«O problema pseudo-filosófico da arbitrariedade subjectiva do gosto não encontra melhor ilustração do que a voz de Elisabeth Schwarzkopf. Para mim, a voz desta mulher que morreu em 2006 é simplesmente o som mais belo do universo. Nada se lhe compara. Os meus amigos mais próximos sabem todos que no dia em que a voz da Schwarzkopf me for indiferente, é altura de me levarem para o cemitério.
No entanto, a voz é controversa; a mulher que a emitia foi mais controversa ainda. Quando acabou a 2ªGuerra Mundial em Maio de 1945, Schwarzkopf era uma cantora ainda jovem, com 29 anos, há pouco chegada ao topo da pirâmide no mundo da música que era a Staatsoper de Viena; o percurso fora feito por mérito próprio, mas ela nunca escaparia ao estigma de uma juventude maculada pela actividade partidária nazi. (...)
Os mais velhos que me educaram com o seu gosto - além dos meus pais, João Bénard da Costa, Alberto Vaz da Silva e outros do mesmo círculo de O Tempo e o Modo - professavam uma religião na qual certas vozes transmitiam aos mortais verdades celestes, de que nós, seres humanos, sem mais transmissores, teríamos ficado para sempre privados. (...) Além disso João Bénard da Costa era fanático coleccionador de todos os discos gravados por estas duas deusas, e foi graças à sua colecção que fui conhecendo a fundo a revelação das ditas verdades celestes. (...)
É um som intrinsecamente aristocrático. Um som com o seu quê indefinível de setecentista. Um som têxtil; por um lado, tem algo de diáfano, da transparência do tule; por outro, evoca a macieza táctil dum veludo valioso e antigo. Um som cheio de coloridos, capaz de mimetizar matizes como rosa-velho, azul celeste, madrepérola, violeta. Uma voz com perfume. (...)»
[Frederico Lourenço, O Lugar Supraceleste, Lisboa, Cotovia, 2015]