E logo isso deu ensejo ao estouvado Zeus para se tomar de amores por Alcmena, mulher do general.
Assumiu as formas do marido ausente, encarregou Hermes de engendrar a tramóia, e apresentou-se no alpendre da senhora, prontinho a passar à alcova. E tudo correu bem.
O pior foi no regresso do anfitrião. Mas isso é melhor vê-lo no palco, um dia, quando os encenadores da pós-modernidade retirarem da cena as Odes do Ricardo Reis, as Cartas ao príncipe do Sá de Miranda, e outros suculentos temas dramáticos.
Da involuntária facada no matrimónio nasceria Hércules, herói maior daquele tempo antigo. A quem sobrava em hercúlea força física, o mesmo que faltava em discernimento e agudeza de espírito. Vê-se muito, ainda, nos heróis de hoje.
Hera, porém, não lhe esqueceria a paternidade. E um dia, por um momento fatal, fez-lhe perder a razão. Numa desavença doméstica, finaram-se-lhe à mão a mulher e os três filhos.
Depois arrependeu-se duramente. Mas como não havia Avé-Marias, só se redimiu em troca da pesada penitência dos Doze Trabalhos de Hércules, de que ainda hoje se fala, cada vez mais a propósito.
Para executar um deles, chegou aos confins do mar. E erigiu no estreito as duas colunas de Hércules, que ainda hoje lá estão: dum lado os montes de Ceuta, do outro o rochedo de Gibraltar.
Em cumprimento de um outro o herói passou no Cáucaso, onde encontrou Prometeu, o titã posto a grilhões. Matou o grifo que lhe rasgava as entranhas e soltou-o.
Anfitrião estava longe de casa, em missão militar. E logo isso deu ensejo ao estouvado Zeus para se tomar de amores por Alcmena, mulher do general.
Assumiu as formas do marido ausente, encarregou Hermes de engendrar a tramóia, e apresentou-se no alpendre da senhora, prontinho a passar à alcova. E tudo correu bem.
O pior foi no regresso do anfitrião. Mas isso é melhor vê-lo no palco, um dia, quando os encenadores da pós-modernidade retirarem da cena as Odes do Ricardo Reis, as Cartas ao príncipe do Sá de Miranda, e outros suculentos temas dramáticos.
Da involuntária facada no matrimónio nasceria Hércules, herói maior daquele tempo antigo. A quem sobrava em hercúlea força física, o mesmo que faltava em discernimento e agudeza de espírito. Vê-se muito, ainda, nos heróis de hoje.
Hera, porém, não lhe esqueceria a paternidade. E um dia, por um momento fatal, fez-lhe perder a razão. Numa desavença doméstica, finaram-se-lhe à mão a mulher e os três filhos.
Depois arrependeu-se duramente. Mas como não havia Avé-Marias, só se redimiu em troca da pesada penitência dos Doze Trabalhos de Hércules, de que ainda hoje se fala, cada vez mais a propósito.
Para executar um deles, chegou aos confins do mar. E erigiu no estreito as duas colunas de Hércules, que ainda hoje lá estão: dum lado os montes de Ceuta, do outro o rochedo de Gibraltar.
Em cumprimento de um outro o herói passou no Cáucaso, onde encontrou Prometeu, o titã posto a grilhões. Matou o grifo que lhe rasgava as entranhas e soltou-o.
quarta-feira, 14 de abril de 2010
Aqui os tendes!
Atolados há séculos na ignomínia do abuso de menores, os clérigos do Vaticano sentiram finalmente arder as barbas.
E por isso vem Bertone, secretário de estado e cardeal, asseverar a peregrina verdade científica: a pedofilia imbrica na homossexualidade, e não no celibato canónico.
Isto apenas quer dizer que há padres que molestam crianças, não porque sejam criminosos iníquos, mas por serem homossexuais. E ser homossexual é, pelos vistos, um direito hoje assumido.
Com um só golpe de báculo, liquida o fariseu os dois coelhos. Por um lado preserva o cânone, e as finanças do império. Por outro, é como quem diz: pois que aceitais os direitos dos gays, aqui os tendes!
E por isso vem Bertone, secretário de estado e cardeal, asseverar a peregrina verdade científica: a pedofilia imbrica na homossexualidade, e não no celibato canónico.
Isto apenas quer dizer que há padres que molestam crianças, não porque sejam criminosos iníquos, mas por serem homossexuais. E ser homossexual é, pelos vistos, um direito hoje assumido.
Com um só golpe de báculo, liquida o fariseu os dois coelhos. Por um lado preserva o cânone, e as finanças do império. Por outro, é como quem diz: pois que aceitais os direitos dos gays, aqui os tendes!
segunda-feira, 12 de abril de 2010
Maria Mijona
A Marmijona, por norma, tem trinta quilos a mais. E, embora jovem, simula uma vestal na reforma.
Milita nos temas fracturantes, calça botas de marine e chancas de lavradeira. Um lugar no autocarro não lhe chega. E desembarga todas as contendas do perímetro com a estética, assimilando a estética ao perímetro.
Para disfarçar usa xailes, capulanas, lenços merinos, écharpes, ponchos índios, balandraus, fraldas de bicos, saiões. Não lhe bastando, engravida.
Milita nos temas fracturantes, calça botas de marine e chancas de lavradeira. Um lugar no autocarro não lhe chega. E desembarga todas as contendas do perímetro com a estética, assimilando a estética ao perímetro.
Para disfarçar usa xailes, capulanas, lenços merinos, écharpes, ponchos índios, balandraus, fraldas de bicos, saiões. Não lhe bastando, engravida.
Povo que lavas no rio
domingo, 11 de abril de 2010
Mitologias - As cinco idades
Divergente da versão prometaica, ficou a narrativa criacionista das cinco idades. A qual imputa aos deuses a geração dos homens, com base nos metais.
O primeiro que ensaiaram foi o ouro, e dele ficou um tempo em que as searas por si frutificavam e a humanidade vivia sem sofrimento, paredes meias com as divindades.
Sem que se saiba porquê, a não ser por capricho divino, de tal idade apenas sobrevive um eco na memória, uma nostalgia vaga.
Porque vieram depois as idades da prata, do bronze e do ferro. E cada uma marcou as criaturas, e a natureza delas, numa curva sempre descendente de qualidades e penas. Até chegar um tempo em que o poder se tornou veneração suprema, e deixou de respeitar-se o bem. Os homens perderam a capacidade de se opor ao mal.
Perante a perversão da raça humana, Zeus resolveu destruí-la. Mandou à terra um dilúvio de nove dias e nove noites, a que só escapou o monte Parnaso. Mas à catástrofe geral resistia uma arca, a boiar na procela, guardando lá dentro um casal de primos - Deucalião e Pirra. Era ela filha de Epimeteu e Pandora (a curiosa da caixa), ele era filho de Prometeu. E foi este, claro, quem lhes engendrou a barca.
