sexta-feira, 28 de junho de 2019

O último maçarico - esquimó 15


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            O maçarico sabia que tinham de continuar a voar para Leste, para que o temporal os não apanhasse de novo. Mas isso era um simples reconhecimento factual, que não provocava nenhum sentimento de medo. Já tinha esquecido o pânico do tempestuoso céu de neve, tinha esquecido mesmo as tarambolas afogadas, só se lembrava da tempestade. Na sua memória ela não era um acontecimento horrível e medonho, apenas um inimigo natural com que tinha que contar, e que era preciso evitar.
            Mas o destino do bando era o Sul, e para Leste apenas se estendia o imenso mar vazio. Assim, meia hora depois, o maçarico mudou de rumo e apontou a Sul. Durante cerca de meia hora voaram nessa direcção, até que a frente fria os apanhou de novo. Logo que as primeiras gotas de chuva caíram, o maçarico rodou para Leste, e alguns minutos depois encontrou de novo a atmosfera límpida e tranquila.
            Nas três horas que faltavam para a alvorada tiveram que repetir várias vezes esta manobra. Rumavam para Sul até a chuva os atingir, e viravam a Leste para a manter atrás de si. Voavam precisamente em direcção ao Sul quando um clarão amarelado rasgou o céu sombrio. Amanhecia rapidamente, a escuridão do mar transformou-se num verde frio, mas o sol não nascera ainda. Continuaram para Sul durante uma hora ou duas, o manto de nuvens tornou-se menos espesso, o dia clareou e o temporal não voltou. Mesmo as grossas nuvens cinzentas a Oeste desapareceram e a Leste rompeu o sol, como um archote, através das névoas que se dissolviam. O ar mantinha-se frio, mas em breve só o sol se erguia, no vasto céu azul.
            O bando tinha finalmente ultrapassado a tempestade, rompendo para Sul. O que ainda restava das nuvens geladas da noite diluía-se lá para o Norte, sobre os bancos de pesca da Terra Nova.
            No final da manhã o ar aqueceu, e farrapos de neblinas erguiam-se da água. O céu manteve a claridade azul, mas por vezes o mar ocultava-se atrás dum véu nebuloso. O bando aproximava-se do ponto onde se encontram a corrente fria do Lavrador, que se desloca para Sul, e a corrente quente do Golfo, dirigindo-se para Norte. Aqui, ao largo da Terra Nova, a corrente do Golfo desvia-se para Leste, para o Atlântico Central. Durante uma hora foram atravessando bancos de nevoeiro, até que a vista do mar ficou livre. O verde pálido da água deu lugar ao azul marinho, e as duas cores delimitavam-se tão rigorosamente como o mar e a praia. O bando encontrava-se sobre a corrente do Golfo, que vem dos trópicos. O verde da corrente do Lavrador, último prolongamento do Árctico, desvanecia-se atrás dele.
            As asas batiam mecanicamente, sempre com idêntico andamento, como se não estivessem fatigadas. A atmosfera era cada vez mais quente, pois em cada hora avançavam 80 quilómetros para Sul. E na monotonia do voo só alguma coisa mudava quando planavam cerca de uma hora, perdendo altitude até à flor das ondas. Depois subiam outra vez.
            Visto de perto, descobria-se que o mar, tal como a tundra, só na aparência era deserto e sem vida. As aves passavam ao rés da água, que formigava de vida. Por vezes cintilavam as medusas, ao longo de quilómetros, como discos brilhantes. Cardumes de peixes vinham à superfície, e o sol reflectia-se, metálico, em milhares de corpos prateados. Depois apareciam autênticas nuvens de plâncton, organismos unicelulares microscópicos, cada um deles um minúsculo ponto, colorido e invisível. Mas eram aos biliões, e coloriam quilómetros de mar de um vermelho vivo.
            À superfície da água havia também outras aves, que passam a maior parte da vida a cardar no mar alto. Apenas voam para terra quando o impulso de acasalamento as chama. Paínhos-mergulhadores, de patas coloridas, esvoaçavam por ali como borboletas, e precipitavam-se entre as ondas. Os seus vultos faiscavam como reflexos minúsculos, e sem descanso procuravam alimento, pequenos crustáceos e plâncton. Aves aquáticas que tinham nidificado na tundra, no meio das narcejas suas parentes, tinham regressado ao mar, em cuja solidão se manteriam até à próxima época de criação. Casualmente passava um grande albatroz, com as suas braçadas escuras e tranquilas, a aproveitar habilmente a impulsão criada sobre as cristas das ondas, pelos movimentos da água. Mas aqui tratava-se de verdadeiras aves marinhas. O mar alimentava-as e concedia-lhes repouso quando as asas ficavam fatigadas, pois podiam nadar tão perfeitamente como voavam.
            O maçarico e as tarambolas só podiam voar, voar e voar, adiando o descanso e o alimento, até atingirem terra firme.
(Cont.)

