sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

As Aves 5

Gaspar, que é o fumador, apaga cuidadosamente o cigarro, enterra a prisca no chão, vagueia no céu a lua, de barro da Andaluzia, quanto mais andas na rua, mais tempo ficas p´ra tia, isto ouviríamos nós se ele traduzisse em linguagem audível o que no pensamento lhe vai, há momentos assim, e gente desta, com olhos que vêem para além das coisas e do que nelas está, olha a novidade, o que lá está qualquer um pode ver, cego não sendo, uma lua, um céu fresco, três homens, pedras e moitas. O compasso é de espera e de abandono, já foi dito que a lua lá vai banhando o céu, do que se passa na alma deste homem não tivemos nós nenhuma confidência, fiquemo-nos por tais manifestações líricas, acaso espelharão elas o que por lá vai, tempestades ou ânsias, dúvidas ou medos, inseguranças quanto baste, e paixões as que houver.

A lua, primeiríssimo astro feminino, é aqui motivo principal. É de barro andaluz, a cor é quente e a matéria mais que todas terrena e primordial, se dela o Criador lançou mão para fabricar a matriz de todos nós. O campo de sugestões está demarcado, e a quem não reconhecer o peso da Andaluzia nestes casos, baste-lhe o contraste de uma lua, por exemplo, finlandesa. Além disso esta lua vagueia, e verbos há que são fatais quando aparecem, haverá contradição neste homem, um desejar e um temer, algum querer e não alcançar, quem sabe até se algum pleito em vias de perder-se, ou então esta mais antiga e mais incerta guerra do mundo, entre homem e mulher, se não for antes a guerra de um homem consigo mesmo. Tudo são congeminações nossas, mas a censura aí fica, tão claramente expressa, a quem se dirigirá ela. E, a propósito, notemos nós este semblante que se carregou, a fachada que um ricto endureceu, este olhar anuviado por impalpável brisa, acaso um pestanejar da lua fatigada, ou fiapo de nuvem que passou.

À espera deste pestanejar de faróis estava o mestre passador, cujo vamos! decidido cortou divagações ou o mais que fossem, conflitos ou enleios. O carro passou devagar na carreteira de macadame, os faróis abriram dois leques sobre o nada da paisagem nocturna, se alguma coisa era de mencionar não a notámos, que estes três já lá vão em marcha acelerada, o objectivo está ali à vista naquela berma ao fundo, este chão foi lavrado, a terra é mole, os pés enterram-se. Vou ali já venho, deu o carrouma volta no cimo daquele outeiro, ou porque o espaço é mais amplo, ou por hábito de outras repetidas viagens, não nos dizem as rodas de borracha se reconhecem este piso, nem os olhos de luz sejá iluminaram este chão, entrem rápido, não convém parar aqui muito tempo. Isto recomendou ainda o mestre,  passador, e de facto entre quedar-se o carro, apear-se esta mulher e alçar o banco dianteiro, abrindo caminho para os lugares traseiros, não decorreu um ai. Os gestos são precisos e eficazes, parecem estudadas partes de um mais amplo e desconhecido conjunto, quem é este homem novo que nos conduz, ou esta jovem mulher que o acompanha, o nosso caminheiro que já desapareceu na noite, quem será, se nos tornaremos a ver, até nos esquecemos de fazer as despedidas. (cont.)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

As Aves 4

Agachados na sombra, que nem sempre o luar triunfante é uma bênção dos deuses da luz, fazem-nos estes lembrar três conspiradores passando palavra no descampado, se é do preço da jorna que se trata ou se das oito horas da mesma nunca o saberemos, desnecessária congeminação esta que só imagens antigas alimentam, imaginações nossas deslocadas num tempo em que já não há patrulhas a cavalo pelos montes, de longe pastoreando ranchos de proletários descontentes, nem searas daqui se avistam, este campo é um pedregulhal cerrado, giestal bravio e um carrasco de horas em quando, nada aqui poderia medrar, que é das moitas, roeram-nas as cabras.