Quando as águas baixaram e a arca tocou em terra, os sobreviventes não viram sinais de vida. E Zeus sentiu compaixão dos seus lamentos, da sua desolação.
- Atirem para trás das costas os ossos da vossa mãe! - foi o que lhes fez ouvir.
Ele, por fim, compreendeu. Que a terra é a mãe de tudo, e as pedras os ossos dela. À medida que caíam, logo tomavam as pedras forma humana e repovoou-se o mundo.
E veio uma idade nova, com uma raça restaurada e vigorosa. Tal foi o que ficou dito.
O primeiro que ensaiaram foi o ouro, e dele ficou um tempo em que as searas por si frutificavam e a humanidade vivia sem sofrimento, paredes meias com as divindades.
Sem que se saiba porquê, a não ser por capricho divino, de tal idade apenas sobrevive um eco na memória, uma nostalgia vaga.
Porque vieram depois as idades da prata, do bronze e do ferro. E cada uma marcou as criaturas, e a natureza delas, numa curva sempre descendente de qualidades e penas. Até chegar um tempo em que o poder se tornou veneração suprema, e deixou de respeitar-se o bem. Os homens perderam a capacidade de se opor ao mal.
Perante a perversão da raça humana, Zeus resolveu destruí-la. Mandou à terra um dilúvio de nove dias e nove noites, a que só escapou o monte Parnaso. Mas à catástrofe geral resistia uma arca, a boiar na procela, guardando lá dentro um casal de primos - Deucalião e Pirra. Era ela filha de Epimeteu e Pandora (a curiosa da caixa), ele era filho de Prometeu. E foi este, claro, quem lhes engendrou a barca.
Quando as águas baixaram e a arca tocou em terra, os sobreviventes não viram sinais de vida. E Zeus sentiu compaixão dos seus lamentos, da sua desolação.
- Atirem para trás das costas os ossos da vossa mãe! - foi o que lhes fez ouvir.
Ele, por fim, compreendeu. Que a terra é a mãe de tudo, e as pedras os ossos dela. À medida que caíam, logo tomavam as pedras forma humana e repovoou-se o mundo.
E veio uma idade nova, com uma raça restaurada e vigorosa. Tal foi o que ficou dito.
sexta-feira, 9 de abril de 2010
Relíquia antiga - XVI
Era uma vez uma família muito pobre. Vivia numa aldeia em que as noites eram escuras, e mais longas ainda quando a fome se punha a cantar nas barrigas, antes de chegar a manhã.
Certa noite, num serão de pão escasso, lembrou-se o pai de contar uma história. E vai ele, que bom seria, mulher, termos nós dinheiro para comprar uma cabra. Havíamos de levá-la à vez a pastar pelos caminhos, para ela encher a barriga dos botões de silvas bravas, quando o sol, na primavera, constrói jardins nas paredes. E quando a noite chegasse, e a cabra voltasse a casa, íamos colher-lhe o leite, e as noites seriam longas, e a família cresceria, já viste mais alegria.
Mas eu não gosto de leite, tornou o filho mais novo. E quando o outono chegar, e as silvas ficarem duras, subo ao freixo do valado, e do mais dourado ramo, se há-de fartar nosso gado, disse o outro, confiado. Mas eu não gosto de leite, insistiu o desgraçado.
Numa breve conclusão, perde o pai o seu vagar, e ali mesmo obriga o revel e obstinado filho a engolir duas grandes tijelas de leite na companhia dos irmãos, que assim dormiram toda a santa noite, de barriguinha calada.
É claro que tudo isto aconteceu num tempo muito antigo, enquanto havia milagres e cabras que davam leite.
Certa noite, num serão de pão escasso, lembrou-se o pai de contar uma história. E vai ele, que bom seria, mulher, termos nós dinheiro para comprar uma cabra. Havíamos de levá-la à vez a pastar pelos caminhos, para ela encher a barriga dos botões de silvas bravas, quando o sol, na primavera, constrói jardins nas paredes. E quando a noite chegasse, e a cabra voltasse a casa, íamos colher-lhe o leite, e as noites seriam longas, e a família cresceria, já viste mais alegria.
Mas eu não gosto de leite, tornou o filho mais novo. E quando o outono chegar, e as silvas ficarem duras, subo ao freixo do valado, e do mais dourado ramo, se há-de fartar nosso gado, disse o outro, confiado. Mas eu não gosto de leite, insistiu o desgraçado.
Numa breve conclusão, perde o pai o seu vagar, e ali mesmo obriga o revel e obstinado filho a engolir duas grandes tijelas de leite na companhia dos irmãos, que assim dormiram toda a santa noite, de barriguinha calada.
É claro que tudo isto aconteceu num tempo muito antigo, enquanto havia milagres e cabras que davam leite.
quinta-feira, 8 de abril de 2010
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Clique
Passar dois dias a escrever um texto, e vê-lo sumir-se a um clique inopinado... é mais do que eu tenho condições para suportar.
Talvez o tempo, a ver vamos.
Talvez o tempo, a ver vamos.
segunda-feira, 5 de abril de 2010
Páscoa antiga
Daqui desta janela vejo o mundo, o pouco ao menos que dele se deixa ver. Como o padre, que agora mesmo chegou, e veio cambaleando até à paragem da carreira.
É segunda-feira de Páscoa. E todos os anos, na segunda-feira de Páscoa, acontece a mesma coisa. Sua reverência sai de casa, vermelhusco e azamboado ainda, a arrastar o corpo mole até se desfazer dele num banco da velha Dodge amarela, que aí passa ao meio dia. Vai à vila, dizem as línguas más, sossegar a consciência junto do arcipreste, e confessar o pecado da bebedeira pascal. É assim todos os anos, toda a gente conhece o ritual, e olha o vulto hesitante do padre com tolerância ou desprezo, conforme o caso de cada um.
Já é sabido, depois da missa vem o almoço, e pelas três da tarde o compasso começa. As primeiras casas são as da rua de cima, atrás da fonte, e os homens adiantam-se para não serem apanhados em falso, seria grande heresia. Nas outras bem pode o dono gozar mais um migalho no adro. A função só termina já noite cerrada e o padre vai alargando os seus vagares, à medida que os copos de vinho fino se lhe acumulam no estômago, e a litania das bênçãos dá em sair-lhe mais empastada da garganta.
