terça-feira, 16 de janeiro de 2024

As Aves 2

O outro que chegou é magro e decidido, se para o caso o dado é relevante, assim como a leve chuva que cai, antes nos fixemos nós nestes dois tons, a saber, o tom discreto em que a frase única foi dita, reservada, pessoal, clandestina se diria, eo tom voluntarioso e vivo de quem acende uma chama de coragem onde ela falta, fingida ou verdadeira coragem tanto monta, para alguma coisa ela servirá, só não sabe quem por elas nunca passou.

Nós passaremos ainda por uma rua de Olivais Norte onde outro homem nos espera num carro pequeno, os bombeiros ficam ali e são exactas as referências, lá está o outro viajante anichado no banco de trás, o carro é de facto minúsculo e escassa a bagageira, entendamos agora por que se impunha uma mala tão pequena e tão escassos meios de viagem. No restante do banco traseiro se ajeitou este homem, agora somos quatro e tantos ficaremos até chegar ao destino, uns ficam à espera dele, estes procuram-no, quem saberá dizer vantagens e razões nesta disparidade. Os cumprimentos foram breves, mais disseram os modos das palavras do que elas próprias, que o tempo é de partida e não de cortesias, terão estes viajantes outras mais fundas razões de entendimento do que a ligeireza das conversas, que tão poucas ouvimos enquanto durou a estrada e o dia se gastou.

A noite está aí, os dias de Fevereiro são pequenos. O homem atravessou um pequeno ribeiro, anos mais tarde virá ele a saber que da ribeira de Tourões se trata, se, por curiosidade, vier a procurar no mapa o insignificante risco azul, ainda assim mais fácil de pintar que de transpor. O luar nascente, escassamente embora, mostra duas pedras que em seu leito repousam, pé aqui, pé ali, lá fica para trás a verde cabeleira dos limos que ondulam na água sossegada, meu tempo de infância e de rãs, de águas tépidas nos charcos da ribeira e de risos na tremulina da tarde, o capitão andador já lá vai adiante, rodeia este homem uma giesta negral mais forte e aperta o passo.

Acaso sentirá ele nas orelhas as dentadas desta aragem nocturna, melhor podemos nós avaliá-las no contraste com o tépido casulo deste sofá que nos acolhe, vantagens, enfim, de leitor que descansadamente assiste ao formigar do mundo, sobretudo se queixarão os tenros lóbulos e a mais exposta ponta do nariz, o restante geral do corpo vai quente e confortável. Por experiência sabemos como é grande o poder calórico das emoções dos homens, se as temos sentido, não o sendo o do fraco tecido do casaco deste nocturno viajante, ou o das levíssimas botas que tem calçadas, talvez o do pouco esforço que a caminhada lhe vai exigindo.

Com menos atenção de ouvido apenas aqui detectaríamos uma respiração, sendo três os halos de vapor que de três bocas se soltam, três os barcos que assim procuram porto na vastidão escura deste indistinto mar da noite, com pouco mais nos daria a fantasia lugar para as três filhas do rei que esperam a nau catrineta, que mistério tem o aroma do laranjal que não exista neste céu, onde se dilui a fina neblina da noite, mais um pouco do fumo das chaminés de aldeia distante, um tanto da húmida paz dos ribeiros que por estes montes se passeiam, e outro tanto do éter suavíssimo que esta redonda lua cheia sobre o geral mundo vai espargindo.

Três são os viajantes. (...)