quarta-feira, 26 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 14


As costas da Nova Escócia e da Nova Inglaterra estavam já a várias horas de distância, atrás do nevão impenetrável. À sua frente, quem sabe se apenas a alguns minutos, estava a atmosfera mais quente e mais tranquila, para lá da tempestade. Porém, mesmo depois de ultrapassarem a frente fria, tinham que continuar a voar na direcção do mar sem fim, para evitar as nuvens geladas que agora os empurravam impiedosamente, cada vez mais perto da crista das ondas. O maçarico sabia disso, não por reflexão mas por comportamento instintivo. Por uma vaga inspiração que lhe dizia também estar algures uma fêmea à sua espera, quando os musgos e os líquenes da tundra ficassem verdes de novo, e o tempo do acasalamento voltasse.
            O maçarico possuía músculos peitorais e tendões bem mais fortes do que as pequenas tarambolas. Mas agora doíam. Mesmo a ele, custava-lhe um extraordinário dispêndio de energia vencer a dificuldade trazida pela neve incrustada nas asas. Uma vez que perdiam altitude, atingiram de novo as camadas de ar inferiores, instáveis e agitadas. A formação rompeu-se, mas as aves continuaram juntas, fazendo-se ouvir por altos gritos. Cada ave estava sozinha num mundo de vento e neve, e só este gorjeio fremente as ligava umas às outras.
            Durante longo tempo voaram no ar frio, sem poderem observar a rota. O maçarico procurou manter a altitude, até os músculos do peito e as fibras todas do corpo lhe vibrarem de dor e de cansaço. Ao gorjeio das tarambolas juntou-se em breve um assobio agudo, cada vez mais forte. Era o ruído da neve estalando na água.
            Então o maçarico conseguiu ver através da cortina branca. Vagas de crista prateada apareciam à sua frente, cresciam espumando e desapareciam lá atrás. O nevão abrandou e as tarambolas podiam ver-se de novo. Voavam ao acaso, atrás do maçarico, e as mais fracas iam ficando para trás. Estavam mais próximas da água, pois tinham que sacrificar ainda mais altitude para poderem acompanhar as mais fortes. A neve colava-se-lhes às pontas das asas. E, mal se derretia com o calor do corpo, logo outra se acumulava.
            O maçarico voou alguns segundos na horizontal, e logo o andamento baixou. Teve que descer, para ganhar velocidade e outra vez altitude. Podia agora ver claramente o mar, onde as cristas brancas das ondas se erguiam da água escura. Às vezes uma vaga erguia-se tão alto, que só por um ou dois metros não atingia as aves em luta.
            Uma onda gigante elevou-se diante deles. O maçarico venceu com esforço a inércia das asas e sobrevoou-a a custo. Mergulhou em seguida no leito da onda, esforçando-se por continuar em frente. A próxima crista era mais baixa, e ele ultrapassou-a com segurança. Mas atrás dele a grande vaga atacava, raivosa, as tarambolas. Três aves mais fracas lutaram em vão por ganhar altitude, e ficaram sem forças, penduradas no ar. Nenhum grito se ouviu. A vaga cresceu e engoliu as aves. Passou, e elas tinham desaparecido. A natureza, tão selectiva em todas as coisas, é ainda mais exigente quando se trata da morte. Os mais fracos não pedem compaixão, nem lhes é concedida misericórdia.
            O bando esforçou-se por continuar, voou rente à água, lutou encarniçadamente para ultrapassar as cristas das ondas. Gozou, para respirar, as pequenas pausas de segundos, no ar sossegado dos seus leitos. Então, de um longo talvegue cresceu uma muralha fervilhante, mais alta que todas as vagas anteriores. A espuma fustigou as asas do maçarico. Durante segundos teve que lutar com os violentos turbilhões da corrente para se manter no ar. Mas a espuma varreu uma parte da neve que se lhe colara às asas. Por um minuto estas puderam mover-se no ar com toda a força. Depois a neve sobrecarregou-as de novo. Apenas a certeza de que a frente fria seria em breve ultrapassada fez o maçarico aguentar.
            Muito lentamente o ar foi-se tornando mais quente, tão lentamente que mal se podia sentir a mudança. Então a neve transformou-se repentinamente em chuva. Estava ali a parede branca de neve diante deles, e após uma nova crista estalaram-lhes gotas de chuva nas penas. Alguns segundos depois já tinha derretido a neve das asas. O maçarico conduziu o resto do bando subindo em frente. A dor e o cansaço depressa desapareceram, as aves podiam voar outra vez normalmente e os músculos repousaram. A neve desapareceu na escuridão. Uns minutos depois romperam a frente fria e atingiram uma zona húmida e tranquila.

                                              
O CORREDOR DA MORTE

            ... E por vezes, nas tempestades do Nordeste, bandos de maçaricos espantosamente numerosos eram empurrados pelo vento para as costas da Nova Inglaterra, onde pousavam completamente extenuados. A sua caça era então um exercício fácil, podendo simplesmente abater-se à cacetada. A Nantucket chegavam em bandos tão grandes que as reservas de munições da ilha não eram suficientes. E a carnificina parava, até chegarem munições da terra firme.
            Os atiradores chamavam-lhes “aves-massa”, pois no Outono os maçaricos eram tão gordos que o peito lhes rebentava quando caíam no chão, e a camada de gordura era macia como massa de pão. Não admira que fossem tão perseguidos, pois deviam ser um bom petisco à mesa.
            Eram mansos e confiantes, e voavam em bandos tão densos que podiam facilmente ser abatidos em grande número... Dois caçadores que forneciam o mercado em Massachussetts ganharam 300 dólares com os seus tiros a um único bando... Crianças vendiam as aves a 6 cêntimos por cabeça... Em 1882, em Nantucket, dois caçadores abateram numa manhã 87 maçaricos... Em 1894, no mercado de Boston, já só apareceu um único à venda.
(Cont.)

sábado, 22 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 13

5

            O maçarico manteve exactamente o rumo sul. Quando os montes escarpados do Lavrador desapareceram da vista, deixou de poder orientar-se por qualquer marca no terreno. Apesar disso dirigia o bando com uma segurança infalível. Algures, no jogo de forças cósmicas entre a rotação e o magnetismo terrestres, havia uma linha de orientação, uma direcção em relação à qual o seu cérebro estava perfeitamente alinhado. Mantinha o rumo sem esforço. Um instinto velho de séculos completava inconscientemente esta obra-prima, que pedia meças às maiores realizações da consciência no reino animal.
            A noite ia a meio. Oitocentos metros abaixo do bando estendia-se a costa alcantilada da Nova Escócia e o cabo Breton, orlado de branco pela rebentação. O maçarico já algumas vezes tinha parado aqui, mas desta vez o ano já ia alto, era já tarde, uma escala estava fora de questão. O bando necessitara de cinco horas para atravessar o golfo de São Lourenço. E agora voava sobre a ponta do cabo Breton, na direcção do Atlântico, que se abria perante ele como uma goela escancarada.
            O maçarico mudou entretanto para uma posição mais cómoda, no meio das outras aves, e aí se manteve uma hora, cedendo o comando a uma tarambola. Então, vinda do continente canadiano, aproximou-se uma frente fria. Surgiram turbulências e ele colocou-se de novo à cabeça. O ar frio, mais pesado, empurrava para cima as camadas de ar inferiores, mais quentes. E uma vez que, a grande altitude, a temperatura era mais baixa, a humidade do ar quente condensava-se e provocava precipitação. Primeiro aguaceiros e depois neve, à medida que as temperaturas baixavam.
            As turbulências do ar davam que fazer ao bando. A princípio nevava apenas lentamente, mas depois os flocos tornaram-se maiores, amontoavam-se uns nos outros sobre as asas das aves, e dificultavam o voo. Instintivamente o maçarico ganhou altitude e todos o seguiram. Nas camadas superiores o ar era mais calmo, mas as nuvens de neve tornaram-se mais densas. As aves puderam de novo fazer a sua formação, mas tinham que confiar sobretudo na intuição, na percepção dos turbilhões fornecida pelas pontas das asas. A tempestade de neve era agora tão violenta que cada uma delas mal podia ver o companheiro que a precedia. Mas mantinham a altitude que tinham atingido.
            Não era possível avaliar a velocidade de passagem da frente, para Leste. Apesar disso, em parte por lembrança de anteriores migrações, e sobretudo por intuição instintiva, o maçarico sabia que à velocidade de 80 quilómetros por hora iriam encontrar de novo a frente fria. Mas então voariam à frente do temporal, uma vez que este se deslocava mais lentamente do que eles. Assim, teriam que alterar o rumo e voar com o temporal, para Leste, em direcção ao mar aberto.
            O maçarico mudou de direcção e as tarambolas seguiram-no, embora só as que vinham logo atrás dele pudessem ver que ele rodava para Leste. Acumulada entre as rémiges, a neve colava-se-lhes nas asas. E estas, que ainda há poucos minutos reagiam prontamente às flexões e distensões dos músculos do peito, eram agora pesadas e rígidas. Rodavam no ar como remos, desperdiçavam energia, empurravam o ar para baixo em vez de o aspirarem, de modo a provocar a corrente indispensável ao voo. A sua velocidade diminuiu até ficarem quase imóveis, um bando desordenado e confuso, a cerca de mil e quinhentos metros sobre o mar. Então o maçarico dirigiu-se mais para Leste. Começou lentamente a descer e, através da gravidade, ganhou a velocidade que as rémiges encharcadas não podiam atingir. O andamento era agora normal, mas tinham que perder altitude para o manter. Do deserto cinzento, lá em baixo, o mar crescia para eles.
            O maçarico foi descendo lenta e progressivamente, adaptou o ângulo de ataque das asas à pressão da corrente de ar, de modo a poderem manter a velocidade com um mínimo de perda de altitude. Às vezes abrandavam os turbilhões de neve e por momentos era possível manter a horizontal. Mas logo voltava a neve, de novo mais densa, as asas ficavam pesadas, e o maçarico tinha que voltar a descer.
(Cont.)