Vai o da campainha lá na frente, um garoto qualquer, a chocalhar o badalo por tudo e por nada, a anunciar o movimento. Depois vem o da cruz, homem maduro, de opa avermelhada. Entra sisudo e oferece a prata em volta aos beiços da assembleia, ainda não terminou a roda inteira e já o padre está chegando. A casa é térrea e mal iluminada, e o denso vulto atravessando a soleira mergulhou o adjunto na obscuridade. Há saudações canónicas ao bem-estar dos corpos e ao sossego dos espíritos, aleluia aleluia, toda a gente sabe de cor o salmejar mas apenas o padre o recita e alguns o tomam a sério, não quer vossa reverência um copo de vinho fino, uma fatia do nosso pão leve, Maria traz uma cadeira aí do quarto.
Discreto entrou o que recolhe os óbolos, ora a moeda presa nos lábios duma laranja, ora o donativo escuso na reserva dum envelope, di-lo-ão mais generoso. Inventam os homens estas cerimónias e nós ficamos ao certo sem saber. Traz o rapazote um saco pequeno de veludo encarnado, de vez em quando toma-lhe o peso com ambas as mãos e alegra-se de verdade, sem saber porquê, à medida que o vê ganhar corpo e substância. O saco tem laços de garrote, a cada função compete a conveniente palamenta, que a igreja não dispensa. E estes são tempos de ocorrência abundosa de meios, os humanos e os outros, vasto e submisso é o rebanho, não é o que se verá daqui por uns anos, um dia lá chegaremos.
Este do saco há-de ser rapaz de confiança, sabido como é dispor o demo de muitas artimanhas e vastíssima experiência em malas-artes. Ora desviar para bolso próprio o que à santa igreja mais convém seria perdição do pecador e grave dano do padre. Por isso escolhe sempre um moço de família para a função. Desde há uns anos, para evitar as tentações mais correntias, vem-na ele reservando a um rapazito que tenho aqui na escola, não sei com que proveito, do padre falo, é claro. Por enquanto é ele atilado o que basta, na aula pelo menos, quanto ao resto não porei as mãos no lume. Consta que o padre o tem encomendado para seguir o seminário, única forma de fugir à fatídica enxada, talvez venha ele a escrever estas histórias que por aqui hoje acontecem, um dia Deus o dirá.
Casas há em que o padre se demora mais um pouco, e não será do calor da recepção, que em todo o lado é alvoroçada avonde. Talvez seja do conforto da casa, ou tão só desta sabida conivência com as famílias mais graúdas, os séculos ensinaram à igreja tais diplomacias, só as não vê quem não quer, a pobreza e a humildade pertencem ao sermão e a igualdade só no céu a encontraremos, em na havendo. Por isso aceita agora o padre sentar-se no velho canapé, ajeita-lhe a dona da casa as almofadas em volta das cadeiras, ao menos tem o pobre, neste dia, direito a cuidados de mulher.
Estende sua reverência um pouco as pernas, entorpecidas do vasto caminhar, enquanto corresponde à geral alegria dos rostos e à particular disposição do dono da casa, não há como este júbilo no coração dos humildes. E a nós que nos importam as fraquezas dos homens se afinal o que conta é esta conivência, este reconhecimento dos interesses mútuos, tirai às gentes estes rituais e a vida será logo um vale de lágrimas, sem interregnos nem sentido, um chapinhar na lama dos caminhos. Porém hoje o mesmo Cristo ressuscitou dos mortos, aleluia aleluia, vai mais um copinho antes da partida, senhor abade.
Cá fora vai a tarde escurecendo, mal se distinguem ao longe os campos de centeio, verdes cabeleiras a ondear ao vento, nem se define já com precisão a cor dos lilases a espreitar à esquina das hortas. Ficou só o rescendente aroma a espalhar-se por estas fragas do Cabeço, sete casas nos faltam antes de recolher à sacristia e arrumar a palamenta, aleluia aleluia.
No fim do compasso, cansado o corpo de tais trabalheiras e fatigada a alma destas desobrigas, recolhe o padre em casa toda a quadrilha. É o momento do caldo verde e do galo capão em molho de vilão. Pois que se pode outra vez comer carne lá estão as mãos da velha cozinheira afeitas ao pitéu. Exultam os estômagos da rapaziada, que o mais sacrificado foi o galaroz. Mas cada um tem seu destino e hora, e os deste há muito eram conhecidos, só ele talvez os não soubesse. O padre pôs-se à vontade, libertou finalmente os pés nas chinelas de trapo, tira o cabeção e abate as defesas perante o garrafão de tinto. Isto vem a produzir momentos de risada aberta e sã camaradagem, parece isto uma santa irmandade primitiva, e acaba por levar a um pesadiço torpor, rebolam entarameladas as palavras nos beiços orlados de gordura, que a gente é de gesto rude, e já as ideias se enovelam, parecem tropeçar umas nas outras. É tempo de deixar aberto o campo ao sono, amanhã voltaremos a ver-nos, quem sabe se ainda nos lembraremos disto. Mas o melhor é que nos não lembremos.
A Dodge amarela já lá vai, uma chiadeira de molas nos poços do macadame, será do peso do padre, Santa Eulália o acompanhe. Tem ele um automóvel aí, numa garage improvisada lá para os fundos do povo. Para o que lhe havia de dar, um dia apareceu aí com o animal, espécie de cavalgadura sem ferraduras, preto retinto com dois enormes olhos de sapo no focinho, a encimar uma larga dentuça de varetas de metal, não sabe a gente se vai a morder ou se vai a sorrir. Foi uma exaltação na garotada, e tão grande era a nuvem de pó na estrada como a fumarada escura que lhe escapava das tripas ruidosas. Mas o padre, ao que consta, não se ajeita bem com a alimária. Um dia destes quis pô-la ao sol, e só à custa de muita força de braços ela soube mover-se. Parece que os ratos já tinham aproveitado o estofo dos bancos para fazerem criação, quem vai chamar-lhes parvos. Em todo o caso, mesmo que estivesse o animal disponível para a caminhada, dez quilómetros para cima com outros tantos para baixo, não no estaria hoje o padre, com a celebreira que ainda arrasta.
Bem vistas as coisas, tolerância com ele não me falta. Uma mulher é diferente. Mas não se enterra assim um homem sozinho numa aldeola que nem vem no mapa, sem ter quem o use e o cuide, à sua volta uma caterva de aldeãos sujos e miseráveis, crendo no céu e no inferno como lugares físicos e verdadeiros, triste rebanho bíblico a viver no esterco com ninhadas de filhos, e a pedirem fiado na venda, para se alumiarem, meio litro de petróleo que chega no carrão, de mês a mês.
Fica o homem confinado entre a sacristia e o altar-mor, num gineceu de bafio, obrigado a acreditar nas trapaceiras que infantilizam mais a desgraçada gente, a prometer-lhes a eterna ventura no além, para que eles aceitem resignados a miséria em que vivem, para que eles continuem a suportar a canga do servilismo até ao último sopro, os bens deste mundo não são dos bem-aventurados, porque deles é o reino dos céus e só esse contará. Levantam-se, noite ainda, e fazem troar pelas calçadas os tamancos ferrados de pau para acudirem à rega da horta de que se alimentam, para sacharem o milho que tratam às terças com o dono da terra, para segarem, no corgo, a erva da vitela que trazem ao meio-ganho, para cevarem o porco que hão-de levar à feira de Agosto, e de que esperam algum sobejo depois de pagar a renda, depois de entregar a côngrua, depois de comprar uns farrapos aos filhos nas tendas ambulantes.