Estão os três homens estendidos no chão, cosidos com o terreno como já se tornou hábito ouvir, cada um deles procurando moldar os volumes do corpo às ásperas incomodidades naturais. O mestre passador ainda vá, é homem que não estranha intimidades com terras e mato, que sempre neles viveu e não se lhe dói o rude fato, não estes que são gente de cidade e usam vinco na calça, perderam aqui a estranheza, se não a relutância, que peso a isso os constrangeu é coisa que viremos a saber. Este da derradeira levantou dois calhaus que ali dormem, para acomodar uma perna cansada, cuidado com os lacraus, foi a voz sussurrada co capitão, se tal terá sido a justa palavra, há coloridos modos de dizer que os homens usam, como alcrários, o bicho é o mesmo e nem a peçonha varia, mas outro é o sabor na língua, que nem em todos os livros vem, por isso traduzimos nós, para alguma coisa aqui haveríamos de estar. Entendeu-o bem este homem, ou intuiu apenas, a perna é que não mais mexeu.

Nem a aragem, no suave céu. Sobe lento o fumo do cigarro que este esconde no côncavo das mãos, sinal de à vontade que baste no meio da tensão crispada que temos observado, o silêncio geral, o ramo que à passagem se ampara, o leve pisar, são gestos discretos de quem se quer calado e evita restolhadas. O geral dos homens, no comum da situação, aproveitaria tão propositado adjunto para das que fazer à língua, bendito instrumento muscular que, por força de tanto exercício, raramente sofre de paralisias, encordoamentos ou outras afecções. Bendigamos nós, de passagem, este magnífico dom, afinal era este o fogo de Prometeu, e bastas razões de queixa tiveram os deuses maiorais, se com ele os homens fazem e desfazem mundos, se criam ou aniquilam a si próprios, se eregem ou destronam os mesmos deuses. Não, porém, estes três que aqui vemos, destes silenciosos homens falamos. Porventura o simples facto de aqui estarem, neste lugar e nesta postura, os une e os identifica, nada têm a acrescentar ou a esclarecer, há casos assim em que os dados estão lançados, quanto ao resto só o silêncio é certo. (cont)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

As Aves 3

O da frente, mais velho, leva uma boina espanhola. E, se não nos enganam os sinais do atavio, o coçado das calças de pana e as alparcas leves de borracha, sem erro podemos considerá-lo passador. Entenderemos agora por que o vimos ali atrás, sentado bem três quartos de hora perto da estrada, alheio como se nada mais esperasse que o cair da noite, atento apenas à passagem dum carro branco, peuqeno, quatro passageiros, dos quais uma mulher nova. Vimos sair os viajantes do banco de trás, vimos o carro inverter a marcha e dirigir-se à portagem da alfândega, vimos três homens avançar para leste, a corta-mato, vê-la-íamos, com este luar, se a linha de fronteira estivesse marcada no chão, nada nos falta para concluir que se trata aqui de passar a salto a fronteira de Espanha.

Muitas voltas dá o mundo, o certo é que nalguma se há-de repetir. Preparemo-nos para a intervenção próxima do mesmo pequeno carro branco, agora já em carreteira espanhola, lá dentro um jovem casal que já passou a fronteira, atrás dois lugares vazios, se não é este o pezinho que ao meu sapato serve, onde estará.

Hevemos de reparar que vai mais afogueado o companheiro que na derradeira marcha, razão seria para que os outros o metessem no meio, por menos pesados erros tácticos está inchada a história de batalhas perdidas. Não sabemos nós de batalha que aqui se trave, ou será por tanto perigo haver na expedição que nenhuma hierarquia de galões se mostra nos ombros destes soldados. Tenhamos apenas por certo que, a haver derrota, dalgum canto sairá um general qualquer a salvar a honra dos que ficarem vivos, a justificar o sacrifício dos que vierem a morrer. Este da derradeira será um deles, ouve-se-lhe o tropeçar frequente, e, pior que tudo, já por duas vezes caiu, acaso tem pernas menos acostumadas a este rústico segredo de caminhar de noite por onde caminhos abertos não há, demais seria exigir que houvesse estradas reais para passar a fronteira a salto. Um dia virá esse tempo, a Europa será ela toda um lugar de encontro e livre trânsito, tanto como isso era nestes anos que o livre trânsito fazia falta, há dez anos que não temos visto mais que multidões de homens fugindo a salto por estes e outros montes, por que será, que febre lhes deu.