segunda-feira, 17 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 12


Finalmente o maçarico não pôde mais refrear o impulso migratório. E, após um dia tempestuoso em que as temperaturas pouco tinham subido além do ponto de congelação, caía a noite fria quando ele bateu as asas e se elevou no céu sombrio. O tecto de nuvens estava baixo e o bando organizou rapidamente a formação, dirigindo-se para o mar, com forte vento de frente. A esta altitude o vento fustigava-o já como uma tempestade, o que lhe reduzia a velocidade para metade. Frequentes rajadas tempestuosas desorganizavam a formação, e um par de tarambolas mais fracas ficaram para trás. Antes de perder de vista a acidentada costa do Lavrador, o maçarico soube que não poderiam prosseguir o voo nestas condições. Por isso voltou para trás e poisou o bando numa encosta abrigada do vento. O temporal bramia por cima deles.
            Tinham falhado a partida. Mas agora tanto as tarambolas como o maçarico estavam impacientes por iniciar a longa viagem. Tentaram-no em vão mais que uma vez. Inquieto, ele esperava condições mais propícias, mas estava a fazer-se tarde e os dias bons eram raros. As névoas aclaravam, porém o vendaval rugiu três dias e três noites, para os lados do Sul. Com interrupções, as aves continuaram a devorar caracóis e arandos já murchos. E ao quarto dia o vento mudou. Mais fraco e mais frio, soprava agora do Norte. Este vento de cauda era tão desfavorável como o vento de frente, pois dificultava o equilíbrio do voo e afectava os delicados controlos reflexos das rémiges. Durante três dias o vento norte assobiou. Até que lentamente acalmou, e no terceiro dia à noite virou de Oeste, agora apenas uma ligeira brisa. O maçarico tinha aguardado este vento de lado. E a noite caiu, clara e fria.
            As aves levantaram voo, ganharam altura e cerraram a formação, com o maçarico à cabeça. Tudo aconteceu com a precisão habitual, dir-se-ia quase automática. Ele e muitas tarambolas já tinham alguma vez superado este sobrevoo outonal do oceano, mas guardavam disso apenas uma vaga lembrança. A maior parte ficou confusa quando, de manhã, só mar deserto e vazio se estendia por baixo deles. Mas continuariam a voar sempre em frente, passaria mais uma noite e uma manhã, e debaixo deles estender-se-ia ainda o mesmo mar. As aves sabiam que ele era um elemento hostil, só em terra e no ar se sentiam à vontade. Mas quando não havia agitação no mar e excepcionalmente a água estava calma, poisavam algum tempo na superfície líquida e permitiam-se uns momentos de descanso. Porém, nadavam muito desajeitadamente. As suas penas não eram suficientemente gordurosas e encharcavam-se rapidamente. No alto mar raramente havia condições que permitissem poisar, mesmo momentaneamente. Por norma tinham que realizar o longo voo sem qualquer pausa, sem alimento e sem descanso.
            A luz calorosa do Norte brilhava ainda atrás deles, no céu do Lavrador. Mas apenas voltariam a ver terra quando poisassem na margem de um rio, na selva húmida da Guiana ou da Venezuela, com as penas desgrenhadas e os músculos entorpecidos de cansaço. No entanto, ao levantar voo, fizeram-no sem hesitação nem medo. Não reconheciam o dramatismo do momento, sentindo apenas um vago alívio por terem finalmente iniciado a viagem. Era uma bênção que os seus pequenos cérebros não pudessem abarcar a nua realidade. Criaturas minúsculas como eram, simples matéria aprisionada pela terra, desafiavam, mesmo assim, o mar e o céu imensos.

                                               O  CORREDOR  DA  MORTE

            Para incrementar e divulgar o conhecimento humano. Instituto Smithsoniano, Washington. Relatório anual da comissão de vigilância, sobre o ano que finda em 30 de Junho de 1915...
            Durante os meses de Agosto e Setembro, muitos anos ainda após meados do séc. XIX, chegavam à Terra Nova e às ilhas da Madalena, no golfo de São Lourenço, milhões de maçaricos-esquimós, que obscureciam o céu... Grupos de 25 e 30 homens abatiam num único dia duas mil aves, que iam para a feitoria da Companhia da baía do Hudson, em Cartwright, no Lavrador.
            Os pescadores costumavam salgar estas aves em barricas. À noite, quando dormiam nas escarpas da costa em grande número, homens equipados de lanternas para as encandear podiam aproximar-se delas e abatê-las em massa, à cacetada.
(Cont.)