Levantam-se gelados de frio para apanharem as castanhas nos soitos do senhor conde, de que hão-de receber a mais minguada parte, e lá vão, ainda a manhã vem em Castela, a picareta às costas e o gasómetro de acetileno na mão, a caminho das minas da serra, as botas de pneu já na última e os pés enterrados na lama das galerias, um dia, que ainda vem longe, vão todos empenhar-se e pagar a um passador que os leve daqui para fora, hão-de passar a fronteira a salto, de noite, como ladrões de quinta, hão-de cruzar a pé serras geladas fugindo aos carabineiros, porque essa há-de ser a única forma de escapar a esta miséria.
Por enquanto levantam-se cedo, ainda meninos, e vão guardar as ovelhas merinas dum doutor qualquer por esses montes, pobres enjeitados cujo fito maior é escapar à fome, é poder adormecer à noite sem o relógio da barriga a dar horas. Conhecem as chalanas pelo nome e pelas marcas da pelagem, e levam de farnel um bocado de pão e figos secos numa meia velha da patroa, e lá vão, a sonhar com os vermelhos de anilina com que hão-de pintar o rebanho em chegando a festa da Senhora da Saúde. Hão-de dar três voltas à capela com o carneiro enfeitado à frente, a cabeça do rebanho irá juntar-se à cauda e então há-de o pastor sair da roda e ver o gado a girar, à volta da santinha que o guarda das doenças, e há-de ser então tal padre, tal pastor, nem sempre a comparação nos sai assim tão exacta e percuciente, com perdão da palavra.
E havemos então de ver se o pregador põe a chorar ou não o mulherio na missa da capela, caso em que se dará por bem empregue o dinheiro que ganhou. Vede, irmãos e irmãs, como sois indignos da misericórdia de Deus, porque chafurdais no pecado e mantendes cerrados os ouvidos à voz benigna do Senhor, e cultivais o orgulho e a soberba quando devíeis ser submissos e obedientes diante da palavra da Santa Madre Igreja e das autoridades, pois não há em todo o mundo um jardim de paz e de ventura como esta nossa pátria eleita pela Virgem para sua morada na terra, e tudo isto é obra e sacrifício dos sábios governantes que Deus nos mandou e que vós não respeitais cabonde, vede só o que vai de guerra por esse mundo, mormente a desgraça dos nossos vizinhos espanhóis que Deus, na sua infinita misericórdia, acabou por salvar. Por isso três vezes amaldiçoado há-de ser aquele que não fechar os olhos do corpo e da alma às tentações e às falácias do mundo, e aquele que praticar a soberbia e a vaidade, e a ambição e a inveja, pois bem sabeis, irmãos e irmãs, que Deus desprezará o primeiro que na fila se colocar para receber no dia fatal os presentes divinos, e lhe pegará pelas orelhas, e o expulsará para o último lugar da divina quermesse.
Fica o homem, coitado, preso no que diz, condenado a acreditar naquilo que lhe resta, em verdade, em verdade vos digo, que já não sei se vos digo aquilo em que acredito, ou se creio, afinal, naquilo que vos digo. E assim eu compreendo o pobre padre, que se adormece no vinho, outros descambarão em práticas mais inadequadas, quem sabe se mais humanas. Por mim, cumpro o meu papel e varro a minha testada. Vou abrindo estas cabeças rudas, para deixar nas mãos de cada um alguma arma útil amanhã. Mesmo que nenhum deles tenha consciência disso. Se assim não fosse, havia de me acontecer a mim pior que ao padre.
É segunda-feira de Páscoa. E todos os anos, na segunda-feira de Páscoa, acontece a mesma coisa. Sua reverência sai de casa, vermelhusco e azamboado ainda, a arrastar o corpo mole até se desfazer dele num banco da velha Dodge amarela, que aí passa ao meio dia. Vai à vila, dizem as línguas más, sossegar a consciência junto do arcipreste, e confessar o pecado da bebedeira pascal. É assim todos os anos, toda a gente conhece o ritual, e olha o vulto hesitante do padre com tolerância ou desprezo, conforme o caso de cada um.
Já é sabido, depois da missa vem o almoço, e pelas três da tarde o compasso começa. As primeiras casas são as da rua de cima, atrás da fonte, e os homens adiantam-se para não serem apanhados em falso, seria grande heresia. Nas outras bem pode o dono gozar mais um migalho no adro. A função só termina já noite cerrada e o padre vai alargando os seus vagares, à medida que os copos de vinho fino se lhe acumulam no estômago, e a litania das bênçãos dá em sair-lhe mais empastada da garganta.
Vai o da campainha lá na frente, um garoto qualquer, a chocalhar o badalo por tudo e por nada, a anunciar o movimento. Depois vem o da cruz, homem maduro, de opa avermelhada. Entra sisudo e oferece a prata em volta aos beiços da assembleia, ainda não terminou a roda inteira e já o padre está chegando. A casa é térrea e mal iluminada, e o denso vulto atravessando a soleira mergulhou o adjunto na obscuridade. Há saudações canónicas ao bem-estar dos corpos e ao sossego dos espíritos, aleluia aleluia, toda a gente sabe de cor o salmejar mas apenas o padre o recita e alguns o tomam a sério, não quer vossa reverência um copo de vinho fino, uma fatia do nosso pão leve, Maria traz uma cadeira aí do quarto.
Discreto entrou o que recolhe os óbolos, ora a moeda presa nos lábios duma laranja, ora o donativo escuso na reserva dum envelope, di-lo-ão mais generoso. Inventam os homens estas cerimónias e nós ficamos ao certo sem saber. Traz o rapazote um saco pequeno de veludo encarnado, de vez em quando toma-lhe o peso com ambas as mãos e alegra-se de verdade, sem saber porquê, à medida que o vê ganhar corpo e substância. O saco tem laços de garrote, a cada função compete a conveniente palamenta, que a igreja não dispensa. E estes são tempos de ocorrência abundosa de meios, os humanos e os outros, vasto e submisso é o rebanho, não é o que se verá daqui por uns anos, um dia lá chegaremos.