Perto estará a linha que dos castelhanos nos separa, tão roída de séculos no traçado que nos é impossível distingui-la, acaso a saberão de cor os guardas e mais carabineiros por dever de ofício, quem a conhece bem é este mestre passador, às vezes de pão ou de café, se não de simples caramelos viuda ou mais valiosos minerais, é de homens a carga desta vez, que por seu pé marcham enquanto nos folgam os ombros. Porém, sendo gente importante ou não, aumenta a responsabilidade, que estes não podemos alijá-los num valado qualquer, se um guardiãovier a mostrar-se mais activo. Acautelemo-nos no esconso desta moita, que tanto nos pediram sem mais nos explicar, isto é o que certamente exprime o gesto de mão do mestre passador, que acabámos de ver. (cont.)

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

As Aves 2

O outro que chegou é magro e decidido, se para o caso o dado é relevante, assim como a leve chuva que cai, antes nos fixemos nós nestes dois tons, a saber, o tom discreto em que a frase única foi dita, reservada, pessoal, clandestina se diria, eo tom voluntarioso e vivo de quem acende uma chama de coragem onde ela falta, fingida ou verdadeira coragem tanto monta, para alguma coisa ela servirá, só não sabe quem por elas nunca passou.

Nós passaremos ainda por uma rua de Olivais Norte onde outro homem nos espera num carro pequeno, os bombeiros ficam ali e são exactas as referências, lá está o outro viajante anichado no banco de trás, o carro é de facto minúsculo e escassa a bagageira, entendamos agora por que se impunha uma mala tão pequena e tão escassos meios de viagem. No restante do banco traseiro se ajeitou este homem, agora somos quatro e tantos ficaremos até chegar ao destino, uns ficam à espera dele, estes procuram-no, quem saberá dizer vantagens e razões nesta disparidade. Os cumprimentos foram breves, mais disseram os modos das palavras do que elas próprias, que o tempo é de partida e não de cortesias, terão estes viajantes outras mais fundas razões de entendimento do que a ligeireza das conversas, que tão poucas ouvimos enquanto durou a estrada e o dia se gastou.

A noite está aí, os dias de Fevereiro são pequenos. O homem atravessou um pequeno ribeiro, anos mais tarde virá ele a saber que da ribeira de Tourões se trata, se, por curiosidade, vier a procurar no mapa o insignificante risco azul, ainda assim mais fácil de pintar que de transpor. O luar nascente, escassamente embora, mostra duas pedras que em seu leito repousam, pé aqui, pé ali, lá fica para trás a verde cabeleira dos limos que ondulam na água sossegada, meu tempo de infância e de rãs, de águas tépidas nos charcos da ribeira e de risos na tremulina da tarde, o capitão andador já lá vai adiante, rodeia este homem uma giesta negral mais forte e aperta o passo.

Acaso sentirá ele nas orelhas as dentadas desta aragem nocturna, melhor podemos nós avaliá-las no contraste com o tépido casulo deste sofá que nos acolhe, vantagens, enfim, de leitor que descansadamente assiste ao formigar do mundo, sobretudo se queixarão os tenros lóbulos e a mais exposta ponta do nariz, o restante geral do corpo vai quente e confortável. Por experiência sabemos como é grande o poder calórico das emoções dos homens, se as temos sentido, não o sendo o do fraco tecido do casaco deste nocturno viajante, ou o das levíssimas botas que tem calçadas, talvez o do pouco esforço que a caminhada lhe vai exigindo.

