Era Natal, foi-me oferecida esta novela dum biólogo canadiano, em tradução alemã. Trata-se nela da saga do último maçarico-esquimó, um poderoso migrador que se deslocava entre os círculos polares, e acabou extinto a tiro no século passado, nas vastidões do midwest americano.
Tratava-se duma editora que já não existe, num país que já não há. E mais tarde fiz dela uma tradução que me agrada, que há-de ser editada porque não existe em português e nos faz falta.
Na altura estava a chegar ao fim o meu tempo de exilado, às mãos dum Torquemada cujo nome me escapa. Tratava-se pois de regressar, porque a guerra a sério era em Lisboa. Mas eu não tinha passaporte de regresso, e tinha que ir arranjá-lo num consulado do Maputo, recém-independente.
Dois dias antes da partida apareceu a amigdalite. Quando ela vinha eram três dias de antibióticos poderosíssimos e devastadores.
Fui ao hospital, mas a Frau fugiu a dar-me antibióticos. E recomendou-me umas pastilhas de chupar. "Já estou fodido!", pensei eu. E estava, mas muito menos do que imaginava.
No dia aprazado entrei num avião que me levou a Moscovo, onde fiquei à espera a tarde inteira, numa sala de trânsito. À espera do Aeroflot que me poria em Maputo dois dias depois. Aí é que estava o consulado que me dava um passaporte português.
A amigdalite devorava-me a garganta, provocava-me dores de condenado, impedia-me de engolir fosse o que fosse. Mas embarcámos quando a noite caiu.
Lembro-me de ter visto as luzes do Cairo, um oásis na noite africana, "antiquíssima e idêntica". E da hospedeira russa, uma mamuda, que olhava com ar maternal este viajante que recusava as laranjas e não engolia nada.
Mal sorriu a manhã aterrámos em Aden, lá onde o Camões penou, "junto dum seco, fero e estéril monte". E o monte ainda estava lá ao fundo, por trás dum cordão de dunas, ainda fero e seco como em tempos idos. Outra vez me senti a tomar parte na gesta gloriosa.
A escala seguinte foi em Mogadiscio. Já andavam muito mal as relações entre Moscovo e a Somália, por isso a hospedeira se encostou a uma porta e aguardou a inspecção. Isto muito antes de aterrarmos em Dar-es-Salam, no final do dia.
A temperatura subiu muito, e eu trazia no corpo o sobretudo de inverno, donde partira. Mas aguentei-me até chegarmos ao Maputo. Aí o funcionário não me deixava sair, porque não lhe mostrei visto de entrada. Sentei-me num sofá, disse-lhe que apenas na embaixada haveria solução. E ela acabou por chegar, na pessoa dum funcionário que me deixou num hotel.
O hotel era redondo, modernista, e mal me achei nele fui para a rua. Até que encontrei numa farmácia um branco de bata branca, disposto a dar-me os meus antibióticos. No caminho comprei a uma vendedeira um abacaxi enorme e levei-o para o hotel. Depois meti-me na cama e aguardei.
Durante a noite julguei que morria. A garganta sabia-me a podre, escarrava uma substância escura e mal cheirosa que me agoniava. Mas de manhã veio o sol e eu estava salvo. Desapareceram as dores, comi metade do abacaxi e fui à procura do consulado que havia de me dar um passaporte português. E ele chegou um dia, das mãos duma funcionária que estava tão grávida como a Senhora do Ó.
Mandei dizer a Lisboa em que avião havia de chegar, vindo do Maputo. Lisboa portou-se bem, mandou um major para me receber e levar-me para Caxias. Fui ouvido por um juiz, e fui mandado para casa, à espera dum julgamento. Que não chegou a existir.
Mas já não havia casa, nem família, nem trabalho... para que serviria o julgamento?!