Este do saco há-de ser rapaz de confiança, sabido como é dispor o demo de muitas artimanhas e vastíssima experiência em malas-artes. Ora desviar para bolso próprio o que à santa igreja mais convém seria perdição do pecador e grave dano do padre. Por isso escolhe sempre um moço de família para a função. Desde há uns anos, para evitar as tentações mais correntias, vem-na ele reservando a um rapazito que tenho aqui na escola, não sei com que proveito, do padre falo, é claro. Por enquanto é ele atilado o que basta, na aula pelo menos, quanto ao resto não porei as mãos no lume. Consta que o padre o tem encomendado para seguir o seminário, única forma de fugir à fatídica enxada, talvez venha ele a escrever estas histórias que por aqui hoje acontecem, um dia Deus o dirá.
Casas há em que o padre se demora mais um pouco, e não será do calor da recepção, que em todo o lado é alvoroçada avonde. Talvez seja do conforto da casa, ou tão só desta sabida conivência com as famílias mais graúdas, os séculos ensinaram à igreja tais diplomacias, só as não vê quem não quer, a pobreza e a humildade pertencem ao sermão e a igualdade só no céu a encontraremos, em na havendo. Por isso aceita agora o padre sentar-se no velho canapé, ajeita-lhe a dona da casa as almofadas em volta das cadeiras, ao menos tem o pobre, neste dia, direito a cuidados de mulher.
Estende sua reverência um pouco as pernas, entorpecidas do vasto caminhar, enquanto corresponde à geral alegria dos rostos e à particular disposição do dono da casa, não há como este júbilo no coração dos humildes. E a nós que nos importam as fraquezas dos homens se afinal o que conta é esta conivência, este reconhecimento dos interesses mútuos, tirai às gentes estes rituais e a vida será logo um vale de lágrimas, sem interregnos nem sentido, um chapinhar na lama dos caminhos. Porém hoje o mesmo Cristo ressuscitou dos mortos, aleluia aleluia, vai mais um copinho antes da partida, senhor abade.
Cá fora vai a tarde escurecendo, mal se distinguem ao longe os campos de centeio, verdes cabeleiras a ondear ao vento, nem se define já com precisão a cor dos lilases a espreitar à esquina das hortas. Ficou só o rescendente aroma a espalhar-se por estas fragas do Cabeço, sete casas nos faltam antes de recolher à sacristia e arrumar a palamenta, aleluia aleluia.
No fim do compasso, cansado o corpo de tais trabalheiras e fatigada a alma destas desobrigas, recolhe o padre em casa toda a quadrilha. É o momento do caldo verde e do galo capão em molho de vilão. Pois que se pode outra vez comer carne lá estão as mãos da velha cozinheira afeitas ao pitéu. Exultam os estômagos da rapaziada, que o mais sacrificado foi o galaroz. Mas cada um tem seu destino e hora, e os deste há muito eram conhecidos, só ele talvez os não soubesse. O padre pôs-se à vontade, libertou finalmente os pés nas chinelas de trapo, tira o cabeção e abate as defesas perante o garrafão de tinto. Isto vem a produzir momentos de risada aberta e sã camaradagem, parece isto uma santa irmandade primitiva, e acaba por levar a um pesadiço torpor, rebolam entarameladas as palavras nos beiços orlados de gordura, que a gente é de gesto rude, e já as ideias se enovelam, parecem tropeçar umas nas outras. É tempo de deixar aberto o campo ao sono, amanhã voltaremos a ver-nos, quem sabe se ainda nos lembraremos disto. Mas o melhor é que nos não lembremos.
A Dodge amarela já lá vai, uma chiadeira de molas nos poços do macadame, será do peso do padre, Santa Eulália o acompanhe. Tem ele um automóvel aí, numa garage improvisada lá para os fundos do povo. Para o que lhe havia de dar, um dia apareceu aí com o animal, espécie de cavalgadura sem ferraduras, preto retinto com dois enormes olhos de sapo no focinho, a encimar uma larga dentuça de varetas de metal, não sabe a gente se vai a morder ou se vai a sorrir. Foi uma exaltação na garotada, e tão grande era a nuvem de pó na estrada como a fumarada escura que lhe escapava das tripas ruidosas. Mas o padre, ao que consta, não se ajeita bem com a alimária. Um dia destes quis pô-la ao sol, e só à custa de muita força de braços ela soube mover-se. Parece que os ratos já tinham aproveitado o estofo dos bancos para fazerem criação, quem vai chamar-lhes parvos. Em todo o caso, mesmo que estivesse o animal disponível para a caminhada, dez quilómetros para cima com outros tantos para baixo, não no estaria hoje o padre, com a celebreira que ainda arrasta.
Bem vistas as coisas, tolerância com ele não me falta. Uma mulher é diferente. Mas não se enterra assim um homem sozinho numa aldeola que nem vem no mapa, sem ter quem o use e o cuide, à sua volta uma caterva de aldeãos sujos e miseráveis, crendo no céu e no inferno como lugares físicos e verdadeiros, triste rebanho bíblico a viver no esterco com ninhadas de filhos, e a pedirem fiado na venda, para se alumiarem, meio litro de petróleo que chega no carrão, de mês a mês.
Fica o homem confinado entre a sacristia e o altar-mor, num gineceu de bafio, obrigado a acreditar nas trapaceiras que infantilizam mais a desgraçada gente, a prometer-lhes a eterna ventura no além, para que eles aceitem resignados a miséria em que vivem, para que eles continuem a suportar a canga do servilismo até ao último sopro, os bens deste mundo não são dos bem-aventurados, porque deles é o reino dos céus e só esse contará. Levantam-se, noite ainda, e fazem troar pelas calçadas os tamancos ferrados de pau para acudirem à rega da horta de que se alimentam, para sacharem o milho que tratam às terças com o dono da terra, para segarem, no corgo, a erva da vitela que trazem ao meio-ganho, para cevarem o porco que hão-de levar à feira de Agosto, e de que esperam algum sobejo depois de pagar a renda, depois de entregar a côngrua, depois de comprar uns farrapos aos filhos nas tendas ambulantes.
Levantam-se gelados de frio para apanharem as castanhas nos soitos do senhor conde, de que hão-de receber a mais minguada parte, e lá vão, ainda a manhã vem em Castela, a picareta às costas e o gasómetro de acetileno na mão, a caminho das minas da serra, as botas de pneu já na última e os pés enterrados na lama das galerias, um dia, que ainda vem longe, vão todos empenhar-se e pagar a um passador que os leve daqui para fora, hão-de passar a fronteira a salto, de noite, como ladrões de quinta, hão-de cruzar a pé serras geladas fugindo aos carabineiros, porque essa há-de ser a única forma de escapar a esta miséria.
