domingo, 14 de janeiro de 2024

As aves levantam contra o vento 1

Por enquanto nada sabemos do destino do homem que ali vai, em extremo concentrado no andamento das passadas que dá. Vemos que marcha atento e cabisbaixo, no gesto de quem poupa energias. Porém não tanto que perca de vista o andador que lhe vai na dianteira, obra de poucos metros, nem tão pouco que possa este limpo luar de Fevereiro lavar-lhe de sombras a barbada face. Nada sabemos, e dobrada razão é essa para atentarmos no leve pormenor, na mesquinha minúcia.cios 

Este gesto de andar por estes montes, igual seria se doutros montes se tratasse, o ar atento aos alçapões do terreno, agora velho restolho de pousio, há pouco bravio mato e padregal baldio, a controlada respiração que dos lábios lhe sai e aos ouvidos nos chega, bastm-nos para concluir que se trata de homam afeito ao campo. Será um caçador de vício, dos que em bando saem da cidade, quando para lebres e perdizes sopra anualmente a trombeta do juízo final. Mas este tempo é defeso, em primeiro, é insólita a hora para exercícios venatórios e escura em demasia para ajustadas pontarias em segundo, não se vê, este é terceiro, aràsma de fogo a denunciar intenções, nem, quarto e derradeiro, sombra de cão que essa injunção sustente. Assim nos cumpre o dever de ser minuciosos no exame, para evitar mal-entendidos e falsas bases de partida.

Há neste requebro de membros, no jeito como a perna que lançou a passada se amolda pelo joelho às fugas do terreno, no modo como o braço tenteia, a meia altura, o balanço requerido ao equilíbrio da rota, um grau de afeição e de familiaridade próprios só de jogos de campo já antigos. Sabemos que vem da grande cidade, já distante, que todo este dia o consumiu na apressada viagem que observámos, só interrompida para uma sopa caseira no primeiro andar da casa de pasto de Vila Velha, substanciosa sopa de feijão encarnado e uma estufada e dura vitela às fatias, lembremo-nos da insistente batida do velho relógio de coluna, a marcar o tempo e a urgência.

Vimo-lo, manhã cedo, ajeitar um par de pertences numa insignificante mala, avia-se em terra quem ao mar vai, pensámos nós, e não será grande o mar que este marinheiro espera, a julgar pela reduzida palamenta, uns pares de meias, duas camisas, nos olhos uma sombra, um tremor controlado de mãos, no final um olhar que passeou o espaço da sala, as paredes brancas, o colchão ali em pé, desajeitado, as duas mantas em que dormiu, o gesto de olhos é o de quem se despede e leva consigo mais do que tem na mão, a campainha tocou. São as nove horas prometidas, em baixo espera-nos um táxi, isto disse o homem que apareceu, enquanto lhe entregava um passaporte. O outro folheou-o, sorriu, ele há risos amarelos que não são de comprazimento, repetiu a leitura, Gaspar é o seu nome, se não condiz com o retrato que na primeira folha está cravado passa agora a condizer, as coisas são o que são, mas também aquilo que parecem. Fique então assente que, desde agora, este homem dá pelo nome de Gaspar. (cont.)