domingo, 16 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 11


4

            Monotonamente sucederam-se noites de voo sem fim e dias inteiros a comer, nas águas paradas de pântanos. Atrás dos viajantes, a luz esverdeada do Norte era cada vez mais fraca, e os seus peitorais ficavam cada vez mais fortes. Incansavelmente voavam todas as noites até à alvorada. Nos pântanos salgados da baía de James havia alimento abundante. E ficaram aqui muitos dias, empanturrando-se com os minúsculos bichos do lodo, até finalmente o Sul os chamar de novo. O maçarico conduziu-os directamente para Leste. Dirigiram-se para o Lavrador, sobre as alturas do Quebec, na direcção dos recifes de gneisse do golfo de São Lourenço.
            A madrugada seguinte apareceu fria e nebulosa, e no ar havia um penetrante cheiro a sal. As aves notaram-no e o maçarico guiou-as em frente, até que surgiu a aurora de um dia cinzento e sem sol. O ar aqueceu um pouco, os bancos de nevoeiro dissiparam-se, e atrás dos farrapos de nuvens viam-se, aqui e ali, manchas acastanhadas. Era o planalto costeiro, rochoso e escalvado. O cheiro a sal tornou-se mais forte e o maçarico sabia que se aproximavam do mar. A névoa tornou-se de novo mais espessa. Mas ele manteve o rumo, embora à sua volta tudo fosse impenetravelmente branco. De repente chegaram-lhe aos ouvidos o estrondo da rebentação e os gritos das gaivotas. O maçarico começou a descer em voo planado. Com glissagens ocasionais, controlou a velocidade de descida. As tarambolas rompiam a formação mas seguiam-no. Nivelaram o voo alguns metros acima da água, tomaram a direcção das ondas e voaram sobre as cristas, até que as escarpas surgiram da neblina. Na sua frente erguia-se uma imensa parede rochosa. O maçarico voara às cegas durante várias horas, mas falhara a costa apenas por um quilómetro.
            As aves ganharam altitude, deslizaram sobre as falésias e poisaram. Lá estavam por todo o lado os ramos dos arandos, não muito diferentes das urzes. Em certos locais, os frutos purpúreos e carnudos eram tão grandes que ocultavam a folhagem, e as aves começaram imediatamente a comer. Um vento frio chegava do mar e alguns chuviscos caíram sobre elas. Após uma hora pararam de comer e encostaram-se umas às outras. Voltaram as cabeças contra o vento, para que a chuva deslizasse sobre as penas e escorresse pela cauda.
            Agora tinham apenas que comer durante duas semanas e acumular gordura para o longo voo do Atlântico, até à América do Sul. Agosto ia a meio e o Verão no Lavrador quase tinha passado. As noites geladas alternavam com dias carregados de nevoeiro. Elas comiam as bagas dos arandos, comiam e comiam, até as pernas e os bicos e as penas e os excrementos ficarem manchados de sumo púrpura. Quando por vezes a névoa se dissipava e aparecia o sol, o que era raro, voavam até à praia, na maré baixa, e procuravam caracóis e camarões.
            Todos os dias deparavam com bandos de tarambolas-douradas. O maçarico deixava então de procurar alimento, e passava uma vista de olhos pelo bando, à procura dum companheiro da espécie. Mas não aparecia nenhum, e do género das narcejas apenas as tarambolas-douradas faziam caminho por aqui. Havia, porém, muitas outras aves, sobretudo gaivotas, que gritavam roucas na neblina. Em frente da costa passavam eider-reais, em infindáveis bandos pretos e brancos. As tordas-mergulheiras e os araus, com as suas asas curtas e o voo pesadão, grasnavam e brigavam ainda nos picos da falésia, onde tinham criado as ninhadas.
            Nesta inactividade, o maçarico e as tarambolas acumularam gordura muito rapidamente. Os seus peitos ficaram outra vez redondos e macios, da gordura armazenada sobre os poderosos músculos. Agosto ia no fim, e de novo a antiga inquietação se apoderou deles. Quando o tempo aclarava e o vento era favorável, milhares de tarambolas levantavam voo e dirigiam-se para Sul, sobre o golfo de São Lourenço, na direcção do imenso Atlântico. Mas o maçarico esperava ainda, qualquer coisa o refreava. O seu pequeno cérebro podia senti-la, embora não a soubesse definir. Vagamente considerava apenas que os maçaricos-esquimós tinham que seguir este caminho, no regresso da tundra.
            A sua impaciência foi crescendo e ele achava-se dividido entre o desejo de partir e o de esperar um pouco mais. Esta intranquilidade serenou um pouco quando começou a voar com o seu bando, junto à costa. Eram longos troços, com ele no comando. Então algumas aves abandonavam a formação e juntavam-se, às duas e três, a outras tarambolas que partiam para o Sul. Quando chegou Setembro e as noites se tornaram de repente mais frias, o bando já tinha apenas metade do tamanho inicial. Dos bancos de nuvens que deslizavam do mar caíam de vez em quando grandes flocos de neve. As últimas tarambolas já tinham partido. Restava apenas o seu bando, para além das gaivotas e dos eider-reais.
            Os arandos ficaram inteiriçados sob o gelo e já não deitavam sumo, tornando escasso o alimento. E a gordura que todos tinham armazenado como reserva de energia para a travessia do oceano começava já, demasiado cedo, a ser utilizada.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Fezadas

(...)
Há mais de cinquenta anos o Rasga foi ao São Roque com a mulher, ela cheia de fé, ele com muita sede, como sempre, até a cirrose o consumir. A feira e a romaria partilhavam a data e o espaço. Não sei das promessas dela,as mulheres lá tinham contratos com os santos, não era costume explicitá-los, ele tinha as mãos cheias de cravos, coisa de rapaz, julgava que era feitio. A mulher dissera-lhe que havia de ir ao São Roque, o Maravilhas curou-se, o Ti Velho também, pelas outras aldeias ia a mesma devoção, os resultados eram de monta. O Rasga até tinha pensado no ferrador, não para ferrar o macho, ele queimava os cravos, mas eram grandes as dores, ficavam as mãos com marcas piores que a cara do medo com as bexigas, e a febre, às vezes, levava a gente. Já se acostumara, não valia a pena ralar-se, o pior era mulher a azucrinar-lhe os ouvidos, tens de ir ao São Roque, se trabalhasses em vez de beberes havias de ver o incómodo, eu faço-te companhia, és um herege, uma oração, uma pequena esmola, dois cruzados, um quartinho no máximo, o São Roque não é interesseiro, vens de lá bom, levas a burra que já mal pega em erva, enjeita os nabos, não temos feno, há-de morrer-nos em casa, além do prejuízo vais ser tu a enterrá-la, podias vendê-la.
E lá foram os três, que a burra também contava, partiram quando a Lurdes e a Purificação já levavam uma légua de avanço, tinham bestas lestas e levantavam-se cedo, era mister que se antecipassem aos homens que quando chegavam logo queriam matar o bicho e os negócios não podiam fazer-se sem haver onde pagar o alboroque. (...)
Findas a feira e a festa, esta terminou primeiro, um dos padres ainda tinha que levar o Viático a um moribundo de Pínzio, o Rasga e a mulher vinham consolados, ela com a missa e a procissão, ele com duas notas e meia no bolso e o bucho cheio de vinho, ela a pensar na vida e ele a cambalear.
Algum tempo depois perguntei ao Rasga o que era feito dos cravos. Ficaram no São Roque, menino, ficaram no São Roque.
(Barroco Esperança, Pedras Soltas, 2006)