Por enquanto levantam-se cedo, ainda meninos, e vão guardar as ovelhas merinas dum doutor qualquer por esses montes, pobres enjeitados cujo fito maior é escapar à fome, é poder adormecer à noite sem o relógio da barriga a dar horas. Conhecem as chalanas pelo nome e pelas marcas da pelagem, e levam de farnel um bocado de pão e figos secos numa meia velha da patroa, e lá vão, a sonhar com os vermelhos de anilina com que hão-de pintar o rebanho em chegando a festa da Senhora da Saúde. Hão-de dar três voltas à capela com o carneiro enfeitado à frente, a cabeça do rebanho irá juntar-se à cauda e então há-de o pastor sair da roda e ver o gado a girar, à volta da santinha que o guarda das doenças, e há-de ser então tal padre, tal pastor, nem sempre a comparação nos sai assim tão exacta e percuciente, com perdão da palavra.
E havemos então de ver se o pregador põe a chorar ou não o mulherio na missa da capela, caso em que se dará por bem empregue o dinheiro que ganhou. Vede, irmãos e irmãs, como sois indignos da misericórdia de Deus, porque chafurdais no pecado e mantendes cerrados os ouvidos à voz benigna do Senhor, e cultivais o orgulho e a soberba quando devíeis ser submissos e obedientes diante da palavra da Santa Madre Igreja e das autoridades, pois não há em todo o mundo um jardim de paz e de ventura como esta nossa pátria eleita pela Virgem para sua morada na terra, e tudo isto é obra e sacrifício dos sábios governantes que Deus nos mandou e que vós não respeitais cabonde, vede só o que vai de guerra por esse mundo, mormente a desgraça dos nossos vizinhos espanhóis que Deus, na sua infinita misericórdia, acabou por salvar. Por isso três vezes amaldiçoado há-de ser aquele que não fechar os olhos do corpo e da alma às tentações e às falácias do mundo, e aquele que praticar a soberbia e a vaidade, e a ambição e a inveja, pois bem sabeis, irmãos e irmãs, que Deus desprezará o primeiro que na fila se colocar para receber no dia fatal os presentes divinos, e lhe pegará pelas orelhas, e o expulsará para o último lugar da divina quermesse.
Fica o homem, coitado, preso no que diz, condenado a acreditar naquilo que lhe resta, em verdade, em verdade vos digo, que já não sei se vos digo aquilo em que acredito, ou se creio, afinal, naquilo que vos digo. E assim eu compreendo o pobre padre, que se adormece no vinho, outros descambarão em práticas mais inadequadas, quem sabe se mais humanas. Por mim, cumpro o meu papel e varro a minha testada. Vou abrindo estas cabeças rudas, para deixar nas mãos de cada um alguma arma útil amanhã. Mesmo que nenhum deles tenha consciência disso. Se assim não fosse, havia de me acontecer a mim pior que ao padre.
sexta-feira, 2 de abril de 2010
A via estreita da retoma
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
Durante muitos anos, os economistas persistiram na ideia errónea de que o capital e o trabalho eram os únicos factores da produção, e que eles, e só eles, determinavam o crescimento económico. Verificou-se depois que a fórmula era insuficiente. Era necessário algo mais para explicar o crescimento.
O economista americano Robert Solow, prémio Nobel em 1987, introduziu o factor tecnológico como forma de melhor justificar a evolução do PIB. Mas concluiu que existia uma parcela residual inexplicável. E foi Ayres, quando aportou o factor energético, quem resolveu definitivamente o problema.
Com efeito, Robert Ayres demonstrou que 75% do crescimento do PIB mundial pode ser explicado pelo crescimento do consumo energético, mais propriamente pela energia que pode ser transformada em trabalho, a exergia, como ele lhe chamou. Ayres, que além de economista era físico, inspirou-se nos princípios da termodinâmica para formular a sua teoria do crescimento.
Quatro são, pois, os factores utilizados para explicar o crescimento: o capital, o trabalho, a tecnologia e a energia. Para modificar a variável dependente desta equação (o crescimento), temos de actuar sobre alguma, ou algumas, daquelas quatro variáveis independentes que o explicam. E este é o desafio que o mundo enfrenta para sair da crise, para estimular a retoma, para relançar o emprego. Enfim, para regularizar as contas públicas sem ter de seguir pela via mais dura dos cortes salariais ou da subida dos impostos.
É cada vez mais evidente a importância do factor energia na equação do crescimento económico. Durante muitos anos, a facilidade de obtenção dessa energia camuflou e desvalorizou este factor. De alguma forma, pensava-se que o estímulo financeiro (injectando cada vez mais capital sob a forma de crédito) era suficiente para provocar o crescimento, e foi com esta receita que a economia cresceu durante o último século. A energia para sustentar esse crescimento aparecia sempre, parecia inesgotável. Mas foi também esta a receita que conduziu à crise em que agora estamos mergulhados.
Hoje não restam dúvidas de que o crescimento populacional e o crescimento económico do último século resultaram da disponibilidade de uma energia barata e abundante: a energia fóssil. E, pela sua importância no transporte e em inúmeras aplicações industriais, o petróleo ocupou nesse quadro um lugar de destaque.
Chegámos, porém, a um momento em que já não é possível escamotear factos determinantes. Desde 2005 que a produção mundial de petróleo estagnou, e tudo leva a crer que não sofrerá crescimentos. Estamos confrontados com o pico do petróleo.
A energia continua a ser abundante, mas começa a deixar de ser barata, e essa é a razão pela qual a situação se complicou. As novas formas de energia são uma falsa promessa, pois são caras e menos convenientes do que o petróleo. As jazidas de crude entretanto descobertas (como as de águas profundas do Brasil, e os xistos betuminosos do Canadá ou do Orinoco, na Venezuela) têm custos de exploração muito mais elevados. A energia consumida na extracção dum barril destas jazidas aumentou muito, e o índice de retorno é cada vez menor.
Chegou o momento de fazer opções. Portugal enfrenta hoje uma situação difícil, para a qual apenas uma retoma da economia (traduzida num rápido e consistente crescimento do PIB) parece a solução “boa” e desejável. Mas é preciso ver como.
Esqueça-se a via financeira, monetarista ou keynesiana. Duvide-se das energias alternativas. Aposte-se antes no factor trabalho, condimentado com uma mais-valia tecnológica que nós, portugueses, já provámos ser capazes de incorporar.
Isto só será possível com uma mudança de políticas, e até de mentalidades. É uma via estreita, onde o conceito de “transição” desempenhará um papel decisivo.
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
Durante muitos anos, os economistas persistiram na ideia errónea de que o capital e o trabalho eram os únicos factores da produção, e que eles, e só eles, determinavam o crescimento económico. Verificou-se depois que a fórmula era insuficiente. Era necessário algo mais para explicar o crescimento.
O economista americano Robert Solow, prémio Nobel em 1987, introduziu o factor tecnológico como forma de melhor justificar a evolução do PIB. Mas concluiu que existia uma parcela residual inexplicável. E foi Ayres, quando aportou o factor energético, quem resolveu definitivamente o problema.
