sexta-feira, 28 de junho de 2019

O último maçarico - esquimó 15


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            O maçarico sabia que tinham de continuar a voar para Leste, para que o temporal os não apanhasse de novo. Mas isso era um simples reconhecimento factual, que não provocava nenhum sentimento de medo. Já tinha esquecido o pânico do tempestuoso céu de neve, tinha esquecido mesmo as tarambolas afogadas, só se lembrava da tempestade. Na sua memória ela não era um acontecimento horrível e medonho, apenas um inimigo natural com que tinha que contar, e que era preciso evitar.
            Mas o destino do bando era o Sul, e para Leste apenas se estendia o imenso mar vazio. Assim, meia hora depois, o maçarico mudou de rumo e apontou a Sul. Durante cerca de meia hora voaram nessa direcção, até que a frente fria os apanhou de novo. Logo que as primeiras gotas de chuva caíram, o maçarico rodou para Leste, e alguns minutos depois encontrou de novo a atmosfera límpida e tranquila.
            Nas três horas que faltavam para a alvorada tiveram que repetir várias vezes esta manobra. Rumavam para Sul até a chuva os atingir, e viravam a Leste para a manter atrás de si. Voavam precisamente em direcção ao Sul quando um clarão amarelado rasgou o céu sombrio. Amanhecia rapidamente, a escuridão do mar transformou-se num verde frio, mas o sol não nascera ainda. Continuaram para Sul durante uma hora ou duas, o manto de nuvens tornou-se menos espesso, o dia clareou e o temporal não voltou. Mesmo as grossas nuvens cinzentas a Oeste desapareceram e a Leste rompeu o sol, como um archote, através das névoas que se dissolviam. O ar mantinha-se frio, mas em breve só o sol se erguia, no vasto céu azul.
            O bando tinha finalmente ultrapassado a tempestade, rompendo para Sul. O que ainda restava das nuvens geladas da noite diluía-se lá para o Norte, sobre os bancos de pesca da Terra Nova.
            No final da manhã o ar aqueceu, e farrapos de neblinas erguiam-se da água. O céu manteve a claridade azul, mas por vezes o mar ocultava-se atrás dum véu nebuloso. O bando aproximava-se do ponto onde se encontram a corrente fria do Lavrador, que se desloca para Sul, e a corrente quente do Golfo, dirigindo-se para Norte. Aqui, ao largo da Terra Nova, a corrente do Golfo desvia-se para Leste, para o Atlântico Central. Durante uma hora foram atravessando bancos de nevoeiro, até que a vista do mar ficou livre. O verde pálido da água deu lugar ao azul marinho, e as duas cores delimitavam-se tão rigorosamente como o mar e a praia. O bando encontrava-se sobre a corrente do Golfo, que vem dos trópicos. O verde da corrente do Lavrador, último prolongamento do Árctico, desvanecia-se atrás dele.
            As asas batiam mecanicamente, sempre com idêntico andamento, como se não estivessem fatigadas. A atmosfera era cada vez mais quente, pois em cada hora avançavam 80 quilómetros para Sul. E na monotonia do voo só alguma coisa mudava quando planavam cerca de uma hora, perdendo altitude até à flor das ondas. Depois subiam outra vez.
            Visto de perto, descobria-se que o mar, tal como a tundra, só na aparência era deserto e sem vida. As aves passavam ao rés da água, que formigava de vida. Por vezes cintilavam as medusas, ao longo de quilómetros, como discos brilhantes. Cardumes de peixes vinham à superfície, e o sol reflectia-se, metálico, em milhares de corpos prateados. Depois apareciam autênticas nuvens de plâncton, organismos unicelulares microscópicos, cada um deles um minúsculo ponto, colorido e invisível. Mas eram aos biliões, e coloriam quilómetros de mar de um vermelho vivo.
            À superfície da água havia também outras aves, que passam a maior parte da vida a cardar no mar alto. Apenas voam para terra quando o impulso de acasalamento as chama. Paínhos-mergulhadores, de patas coloridas, esvoaçavam por ali como borboletas, e precipitavam-se entre as ondas. Os seus vultos faiscavam como reflexos minúsculos, e sem descanso procuravam alimento, pequenos crustáceos e plâncton. Aves aquáticas que tinham nidificado na tundra, no meio das narcejas suas parentes, tinham regressado ao mar, em cuja solidão se manteriam até à próxima época de criação. Casualmente passava um grande albatroz, com as suas braçadas escuras e tranquilas, a aproveitar habilmente a impulsão criada sobre as cristas das ondas, pelos movimentos da água. Mas aqui tratava-se de verdadeiras aves marinhas. O mar alimentava-as e concedia-lhes repouso quando as asas ficavam fatigadas, pois podiam nadar tão perfeitamente como voavam.
            O maçarico e as tarambolas só podiam voar, voar e voar, adiando o descanso e o alimento, até atingirem terra firme.
(Cont.)