Com menos atenção de ouvido apenas aqui detectaríamos uma respiração, sendo três os halos de vapor que de três bocas se soltam, três os barcos que assim procuram porto na vastidão escura deste indistinto mar da noite, com pouco mais nos daria a fantasia lugar para as três filhas do rei que esperam a nau catrineta, que mistério tem o aroma do laranjal que não exista neste céu, onde se dilui a fina neblina da noite, mais um pouco do fumo das chaminés de aldeia distante, um tanto da húmida paz dos ribeiros que por estes montes se passeiam, e outro tanto do éter suavíssimo que esta redonda lua cheia sobre o geral mundo vai espargindo.

Três são os viajantes. (...)

domingo, 14 de janeiro de 2024

As aves levantam contra o vento 1

Por enquanto nada sabemos do destino do homem que ali vai, em extremo concentrado no andamento das passadas que dá. Vemos que marcha atento e cabisbaixo, no gesto de quem poupa energias. Porém não tanto que perca de vista o andador que lhe vai na dianteira, obra de poucos metros, nem tão pouco que possa este limpo luar de Fevereiro lavar-lhe de sombras a barbada face. Nada sabemos, e dobrada razão é essa para atentarmos no leve pormenor, na mesquinha minúcia.cios 

Este gesto de andar por estes montes, igual seria se doutros montes se tratasse, o ar atento aos alçapões do terreno, agora velho restolho de pousio, há pouco bravio mato e padregal baldio, a controlada respiração que dos lábios lhe sai e aos ouvidos nos chega, bastm-nos para concluir que se trata de homam afeito ao campo. Será um caçador de vício, dos que em bando saem da cidade, quando para lebres e perdizes sopra anualmente a trombeta do juízo final. Mas este tempo é defeso, em primeiro, é insólita a hora para exercícios venatórios e escura em demasia para ajustadas pontarias em segundo, não se vê, este é terceiro, aràsma de fogo a denunciar intenções, nem, quarto e derradeiro, sombra de cão que essa injunção sustente. Assim nos cumpre o dever de ser minuciosos no exame, para evitar mal-entendidos e falsas bases de partida.

Há neste requebro de membros, no jeito como a perna que lançou a passada se amolda pelo joelho às fugas do terreno, no modo como o braço tenteia, a meia altura, o balanço requerido ao equilíbrio da rota, um grau de afeição e de familiaridade próprios só de jogos de campo já antigos. Sabemos que vem da grande cidade, já distante, que todo este dia o consumiu na apressada viagem que observámos, só interrompida para uma sopa caseira no primeiro andar da casa de pasto de Vila Velha, substanciosa sopa de feijão encarnado e uma estufada e dura vitela às fatias, lembremo-nos da insistente batida do velho relógio de coluna, a marcar o tempo e a urgência.

Vimo-lo, manhã cedo, ajeitar um par de pertences numa insignificante mala, avia-se em terra quem ao mar vai, pensámos nós, e não será grande o mar que este marinheiro espera, a julgar pela reduzida palamenta, uns pares de meias, duas camisas, nos olhos uma sombra, um tremor controlado de mãos, no final um olhar que passeou o espaço da sala, as paredes brancas, o colchão ali em pé, desajeitado, as duas mantas em que dormiu, o gesto de olhos é o de quem se despede e leva consigo mais do que tem na mão, a campainha tocou. São as nove horas prometidas, em baixo espera-nos um táxi, isto disse o homem que apareceu, enquanto lhe entregava um passaporte. O outro folheou-o, sorriu, ele há risos amarelos que não são de comprazimento, repetiu a leitura, Gaspar é o seu nome, se não condiz com o retrato que na primeira folha está cravado passa agora a condizer, as coisas são o que são, mas também aquilo que parecem. Fique então assente que, desde agora, este homem dá pelo nome de Gaspar. (cont.)