Com efeito, Robert Ayres demonstrou que 75% do crescimento do PIB mundial pode ser explicado pelo crescimento do consumo energético, mais propriamente pela energia que pode ser transformada em trabalho, a exergia, como ele lhe chamou. Ayres, que além de economista era físico, inspirou-se nos princípios da termodinâmica para formular a sua teoria do crescimento.
Quatro são, pois, os factores utilizados para explicar o crescimento: o capital, o trabalho, a tecnologia e a energia. Para modificar a variável dependente desta equação (o crescimento), temos de actuar sobre alguma, ou algumas, daquelas quatro variáveis independentes que o explicam. E este é o desafio que o mundo enfrenta para sair da crise, para estimular a retoma, para relançar o emprego. Enfim, para regularizar as contas públicas sem ter de seguir pela via mais dura dos cortes salariais ou da subida dos impostos.
É cada vez mais evidente a importância do factor energia na equação do crescimento económico. Durante muitos anos, a facilidade de obtenção dessa energia camuflou e desvalorizou este factor. De alguma forma, pensava-se que o estímulo financeiro (injectando cada vez mais capital sob a forma de crédito) era suficiente para provocar o crescimento, e foi com esta receita que a economia cresceu durante o último século. A energia para sustentar esse crescimento aparecia sempre, parecia inesgotável. Mas foi também esta a receita que conduziu à crise em que agora estamos mergulhados.
Hoje não restam dúvidas de que o crescimento populacional e o crescimento económico do último século resultaram da disponibilidade de uma energia barata e abundante: a energia fóssil. E, pela sua importância no transporte e em inúmeras aplicações industriais, o petróleo ocupou nesse quadro um lugar de destaque.
Chegámos, porém, a um momento em que já não é possível escamotear factos determinantes. Desde 2005 que a produção mundial de petróleo estagnou, e tudo leva a crer que não sofrerá crescimentos. Estamos confrontados com o pico do petróleo.
A energia continua a ser abundante, mas começa a deixar de ser barata, e essa é a razão pela qual a situação se complicou. As novas formas de energia são uma falsa promessa, pois são caras e menos convenientes do que o petróleo. As jazidas de crude entretanto descobertas (como as de águas profundas do Brasil, e os xistos betuminosos do Canadá ou do Orinoco, na Venezuela) têm custos de exploração muito mais elevados. A energia consumida na extracção dum barril destas jazidas aumentou muito, e o índice de retorno é cada vez menor.
Chegou o momento de fazer opções. Portugal enfrenta hoje uma situação difícil, para a qual apenas uma retoma da economia (traduzida num rápido e consistente crescimento do PIB) parece a solução “boa” e desejável. Mas é preciso ver como.
Esqueça-se a via financeira, monetarista ou keynesiana. Duvide-se das energias alternativas. Aposte-se antes no factor trabalho, condimentado com uma mais-valia tecnológica que nós, portugueses, já provámos ser capazes de incorporar.
Isto só será possível com uma mudança de políticas, e até de mentalidades. É uma via estreita, onde o conceito de “transição” desempenhará um papel decisivo.
quinta-feira, 1 de abril de 2010
A arma dos pobres
Para além das capacidades específicas duma esquadrilha de submarinistas da Armada, nunca vislumbrei o que é que o país perdia, não tendo submarinos. Nem vislumbro o que é que o país ganha, tendo-os ao preço a que estão.
Aqui há um par de anos, encontrei num jantarinho do liceu um almirante que foi comigo à escola. E logo lhe enderecei as minhas dúvidas sobre a aquisição de tal artilharia.
- O submarino é a arma dos pobres! - foi o que me respondeu, enigmático como a pitonisa.
Será verdade. Porém, ao que parece, quem dispara os torpedos não são eles.
Aqui há um par de anos, encontrei num jantarinho do liceu um almirante que foi comigo à escola. E logo lhe enderecei as minhas dúvidas sobre a aquisição de tal artilharia.
- O submarino é a arma dos pobres! - foi o que me respondeu, enigmático como a pitonisa.
Será verdade. Porém, ao que parece, quem dispara os torpedos não são eles.
"A crise mesmo"
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
Num dos últimos “Prós e Contras” da RTP1, em que se debateu a crise que a todos fustiga, participaram alguns dos mais significativos representantes da inteligência portuguesa. Entre eles o filósofo José Gil, o gestor Pires de Lima, o administrador da Gulbenkian Diogo Lucena e o estrangeirado Eduardo Lourenço. O mote era a política e a economia. E procurava saber-se quem comanda quem, no mundo de hoje.
Confesso ouvir sempre com agrado o discurso esclarecido de Eduardo Lourenço. Logo a abrir, o filósofo de S. Pedro do Rio Seco (que fala como quem reza) deixou claro que não percebia nada de economia, e se sentia melhor a falar de política. Começou por dizer que esta não é uma crise como as outras. Esta é “a crise mesmo”, o epicentro de um tsunami. E lembrou que, na crise dos anos 30 do século passado, havia uma alternativa. Havia um grupo que propunha uma via diferente, prometendo a utopia de um outro mundo com mais igualdade e mais solidariedade. Talvez quisesse dizer que naqueles anos havia Marx (que chegou, aliás, a referir) e havia Engels, e que sempre tínhamos a Internacional Socialista. Mas desta vez não existe alternativa. Como se dissesse que desta vez ninguém sabe o que está do outro lado, porque outro lado não há. E que andamos todos às apalpadelas, à procura da saída.
Outros falaram, e pouco acrescentaram aos vulgares lugares comuns sobre a matéria. Não se viu aparecer um fio condutor para organizar as ideias. Um jovem académico começou por rejeitar enfaticamente as opiniões alheias. Lembrou que um dos pressupostos da democracia é a promessa de uma prosperidade contínua. E alertou para o risco de, no futuro, essa promessa poder não se cumprir. Mas não arriscou vaticínios nem tirou conclusões.
Por um momento pareceu tocar “no quente” da questão, quando se referiu ao problema demográfico. Mas perdeu-se em conjecturas, falou do envelhecimento populacional, da falta de tempo para fazer filhos, e pouco mais acrescentou.
Depois falou-se muito da Europa (um dos dois ocidentes, pois que o outro é a América), que foi espaço e matriz de cultura planetária, e mais parece ter deixado de ser actor no palco onde se jogam os destinos do mundo. Falou-se dos países emergentes, da China e da Índia, falou-se da pobreza e das gritantes disparidades. Mas nenhum dos intervenientes foi capaz de descortinar o âmago da crise, de pôr o dedo na ferida, de sondar a suas razões mais profundas.
