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O
maçarico sabia que tinham de continuar a voar para Leste, para que o temporal
os não apanhasse de novo. Mas isso era um simples reconhecimento factual, que
não provocava nenhum sentimento de medo. Já tinha esquecido o pânico do
tempestuoso céu de neve, tinha esquecido mesmo as tarambolas afogadas, só se
lembrava da tempestade. Na sua memória ela não era um acontecimento horrível e
medonho, apenas um inimigo natural com que tinha que contar, e que era preciso
evitar.
Mas o destino
do bando era o Sul, e para Leste apenas se estendia o imenso mar vazio. Assim,
meia hora depois, o maçarico mudou de rumo e apontou a Sul. Durante cerca de
meia hora voaram nessa direcção, até que a frente fria os apanhou de novo. Logo
que as primeiras gotas de chuva caíram, o maçarico rodou para Leste, e alguns
minutos depois encontrou de novo a atmosfera límpida e tranquila.
Nas três
horas que faltavam para a alvorada tiveram que repetir várias vezes esta
manobra. Rumavam para Sul até a chuva os atingir, e viravam a Leste para a
manter atrás de si. Voavam precisamente em direcção ao Sul quando um clarão
amarelado rasgou o céu sombrio. Amanhecia rapidamente, a escuridão do mar
transformou-se num verde frio, mas o sol não nascera ainda. Continuaram para Sul
durante uma hora ou duas, o manto de nuvens tornou-se menos espesso, o dia clareou
e o temporal não voltou. Mesmo as grossas nuvens cinzentas a Oeste
desapareceram e a Leste rompeu o sol, como um archote, através das névoas que
se dissolviam. O ar mantinha-se frio, mas em breve só o sol se erguia, no vasto
céu azul.
O bando
tinha finalmente ultrapassado a tempestade, rompendo para Sul. O que ainda
restava das nuvens geladas da noite diluía-se lá para o Norte, sobre os bancos
de pesca da Terra Nova.
No final
da manhã o ar aqueceu, e farrapos de neblinas erguiam-se da água. O céu manteve
a claridade azul, mas por vezes o mar ocultava-se atrás dum véu nebuloso. O
bando aproximava-se do ponto onde se encontram a corrente fria do Lavrador, que
se desloca para Sul, e a corrente quente do Golfo, dirigindo-se para Norte.
Aqui, ao largo da Terra Nova, a corrente do Golfo desvia-se para Leste, para o
Atlântico Central. Durante uma hora foram atravessando bancos de nevoeiro, até
que a vista do mar ficou livre. O verde pálido da água deu lugar ao azul marinho,
e as duas cores delimitavam-se tão rigorosamente como o mar e a praia. O bando
encontrava-se sobre a corrente do Golfo, que vem dos trópicos. O verde da
corrente do Lavrador, último prolongamento do Árctico, desvanecia-se atrás dele.
As asas
batiam mecanicamente, sempre com idêntico andamento, como se não estivessem fatigadas.
A atmosfera era cada vez mais quente, pois em cada hora avançavam 80
quilómetros para Sul. E na monotonia do voo só alguma coisa mudava quando
planavam cerca de uma hora, perdendo altitude até à flor das ondas. Depois
subiam outra vez.
Visto de
perto, descobria-se que o mar, tal como a tundra, só na aparência era deserto e
sem vida. As aves passavam ao rés da água, que formigava de vida. Por vezes
cintilavam as medusas, ao longo de quilómetros, como discos brilhantes.
Cardumes de peixes vinham à superfície, e o sol reflectia-se, metálico, em
milhares de corpos prateados. Depois apareciam autênticas nuvens de plâncton,
organismos unicelulares microscópicos, cada um deles um minúsculo ponto,
colorido e invisível. Mas eram aos biliões, e coloriam quilómetros de mar de um
vermelho vivo.
À
superfície da água havia também outras aves, que passam a maior parte da vida a
cardar no mar alto. Apenas voam para terra quando o impulso de acasalamento as
chama. Paínhos-mergulhadores, de patas coloridas, esvoaçavam por ali como
borboletas, e precipitavam-se entre as ondas. Os seus vultos faiscavam como
reflexos minúsculos, e sem descanso procuravam alimento, pequenos crustáceos e
plâncton. Aves aquáticas que tinham nidificado na tundra, no meio das narcejas
suas parentes, tinham regressado ao mar, em cuja solidão se manteriam até à
próxima época de criação. Casualmente passava um grande albatroz, com as suas
braçadas escuras e tranquilas, a aproveitar habilmente a impulsão criada sobre
as cristas das ondas, pelos movimentos da água. Mas aqui tratava-se de
verdadeiras aves marinhas. O mar alimentava-as e concedia-lhes repouso quando
as asas ficavam fatigadas, pois podiam nadar tão perfeitamente como voavam.
O maçarico
e as tarambolas só podiam voar, voar e voar, adiando o descanso e o alimento,
até atingirem terra firme.
(Cont.)