quarta-feira, 12 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 10


Muitas vezes junta-se às tarambolas-douradas um grande fuselo americano, e ocasionalmente acompanham-nas outras narcejas, na longa rota do Atlântico. Esta rota é de facto um encurtamento, mas só o maçarico-esquimó e a tarambola-dourada a percorrem regularmente todos os outonos. Entre as aves do Árctico, só eles possuem a força e a velocidade de voo indispensáveis para fugir ou enfrentar as tempestades do alto mar, que não são raras. Além disso, graças a esta rota, elas podem usufruir dos arandos escuros que amadurecem no Outono, e crescem abundantemente nas encostas e nos planaltos do Lavrador. As aves que migram sobre o continente privam-se destas reservas de alimento. Ao contrário, na Primavera, as tarambolas e os maçaricos têm que seguir a rota habitual sobre as planícies do Oeste, pois nessa altura os arandos estão endurecidos e mortos, debaixo da neve. No Lavrador ainda domina o inverno, quando o Árctico se cobre já dos verdores da Primavera.
            Pela manhã, a tundra lá em baixo não era já tão cinzenta e monótona. Manchas escuras e sinuosas atravessavam o terreno. Desde o cair da noite, as aves tinham deixado para trás seiscentos quilómetros, e agora aproximavam-se da fronteira dos bosques subárcticos de abetos. Os prolongamentos escuros que penetravam na tundra eram vales de rios florestados. Estes vales protegiam os pequenos abetos das tempestades de neve, e permitiam-lhes sobreviver. Aos primeiros alvores da manhã, as aves desceram na zona pantanosa de um lago. Repousaram por uns momentos e começaram a comer logo que a manhã clareou.
            Com as suas pernas altas e o bico encurvado, o maçarico sobressaía claramente no meio das tarambolas, que tinham penas mais escuras e bicos mais curtos. Sendo concorrentes e inimigas na reserva, as duas espécies migravam em conjunto há inúmeras gerações, e aqui misturavam-se como iguais. Chegavam outras narcejas - pernas-amarelas, borrelhos, pilritos-das-praias  -  que andavam por ali e se retiravam. O maçarico observava-os cuidadosamente, pois algures na tundra imensa deveria haver companheiros seus.
            Comiam durante todo o dia, e só ocasionalmente faziam uma pausa para descanso. Quando chegava a escuridão, voavam de novo. Durante a subida era frouxa a coesão dentro do bando. Mas, logo que ganhavam altura, faziam rapidamente a sua formação em cunha, graças à qual a raiz da asa de cada ave era sustentada pelo turbilhão da asa precedente. O maçarico assumiu o comando e as tarambolas cerraram formação atrás dele, com elegância e leveza, como se tivessem treinado longamente a manobra. Elas não tinham escolhido conscientemente um chefe. Este tinha que se esforçar particularmente para vencer a resistência do ar, e para obter impulso ascencional e velocidade. Uma vez que o maçarico era o voador mais forte, o resto do bando colocou-se atrás dele. E as tarambolas organizaram a sua formação tão espontânea e automaticamente como respiravam.
            Depois de voarem algum tempo, as linhas escuras abaixo deles entrelaçaram-se num verdadeiro tapete. Encontravam-se agora sobre os bosques de abetos, e a tundra tinha ficado para trás. Outras narcejas voavam directamente para sul, na direcção dos planaltos, mas o maçarico conduziu o bando para Sueste, em busca dos arandos do Lavrador. Ocasionalmente entregou a chefia a uma tarambola, e tomou posição no meio da formação. Mas, após um curto repouso, retomou o lugar inicial.


O CORREDOR DA MORTE

                        SESSÕES  DA  ACADEMIA  DAS  CIÊNCIAS  NATURAIS
                        DE FILADÉLFIA  -  1861

            13 de Agosto. Presidência do Dr. Leidy, com a presença de nove membros. Foram apresentados os seguintes artigos para divulgação: Robert Kennicott, “Sobre três novas formas de cobra cascavel”; Elliott Coues, “Notas sobre a ornitologia do Lavrador”...
            Um extraordinário número de maçaricos-esquimós chegou à costa do Lavrador, vindo dos locais de nidificação situados a Norte. Estas aves voam muito rapidamente, em bandos enormes, contando muitas vezes vários milhares de exemplares... Eu próprio pude observar uma espantosa ilustração da persistência com que se agarram a determinados locais de alimentação, mesmo quando severamente molestados. A maré alta ia alagando uma zona pantanosa com cerca de um acre de extensão, onde abundavam os caracóis que eles tanto apreciam. Embora ali estivessem cinco ou seis caçadores, que de todos os lados disparavam incessantemente contra as pobres aves, elas continuavam a circular sobre nós, confundidas e excitadas, apesar de muitas delas irem sendo atingidas e caírem ao solo. Pareciam muito preocupadas com a possibilidade de os caracóis, seu petisco habitual, lhes poderem escapar...

            Por determinação da comissão editorial e bibliotecária, são divulgadas as seguintes sessões da Sociedade de História Natural de Boston, de 1906/1907...
            Comunicação n° 7 - Dr. Méd. Charles W. Townsend e Glover M. Allen, “As aves do Lavrador”... Numenius borealis (Forster), maçarico-esquimó. Um hóspede de Outono no Lavrador, antigamente muito abundante, hoje muito raro.

                                   Vem Agosto e tu estás à beira-mar
                                   Mil belos maçaricos chegam todos os dias.

            Packard escreve deste modo: “A 10 de Agosto de 1860 apareceram os maçaricos em bandos. Vimos um que tinha bem um quilómetro e meio de comprimento e quase outro tanto de largura. O barulho que faziam parecia às vezes o vento que zune no cordame dum navio de mil toneladas...”.
            Porém, aquando da nossa visita à costa do Lavrador, no verão de 1906, já não vimos um único maçarico-esquimó. Falámos com muitos habitantes daqui e todos concordaram em que ele ficou de repente reduzido, sendo outrora muito disseminado. Agora, no Outono, avistam-se apenas dois ou três, ou mesmo nenhum. O capitão Parsons, do barco postal Virginia Lake, disse-nos que ainda havia muitos, aqui há 30 anos. Nesse tempo, antes do pequeno-almoço, abatia ele uma centena, chegando mesmo a atingir vinte com um único tiro. Os pescadores dizimavam-nos aos milhares... Tinham as espingardas preparadas nos pontões e atiravam aos bandos que chegavam aqui, matando 20 ou 25 aves por cada tiro. Resumindo, podemos dizer que os habitantes do Lavrador sempre perseguiram o maçarico-esquimó, mas só entre 1888 e 1890 verificaram que os efectivos se tinham reduzido. A partir de 1892, só um pequeno número destas aves, antigamente tão abundantes, visitou a costa do Lavrador... Parece que esta espécie está em vias de extinção.
(Cont.)