Ora a presente crise vinha anunciada desde 1972, com a publicação de Limites do Crescimento (Limits to Growth) do Clube de Roma. Mas o alerta passou ao lado do sistema. Porque a mensagem essencial da equipa de Denis Meadows era uma verdade incómoda que interessava negar, pois ela questionava a essência do modelo económico vigente: a necessidade de crescer continuamente, para poder manter-se. Não ensinavam os manuais de economia que só com o crescimento se alcança o pleno emprego?
Mais do que uma opção, a globalização, que veio a seguir, foi a via natural que asseguraria esse crescimento. Foi a continuação lógica do pensamento liberal, impulsionada pela “mão invisível” de Adam Smith. Entretanto a população disparou, urbanizou-se, consumiu, viajou, poluiu, e durante os sessenta anos do pós-guerra tudo cresceu exponencialmente. E a mente humana, que não entende bem as consequências do crescimento exponencial, deixou-se iludir pela eternidade da Idade do Ouro e do consumismo moderno, e acreditou que a festa iria durar sempre!
Mas a realidade é implacável, e as leis da Física ainda são piores. Cada vez mais parece confirmar-se que atingimos os limites do crescimento. Afinal Malthus e Meadows (Limits to Growth) tinham razão. Porém, sem crescimento, a economia de mercado pura e simplesmente não funciona. E estão em causa os fundamentos da riqueza das nações.
A energia abundante e barata está a esgotar-se. Há 5 anos que a produção de petróleo estacionou nos 85 milhões de barris por dia. O combustível que foi a principal causa do progresso dos últimos 100 anos escasseia ou encarece. A população cresceu para lá dos limites daquilo que o planeta pode suportar, tendo sobretudo em conta que os hábitos de consumo se alargaram a centenas de milhões. Contra todo o senso, a população continua a crescer, fala-se de 9 mil milhões em 2050. O estado social e protector corre o risco de colapsar!
A complexidade da economia e do sistema social subjacente começa a ter custos de manutenção demasiado elevados. Podemos estar a pagar por essa complexidade um custo superior aos benefícios que ela traz. O remédio é mudar de paradigma, é buscar rapidamente a via de transição para uma economia e uma cultura pós-carbono. Há quem acredite ser ainda possível fazê-lo sem convulsões.
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
Num dos últimos “Prós e Contras” da RTP1, em que se debateu a crise que a todos fustiga, participaram alguns dos mais significativos representantes da inteligência portuguesa. Entre eles o filósofo José Gil, o gestor Pires de Lima, o administrador da Gulbenkian Diogo Lucena e o estrangeirado Eduardo Lourenço. O mote era a política e a economia. E procurava saber-se quem comanda quem, no mundo de hoje.
Confesso ouvir sempre com agrado o discurso esclarecido de Eduardo Lourenço. Logo a abrir, o filósofo de S. Pedro do Rio Seco (que fala como quem reza) deixou claro que não percebia nada de economia, e se sentia melhor a falar de política. Começou por dizer que esta não é uma crise como as outras. Esta é “a crise mesmo”, o epicentro de um tsunami. E lembrou que, na crise dos anos 30 do século passado, havia uma alternativa. Havia um grupo que propunha uma via diferente, prometendo a utopia de um outro mundo com mais igualdade e mais solidariedade. Talvez quisesse dizer que naqueles anos havia Marx (que chegou, aliás, a referir) e havia Engels, e que sempre tínhamos a Internacional Socialista. Mas desta vez não existe alternativa. Como se dissesse que desta vez ninguém sabe o que está do outro lado, porque outro lado não há. E que andamos todos às apalpadelas, à procura da saída.
Outros falaram, e pouco acrescentaram aos vulgares lugares comuns sobre a matéria. Não se viu aparecer um fio condutor para organizar as ideias. Um jovem académico começou por rejeitar enfaticamente as opiniões alheias. Lembrou que um dos pressupostos da democracia é a promessa de uma prosperidade contínua. E alertou para o risco de, no futuro, essa promessa poder não se cumprir. Mas não arriscou vaticínios nem tirou conclusões.
Por um momento pareceu tocar “no quente” da questão, quando se referiu ao problema demográfico. Mas perdeu-se em conjecturas, falou do envelhecimento populacional, da falta de tempo para fazer filhos, e pouco mais acrescentou.
Depois falou-se muito da Europa (um dos dois ocidentes, pois que o outro é a América), que foi espaço e matriz de cultura planetária, e mais parece ter deixado de ser actor no palco onde se jogam os destinos do mundo. Falou-se dos países emergentes, da China e da Índia, falou-se da pobreza e das gritantes disparidades. Mas nenhum dos intervenientes foi capaz de descortinar o âmago da crise, de pôr o dedo na ferida, de sondar a suas razões mais profundas.
Ora a presente crise vinha anunciada desde 1972, com a publicação de Limites do Crescimento (Limits to Growth) do Clube de Roma. Mas o alerta passou ao lado do sistema. Porque a mensagem essencial da equipa de Denis Meadows era uma verdade incómoda que interessava negar, pois ela questionava a essência do modelo económico vigente: a necessidade de crescer continuamente, para poder manter-se. Não ensinavam os manuais de economia que só com o crescimento se alcança o pleno emprego?
Mais do que uma opção, a globalização, que veio a seguir, foi a via natural que asseguraria esse crescimento. Foi a continuação lógica do pensamento liberal, impulsionada pela “mão invisível” de Adam Smith. Entretanto a população disparou, urbanizou-se, consumiu, viajou, poluiu, e durante os sessenta anos do pós-guerra tudo cresceu exponencialmente. E a mente humana, que não entende bem as consequências do crescimento exponencial, deixou-se iludir pela eternidade da Idade do Ouro e do consumismo moderno, e acreditou que a festa iria durar sempre!
Mas a realidade é implacável, e as leis da Física ainda são piores. Cada vez mais parece confirmar-se que atingimos os limites do crescimento. Afinal Malthus e Meadows (Limits to Growth) tinham razão. Porém, sem crescimento, a economia de mercado pura e simplesmente não funciona. E estão em causa os fundamentos da riqueza das nações.
A energia abundante e barata está a esgotar-se. Há 5 anos que a produção de petróleo estacionou nos 85 milhões de barris por dia. O combustível que foi a principal causa do progresso dos últimos 100 anos escasseia ou encarece. A população cresceu para lá dos limites daquilo que o planeta pode suportar, tendo sobretudo em conta que os hábitos de consumo se alargaram a centenas de milhões. Contra todo o senso, a população continua a crescer, fala-se de 9 mil milhões em 2050. O estado social e protector corre o risco de colapsar!
A complexidade da economia e do sistema social subjacente começa a ter custos de manutenção demasiado elevados. Podemos estar a pagar por essa complexidade um custo superior aos benefícios que ela traz. O remédio é mudar de paradigma, é buscar rapidamente a via de transição para uma economia e uma cultura pós-carbono. Há quem acredite ser ainda possível fazê-lo sem convulsões.
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