domingo, 9 de junho de 2019

Tempos

O burgo tinha vida, nessa altura. Vida e gente. Tanta que havia uma livraria logo ali ao fundo da avenida.
Um dia o Fernando vendeu-me lá a Vigésima Quinta Hora, do Virgil Gheorghiu, e A Ponte Sobre o Drina. São dos livros mais antigos que comprei, numa caminhada que não parou mais. 
Muitas vezes pergunto-me para quê, mas é velhice minha. E do burgo, onde só ficou a história e as pedras dela.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 9


3

            Hora após hora voou o maçarico num ritmo poderoso, rápido e regular. Os seus batimentos de asa eram fluentes e leves. Principiavam por baixo do abdómen e abriam-se largamente por cima do dorso. Cada batimento constituía uma complicada sucessão de passos, harmoniosamente ajustados uns aos outros, fundidos, numa fracção de segundo, num elegante movimento único. As asas funcionavam numa combinação perfeita de superfície aerodinâmica e hélice impulsora. O vento desempenhava diversas funções durante o voo.
            O plano da asa, junto ao corpo, cortava o ar como a superfície de um avião. Deste modo criava-se pressão no intradorso da asa, daí resultando sustentação, exactamente aquele impulso que possibilita o voo. No maçarico isso era conseguido apenas através da forma aerodinâmica da asa. O batimento fornecia impulso, mas nada tinha que ver com a sustentação no ar.
            A superfície exterior da asa era composta sobretudo por fortes rémiges sobrepostas. Elas eram a hélice do sistema de propulsão da ave, e produziam a corrente de ar que fornecia sustentação aos planos alares, junto ao corpo. Em cada batimento, as rémiges executavam uma complicada sucessão de posições. Quando a asa baixava, elas deviam mover-se deste modo: o bordo de ataque baixava e subia o bordo de fuga, funcionando assim cada pena como pá de uma hélice, que aspirava o ar e criava impulsão. Quando a asa subia, o ângulo de ataque das rémiges tinha que ser ao contrário, assim se criando impulsão suplementar. A superfície alar junto ao corpo produzia continuamente tanto impulso que não se perdia altitude, mesmo quando a asa se movia para cima. A regulação perfeita das penas era um reflexo que não podia ser conscientemente controlado, pois o maçarico executava três ou quatro batimentos de asa por segundo, o que lhe permitia uma velocidade de oitenta quilómetros por hora.
            Ocasionalmente o maçarico entrava no turbilhão provocado por uma ave que seguia adiante dele. Com as suas asas ultra-sensíveis podia detectar mesmo tão insignificantes vestígios. Por norma, uma leve alteração nas condições aerodinâmicas do voo era o primeiro sinal de que se aproximava de um bando de aves. Quando deparava com tais turbilhões, o maçarico aproveitava-se deles. Seguia-os, deixando-se arrastar como uma asa pela coluna de ar horizontal. Assim mantinha a impulsão correcta, e as asas podiam funcionar com um pouco menos de esforço.
            Porém, com excepção das tarambolas-douradas, nenhuma narceja era tão rápida como o maçarico. E assim ele alcançava sempre os bandos que voavam na sua dianteira. Primeiro ouvia os ténues gorjeios, através dos quais as aves comunicavam. Depois o turbilhão tornava-se mais forte. E finalmente surgia o bando, confundido com o cinzento do céu. O maçarico acompanhava-o durante algum tempo, mas acabava por ultrapassá-lo, devido à sua maior velocidade. E continuava a voar sozinho.
            Nessa noite aconteceu isso várias vezes, pois as camadas de ar por cima da tundra em arrefecimento estavam agitadas, e a maioria dos bandos voava à mesma altitude, um pouco acima dos níveis de turbulência. Pela manhã o maçarico deparou com uma esteira mais larga, e adaptou o batimento de asa às novas condições de impulsão. Voou assim durante longo tempo, e o turbilhão causado pelas pontas das asas das aves que o precediam manteve-se inalterável. Desta vez não alcançou o bando automaticamente. Ainda não era o tempo de migração dos patos e dos gansos. Nesta altura, só duas espécies eram tão velozes que o maçarico as não podia ultrapassar sem esforço. Tinham que ser tarambolas-douradas... ou maçaricos-esquimós.
            As incansáveis asas bateram-lhe mais depressa. O ar comprimiu-se fortemente contra o seu corpo aerodinâmico. O turbilhão do bando invisível foi-se tornando maior, e era de facto mais forte do que todos os outros que encontrara nessa noite. A sua impaciência cresceu. Uma leve esperança, meio reacção instintiva e meio vago pensamento consciente, agitou-se-lhe no cérebro. Estava iminente o fim desta interminável procura de companheiros da espécie? O maçarico aumentou a velocidade, até lhe doerem os poderosos tendões do peito, um dos tecidos mais fortes em todo o reino animal.
            Aproximou-se do bando. Na escuridão, só agora iam tomando forma as aves que o precediam, primeiro vaga, depois mais claramente. Durante um bom minuto o maçarico apenas pôde reconhecer a linha desvanecida da sua formação, mas agora via claramente cada uma das aves. Só voadores fortes e rápidos, como os gansos, os maçaricos e as tarambolas-douradas voavam assim, nesta formação em coluna, em diagonal ou em cunha. Através dela, cada ave tirava partido do turbilhão da ponta da asa da ave precedente, sem que fosse perturbada pela esteira de turbulência que ela deixava atrás. E o maçarico sabia que os gansos ainda não voavam para Sul. Ficou ainda mais impaciente, voou ainda mais depressa.
            A distância diminuiu rapidamente, e as aves que o precediam tomaram forma nítida. Eram pequenas, muito mais pequenas do que ele. Mas agora já não sentia a rejeição instintiva que o levara a não dar qualquer atenção aos maçaricos-norte-americanos ou às narcejas. Continuava a sentir o mesmo impulso de se juntar a um bando. Soltou um grito de chamamento discreto, responderam-lhe tarambolas-douradas.
            Tratava-se de um grupo de quarenta ou cinquenta aves, e o maçarico alinhou na parte de trás da cunha. Reduziu a velocidade e anunciou a sua presença com uma série de gorjeios rápidos. Todo o bando respondeu em uníssono com trinados fortes. O ímpeto do maçarico ficou silenciado. No mais fundo de si agitava-se ainda um indefinido sentimento de solidão, mas a partir de agora já não voava sozinho.

            De entre as mais de trinta espécies de narcejas que todos os outonos migram do Árctico canadiano para o Sul, apenas a tarambola-dourada é um companheiro de viagem adequado para o maçarico-esquimó. Ambos têm velocidades de voo semelhantes e apreciam idêntico alimento. Mas há ainda outra razão mais importante. As tarambolas e os maçaricos são voadores particularmente resistentes, e rejeitam a rota terrestre sobre a América do Norte, que todas as outras aves de arribação adoptam. Em vez disso dirigem-se para leste, até às costas rochosas do Lavrador, da Terra Nova e da Nova Escócia, e daí voam directamente para Sul, sobre o Atlântico. Vencem esta etapa de 4 mil quilómetros ou mais, num esgotante voo de quarenta e oito horas sem escala. Não fazem qualquer paragem até alcançarem terra, na costa norte da América do Sul.
(Cont.)

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Epopeias

"Embarquei no Vera Cruz no dia 25 de Abril de 1970, sem imaginar quanto a guerra iria mudar a minha vida. Um desgraçado que andou a dar a vida pela pátria - diziam que aquilo era nosso - e como eu tantos camaradas , com tantas outras histórias.Há milhares de ex-combatentes que nem sabem como estão cá hoje. Como eu, que fui por duas vezes retirado em estado de coma para o hospital durante a guerra, tanto que ainda hoje não sei como saí vivo do ultramar. Foi um milagre.
O primeiro episódio aconteceu logo no início da comissão, devia ter passado pouco mais de um mês da nossa chegada. O desastre foi perto da barragem de Cahora Bassa. Foram dar comigo lá no meio do monte, no capim, dizem que parecia morto. Ouviram-se tiros dentro e fora da picada e foi tudo pelo ar, por causa das minas. (...)
Nesse primeiro rebentamento parti a clavícula, a cana do nariz, os dentes, o pé direito em dois ou três sítios; ainda tenho estilhaços na rótula do joelho esquerdo, já o direito parecem dois joelhos por causa duma queda que dei. Foi quando me atirei duma Berliet abaixo para me safar, porque tinham começado a chover tiros. Fiquei com a coluna num oito e ainda hoje me doem os joelhos e o pé.
Em Dezembro de 1970 apanhei malária cerebral e pela segunda vez fui retirado. Antes de atacarmos uma base fui encher o cantil num charco, tal era a sede. Estive internado seis meses, num quarto sozinho, com duas garrafas de soro, uma de cada lado.(...)
Regressei no dia 21 ou 22 de Maio de 1972, uma pessoa completamente diferente daquela que fui. Quando cheguei fui trabalhar para um hotel em Albufeira. Uma vez houve lá uma festa dos pescadores em que começaram a mandar tiros. Eu mandei-me logo para o chão, foi pratos, vidros, tudo pelo ar. Era a guerra ainda atrás de mim. (...)

segunda-feira, 3 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 8

Alguns dias mais tarde, a reserva perdera toda a excitação. O maçarico-esquimó elevou-se no ar e voou um par de horas na direcção do Sul. Quando sentiu fome poisou num terreno pantanoso, onde um rio desaguava num grande lago. Vindas da tundra a caminho do Sul, chegavam em bando, como todos os verões, as narcejas velhas e novas e os pequenos maçaricos-das-rochas. Pilritos de longas pernas passavam sobre a margem do lago, em oscilantes formações em V. Ele parou de comer e soltou um grito excitado. Este modo de voar, estas formações, só podiam ser de maçaricos. Passavam em formação cerrada e moviam-se tão exactamente como se todos eles formassem um corpo, como se um único centro nervoso controlasse todo o bando. Mantinham as asas curvadas para baixo e desciam para o solo em voo planado. O maçarico-esquimó correu ao seu encontro. Mas, depois de algumas passadas, parou de repente e continuou a comer, indiferente. Os outros eram maçaricos-norte-americanos, e ele reconheceu-os pelos bicos mais curtos e pelas barrigas cor de cabedal.
            Não sabia que os recém-chegados, muito parecidos com ele, voavam mais lentamente, e que, por isso mesmo, não eram companheiros de viagem adequados. Também desconhecia que as narcejas jovens só um pouco mais tarde adquiriam força suficiente para a longa viagem, e eram deixadas para trás pelos pais. No entanto elas seguiam-nos instintivamente ao longo da perigosa rota de doze mil quilómetros, que iam fazer pela primeira vez. Os modelos de comportamento, fixados através dos genes de numerosas gerações, apenas diziam ao maçarico o que ele tinha a fazer, sem lhe esclarecer os motivos. O seu comportamento não era definido por decisões racionais, mas por reacções aos estímulos do ambiente. De bom grado se teria juntado a um bando migratório. Mas os maçaricos-norte-americanos não provocavam nenhuma reacção no seu cérebro, e por isso continuou a procurar alimento, quase sem olhar para eles. Quando levantaram voo mal deu por isso. A terra estava cheia de ruídos de asas em movimento, e o maçarico ficou de novo só.
            Durante a tarde, o pântano ficou salpicado de narcejas que interromperam o voo e esgaravatavam o lodo em busca de alimento. A maior parte mantinha-se agrupada por espécies, e com a chegada do crepúsculo os bandos abalaram, um após outro. Só o maçarico ficou. Os outros comunicavam por pequenos trinados, organizando as suas formações na escuridão que se instalava. Por uns momentos rondavam a mil metros por cima da tundra, até que rompiam para Sul. As narcejas viajam sempre de noite. Digerem rapidamente, consomem muita energia, e durante o dia têm que procurar alimento. Durante as migrações, o seu alto consumo de energia só pode ser satisfeito através da exacta regulação do tempo de voo. Ele tem de terminar logo que amanhece, mal as aves podem começar a alimentar-se.
            Lá no alto, por cima de si, o maçarico ouvia as fracas vozes ciciadas das aves que se dirigiam do Árctico para outras paragens mais quentes. Nas margens dos charcos começavam a formar-se cristais de gelo. O instinto do maçarico-esquimó proibia-o de voar sozinho. Porém, quando lançou à noite fria um chamamento estridente, ninguém respondeu. E era tempo de partir.
            Elevou-se na aragem, procurou encontrar o ângulo mais favorável, com o bordo de ataque das asas levantado e o bordo de fuga descaído, até sentir finalmente a corrente ascendente. Na família das galinholas, o maçarico dispunha das asas mais adaptadas a um voo fácil e rápido; eram longas, estreitas, e graciosamente terminadas em ponta. Mesmo quando ficava parado, de asas abertas, no vento suave da noite, era transportado pela aragem como se não tivesse peso. Lançava-se agilmente para o ar com o impulso das pernas, dava duas batidas de asa para obter estabilidade de voo, e elevava-se quase sem esforço. Durante mais de um minuto subiu na vertical, até que a tundra desapareceu lá em baixo, no cinzento do crepúsculo. Depois manteve a altitude. A velocidade aumentou, e ele voava com batidas mais leves e mais lentas. O ar sibilava à sua volta e comprimia-lhe as penas contra o corpo. A viagem tinha começado. Mesmo o seu cérebro primitivo e simples sentia vagamente que o caminho indefinido, estendido diante de si por dois subcontinentes, era um corredor da morte. Nele não havia misericórdia, apenas ameaças de tempestades, de inimigos, da própria morte. No entanto, antes de a tundra inóspita mergulhar na névoa do horizonte, o maçarico pressentiu levemente que o impulso nupcial havia de chamá-lo no próximo ano. Na Primavera voltaria a esperar pela sua fêmea, quando os musgos e os líquenes do Árctico ficassem verdes outra vez.

                                               O  CORREDOR  DA  MORTE

            ... Apontamentos de Lucien McShan Turner, até agora não publicados, sobre as aves da baía de Ungava... Não vi nenhum maçarico-esquimó, até à manhã do dia 4 de Setembro de 1884, quando regressávamos da foz do rio Koksoak. Um bando enorme, de várias centenas de exemplares, voava em direcção ao Sul...

domingo, 2 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 7


2

            Os dias quentes e as noites frescas passaram com a rapidez do vento, os montes de neve desapareceram das depressões escuras do terreno, e as tonalidades cinzentas da paisagem da tundra transformaram-se num flamejante tapete de flores amarelas e rosadas. Mas a fêmea do maçarico não chegou. As narcejas juntaram-se às centenas, lutaram por uma reserva, acasalaram, fizeram ninhos. Prepararam-se para dar início a um novo ciclo de vida, objectivo pelo qual tinham voado dez ou doze mil quilómetros. O maçarico lutou como um louco contra as tarambolas, contra qualquer maçarico-das-rochas que atravessasse a fronteira da sua reserva, até esta ficar salpicada das penas castanhas dos intrusos, que demasiado tarde fugiram aos seus ataques. As hormonas do acasalamento, segregadas pelas glândulas, acumulavam-se nele como uma carga explosiva.
            Investiu contra cada narceja que ousasse chegar-se a ele. Porém, o seu modelo instintivo de comportamento não lhe permitiu ser hostil com as escrevedeiras, os tentilhões e os lagópodes-brancos, que também povoavam a tundra. Estes não eram biologicamente seus parentes próximos, nem lhe disputavam o alimento de que necessitava para as crias, logo que a fêmea chegasse. Uma fêmea de galo branco fizera o ninho a menos de cinco metros do lugar onde haveria de ficar o seu. Mas o maçarico mal dera por isso, e passados alguns dias já tinha esquecido que ele estava ali.
            As noites foram-se tornando maiores e mais escuras. As flores minúsculas e claras da tundra deram lugar a sementes emplumadas, que pareciam tramas de seda. Muito perto, um par excitado de tarambolas-douradas começou a gritar. A penugem negra do papo e da barriga brilhava intensamente aos raios do sol matinal que apareceu ao longe, no horizonte. Então elas começaram a voar em círculos, rapidamente. O maçarico sabia que as crias já tinham saído da casca. Tinham acabado de deixar o ninho, bem desenvolvidas desde o início, como todas as narcejas. E agora corriam ali à volta, antes de secarem completamente as cascas de ovo que as tinham protegido. O Verão polar ia chegando ao fim.
            Várias crias aveludadas corriam pela reserva do maçarico, atrás da mãe que lhes trazia comida. Este lançou um assobio de aviso na sua direcção e investiu contra elas. As crias gritaram pela mãe, e isso teve sobre ela mais efeito do que o medo de uma ave estranha e muito maior. A fêmea não fugiu. Ficou parada e abriu as asas protectoras sobre as minúsculas bolas de penas que piavam, agachadas no tapete de musgo. O maçarico levantou voo e não voltou a atacá-las. Planou trinta metros até um monte de rochas onde poisou, observou como ela alimentava os filhos e esqueceu-os.
            O ponto alto do ciclo de actividade das glândulas acabava de ser ultrapassado. A produção de hormonas era cada vez menor, e com ela desaparecia lentamente o impulso de acasalamento e a agressividade. Em seu lugar veio uma outra necessidade. Dantes era a defesa da reserva o primeiro mandamento, mesmo mais importante do que a busca de alimento. Agora começava a sentir as primeiras manifestações de impulso para o movimento que não se calava. Nenhuma fêmea viera, e a reserva perdera significado.
            De vez em quando observava a tarambola-dourada, mas ela não se ia embora. Acabou por deixar de se preocupar com ela e esqueceu-a. Durante um dia deambulou por ali. Às vezes dava-se conta dos intrusos que lhe penetravam na reserva, mas logo os esquecia. No dia seguinte outras narcejas chegaram à reserva. Chegavam e partiam, e o maçarico não lhes ligava qualquer importância. Uma vez voou mesmo um bom bocado pelo rio abaixo, e ficou longe durante um par de horas. Foi a primeira vez que deixou a reserva, desde a sua chegada, há dois meses atrás.
            À sua volta as narcejas novas cresciam rapidamente. Os pais abandonavam-nas e elas tinham que fazer pela vida. Era uma separação brusca e total. Pais e filhos formavam, cada um, o seu bando migratório.
            Chegou o fim de Julho. O pântano fervilhava de insectos e crustáceos, que eram o alimento das narcejas. Havia agora alimento em demasia, e faltavam ainda alguns meses para ao inverno. Mas o Árctico já tinha cumprido o seu papel. E o Sul chamava insistentemente, semanas a fio, antes que os bandos de facto se pusessem a caminho. O maçarico, que durante todo o Verão lutara furiosamente por ficar sozinho, ansiava agora por companhia. Isso nada tinha que ver com o pensamento ou com a inteligência. Ele reagia simplesmente ao primitivo modelo de comportamento da espécie, às alterações do ciclo fisiológico. Os dias eram cada vez mais curtos, o sol cada vez mais fraco, e com isso reduzia-se também a actividade da hipófise. As hormonas da hipófise estimulavam as gónadas a derramar hormonas sexuais na corrente sanguínea. E agora, ao reduzir-se a produção de hormonas, desaparecia o agressivo impulso de acasalamento, substituído pelo instinto migratório. Era apenas um processo fisiológico. O maçarico não tinha consciência de que o Inverno ia chegar ao Árctico, e de que morreria à fome quem se alimentava de insectos e ali permanecesse. Ele conhecia apenas a irresistível força que agora o obrigava a migrar.
            Porém, algures no seu cérebro rudimentar, esboçava-se um processo de pensamento elementar. Por que razão estava sempre sozinho? Onde paravam as fêmeas que o instinto lhe prometia em cada primavera, quando o fogo nupcial ardia em todas as suas células? Nesta altura, as outras aves juntavam-se em bandos migratórios. Mas por que motivo não havia, entre as miríades de narcejas e outras espécies de maçaricos, nenhuma outra com a penugem castanha clara, que ele prontamente reconheceria como irmã de casta?
(Continua)